domingo, fevereiro 26, 2012

Salvem as martas - J. R. GUZZO

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Erratas na vida - LYA LUFT

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PIB da bola - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 26/02/12


De gente que sabe fazer conta. A Traffic, bem sucedida empresa de marketing esportivo, perdeu com a repatriação de Ronaldinho Gaúcho para o Flamengo, em janeiro de 2011, cerca R$ 4,5 milhões.

Fora a dívida de R$ 3,75 milhões.

Na verdade...
A Traffic tentou repetir o sucesso financeiro e de marketing do Corinthians com a contratação de Ronaldo Fenômeno, em dezembro de 2008.



O DOMINGO É de Leandra Leal, 29 anos, a talentosa atriz que volta à telinha quinta agora, na série “As brasileiras”. Leandra será uma sexóloga que comanda um dos programas de maior audiência na televisão. Mas sua personagem guarda um segredo que pode destruir sua reputação e sua fama de grande entendedora dos assuntos de saliência. Aliás, Leandra também estará na próxima novela das 19h. Que seja feliz

General Dilma
Dilma encomendou ao ministro José Eduardo Cardozo um plano federal para ajudar os estados a aumentarem os salários de seus policiais.

Só esperou a poeira das greves das polícias baixar.

Empregos no mar
Sérgio Cabral pretende desapropriar o Caneco se, nos próximos seis meses, não houver leilão da massa falida do antigo estaleiro, fundado em 1886.

O caso se arrasta na Justiça há anos. O governador está convencido de que um leilão pode ampliar os empregos no Caneco de 1 mil, hoje, para uns 3 mil.

Dr. Freud Diniz
No balanço do Pão de Açúcar, publicado semana passada, no meio da linguagem técnica, o grupo ressalta “seus valores”, entre os quais “equilíbrio emocional”.

Naquela natimorta operação de fusão com o Carrefour, Abílio Diniz, mais de uma vez, acusou seu sócio francês, JeanCharles Naouri, de falta de... equilíbrio emocional.

Lúcio e Juliana
Lúcio Mauro, 85 anos, o ator, vai viver o coronel Ramiro Bastos na nova versão de “Gabriela”, na TV Globo.

Para o papel, deixou a barba crescer. O filho do coronel, Tonico (ainda sem ator definido), terá um caso com Gabriela.

Vez da mulher
Em abril, Cármen Lúcia será a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral.

A ministra pode ser vista todo ano como ouvinte atenta na Festa Literária de Paraty.

Vez do negro...
Aliás, além de uma mulher na presidência do TSE, a Justiça também terá, pela primeira vez, em novembro, um negro na presidência do STF: o ministro Joaquim Barbosa.

Tô nem aí, ó pá
Na semana em que o jornal português “O Público” mencionou os laços de Zé Dirceu e do mensalão com escritórios de advocacia de Lisboa, o ex-ministro desembarcou na capital lusa e se hospedou num hotel cinco estrelas no Centro da cidade.

Não parecia nem um pouco preocupado.


Avenida Brasil 500
Veja que pena. O novo Into foi inaugurado com pompa e circunstância para realizar 18 mil cirurgias por ano, ou cerca de 1.500 por mês.

Só que, passados quatro meses, não está fazendo nem 400 por mês. Bem menos do que antes de se mudar para o novo prédio, na antiga sede do “Jornal do Brasil”.

Preço nas alturas
A Sérgio Castro alugou um apartamento de 40m2 naquele conjunto ao lado da PUC, atravessado pela Autoestrada Lagoa-Barra, por R$ 1.400 mensais.

Missa dos turistas
A missa de meio-dia, aos domingos, na Igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho, no Rio, passou a ser rezada... em inglês.

É para contemplar os turistas que embarcam e desembarcam do Trem do Corcovado, que fica em frente.

Calma, gente
Mais um exemplo de preconceito contra Michel Teló. O bloco Laranjada, que desfilou domingo passado, em Laranjeiras, no Rio, tocava animadamente sambas antigos, quando um dos cantores ameaçou puxar o sucesso “Ai, se eu te pego”.

Os ritmistas, veja esta, se recusaram.

Cena carioca
A novidade na Praia do Recreio é um sacolé de caipivodca, bem forte, vendido a R$ 2 e anunciado assim:

— Se chupar, não dirija! Se dirigir, não chupe!

Faz sentido.

