Ghost writer eu conhecia, é claro. Mesmo porque já me propuseram vestir lençol branco e arrastar correntes literárias, bancando a primeira pessoa em lugar de uma terceira, menos disposta às chatices da escrita. O que eu não conhecia é ghost book - até que me aparecesse um. Não qualquer um: livro fantasma de "minha" autoria.
Falo sério: tempos atrás, soube na Estante Virtual que um sebo de Belo Horizonte tinha à venda, por R$ 10, algo intitulado "O perfil no jornalismo", de Humberto Werneck. O abantesma ficou um tempo ali, depois sumiu - e eis que agora surge outro (ou será o mesmo?) em Simões Filho, município grudado em Salvador, à disposição de quem vá ao site Todaoferta e pague 25 reais. Um consolo saber que na Bahia me valorizei 150%.
Eu achava que Humberto Werneck era eu. Na verdade, é também eu. Só no Facebook tem mais dois - e, sendo um deles Júnior, há de haver ou ter havido um Sênior. No caso de "O perfil no jornalismo", cheguei a pensar no homônimo de quem falei na crônica "O Céu pode esperar", sobre o dia em que ouvi no rádio a notícia do falecimento de Humberto Werneck. Por pouco não faleci também - no ato ou tempos depois, quando topei com "meu" túmulo no Bonfim, em Belo Horizonte. Mas é pouco provável que o ocupante da tumba 143 da quadra 49 tenha escrito livros. Como 2º sargento da Polícia Militar de Minas, tinha mais o que fazer.
Vai ver então que sou xará de mim mesmo, cogitei - e estava certo: na Estante Virtual, informava-se que a obra à venda consistia em material utilizado em workshop, e workshops tenho feito por aí. Impossível saber quem foi o malandro que pegou meus textos de trabalho, distribuídos numa dessas ocasiões, e os vendeu no sebo. Imagino que tenha juntado as folhas com espiral, para dar à coisa um ar de livro. E eu que me julgava merecedor de encadernação menos vulgar. Ou será que acabei, ai de mim, na brochura? Para sabê-lo, só se adquirir "O perfil no jornalismo", de Humberto Werneck.
Comprar livro meu seria algo inédito na minha vida de autor. Paciência, alguém teria de fazê-lo. Que meu gesto vos sirva de exemplo! Como a transação seria feita na internet, eu não teria de passar pela cruel experiência de me encontrar espremido numa estante, regurgitante de ácaros e assolado pelos fungos. Já me aconteceu tantas vezes que criei calo na alma. Estou até pensando em lançar meu próximo livro num sebo, para queimar etapas. A vantagem, para o leitor, é não precisar ler, pois nesse tipo de comércio o livro em princípio já vem lido.
A primeira vez no sebo um autor não esquece. Não há como não pensar em rejeição, em não sentir-se como o bebê Moisés a boiar nas águas num cestinho. Não, é pior do que isso, pois quem abandona um recém-nascido não quer nada em troca, sejam 25 ou mesmo 10 reais.
Decidido: vou comprar. Pode vir a ser um bom investimento, se depois de morto alguém jogar sobre mim esta pá de cal literária: "De tudo o que publicou o finado, salva-se apenas 'O Perfil no jornalismo'". Mas será que valho 25 reais, minha atual cotação em Simões Filho, Bahia?
Não é pergunta que um autor se faça. Algo mais valioso está em jogo. Conta-se a história de um literato do terceiro ou quarto time que se deparou num sebo com uma de suas obras-primas. Trêmulo, pescou o volume e caiu em cima da dedicatória que fizera para um confrade, também do terceiro ou quarto time, ao qual era ligado não só pela subliteratura como por um recíproco rancor empapado de inveja - sentimento que entre escribas muitas vezes toma a forma de sorrisos e amabilidades. O desapreço pelo concorrente transparecia na espinhenta gelidez do advérbio: "Para fulano de tal, atenciosamente..." Razão de sobra, convenhamos, para que o destinatário tenha posto o presente à venda. Ultrajado, o autor comprou o refugo e o despachou de volta para o desafeto, "com renovadas atenções".
Será que o ex-proprietário de "O Perfil no jornalismo" deixou nome e endereço na folha de rosto dessa maçaroca?
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