FOLHA DE SP - 30/04
Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente
O tempo é dos reacionários. Falo daquelas "mentes naufragadas", de que falava Mark Lilla no seu livro, e para as quais o presente em que vivemos é tão precário, tão imundo, tão cruel que o melhor é retornar ao passado.
Antigamente, dizem eles, tudo era mais simples, mais ordenado, mais perfeito. Como os revolucionários que tanto abominam, os reacionários são iguais a eles e podem estar à esquerda e à direita, entre ateus ou fervorosos crentes.
Podem ser ambientalistas radicais (não confundir com cientistas) que, seguindo uma criança sueca aparentemente perturbada (Greta Thunberg), defendem um retorno às cavernas para salvar o planeta.
Podem ser nacionalistas extremistas que desprezam a democracia pluralista e sonham com formas autoritárias de política.
Sem esquecer o pessoal das arábias, que procura recriar, pela força das bombas e das decapitações, um novo Califado.
É contra essa moda que se insurge o filósofo francês Michel Serres em ensaio recente. Serres, do alto dos seus quase 90 anos, publicou "Antes é que Era Bom!" (edição portuguesa pela Guerra & Paz), ensaio de uma ironia fina, no qual a autobiografia se mistura com a filosofia. Antes é que era bom?
Sem dúvida, escreve Serres. Para ficarmos apenas no século 20, esse tempo arcádico para onde os reacionários querem voltar, havia grandes estadistas, como Hitler ou Stálin, Mao ou Pol Pot.
E havia também paz, muita paz, ao contrário das barbáries de hoje. Como não recordar, com um sorriso nostálgico, os anos de 1914 ou 1939? Como esquecer os piqueniques em Hiroshima ou Nagasaki? Como não sonhar com os tempos felizes no Gulag ou em Auschwitz?
Mas Michel Serres não se fica pela grande história. A pequena também tem espaço nas suas meditações rezingas. Vejamos.
Antigamente, quando tudo era bom, vivia-se longamente até aos 35 ou 40 anos —e uma família tinha que ter cinco filhos, às vezes mais, na esperança de conservar dois.
Não havia problemas na previdência social porque, em rigor, não havia previdência social. Nem previdência social, nem água encanada, nem sistema de descarga, nem antibióticos, nem anestesia. Uma ida ao dentista era uma experiência deliciosa.
E se o leitor, indignado, acusa Michel Serres de não ser sensível às tribulações do presente —o ambiente, a condição da mulher, a alimentação artificial, as redes sociais—, o pobre filósofo não tem defesa possível para cada um desses males.
A revolução industrial ou o regime de semiescravidão em que viviam as mulheres não têm paralelo com a trágica situação atual.
Redes sociais? O mundo era sem dúvida melhor quando as comunicações duravam semanas (e não segundos) —e as viagens duravam meses (e não horas).
E sobre os produtos naturais que era possível consumir diretamente da origem, sem controle sanitário de qualquer espécie, Michel Serres, filho de agricultores, suspira: era diarreia em família seis vezes por ano! Que interessava a febre aftosa quando era possível beber leite acabado de mungir de uma vaca bucólica e enferma?
Eu sei, eu sei: nunca devemos confundir progresso material com progresso moral. Se, como dizem os hipocondríacos, a saúde é uma fase transitória que não augura nada de bom, o momento que vivemos no Ocidente, de relativo conforto e acalmia, um dia será recordado como um "intermezzo" na história da humanidade. E essa história, como alguém dizia, sempre foi a história dos crimes contra a humanidade.
Mas, por outro lado, como negar que esse "intermezzo" existe? E que, material e até moralmente, nunca estivemos tão bem --na longevidade, na alimentação, no trabalho, no lazer? E até na política, sim, sobretudo quando nos comparamos com os desgraçados fantasmas que cresceram e morreram às ordens de Lênin, Franco ou Ceausescu?
Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente. E eu, depois de ler Michel Serres, imagino como seria terapêutico construir uma Disneyland só para eles —um resort gigantesco onde, voluntariamente, os reacionários poderiam experimentar os prazeres do passado com que tanto sonham.
Viveriam 24 horas sob vigilância policial. Trabalhariam a terra com as mãos, ou com instrumentos tão rudimentares como as mãos, e não com as frescuras da tecnologia. Os cuidados de saúde estariam a cargo de um barbeiro —ou, então, de um médico especializado em sangrias ou lobotomias.
E as mulheres reacionárias, especialmente elas, viveriam submetidas aos caprichos dos pais, dos maridos, dos irmãos, sem direitos cívicos de qualquer espécie. Se estivessem em plena menopausa, era hospício para elas.
Ah, já me esquecia: a alimentação seria "autêntica". Como negar aos nostálgicos os prazeres de uma boa diarreia?
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa
terça-feira, abril 30, 2019
Por um choque de conexão! (Sem email-bomba) - FERNÃO LARA MESQUITA
O Estado de S.Paulo - 30/04
Carlos solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente escancarado
O Brasil Oficial precisa de um “choque de conexão”. Tem de ser radicalmente plugado ao Brasil Real. Hoje este só existe em véspera de eleição. Está excluído de tudo para além do momento em que deposita o voto na urna. “As reformas” são uma novela sem fim a que o País assiste à distância há gerações. “Desta vez vai!” Mas o roteiro é exclusivo do grupo da privilegiatura momentaneamente investido do Poder Executivo, vivendo o papel para ele inédito de pagador e não apenas de gerador de contas, mais os seus interlocutores únicos: o resto da privilegiatura. Pelo País Real, feito touro de arena, entra no picadeiro sozinho, para ser desmontado, o ministro da Economia da vez. No final, todos “cedem”, docemente constrangidos, a seus próprios interesses porque a condição de “governo” é temporária, os empregos e as aposentadorias públicas é que são para sempre.
Não é que esteja faltando convencer alguém. Não há mais o que discutir. Não há mais o que argumentar. Todo mundo está convencido não só da iniquidade criminosa da situação como, a esta altura, da iminência do desastre, mas Miami e Lisboa são logo ali.
Falta entrar nesse debate quem tem tido o sangue chupado. Quem vai ter de continuar aqui. O Brasil sonha esquerda x direita, mas acordado é nobreza x plebeu. “Velha política” é a de político sem patrão, intocável. “Nova política” só quando todo mundo souber quem pôs cada um deles onde está e eles passarem a ter medo que os seus eleitores os tirem de lá todo santo dia; só quando formos nós a dar a última palavra sobre as leis que aceitamos acatar. Esperar que uma nova política nasça de mais regulamentos baixados pela velha é ilusão de noiva.
Estão aí as Forças Armadas para não nos deixarem mentir. O orçamento delas já era uma miniatura do orçamento do Brasil. ¾ do dinheiro vai pra salário. R$ 81,1 bi de 107,7 bi. O gasto com reservistas é maior que com militares da ativa porque, como no resto do serviço público, os aposentados, sempre precoces, são remunerados pelo provento máximo. Nas FAs eles custam, por enquanto, R$ 46,2 bi por ano contra contribuições previdenciárias de R$ 2,4 bi. O resto paga o favelão nacional que não se aposenta nunca. O que sobra para investimento em equipamentos de defesa, que é a parte que nos cabe nesse latifúndio, é o mesmo que sobra para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas na União, nos Estados e nos municípios. Estão orçados para este ano R$ 9,8 bi, 16% menos que em 2018, número que irá de menos em menos até o amargo fim empurrado pelas fórmulas de “reajustes” automáticos que a privilegiatura ativa ou aposentada se atribui como “direito adquirido”, se nada mudar muito nesse meio tempo.
E já sabemos que vai mudar, só que para pior. Como toda a discussão se dá exclusivamente entre eles e com base exclusivamente nos parâmetros deles, não será corrigida a pornográfica defasagem para cima do salário inicial de R$ 18 mil do ascensorista do Congresso em relação à realidade do favelão nacional. Será, sim, corrigida a defasagem para baixo do salário do general em relação ao dos ascensoristas do Congresso.
A “alternativa militar” na sua vez no poder após 34 anos de ostracismo resolveu o seu, portanto. Tomou distância do Brasil plebeu e está agora pau a pau com a privilegiatura.
E o desemprego? A economia paralisada? A guerra civil que mais mata no mundo? Quem?! Como?! Onde?! A gente do poder tem mais o que fazer. Mas se valer olhar pelo buraco da fechadura do banheiro, é bom lembrar, nem o papa resiste. Carlos Bolsonaro solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente da República escancarado. Anda sempre à beira de um ataque de nervos. O dedo puxa o gatilho antes da participação do cérebro. Com ele tudo logo vira um enredo “família Bórgia”. Na equipe, no palácio, no Brasil, no mundo, tudo é uma só e mesma conspiração. Com o filósofo esotérico esbravejando por cima, essa “noia” toda ganha um endosso “teórico”. E então, dia sim, dia não, o ratinho que sai de um buraquinho vira um ratazão, vira um tigre-leão.