Pontos nevrálgicos - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 26/02/12


A presidente Dilma não vai dar corda aos políticos para discutir substituições de diretores e gerentes. Nem da Petrobras, nem do Banco do Brasil. E hoje residem nessas áreas as maiores insatisfações dos petistas com o governo

Dois setores-chaves da gestão da presidente Dilma Rousseff prometem causar muito barulho na política em 2012, especialmente, neste período pré-eleitoral: a Petrobras e o Banco do Brasil. Tudo porque seus presidentes, Graças Foster, da Petrobras, e Aldemir Bendine, do Banco do Brasil, resolveram fazer o dever de casa. Tiraram diretores e gerentes com um viés mais político para colocar no lugar perfis mais técnicos, seguindo exatamente o combinado com a presidente Dilma Rousseff.

As mudanças da Petrobras ocorreram pouco antes do carnaval. Graças Foster mal desfez as malas e colocou a mão na massa. Trocou não só o diretor de Exploração & Produção (E&P), Guilherme Estrella — indicado pelo PT de José Dirceu —, como o diretor de Gás e Energia. No caso de E&P, a ascensão de José Formigli ao cargo de diretor foi negociada com o braço petista, mas não de todo. O engenheiro Richard Olm, ligado à nova presidente, Graças Foster, saiu de uma gerência de logística de participação da área de gás e energia para a Gerência Executiva de E&P, responsável por projetos de desenvolvimento da produção. Ou seja, vai cuidar das plataformas, de olho nos passos do diretor.

Por falar em Exploração & Produção…
Essa diretoria há anos era o xodó dos políticos. Ao ponto de ser batizada pelo ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti (PP-PE) de “fura-poço”. Com menos influência política nessa seara, restou aos parlamentares a diretoria de Abastecimento, uma das poucas que ainda detêm poder de fato. A área internacional, onde o PMDB indicou o técnico Jorge Zelada, ainda no governo Lula, tem poder de fogo cada vez menor. Aos poucos, vem perdendo influência para outras diretorias como a de Gás e Energia e a de Exploração e Produção.

Essas mudanças não são para menos. A Petrobras tem investimentos de US$ 224 bilhões previstos até 2015. E tudo o que a presidente Dilma não quer ouvir é que houve favorecimento no desembolso de recursos, como volta e meia surgia em relação a organizações não governamentais baianas apontadas como beneficiárias de verbas da empresa durante a gestão do ex-presidente Sérgio Gabrielli.

Por falar em beneficiados…
Diante das mudanças na Petrobras, o PMDB ficou em alerta máximo no sentido de manter o presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Até agora, conseguiu. Para o cargo, estava cotado o mesmo Richard Olm que Graças Foster colocou na Gerência Executiva de Exploração & Produção. Até para evitar que a presidente da Petrobras volte a investir no sentido de substituir Machado, o PMDB não pretende reclamar das mudanças na Petrobras. Também não moverá um músculo por conta das substituições no Banco do Brasil. Acha que essa seara vai fazer sangrar o PT.

Em conversas reservadas, os peemedebistas preveem um período de embates internos entre a presidente Dilma e o PT por conta da Petrobras e do Banco do Brasil. Afinal, nesses assuntos, Dilma tende a dar sempre “ganho de causa” a Graças Foster; ao ministro da Fazenda, Guido Mantega; e ao secretário executivo da Fazenda, Nelson Barbosa. Esses dois economistas são hoje a base do atual presidente do BB, Aldemir Bendine. Conforme noticiou o Correio pouco antes do carnaval, a troca de 13 diretores provocou uma guerra aberta no PT e respingou nos brios do presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), que não digeriu as substituições.

Até o momento, a presidente Dilma não chamou Maia para falar sobre a troca de comando no Banco do Brasil e nada indica que irá chamar. Ela acredita que mudanças na entidade, como na Petrobras, obedeceram a critérios técnicos e não vai dar corda aos políticos para discuti-las. Logo, aqueles que ficaram insatisfeitos têm hoje dois trabalhos: o de reclamar e o de — como recomenda o humorista que imita a presidente num vídeo na internet “engolir o choro”. Se isso der problema político lá na frente, paciência. Dilma resolve depois. Ela, como diziam muitos pefelistas no passado, é do tipo que vive a cada dia a sua aflição. E a de hoje é consolidar um corpo mais técnico nessas áreas.