Nos albores da internet ganhou enorme notoriedade o “email-bomba”. O cara chegava em casa vindo do boteco e começava a “desabafar por escrito” no computador. Vomitava tudo de mais azedo que tinha atravessado na garganta desde priscas eras, como fazia antes de si para si. Só que no final, “uósh”, lá ia o bomba para o computador de alguém, onde ficava gravado para todo o sempre para ser lido, relido e cem vezes amargado. E de lá vinha outro do mesmo calibre, vazado naqueles termos que nos sobem à veneta na hora da raiva, mas que se repetidos em voz alta não passariam na polícia do bom senso.
As regras de convivência, a cerimônia e o mínimo de polidez exigidos no trato social, até pelos indivíduos mais toscos, foram moídos pela internet, onde o “convívio” se dá entre solidões. Você, o semianalfabeto, o “noiado”, todo mundo conversa na rede sozinho no seu canto, trancado no banheiro, sem ouvir o que ele próprio está dizendo, sem ver a reação das pessoas, sem o concurso do tom de voz, da expressão do rosto, do gestual, enfim, que dá a cor e o peso ao que é dito e ouvido, sem esclarecer os mal-entendidos. O que passa de um computador para outro nessas discussões é o texto sem contexto nem revisão. Despido. Árido. De pedra.
O resultado é a guerra. Mundial e de todos contra todos, cada vez mais. Babel. Coisa de Exu.
Isso arrebentou tantas amizades, tantas empresas e tantas famílias que um dos primeiros aplicativos que fez sucesso na lojinha da Apple foi um que procurava sinais de excesso de substâncias intoxicantes no texto dos emails digitados após o anoitecer (erros de grafia, palavrões, etc.) e aplicava um bom questionário ao seu autor, buscando aferir o grau de consciência crítica que lhe restava antes de liberálo para envio.
Sumiu. E pelo que está pintando, vai levar 5 gerações para o 03 entender a importância fundamental dos ritos do poder. O diabo é que o Brasil não tem nem mais 5 minutos pra perder.
Carlos solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente escancarado
O Brasil Oficial precisa de um “choque de conexão”. Tem de ser radicalmente plugado ao Brasil Real. Hoje este só existe em véspera de eleição. Está excluído de tudo para além do momento em que deposita o voto na urna. “As reformas” são uma novela sem fim a que o País assiste à distância há gerações. “Desta vez vai!” Mas o roteiro é exclusivo do grupo da privilegiatura momentaneamente investido do Poder Executivo, vivendo o papel para ele inédito de pagador e não apenas de gerador de contas, mais os seus interlocutores únicos: o resto da privilegiatura. Pelo País Real, feito touro de arena, entra no picadeiro sozinho, para ser desmontado, o ministro da Economia da vez. No final, todos “cedem”, docemente constrangidos, a seus próprios interesses porque a condição de “governo” é temporária, os empregos e as aposentadorias públicas é que são para sempre.
Não é que esteja faltando convencer alguém. Não há mais o que discutir. Não há mais o que argumentar. Todo mundo está convencido não só da iniquidade criminosa da situação como, a esta altura, da iminência do desastre, mas Miami e Lisboa são logo ali.
Falta entrar nesse debate quem tem tido o sangue chupado. Quem vai ter de continuar aqui. O Brasil sonha esquerda x direita, mas acordado é nobreza x plebeu. “Velha política” é a de político sem patrão, intocável. “Nova política” só quando todo mundo souber quem pôs cada um deles onde está e eles passarem a ter medo que os seus eleitores os tirem de lá todo santo dia; só quando formos nós a dar a última palavra sobre as leis que aceitamos acatar. Esperar que uma nova política nasça de mais regulamentos baixados pela velha é ilusão de noiva.
Estão aí as Forças Armadas para não nos deixarem mentir. O orçamento delas já era uma miniatura do orçamento do Brasil. ¾ do dinheiro vai pra salário. R$ 81,1 bi de 107,7 bi. O gasto com reservistas é maior que com militares da ativa porque, como no resto do serviço público, os aposentados, sempre precoces, são remunerados pelo provento máximo. Nas FAs eles custam, por enquanto, R$ 46,2 bi por ano contra contribuições previdenciárias de R$ 2,4 bi. O resto paga o favelão nacional que não se aposenta nunca. O que sobra para investimento em equipamentos de defesa, que é a parte que nos cabe nesse latifúndio, é o mesmo que sobra para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas na União, nos Estados e nos municípios. Estão orçados para este ano R$ 9,8 bi, 16% menos que em 2018, número que irá de menos em menos até o amargo fim empurrado pelas fórmulas de “reajustes” automáticos que a privilegiatura ativa ou aposentada se atribui como “direito adquirido”, se nada mudar muito nesse meio tempo.
E já sabemos que vai mudar, só que para pior. Como toda a discussão se dá exclusivamente entre eles e com base exclusivamente nos parâmetros deles, não será corrigida a pornográfica defasagem para cima do salário inicial de R$ 18 mil do ascensorista do Congresso em relação à realidade do favelão nacional. Será, sim, corrigida a defasagem para baixo do salário do general em relação ao dos ascensoristas do Congresso.
A “alternativa militar” na sua vez no poder após 34 anos de ostracismo resolveu o seu, portanto. Tomou distância do Brasil plebeu e está agora pau a pau com a privilegiatura.
E o desemprego? A economia paralisada? A guerra civil que mais mata no mundo? Quem?! Como?! Onde?! A gente do poder tem mais o que fazer. Mas se valer olhar pelo buraco da fechadura do banheiro, é bom lembrar, nem o papa resiste. Carlos Bolsonaro solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente da República escancarado. Anda sempre à beira de um ataque de nervos. O dedo puxa o gatilho antes da participação do cérebro. Com ele tudo logo vira um enredo “família Bórgia”. Na equipe, no palácio, no Brasil, no mundo, tudo é uma só e mesma conspiração. Com o filósofo esotérico esbravejando por cima, essa “noia” toda ganha um endosso “teórico”. E então, dia sim, dia não, o ratinho que sai de um buraquinho vira um ratazão, vira um tigre-leão.
Nos albores da internet ganhou enorme notoriedade o “email-bomba”. O cara chegava em casa vindo do boteco e começava a “desabafar por escrito” no computador. Vomitava tudo de mais azedo que tinha atravessado na garganta desde priscas eras, como fazia antes de si para si. Só que no final, “uósh”, lá ia o bomba para o computador de alguém, onde ficava gravado para todo o sempre para ser lido, relido e cem vezes amargado. E de lá vinha outro do mesmo calibre, vazado naqueles termos que nos sobem à veneta na hora da raiva, mas que se repetidos em voz alta não passariam na polícia do bom senso.
As regras de convivência, a cerimônia e o mínimo de polidez exigidos no trato social, até pelos indivíduos mais toscos, foram moídos pela internet, onde o “convívio” se dá entre solidões. Você, o semianalfabeto, o “noiado”, todo mundo conversa na rede sozinho no seu canto, trancado no banheiro, sem ouvir o que ele próprio está dizendo, sem ver a reação das pessoas, sem o concurso do tom de voz, da expressão do rosto, do gestual, enfim, que dá a cor e o peso ao que é dito e ouvido, sem esclarecer os mal-entendidos. O que passa de um computador para outro nessas discussões é o texto sem contexto nem revisão. Despido. Árido. De pedra.
O resultado é a guerra. Mundial e de todos contra todos, cada vez mais. Babel. Coisa de Exu.
Isso arrebentou tantas amizades, tantas empresas e tantas famílias que um dos primeiros aplicativos que fez sucesso na lojinha da Apple foi um que procurava sinais de excesso de substâncias intoxicantes no texto dos emails digitados após o anoitecer (erros de grafia, palavrões, etc.) e aplicava um bom questionário ao seu autor, buscando aferir o grau de consciência crítica que lhe restava antes de liberálo para envio.
Sumiu. E pelo que está pintando, vai levar 5 gerações para o 03 entender a importância fundamental dos ritos do poder. O diabo é que o Brasil não tem nem mais 5 minutos pra perder.
Lula, o incorrigível - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 30/04
Entrevista do ex-presidente e presidiário na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar detentos.
A entrevista que o ex-presidente e presidiário Lula da Silva concedeu na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar os detentos. Pois o chefão petista, mesmo depois de um ano na cadeia, deu todos os sinais de que continua o mesmo: além de não reconhecer os crimes que cometeu, julgando-se um preso político, Lula não foi capaz de admitir nem sequer a participação da fina flor do lulopetismo nos maiores escândalos de corrupção da história brasileira, assim como não admitiu o envolvimento ativo do PT na ruína econômica, política e moral do País. Ou seja, é o Lula de sempre.