A indústria da 'emergência' - EDITORIAL O GLOBO


O GLOBO - 26/02/12
No mundo ideal, partidos e políticos disputariam espaço na máquina pública para demonstrar competência administrativa e, com isso, reforçar o apoio recebido do eleitor. No mundo real de Brasília, sabe-se, a história é bem outra, mais ainda depois que o lulopetismo aplicou ao extremo métodos do fisiologismo na montagem de equipes de governo. Um dos resultados foram as denúncias e escândalos no primeiro ano do governo Dilma, levada - de bom grado, é possível - a trocar vários ministros, de cuja escolha pode não ter participado com grande entusiasmo.
Em linhas gerais, as autoridades foram desestabilizadas pelas evidências de desvio de dinheiro do contribuinte por meio de alguns subterfúgios. Em geral, convênios e contratos assinados com ONGs ou não, sempre com o desaparecimento do dinheiro, liberado em nome de causas as mais meritórias: formação de mão de obra para o turismo, esporte para jovens carentes etc. Não faltaram os clássicos golpes de obras superfaturadas, mediante o evidente compromisso do empresário beneficiado de contribuir para caixas de políticos e partidos. Por suposto, caixas dois, pode-se deduzir sem grandes margens de erro.
Inquéritos abertos depois de revelados casos típicos desses "malfeitos", no governo Dilma e no de Lula, têm sido concluídos com a confirmação do dolo. O trabalho rotineiro de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) tem chegado à mesma conclusão. As auditorias revelam métodos desenvolvidos nos porões brasilienses para políticos e partidos aliados dragarem dinheiro do contribuinte em proveito próprio. Um exemplo é Geddel Vieira, do PMDB da Bahia, ministro da Integração Nacional - pasta bastante cobiçada pelo clientelismo -, e hoje abrigado numa vice-presidência da Caixa Econômica Federal, depois de derrotado na disputa pelo governo do seu estado. Não adiantou usar a máquina e o dinheiro do ministério.
Que ele privilegiou a Bahia, como ministro, com fins político-eleitorais - como já fez o sucessor Fernando Bezerra, do PSB, com Pernambuco - sabe-se há muito tempo. Na edição de sexta, O GLOBO revelou como, conforme auditoria do TCU, processos de pedido de ajuda financeira feito por municípios à Defesa Civil, subordinada à pasta, foram fraudados, para que os recursos chegassem aos prefeitos beneficiados sem a apresentação dos necessários pareces técnicos. No lugar destes, folhas em branco, a serem depois preenchidas ou não. Foi assim que, em 2009, Geddel, ministro de Lula, irrigou com pelo menos R$ 11,5 milhões seis prefeituras baianas. Os auditores encontraram irregularidades em 48 convênios assinados na gestão Geddel.
A corrupção atua em rede. Nela, cabe a prefeitos decretarem "emergência", para facilitar a liberação de verbas e despesas, sem a necessidade de licitação. No Sul, a prática foi detectada em regiões atingidas por cheias. Preocupado com o alastramento dessas "indústrias", o Planalto encaminharia ao Congresso projeto para voltar a comprometer os estados na decretação de emergência em municípios. O risco é criar-se mais burocracia, quando o melhor caminho é o da investigação e punição rápidas, eficiente antídoto contra a impunidade, causa básica de toda esta bandalheira

A república dos boatos - MAC MARGOLIS


O Estado de S.Paulo - 26/02/12


Café, uma porção de arepas e as últimas de Nelson Bocaranda. Assim começa o dia para dezenas de milhares de venezuelanos - e também para cada vez mais estrangeiros famintos de novos fatos da república bolivariana. Em um país em que o governo se dedica a estatizar a informação, as notícias confiáveis viraram mercadoria escassa e as furadas, passatempo nacional.

Entra Nelson Bocaranda, o mais combativo e talvez o mais informado articulista do país, que duas vezes por semana em sua coluna no jornal El Universal ou em seu programa de rádio diário - e a qualquer momento na blogosfera - revela a compatriotas e estrangeiros as informações que os comissários do governo de Hugo Chávez habitualmente omitem, ocultam ou simplesmente ignoram.

Agora, com a recaída do adoentado comandante venezuelano, o trabalho desse incansável colunista e blogueiro, com 66 anos e 500 mil seguidores no Twitter, tem sido redobrado. Pelos canais oficiais de informação, o presidente Chávez estaria na flor da saúde, refeito do câncer que o abatera no ano passado e mergulhado da boina às botas em sua campanha de reeleição. Graças a Bocaranda, os venezuelanos sabem mais.

Em junho passado, em sua coluna, a Venezuela descobriu que Chávez sofria de um tumor maligno na região pélvica e não uma mera lesão de joelho, como repetia a máquina de empulhação chavista. Cinco dias depois, o presidente admitiu a doença e foi tratá-la às pressas em Cuba.