Na entrevista, dada aos jornais Folha de S.Paulo e El País, Lula, quando questionado sobre a corrupção petista, respondeu: “Ela (a corrupção) pode ter havido”. Isso significa que, para o ex-presidente, a condenação de alguns dos principais dirigentes petistas (inclusive do próprio Lula), de vários tesoureiros do partido e de diversos políticos que de uma forma ou de outra estavam ligados a governos petistas não é suficiente para caracterizar a corrupção petista. É difícil imaginar o que mais seria necessário para que o líder máximo do PT finalmente admitisse os crimes cometidos por ele e seus correligionários – primeiro passo para provar sua regeneração.
Mas Lula ainda acha que é preciso uma “prova” e que ele seja julgado “em função das provas”. É como se os oito juízes que já o julgaram e o condenaram por unanimidade até agora, em três instâncias judiciais, fossem todos despreparados ou, pior, mancomunados para prejudicá-lo e, por extensão, aos pobres do País. Para Lula, aliás, a “farsa” de seu processo foi “montada no Departamento de Justiça dos Estados Unidos”. Com o passar do tempo, a narrativa lulopetista para as agruras do demiurgo de Garanhuns vai adquirindo contornos de fábula – ainda mais quando Lula diz que “combater a corrupção é uma marca do PT”.
Lula tampouco aceita fazer qualquer reflexão sobre seus erros e os do PT, que custaram o isolamento do partido mesmo entre as esquerdas. Ao contrário: o único “erro grave” que o ex-presidente admite ter cometido foi o de não ter feito “a regulamentação dos meios de comunicação” quando esteve no governo. Em português simples, se a imprensa tivesse sido “regulada” – um eufemismo nada sutil para censura e pressão –, Lula e seu partido não estariam sofrendo todos esses dissabores.
Para Lula, é preciso “fazer uma autocrítica geral neste país”, em razão “do que aconteceu em 2018 na eleição” – ou seja, quem precisa refletir sobre seus erros é o eleitor brasileiro, e não o PT. “O que não pode é este país estar governado por esse bando de maluco”, disse o ex-presidente – o mesmo que legou ao Brasil um desastre chamado Dilma Rousseff, responsável por dois anos de recessão e pelo colapso das contas públicas, e o mesmo que entregou o patrimônio nacional a quadrilhas de corruptos e a empresários desonestos.
Lula e o PT ainda são forças políticas consideráveis e poderiam ser importantes para a construção de uma oposição forte e atuante ao governo de Jair Bolsonaro, algo que é essencial ao bom funcionamento da democracia. Mas a irresponsabilidade e o espírito autoritário do lulopetismo impedem que o ex-presidente e seus devotos aceitem a democracia quando esta não lhes favorece – seja na forma do voto na urna, seja na forma de uma condenação judicial, mesmo que, em ambos os casos, tenham sido respeitados todos os trâmites estabelecidos na lei.
Ao mesmo tempo que diz respeitar “o voto do povo” e que “o povo não é bom só quando vota em mim”, Lula colocou a eleição em dúvida ao dizer que foi “atípica”, pela “quantidade de mentiras” disseminadas pelos adversários – como se os petistas não usassem essas mesmas armas, desde sempre. Para Lula, que fez sua carreira dividindo o País entre “nós” e “eles”, nunca se viu “o povo com tanto ódio nas ruas”.
Assim, Lula continua a apostar na polarização – a mesma estratégia da militância que sustenta o presidente Bolsonaro. Ou seja, os dois extremos ganham, enquanto o País perde.
Entrevista do ex-presidente e presidiário na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar detentos.
A entrevista que o ex-presidente e presidiário Lula da Silva concedeu na semana passada põe em dúvida a capacidade do sistema prisional de ressocializar os detentos. Pois o chefão petista, mesmo depois de um ano na cadeia, deu todos os sinais de que continua o mesmo: além de não reconhecer os crimes que cometeu, julgando-se um preso político, Lula não foi capaz de admitir nem sequer a participação da fina flor do lulopetismo nos maiores escândalos de corrupção da história brasileira, assim como não admitiu o envolvimento ativo do PT na ruína econômica, política e moral do País. Ou seja, é o Lula de sempre.
Na entrevista, dada aos jornais Folha de S.Paulo e El País, Lula, quando questionado sobre a corrupção petista, respondeu: “Ela (a corrupção) pode ter havido”. Isso significa que, para o ex-presidente, a condenação de alguns dos principais dirigentes petistas (inclusive do próprio Lula), de vários tesoureiros do partido e de diversos políticos que de uma forma ou de outra estavam ligados a governos petistas não é suficiente para caracterizar a corrupção petista. É difícil imaginar o que mais seria necessário para que o líder máximo do PT finalmente admitisse os crimes cometidos por ele e seus correligionários – primeiro passo para provar sua regeneração.
Mas Lula ainda acha que é preciso uma “prova” e que ele seja julgado “em função das provas”. É como se os oito juízes que já o julgaram e o condenaram por unanimidade até agora, em três instâncias judiciais, fossem todos despreparados ou, pior, mancomunados para prejudicá-lo e, por extensão, aos pobres do País. Para Lula, aliás, a “farsa” de seu processo foi “montada no Departamento de Justiça dos Estados Unidos”. Com o passar do tempo, a narrativa lulopetista para as agruras do demiurgo de Garanhuns vai adquirindo contornos de fábula – ainda mais quando Lula diz que “combater a corrupção é uma marca do PT”.
Lula tampouco aceita fazer qualquer reflexão sobre seus erros e os do PT, que custaram o isolamento do partido mesmo entre as esquerdas. Ao contrário: o único “erro grave” que o ex-presidente admite ter cometido foi o de não ter feito “a regulamentação dos meios de comunicação” quando esteve no governo. Em português simples, se a imprensa tivesse sido “regulada” – um eufemismo nada sutil para censura e pressão –, Lula e seu partido não estariam sofrendo todos esses dissabores.
Para Lula, é preciso “fazer uma autocrítica geral neste país”, em razão “do que aconteceu em 2018 na eleição” – ou seja, quem precisa refletir sobre seus erros é o eleitor brasileiro, e não o PT. “O que não pode é este país estar governado por esse bando de maluco”, disse o ex-presidente – o mesmo que legou ao Brasil um desastre chamado Dilma Rousseff, responsável por dois anos de recessão e pelo colapso das contas públicas, e o mesmo que entregou o patrimônio nacional a quadrilhas de corruptos e a empresários desonestos.
Lula e o PT ainda são forças políticas consideráveis e poderiam ser importantes para a construção de uma oposição forte e atuante ao governo de Jair Bolsonaro, algo que é essencial ao bom funcionamento da democracia. Mas a irresponsabilidade e o espírito autoritário do lulopetismo impedem que o ex-presidente e seus devotos aceitem a democracia quando esta não lhes favorece – seja na forma do voto na urna, seja na forma de uma condenação judicial, mesmo que, em ambos os casos, tenham sido respeitados todos os trâmites estabelecidos na lei.
Ao mesmo tempo que diz respeitar “o voto do povo” e que “o povo não é bom só quando vota em mim”, Lula colocou a eleição em dúvida ao dizer que foi “atípica”, pela “quantidade de mentiras” disseminadas pelos adversários – como se os petistas não usassem essas mesmas armas, desde sempre. Para Lula, que fez sua carreira dividindo o País entre “nós” e “eles”, nunca se viu “o povo com tanto ódio nas ruas”.
Assim, Lula continua a apostar na polarização – a mesma estratégia da militância que sustenta o presidente Bolsonaro. Ou seja, os dois extremos ganham, enquanto o País perde.
O presidente das pequenas coisas - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 30/04
Bolsonaro dedica-se a assuntos que não deveriam estar entre suas prioridades
Até as pedras sabem que o sucesso do governo Bolsonaro dependerá da economia, mais especificamente da reforma da Previdência e de outras medidas que destravem o crescimento. Não obstante, o mandatário prefere dedicar suas energias a uma cruzada moralista e a assuntos que, embora não sejam desimportantes, jamais deveriam ocupar o topo da escala das prioridades presidenciais.
Jair Bolsonaro está se tornando o presidente das pequenas coisas. Na semana passada, ele censurou uma peça publicitária do Banco do Brasile fez observações pouco congruentes sobre o turismo gay. Isso foi até a quinta-feira. Na sexta, manifestou apoio a um plano do ministro da Educação de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.