No dia 17, Bocaranda voltou à tona. Afirmou pelo Twitter que Chávez, supostamente já livre do câncer, estava novamente em Havana em uma viagem secreta para se tratar de outro tumor. Após dois dias de sussurros e intrigas, o próprio presidente confirmou o diagnóstico, desmentindo dois de seus mais próximos assessores, Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional, e o ministro (pasmem) de Informação, William Izarra.

Até os maiores admiradores do governo venezuelano deploraram o que o sociólogo Heinz Dietrich, outrora fã confesso do chavismo, chamou da "grosseira disfunção do aparato midiático criado por Chávez". Melhor para Bocaranda, que, embora nunca tenha escondido seu desapego ao regime bolivariano, pratica um jornalismo rigorosamente ecumênico. Leitura obrigatória de investidores a ideólogos, ele ostenta fontes no seio do Palácio de Miraflores e orgulha-se de nunca ter sido desmentido pelos companheiros de Havana com quem costuma conversar.

Mas não há como negar que, a cada desmascaramento seu, sobe a estrela da oposição venezuelana. Embalados pelas primárias de fevereiro, os opositores de Chávez escolheram Henrique Capriles Radonski como candidato único - pela primeira vez - para enfrentar Chávez na votação presidencial de 7 de outubro.

Rival. Aos 39 anos, o jovem governador do Estado de Miranda usa camiseta polo, anda de moto, esbanja vigor e disposição e ainda exibe sua fala mansa enquanto afaga eleitores - um contraste cruel com o combalido e inchado comandante Chávez.

É cedo para descartar a reeleição do presidente. Mesmo com o desgaste de 13 anos no poder, a mais alta inflação (de 28% em 2011) entre os mercados emergentes, um surto sem precedentes de criminalidade e agora um câncer recidivo, o autodenominado líder do "socialismo do século 21" goza de índices invejáveis de popularidade. E ainda lidera as pesquisas de intenção de voto, muito graças ao seu charme e ao carisma político nato.

Esse poder sustenta-se até hoje pela impressionante habilidade de Chávez de controlar a informação venezuelana e de intimidar a mídia que não controla. Com a atuação de jornalistas como Nelson Bocaranda, porém, a pauta começa a mudar.

Rússia e Europa:juntas ou separada? - IGOR IVANOV

O ESTADÃO - 26/02/13


Estando no mesmo continente, os dois devem superar os ressentimentos e desconfianças, trabalhar juntos, complementando-se, para não serem perdedores na corrida global

Na Rússia, a crise financeira da União Europeia (UE) é observada com matizes. Alguns a veem com certa simpatia, enquanto outros a observam com malícia. As dificuldades da Europa reabrem o debate sobre a relevância do "europeu" na Rússia, que surge periodicamente em nossa história: o ocidental frente ao eslavo. Atlantistas e euro-asiáticos. Liberais e conservadores. Agora, os "eurocéticos" russos insistem em debater o que é mais importante e mais próximo: Europa ou Ásia? UE ou China? Os países desenvolvidos ou os emergentes?

Esse debate não faz muito sentido. Na era da globalização, o âmbito geográfico tradicional perde relevância, e é impossível distinguir entre Oriente e Ocidente. A geografia deixou de ser um fator determinante para a ordem econômica, o estilo de vida ou as perspectivas de desenvolvimento. As empresas europeias fabricam na China, os jovens japoneses estudam em Oxford, a roupa de grife italiana é confeccionada na Malásia e os engenheiros indianos programam para o Vale do Silício sem sair de sua Bangalore natal. Portanto, é muito mais produtivo diferenciar não pela geografia, mas pelo êxito (ou fracasso) em adotar as tendências atuais e aproveitar as vantagens competitivas.

Em Moscou, e não só aqui, elevam-se vozes proclamando que o centro de gravidade da atividade econômica mundial está se deslocando do Atlântico para o Pacífico, que o "projeto europeu" é demasiado complexo e difícil de ser aplicado, que a Europa não está em absoluto preparada para os desafios globais e está ameaçada pela crescente acumulação do poder asiático. Eles concluem que a Rússia devia se distanciar progressivamente de uma Europa inevitavelmente decadente, vinculando seu futuro à "civilização do Pacífico".

Ninguém duvida das recentes conquistas das economias asiáticas, mas é arriscado falar de declínio europeu. Há 100 anos que se anuncia a decadência europeia, mas o continente continua tendo um importante papel na economia global, fonte de inovação tecnológica, e um grande laboratório social. O potencial do projeto europeu está longe de se esgotar. O ritmo de modernização das economias asiáticas é, com certeza, admirável, mas não se deve esquecer que a modernização social e política está notavelmente atrasada na região. Em outras palavras: hoje, ninguém tem a liderança garantida.