Uma coisa se pode dizer em favor de Bolsonaro. Ele não comete estelionato eleitoral. Tenta cumprir todos os desatinos prometidos durante a campanha. Não dá para reclamar de ele ser conservador. Ele foi eleito com essa plataforma e, numa democracia, se a sociedade decide coletivamente caminhar para trás, caminha-se para trás.
Só que o presidente perde a razão quando se apoia em erros factuais para justificar suas idiossincrasias. Não é verdade, por exemplo, que exista uma centralização de investimentos em faculdades de filosofia e sociologia. Como mostrou análise de Sabine Righetti e Nina Stocco Ranieri, as matrículas em filosofia ou sociologia representaram apenas 0,6% do total de inscrições em 2017. São ainda cursos incomensuravelmente mais baratos que os de áreas tecnológicas, o que significa que é preciso ter tomado um ácido para imaginar que exista concentração de verbas nessas carreiras.
Como dizia o senador americano Daniel Patrick Moynihan, aliás, uma rara combinação de pessoa que deu certo na política e na academia (sociólogo), “você tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos”.
Bolsonaro dedica-se a assuntos que não deveriam estar entre suas prioridades
Até as pedras sabem que o sucesso do governo Bolsonaro dependerá da economia, mais especificamente da reforma da Previdência e de outras medidas que destravem o crescimento. Não obstante, o mandatário prefere dedicar suas energias a uma cruzada moralista e a assuntos que, embora não sejam desimportantes, jamais deveriam ocupar o topo da escala das prioridades presidenciais.
Jair Bolsonaro está se tornando o presidente das pequenas coisas. Na semana passada, ele censurou uma peça publicitária do Banco do Brasile fez observações pouco congruentes sobre o turismo gay. Isso foi até a quinta-feira. Na sexta, manifestou apoio a um plano do ministro da Educação de “descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas)”.
Uma coisa se pode dizer em favor de Bolsonaro. Ele não comete estelionato eleitoral. Tenta cumprir todos os desatinos prometidos durante a campanha. Não dá para reclamar de ele ser conservador. Ele foi eleito com essa plataforma e, numa democracia, se a sociedade decide coletivamente caminhar para trás, caminha-se para trás.
Só que o presidente perde a razão quando se apoia em erros factuais para justificar suas idiossincrasias. Não é verdade, por exemplo, que exista uma centralização de investimentos em faculdades de filosofia e sociologia. Como mostrou análise de Sabine Righetti e Nina Stocco Ranieri, as matrículas em filosofia ou sociologia representaram apenas 0,6% do total de inscrições em 2017. São ainda cursos incomensuravelmente mais baratos que os de áreas tecnológicas, o que significa que é preciso ter tomado um ácido para imaginar que exista concentração de verbas nessas carreiras.
Como dizia o senador americano Daniel Patrick Moynihan, aliás, uma rara combinação de pessoa que deu certo na política e na academia (sociólogo), “você tem direito a sua própria opinião, mas não a seus próprios fatos”.
Vai dar o que falar - ELIANE CANTANHÊDE
O Estado de S.Paulo - 30/04
Bolsonaro não pode meter a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é.
Opresidente Jair Bolsonaro deu boas notícias ontem a um setor fundamental não apenas para o seu governo, mas para a própria economia brasileira: o agronegócio. A questão é que, ao agradar ao setor, o presidente está desagradando a outros setores. “Vai dar o que falar”, admitiu ele após uma das notícias. Acertou em cheio.
Depois de torrar bilhões de reais da Petrobrás por ingerência no preço do diesel e de dividir o Planalto ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil para o público jovem, o presidente voltou à carga ontem contra a autonomia das estatais, aliás, do mesmo BB. Apelando até ao “coração e ao cristianismo” do presidente do banco, pediu a redução dos juros no crédito rural. Essa é uma forte reivindicação do setor, que adorou a iniciativa. Mas o mercado se arrepiou mais uma vez e as ações do banco sofreram.
Bolsonaro também aproveitou a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina, para anunciar que enviará ao Congresso uma proposta para isentar de punição o produtor rural que atirar em invasores de sua propriedade. Para o pessoal de Direitos Humanos, corresponde a uma licença para matar. E não só invasores, mas concorrentes e desafetos.
Por fim, o presidente anunciou R$ 1,5 bilhão para a agricultura e avisou que está fazendo “uma limpa” no Ibama e no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e adorou a ida de policiais militares para o instituto, anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente. Como árbitro nos naturais conflitos entre agricultura e ambiente, o presidente assumiu um lado em detrimento do outro.
Bolsonaro tem muita razão em prestigiar e investir no agronegócio, um dos orgulhos nacionais e um dos propulsores do desenvolvimento brasileiro. Se não fosse a agricultura, o tombo do PIB na era Dilma Rousseff teria sido muito pior e mais drástico.
O setor responde por 23% do PIB, ou seja, por praticamente um quarto de todos os bens e serviços produzidos no País. Também é responsável por 32% da mão de obra e foi o segundo setor que mais cresceu em 2018, apesar de todas as dificuldades.
Além disso, já passou da hora de amplos setores da opinião pública e da academia deixarem de acreditar que a área rural e a agricultura são “atrasadas”. A área rural é conservadora em costumes, sim, mas a agricultura, definitivamente, não é atrasada.
As gerações foram se sofisticando, estudando nas melhores escolas, especializando-se mundo afora, investindo nas tecnologias mais up-to-date. Se os patrões modernizaram-se, as condições de trabalho igualmente avançaram muito ao longo das décadas.
O Brasil está entre os três maiores exportadores agrícolas do mundo. Logo, é uma potência nessa área e só chegou lá porque trabalha com maquinário, sementes e defensivos agrícolas altamente sofisticados – e que exigem mão de obra proporcionalmente bem capacitada.
Todas essas condições já tão especiais ganharam foco e tendem a ser potencializadas no atual governo. Afinal, a agricultura foi uma das primeiras e mais decisivas áreas a aderir à campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República, no rastro do desencanto do setor e das regiões Sul e Centro-Oeste com o PSDB.
Para arrematar, Bolsonaro escolheu para o Ministério da Agricultura a engenheira agrônoma e empresária Tereza Cristina, deputada do DEM de Mato Grosso do Sul e presidente da bancada ruralista.
Tudo muito bem, tudo muito bom, mas nada disso pode significar liberdade para Bolsonaro insistir em imitar Dilma e continuar metendo a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é. Não pode dizer uma coisa e o presidente fazer outra. Aliás, fazer uma atrás da outra.
A agricultura é fundamental, mas nada justifica Bolsonaro agir como Dilma e intervir no BB
Bolsonaro não pode meter a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é.
Opresidente Jair Bolsonaro deu boas notícias ontem a um setor fundamental não apenas para o seu governo, mas para a própria economia brasileira: o agronegócio. A questão é que, ao agradar ao setor, o presidente está desagradando a outros setores. “Vai dar o que falar”, admitiu ele após uma das notícias. Acertou em cheio.
Depois de torrar bilhões de reais da Petrobrás por ingerência no preço do diesel e de dividir o Planalto ao vetar uma propaganda do Banco do Brasil para o público jovem, o presidente voltou à carga ontem contra a autonomia das estatais, aliás, do mesmo BB. Apelando até ao “coração e ao cristianismo” do presidente do banco, pediu a redução dos juros no crédito rural. Essa é uma forte reivindicação do setor, que adorou a iniciativa. Mas o mercado se arrepiou mais uma vez e as ações do banco sofreram.
Bolsonaro também aproveitou a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina, para anunciar que enviará ao Congresso uma proposta para isentar de punição o produtor rural que atirar em invasores de sua propriedade. Para o pessoal de Direitos Humanos, corresponde a uma licença para matar. E não só invasores, mas concorrentes e desafetos.
Por fim, o presidente anunciou R$ 1,5 bilhão para a agricultura e avisou que está fazendo “uma limpa” no Ibama e no Instituto Chico Mendes (ICMBio) e adorou a ida de policiais militares para o instituto, anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente. Como árbitro nos naturais conflitos entre agricultura e ambiente, o presidente assumiu um lado em detrimento do outro.
Bolsonaro tem muita razão em prestigiar e investir no agronegócio, um dos orgulhos nacionais e um dos propulsores do desenvolvimento brasileiro. Se não fosse a agricultura, o tombo do PIB na era Dilma Rousseff teria sido muito pior e mais drástico.
O setor responde por 23% do PIB, ou seja, por praticamente um quarto de todos os bens e serviços produzidos no País. Também é responsável por 32% da mão de obra e foi o segundo setor que mais cresceu em 2018, apesar de todas as dificuldades.
Além disso, já passou da hora de amplos setores da opinião pública e da academia deixarem de acreditar que a área rural e a agricultura são “atrasadas”. A área rural é conservadora em costumes, sim, mas a agricultura, definitivamente, não é atrasada.
As gerações foram se sofisticando, estudando nas melhores escolas, especializando-se mundo afora, investindo nas tecnologias mais up-to-date. Se os patrões modernizaram-se, as condições de trabalho igualmente avançaram muito ao longo das décadas.
O Brasil está entre os três maiores exportadores agrícolas do mundo. Logo, é uma potência nessa área e só chegou lá porque trabalha com maquinário, sementes e defensivos agrícolas altamente sofisticados – e que exigem mão de obra proporcionalmente bem capacitada.
Todas essas condições já tão especiais ganharam foco e tendem a ser potencializadas no atual governo. Afinal, a agricultura foi uma das primeiras e mais decisivas áreas a aderir à campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República, no rastro do desencanto do setor e das regiões Sul e Centro-Oeste com o PSDB.
Para arrematar, Bolsonaro escolheu para o Ministério da Agricultura a engenheira agrônoma e empresária Tereza Cristina, deputada do DEM de Mato Grosso do Sul e presidente da bancada ruralista.
Tudo muito bem, tudo muito bom, mas nada disso pode significar liberdade para Bolsonaro insistir em imitar Dilma e continuar metendo a colher ora na Petrobrás, ora no Banco do Brasil. Ou bem o governo é liberal, ou bem não é. Não pode dizer uma coisa e o presidente fazer outra. Aliás, fazer uma atrás da outra.
A agricultura é fundamental, mas nada justifica Bolsonaro agir como Dilma e intervir no BB
As redes sociais da Presidência - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 30/04
No início de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro deu aos brasileiros minimamente sensatos uma nesga de esperança de que, uma vez passadas as diatribes da campanha eleitoral, suas redes sociais seriam geridas com zelo e profissionalismo, como convém a um meio de comunicação que é amplamente utilizado pelo presidente da República.
O Decreto n.º 9.671, publicado no dia 2 de janeiro, entre outras disposições, atribuía à Assessoria Especial da Presidência da República, em coordenação com a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo, a “competência para administrar as contas pessoais das mídias sociais do Presidente da República”. Ou seja, servidores públicos seriam os responsáveis por administrar as contas do presidente na internet e decerto o conteúdo publicado haveria de passar por um crivo republicano.
É sobejamente conhecido o apreço que Jair Bolsonaro tem pelo Twitter e pelo Facebook como meios de “comunicação direta” com o público, a tal ponto que seu triunfo eleitoral, em larga medida, é atribuído ao uso que fez das redes sociais para transmitir sua mensagem aos eleitores ante o exíguo tempo de propaganda no rádio e na TV.
No decorrer da campanha eleitoral, suas contas nas redes sociais foram administradas por seu filho Carlos Bolsonaro, vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo PSL. Carlos é usuário compulsivo das redes sociais e tido como hábil manipulador das informações que circulam naquele ambiente.
Uma coisa, no entanto, é a comunicação do candidato à Presidência. Outra, muito distinta, é a comunicação oficial do chefe de Estado e de governo. O Decreto n.º 9.671, portanto, indicava novos ares.
A esperança não durou mais do que poucos dias. Tanto Jair Bolsonaro não passou a moderar suas publicações nas redes sociais, tendo em vista o alto cargo que passou a ocupar na República, como suas contas, quando não administradas por ele mesmo, continuam a ser usadas por terceiros que não detêm prerrogativa para tal.
Para soltar as amarras legais que ele mesmo, em boa hora, havia atado, o presidente Jair Bolsonaro editou um novo decreto – Decreto n.º 9.703, publicado em 8 de fevereiro – revogando as disposições do Decreto n.º 9.671 que atribuíam a competência para a administração de suas contas pessoais nas redes sociais à Assessoria Especial da Presidência da República. Em outras palavras: servidores responsáveis por administrar as redes sociais do presidente da República, oficialmente, não têm mais qualquer ingerência sobre o que sai publicado no Twitter e no Facebook em nome de Jair Bolsonaro. Na prática, se assim quiser, o presidente da República pode deixar que um de seus filhos, ou qualquer pessoa que ele designar, publique informações em seu nome nas redes. Uma temeridade.
De acordo com reportagem do jornal Valor, o dispositivo do Decreto n.º 9.671 que procurava dar seriedade às postagens públicas da Presidência da República no Twitter e no Facebook foi revogado porque – pasme o leitor – “não deu certo e o presidente continuou postando”. Diz-se que o Brasil é um estranho país onde há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. É preocupante quando uma lei “não pega” nem para o chefe do Poder Executivo.
A necessidade de moderação no uso das redes sociais pelo presidente se dá, antes de tudo, porque o que Bolsonaro diz ou escreve tem evidentes repercussões políticas e econômicas. Deveria ser desnecessário enfatizar que as pulsões do presidente no manuseio de suas redes sociais são incompatíveis com a estabilidade de que o País precisa.
O porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, um funcionário sério e responsável, passou a trabalhar com nova estrutura de comunicação do governo. Era de esperar que, com a nova organização, as crises geradas pelo uso das redes sociais pelo presidente Bolsonaro fossem pelo menos amenizadas. Mas tudo continua na dependência de o presidente Bolsonaro entender a natureza do cargo que ocupa e o alcance que têm as suas palavras.
No início de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro deu aos brasileiros minimamente sensatos uma nesga de esperança de que, uma vez passadas as diatribes da campanha eleitoral, suas redes sociais seriam geridas com zelo e profissionalismo, como convém a um meio de comunicação que é amplamente utilizado pelo presidente da República.
O Decreto n.º 9.671, publicado no dia 2 de janeiro, entre outras disposições, atribuía à Assessoria Especial da Presidência da República, em coordenação com a Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo, a “competência para administrar as contas pessoais das mídias sociais do Presidente da República”. Ou seja, servidores públicos seriam os responsáveis por administrar as contas do presidente na internet e decerto o conteúdo publicado haveria de passar por um crivo republicano.
É sobejamente conhecido o apreço que Jair Bolsonaro tem pelo Twitter e pelo Facebook como meios de “comunicação direta” com o público, a tal ponto que seu triunfo eleitoral, em larga medida, é atribuído ao uso que fez das redes sociais para transmitir sua mensagem aos eleitores ante o exíguo tempo de propaganda no rádio e na TV.
No decorrer da campanha eleitoral, suas contas nas redes sociais foram administradas por seu filho Carlos Bolsonaro, vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo PSL. Carlos é usuário compulsivo das redes sociais e tido como hábil manipulador das informações que circulam naquele ambiente.
Uma coisa, no entanto, é a comunicação do candidato à Presidência. Outra, muito distinta, é a comunicação oficial do chefe de Estado e de governo. O Decreto n.º 9.671, portanto, indicava novos ares.
A esperança não durou mais do que poucos dias. Tanto Jair Bolsonaro não passou a moderar suas publicações nas redes sociais, tendo em vista o alto cargo que passou a ocupar na República, como suas contas, quando não administradas por ele mesmo, continuam a ser usadas por terceiros que não detêm prerrogativa para tal.
Para soltar as amarras legais que ele mesmo, em boa hora, havia atado, o presidente Jair Bolsonaro editou um novo decreto – Decreto n.º 9.703, publicado em 8 de fevereiro – revogando as disposições do Decreto n.º 9.671 que atribuíam a competência para a administração de suas contas pessoais nas redes sociais à Assessoria Especial da Presidência da República. Em outras palavras: servidores responsáveis por administrar as redes sociais do presidente da República, oficialmente, não têm mais qualquer ingerência sobre o que sai publicado no Twitter e no Facebook em nome de Jair Bolsonaro. Na prática, se assim quiser, o presidente da República pode deixar que um de seus filhos, ou qualquer pessoa que ele designar, publique informações em seu nome nas redes. Uma temeridade.
De acordo com reportagem do jornal Valor, o dispositivo do Decreto n.º 9.671 que procurava dar seriedade às postagens públicas da Presidência da República no Twitter e no Facebook foi revogado porque – pasme o leitor – “não deu certo e o presidente continuou postando”. Diz-se que o Brasil é um estranho país onde há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. É preocupante quando uma lei “não pega” nem para o chefe do Poder Executivo.
A necessidade de moderação no uso das redes sociais pelo presidente se dá, antes de tudo, porque o que Bolsonaro diz ou escreve tem evidentes repercussões políticas e econômicas. Deveria ser desnecessário enfatizar que as pulsões do presidente no manuseio de suas redes sociais são incompatíveis com a estabilidade de que o País precisa.
O porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, um funcionário sério e responsável, passou a trabalhar com nova estrutura de comunicação do governo. Era de esperar que, com a nova organização, as crises geradas pelo uso das redes sociais pelo presidente Bolsonaro fossem pelo menos amenizadas. Mas tudo continua na dependência de o presidente Bolsonaro entender a natureza do cargo que ocupa e o alcance que têm as suas palavras.
Invencionice tributária - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 30/04
Ampliação de incentivos para Zona Franca de Manaus desestimula modernização
Numa decisão que fragiliza ainda mais os depauperados cofres públicos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 6 votos a 4, ampliar os incentivos fiscais para a Zona Franca de Manaus (ZFM).
Na interpretação criativa da corte, empresas que comprarem insumos produzidos na região, já isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), terão mesmo assim o direito a crédito tributário —uma compensação financeira a cargo do governo— nas etapas subsequentes da cadeia produtiva.
Se o entendimento se mostra no mínimo controverso, o custo para o conjunto dos contribuintes é certo e estimado pela Receita Federal em R$ 16 bilhões anuais.
Mesmo antes da nova benesse, a ZFM já figurava entre os maiores programas de subsídio oficial a empresas, a um custo de cerca de R$ 25 bilhões ao ano. Foi estabelecida num longínquo 1967 como recurso temporário de fomento regional, mas um lobby público-privado e multipartidário já conseguiu esticar sua vigência até 2073.
Defensores da medida do STF repetem o surrado argumento da necessidade de apoiar entes menos desenvolvidos da Federação —como se a experiência já não tivesse demonstrado a baixa eficácia desse modelo obsoleto de incentivos.
Manaus abriga um caso raro, talvez único no mundo, de zona franca cujo objetivo principal não é exportar, mas produzir para o mercado interno. A teia de benefícios, agora ampliada, desestimula a modernização das fábricas e aprofunda o caos tributário nacional.
A distorção no sistema produtivo é evidente. Companhias alteram sua logística, sacrificando a eficiência, para reduzir o pagamento de impostos estaduais; a decisão do STF tende a gerar efeito similar.
Ademais, como alertam alguns especialistas, o crédito extra para os insumos pode tornar menos atrativa a produção de bens de maior valor agregado na região, com perda para a população local.
Passa da hora de enfrentar interesses estabelecidos e conceber mecanismos mais eficazes. Uma alternativa seria, por exemplo, aportes diretos da União com foco na proteção ambiental e exploração sustentável da biodiversidade.
Uma revisão geral dos excessivos benefícios tributários brasileiros, aliás, constitui o caminho mais óbvio para reduzir distorções econômicas e melhorar a qualidade da arrecadação dos governos —de preferência, com margem menor para invencionices judiciais.
Ampliação de incentivos para Zona Franca de Manaus desestimula modernização
Numa decisão que fragiliza ainda mais os depauperados cofres públicos, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 6 votos a 4, ampliar os incentivos fiscais para a Zona Franca de Manaus (ZFM).
Na interpretação criativa da corte, empresas que comprarem insumos produzidos na região, já isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), terão mesmo assim o direito a crédito tributário —uma compensação financeira a cargo do governo— nas etapas subsequentes da cadeia produtiva.
Se o entendimento se mostra no mínimo controverso, o custo para o conjunto dos contribuintes é certo e estimado pela Receita Federal em R$ 16 bilhões anuais.
Mesmo antes da nova benesse, a ZFM já figurava entre os maiores programas de subsídio oficial a empresas, a um custo de cerca de R$ 25 bilhões ao ano. Foi estabelecida num longínquo 1967 como recurso temporário de fomento regional, mas um lobby público-privado e multipartidário já conseguiu esticar sua vigência até 2073.
Defensores da medida do STF repetem o surrado argumento da necessidade de apoiar entes menos desenvolvidos da Federação —como se a experiência já não tivesse demonstrado a baixa eficácia desse modelo obsoleto de incentivos.
Manaus abriga um caso raro, talvez único no mundo, de zona franca cujo objetivo principal não é exportar, mas produzir para o mercado interno. A teia de benefícios, agora ampliada, desestimula a modernização das fábricas e aprofunda o caos tributário nacional.
A distorção no sistema produtivo é evidente. Companhias alteram sua logística, sacrificando a eficiência, para reduzir o pagamento de impostos estaduais; a decisão do STF tende a gerar efeito similar.
Ademais, como alertam alguns especialistas, o crédito extra para os insumos pode tornar menos atrativa a produção de bens de maior valor agregado na região, com perda para a população local.
Passa da hora de enfrentar interesses estabelecidos e conceber mecanismos mais eficazes. Uma alternativa seria, por exemplo, aportes diretos da União com foco na proteção ambiental e exploração sustentável da biodiversidade.
Uma revisão geral dos excessivos benefícios tributários brasileiros, aliás, constitui o caminho mais óbvio para reduzir distorções econômicas e melhorar a qualidade da arrecadação dos governos —de preferência, com margem menor para invencionices judiciais.
Francamente - ANA CARLA ABRÃO
O Estado de S. Paulo - 30/04
Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em imposto que nunca foi pago
Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) se arvorou a fazer política pública. Ao determinar que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de empresas que comprem insumos produzidos na Zona Franca de Manaus seja reconhecido como crédito tributário, o STF ampliou uma política pública cuja eficácia é amplamente questionável e cujos custos, já grandes, passarão a ser ainda maiores. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas ainda a serem conhecidas.
A decisão do STF, embora tomada a partir do julgamento de recursos judiciais impetrados pela União, vem em defesa de questões que vão além de sua competência constitucional. Os votos favoráveis à decisão avançam com base em análises econômicas de proteção do emprego na região e do impacto sobre o desmatamento da Amazônia. Por trás dessas análises, estudos esporádicos, com conclusões cuja robustez os ministros certamente não têm como julgar. Daí a importância de se criar a sistemática formal de avaliação de políticas públicas no Brasil.
Políticas públicas podem atuar tanto pelo lado da receita quanto pelo lado da despesa. Pela receita, o sistema tributário de maneira geral, os tratamentos fiscais diferenciados, sejam eles isenções, alíquotas diferenciadas ou simplificadas ou a definição de alíquotas de impostos para cada faixa de renda, são todos exemplos de políticas públicas. Tarifas de importação, fixação de preços e regulação de bens e serviços públicos também são políticas públicas. Todas elas têm impacto direto ou indireto na economia e na disponibilidade de recursos dos entes federados e da sua capacidade de atender às demandas da população.
Pelo lado da despesa, todo dispêndio público também é uma escolha de política pública. Desde as vinculações constitucionais que determinam gastos em áreas definidas como prioritárias, programas sociais como o Bolsa Família e tantos outros, a divisão do orçamentos entre as diversas áreas e órgãos do governo, são todas decisões de política pública. Da mesma forma, escolhas ligadas à gestão como a destinação final dos recursos ou onde priorizar os gastos de investimento, cada vez mais reduzidos, tudo é política pública.
Ou seja, decisões de política pública são tomadas diariamente pelos nossos governantes e legisladores por meio da proposição e/ou aprovação de leis. Mas quase nenhuma dessas decisões é previamente avaliada, seguidamente monitorada e eventualmente revista, ajustada ou descontinuada em razão de sua baixa efetividade. Somos profícuos e criativos em desenhar, propor e aprovar novas e ousadas políticas públicas. Mas somos parcimoniosos em interrompê-las quando não estão dando certo. E somos muitas vezes ignorantes em relação aos seus reais impactos – antes e depois de implantadas. Falta investir tempo avaliando e redesenhando o que aí está e não funciona. Afinal, recursos são escassos e carências são infinitas, o que por si só já justifica uma postura mais austera em relação às nossas políticas. Falta, como condição precedente para a aprovação e implantação de novas e a continuidade de velhas políticas públicas, ser guiado por uma avaliação criteriosa – e não somente pelas por pressões de grupos de interesse ou políticos.
Mas é no campo das isenções fiscais que nos tornamos campeões em desenhar políticas públicas igualmente inovadoras e desastrosas para o País. Conforme relatório apresentado pelo TCU, só em 2017 foram R$ 354 bilhões em isenções fiscais cujo resultado não é, na melhor das hipóteses, aquele que seria o esperado. Na pior, foram um dos motores do processo de desequilíbrio fiscal que nos empurrou para esses últimos duros anos de recessão, desemprego e baixa produtividade.
Mas mesmo campeões, ainda conseguimos inovar. Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em um imposto que nunca foi pago. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas.
Os custos estão claros. Os benefícios – e se esses justificam os custos – ninguém sabe, ninguém viu. Nem verá. Francamente, não precisamos de mais uma instância fazendo política pública sem avaliação – ainda mais, má política pública.
Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em imposto que nunca foi pago
Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) se arvorou a fazer política pública. Ao determinar que o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de empresas que comprem insumos produzidos na Zona Franca de Manaus seja reconhecido como crédito tributário, o STF ampliou uma política pública cuja eficácia é amplamente questionável e cujos custos, já grandes, passarão a ser ainda maiores. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas ainda a serem conhecidas.
A decisão do STF, embora tomada a partir do julgamento de recursos judiciais impetrados pela União, vem em defesa de questões que vão além de sua competência constitucional. Os votos favoráveis à decisão avançam com base em análises econômicas de proteção do emprego na região e do impacto sobre o desmatamento da Amazônia. Por trás dessas análises, estudos esporádicos, com conclusões cuja robustez os ministros certamente não têm como julgar. Daí a importância de se criar a sistemática formal de avaliação de políticas públicas no Brasil.
Políticas públicas podem atuar tanto pelo lado da receita quanto pelo lado da despesa. Pela receita, o sistema tributário de maneira geral, os tratamentos fiscais diferenciados, sejam eles isenções, alíquotas diferenciadas ou simplificadas ou a definição de alíquotas de impostos para cada faixa de renda, são todos exemplos de políticas públicas. Tarifas de importação, fixação de preços e regulação de bens e serviços públicos também são políticas públicas. Todas elas têm impacto direto ou indireto na economia e na disponibilidade de recursos dos entes federados e da sua capacidade de atender às demandas da população.
Pelo lado da despesa, todo dispêndio público também é uma escolha de política pública. Desde as vinculações constitucionais que determinam gastos em áreas definidas como prioritárias, programas sociais como o Bolsa Família e tantos outros, a divisão do orçamentos entre as diversas áreas e órgãos do governo, são todas decisões de política pública. Da mesma forma, escolhas ligadas à gestão como a destinação final dos recursos ou onde priorizar os gastos de investimento, cada vez mais reduzidos, tudo é política pública.
Ou seja, decisões de política pública são tomadas diariamente pelos nossos governantes e legisladores por meio da proposição e/ou aprovação de leis. Mas quase nenhuma dessas decisões é previamente avaliada, seguidamente monitorada e eventualmente revista, ajustada ou descontinuada em razão de sua baixa efetividade. Somos profícuos e criativos em desenhar, propor e aprovar novas e ousadas políticas públicas. Mas somos parcimoniosos em interrompê-las quando não estão dando certo. E somos muitas vezes ignorantes em relação aos seus reais impactos – antes e depois de implantadas. Falta investir tempo avaliando e redesenhando o que aí está e não funciona. Afinal, recursos são escassos e carências são infinitas, o que por si só já justifica uma postura mais austera em relação às nossas políticas. Falta, como condição precedente para a aprovação e implantação de novas e a continuidade de velhas políticas públicas, ser guiado por uma avaliação criteriosa – e não somente pelas por pressões de grupos de interesse ou políticos.
Mas é no campo das isenções fiscais que nos tornamos campeões em desenhar políticas públicas igualmente inovadoras e desastrosas para o País. Conforme relatório apresentado pelo TCU, só em 2017 foram R$ 354 bilhões em isenções fiscais cujo resultado não é, na melhor das hipóteses, aquele que seria o esperado. Na pior, foram um dos motores do processo de desequilíbrio fiscal que nos empurrou para esses últimos duros anos de recessão, desemprego e baixa produtividade.
Mas mesmo campeões, ainda conseguimos inovar. Empresas gozarão de um benefício fiscal com base em um imposto que nunca foi pago. Define-se assim uma nova política de isenção fiscal que nos custará a todos, segundo estudos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 49,7 bilhões pelos próximos cinco anos, além de outras distorções distributivas.
Os custos estão claros. Os benefícios – e se esses justificam os custos – ninguém sabe, ninguém viu. Nem verá. Francamente, não precisamos de mais uma instância fazendo política pública sem avaliação – ainda mais, má política pública.
O centro se arma - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 30/04
A busca de alternativas à polarização política não terminou com as eleições, muito ao contrário. Esmagado pela disputa ideológica entre Bolsonaro e o PT, o centro político procura uma saída para o impasse instalado, já que o presidente e seus seguidores continuam a alimentar essa radicalização a fim de manter viva a chama do eleitorado de extrema-direita que forma o núcleo duro de apoio ao governo, cuja popularidade vem perdendo substância.
O PT, no outro extremo, continua empenhado na mesma luta ideológica de sempre, sem admitir seus erros nem fazer uma necessária, mas impossível, autocrítica. A única saída do PT parece ser “fugir para a frente”, fazer de Lula uma vítima de conspiração. Uma vitória do partido seria (será?) sua absolvição política.
As pesquisas atestam uma queda de popularidade de Bolsonaro justamente por dedicar-se mais a cevar seu nicho eleitoral do que a ampliar sua atuação para atender aos demais cidadãos que votaram nele por diversas outras razões que não apenas a visão moralista tosca e a guerra ideológica incessante.
Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição do ano passado está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar, sem dar chance a que Lula ou Bolsonaro se aproveitem de seus erros para continuarem sua disputa particular. Dois populistas em busca da perpetuação no poder.
Os movimentos de aproximação do novo PSDB sob o comando do governador de São Paulo João Doria, e o DEM se tornaram evidentes pela escolha do relator da reforma da Previdência, com os tucanos ganhando um posto chave na questão mais central da política hoje, uma decisão que coube ao presidente da Câmara Rodrigo Maia, do DEM.
Ao mesmo tempo, na convenção do DEM em São Paulo, o governador Doria foi aclamado como candidato a presidente. As conversas entre PSDB e DEM têm a participação também do PSD de Kassab, para se fundirem um único partido, ou para trabalharem em conjunto na direção da centro-direita e se opor aos radicalismos de esquerda e de direita.
O Centrão ganhou a presidência da Comissão, e terá o poder de controlar o tempo da tramitação, mais rápida se seus pleitos forem atendidos pelo governo, mais lenta se houver resistência a eles. Ganhará importância política se seus membros entenderem que os pleitos não podem ser fisiológicos como geralmente foram no passado.
O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas do Rio, especialista na análise do quadro partidário brasileiro e sua interação com o Executivo, já há algum tempo vem tentando identificar qual o papel que o PSDB poderia vir a ocupar em um governo Bolsonaro. Especialmente porque, com as derrotas sucessivas à presidência, vem perdendo paulatinamente a capacidade de exercer a função de protagonista no jogo majoritário.
A sua hipótese é que o PSDB poderia exercer o papel de legislador mediano, algo semelhante ao que o PMDB exerceu nos governos FHC, Lula e Dilma. Sem repetir os erros. A distribuição ideológica dos partidos na Câmara dos Deputados que emergiu das ultimas eleições revela, segundo Carlos Pereira, que PSDB e PSD passaram a ocupar exatamente esse mediano.
Como os partidos maiores (PT e PSL) estão distantes do mediano, analisa Carlos Pereira, o PSDB teria o perfil ideal e mais confiável para os outros partidos para evitar um relatório extremado, tanto para à esquerda como para a direita.
Acho, diz ele, que faz completo sentido o PSDB, PSD e DEM tentarem se fundir em uma nova alternativa de centro-direita. São partidos ideologicamente hoje muito próximos, depois que as lideranças tucanas mais identificadas com a centro-esquerda perderam a influência, avalia Carlos Pereira.
Tudo, no entanto, parte da premissa de que os políticos entenderam que indicar nomes para a administração não pode significar mais querer “aquela diretoria da Petrobras que fura poço”. E que o Executivo entenda que governar num modelo de coalizão pressupõe repartir o Poder com o Legislativo.
partidos 1 | divulgação
O que é o bolsonarismo? - CARLOS ANDREAZZA
O GLOBO - 30/04
Em matéria de objetivo, o bolsonarismo em nada difere do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado
Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.
O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou a atividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.
O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.
Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual, de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente — do conflito constante — em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.
O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.
A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.
Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.
Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.
Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.
Em matéria de objetivo, o bolsonarismo em nada difere do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado
Essa pergunta se tornou frequente desde que me lancei a uma série de artigos em que tento radiografar a força antipolítica que preside o Brasil. A resposta não é banal, embora facilitada pelo estudo da ascensão do que se pode chamar de nacionalpopulismo mundo afora. Está claro, a propósito, que o sumo bolsonarista deriva mais da cepa populista corrente na Europa, notadamente a húngara, do que da singularidade do que exprime Donald Trump, em favor de quem sempre haverá a rede de proteção democrática americana.
O bolsonarismo tem fortuna própria e invulgares recursos de espraiamento. Não pode ser analisado, por exemplo, sem a compreensão da maneira decisiva como a Lava-Jato — por meio de seu subproduto político-eleitoral, o lava-jatismo — ofereceu carne para a campanha, de tessitura bolsonarista, que criminalizou a atividade política, donde se explica o modo como a fé anticorrupção foi equipada partidariamente, isto a ponto de haver sido apropriada pelo novo governo, na estampa de Moro.
O bolsonarismo tem meios e códigos próprios. Como desdobramento do desprezo pela democracia representativa, despreza a instância partidária — descartada como base por meio da qual se aglutinar e financiar, ao contrário da relação entre PT e lulopetismo. A forma bolsonarista de lidar com o PSL é eloquente. O partido consiste numa estrutura para fins meramente utilitários, esvaziado da mais mínima chance de ter caráter e identidade, condição fundamental para futuro despejo. Em matéria de objetivo, porém, o bolsonarismo em nada difere daquele do lulopetismo: permanência no poder e controle do Estado.
Referi-me ao bolsonarismo como força antipolítica que preside o país. Esse motor dirigente não é, contudo, o presidente; mas a mentalidade, a gramática discricionária, que influencia — sem outra comparável — Jair Bolsonaro. O bolsonarismo não é, pois, o governo Bolsonaro, cindido em grupos precariamente arranjados, mas aquilo que o condiciona e detém. Um sistema antidemocrático e anti-intelectual, de índole reacionária e têmpera para a revolução, que se funda em rara capacidade de mapear, acolher e manipular ressentimentos, e que opera sob o combustível da campanha permanente — do conflito constante — em prol de um projeto autoritário de poder, de vocação autocrática, cujo êxito depende da depredação progressiva das instituições republicanas sem, entretanto, prescindir do gatilho legitimador eleitoral.
O bolsonarismo precisa tanto do ímpeto para a fratura, para a desqualificação de símbolos de independência institucional, quanto do voto, ícone da normalidade democrática e mecanismo revigorante para a imagem do líder populista. Sua essência é interventora, centralizadora e intimidadora. Trata-se de um complexo para a ruptura, talvez mais uma orientação discursiva incendiária do que um desejo real de incêndio — algo de norte incontrolável, diga-se, como mostra a lista histórica de revolucionários enforcados pela própria revolução.
A revolta dos caminhoneiros, de maio de 2018, ilustra essa efusão pelo caos. O bolsonarismo é a revolta dos caminhoneiros, levante que soube distinguir e que encampou com engenho, e por meio do qual testou hipóteses sobre até onde se poderia esticar a corda da pressão popular em rede e instrumentalizá-la contra o establishment. Aquela mobilização criminosa, evento pré-eleitoral, foi destacado componente na cesta de insatisfações e falências que resultaria na eleição de Bolsonaro.
Forja de crises e de inimigos, força iliberal, à margem de qualquer política pública, que atua desde dentro da máquina estatal para localizar e explorar qualquer projeção de instabilidade onde carcomer o equilíbrio institucional, o bolsonarismo, também uma linguagem, está no comando, espaço ocupado a partir da campanha, e é o agente condicionador do governo, daí por que jamais se deveria esperar — sob tal conformação — que Bolsonaro pudesse encarnar a urgente pacificação política nacional.
Insisto, no entanto, em que não se deve observar o que está em curso com os olhos engessados do século XX, como se estivéssemos diante de uma marcha ditatorial que suprimirá liberdades e fechará o Congresso. O bolsonarismo avança para comprimir, e sempre precisará do que comprimir, de resto porque promove a insólita limpeza que aparelha para desaparelhar. Este é seu modus operandi: como o cupim, mina as bases, corrói os pilares, mas sem desarmar a carcaça. Precisa do aparato democrático em modo de segurança, em versão econômica, tão somente funcional, para emparedar e subordinar tudo quanto possa ser apregoado como musculatura autônoma e ameaçadora.
Para dar corpo à mentalidade e figura às práticas: Carlos Bolsonaro é mais bolsonarista do que Jair Bolsonaro; Eduardo Bolsonaro, idem — e é a ação deste filho, respaldada pela guerrilha daquele, que será lastreada pelo bolsonarismo.
É hora de avaliar a real eficácia dos subsídios à Zona Franca de Manaus - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 30/04
Modelo é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público
Raríssimas são as iniciativas de políticas públicas no Brasil que atravessam incólume os mandatos de dois governos. O caso da Zona Franca de Manaus é singular. Ela recebeu garantia constitucional de existência até o ano de 2073, quando completará 116 anos de vida custeada por todos os brasileiros.
Trata-se de uma escolha política, à princípio justificável por objetivos como o desenvolvimento da Amazônia em bases alternativas ao extrativismo de alto risco para o bioma e a floresta, dos quais a Ciência ainda conhece muito pouco.
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu destinar mais recursos à Zona Franca de Manaus via renúncia fiscal.
Ela já custa ao país cerca de R$ 24 bilhões anuais. O STF resolveu adicionar outros R$ 16 bilhões por ano em incentivo (via crédito de IPI) às 600 empresas da área, cujas atividades abrangem desde a produção de refrigerantes até eletroeletrônicos.
Essa despesa deve superar R$ 50 bilhões nos próximos cinco anos. Mas poderá duplicar se as empresas obtiverem em tribunais direito a créditos tributários sobre as compras dos últimos cinco anos.
Além de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados, as empresas de Manaus têm um cardápio de outros benefícios fiscais, como alíquotas tributárias diferenciadas (PIS e Cofins), restituição de 90,25% de ICMS, desconto de 75% no Imposto de Renda, redução de imposto na importação de insumos, descontos de IPTU sobre terrenos e imóveis adquiridos por doações ou isenções locais.
O argumento dominante no STF foi o mesmo que se esgrime desde 1957, sobre a necessidade de desenvolvimento com proteção ao patrimônio amazônico. Em contraste, alertou a minoria vencida no Supremo, essa política tende a desestimular a industrialização integrada e a expansão da oferta de empregos qualificados, de melhor remuneração.
O fato relevante é que, depois de 62 anos, o modelo de Manaus precisa de completa reavaliação. Ele é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público para garantir poder de competição a negócios privados lá instalados.
O caso de Manaus deveria ser exemplo de mudança na concessão de subsídios estatais, obrigando-se à submissão a padrões rígidos de eficácia na multiplicação do emprego e da renda local, em comparação com os custos para a sociedade.
O lobby regional conseguiu prorrogar a Zona Franca de Manaus na Constituição pelos próximos 54 anos. Quem vai pagar essa conta tem o direito de cobrar resultados.
Modelo é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público
Raríssimas são as iniciativas de políticas públicas no Brasil que atravessam incólume os mandatos de dois governos. O caso da Zona Franca de Manaus é singular. Ela recebeu garantia constitucional de existência até o ano de 2073, quando completará 116 anos de vida custeada por todos os brasileiros.
Trata-se de uma escolha política, à princípio justificável por objetivos como o desenvolvimento da Amazônia em bases alternativas ao extrativismo de alto risco para o bioma e a floresta, dos quais a Ciência ainda conhece muito pouco.
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu destinar mais recursos à Zona Franca de Manaus via renúncia fiscal.
Ela já custa ao país cerca de R$ 24 bilhões anuais. O STF resolveu adicionar outros R$ 16 bilhões por ano em incentivo (via crédito de IPI) às 600 empresas da área, cujas atividades abrangem desde a produção de refrigerantes até eletroeletrônicos.
Essa despesa deve superar R$ 50 bilhões nos próximos cinco anos. Mas poderá duplicar se as empresas obtiverem em tribunais direito a créditos tributários sobre as compras dos últimos cinco anos.
Além de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados, as empresas de Manaus têm um cardápio de outros benefícios fiscais, como alíquotas tributárias diferenciadas (PIS e Cofins), restituição de 90,25% de ICMS, desconto de 75% no Imposto de Renda, redução de imposto na importação de insumos, descontos de IPTU sobre terrenos e imóveis adquiridos por doações ou isenções locais.
O argumento dominante no STF foi o mesmo que se esgrime desde 1957, sobre a necessidade de desenvolvimento com proteção ao patrimônio amazônico. Em contraste, alertou a minoria vencida no Supremo, essa política tende a desestimular a industrialização integrada e a expansão da oferta de empregos qualificados, de melhor remuneração.
O fato relevante é que, depois de 62 anos, o modelo de Manaus precisa de completa reavaliação. Ele é insustentável no longo prazo, pela dependência crescente de dinheiro público para garantir poder de competição a negócios privados lá instalados.
O caso de Manaus deveria ser exemplo de mudança na concessão de subsídios estatais, obrigando-se à submissão a padrões rígidos de eficácia na multiplicação do emprego e da renda local, em comparação com os custos para a sociedade.
O lobby regional conseguiu prorrogar a Zona Franca de Manaus na Constituição pelos próximos 54 anos. Quem vai pagar essa conta tem o direito de cobrar resultados.
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