Mudanças muito estritas estão se impondo às regras do jogo; todas as regiões estão competindo duramente para defender seu lugar e jogar um papel na economia e na política futuras. A feroz concorrência global não exclui - e geralmente implica - uma colaboração mais estreita. A Europa e a Ásia, em particular, necessitam uma da outra nos planos econômico, tecnológico e cultural. Os modelos "europeu" e "asiático" são complementares e essa interdependência parece até aumentar com o passar do tempo.

Mediador. Nesse contexto, o que se passa com a Rússia? Será que ela poderá se tornar um mediador ativo entre as duas grandes regiões? A resposta a essa pergunta depende, em grande parte, do equilíbrio de poder no mundo e do futuro do próprio país. Na verdade, hoje a questão não é se a Rússia pertence à Europa ou à Ásia, mas sim uma muito mais pragmática: a Rússia não deve se desprender da cooperação emergente entre os dois continentes nem ficar à margem do processo de integração econômica, científica, educacional e cultural.

Por desgraça, essa ameaça é muito real. A Rússia está presente nos mercados da Eurásia, mas cabe assinalar que sua participação nos mecanismos de cooperação e integração é muito superficial, atuando principalmente como fonte de matérias-primas e energia para seus vizinhos.

Essa situação não satisfaz as expectativas e necessidades de ninguém. Não há alternativa real a uma orientação europeia da política externa russa, Não se trata apenas de que a Europa continua sendo parceira econômica mais importante da Rússia; na Europa estão os principais mercados russos e ali estudam, trabalham e fazem turismo os cidadãos russos. A Rússia foi, é e será parte da Europa nos planos geográfico, histórico e cultural.

Alguns dirão que a Rússia é um país europeu, mas que se trata de "outra Europa". Sua relação com o "restante" da Europa continuará sendo difícil e controvertida. Essa afirmação talvez tenha certa lógica. Mas a verdadeira pergunta é: a evolução do restante da Europa é complicada somente em suas relações com a Rússia? Tomemos a Alemanha. Há 100 anos apenas, muitos intelectuais a leste do Reno duvidavam que a Alemanha fosse verdadeiramente europeia. Mas depois ela se converteu na locomotiva do processo de integração europeia na segunda metade do século passado. E não foi difícil e controvertido o retorno da Espanha ao espaço político, econômico e cultural europeu depois da morte de Franco?

Para a maioria de nós, a Rússia permaneceu afastada do Ocidente no século 20, separada por um profundo abismo ideológico. O destino de uma Rússia europeia era extremamente difícil (embora ela fizesse parte da civilização europeia no sentido mais amplo; o marxismo, aliás, é um produto da tradição filosófica europeia). Hoje, a Guerra Fria terminou, e o conflito ideológico entre a Rússia e a Europa está em retirada. Então, por que persiste a pergunta de se a Rússia pertence à Europa?

Talvez isso não se deva somente à inércia do pensamento. Grande parte da responsabilidade por a Rússia não ser totalmente parte da Europa é a própria Rússia. Ainda temos de aprender a ser europeus; esse conhecimento não se adquire de imediato. Ainda hoje, nem sempre entendemos a lógica de nossos parceiros europeus, nem levamos em conta os matizes de sua política.

Também é fácil censurar nossos parceiros. É conhecida a lentidão com que a burocracia europeia avança. Para a Rússia, poderia ser mais fácil negociar com cada um dos Estados-membros do que com a União Europeia em seu conjunto.

Uma coisa está clara: não existe um caminho fácil. Qualquer retorno da Rússia ao âmbito europeu requererá persistência e paciência, e uma inversão política no longo prazo por ambas as partes. Esse esforço terá de ser feito nas áreas que nos unem. Rússia e Europa sempre se orgulharam da qualidade de seu capital humano. A produção pode se deslocar para a China ou a Indonésia, mas o capital humano continuará sendo a nossa principal vantagem competitiva e o bem mais importante de nossa cultura.

Modernização. O capital humano é o motor da modernização - e não a capacidade industrial ou as reservas monetárias. A Rússia e a Europa têm tradição do capital humano como motor do crescimento. E têm muito que oferecer ao mundo nesse campo. Isso implica eficácia em nossa cooperação em âmbitos como educação, estratégias de pesquisa, política cultural e social, saúde, gestão das migrações e desenvolvimento da sociedade civil.

Evidentemente, a interação social entre Rússia e Europa não pode se desenvolver desligada da cooperação em matéria de segurança. O interesses estratégicos russos coincidem objetivamente. Falem com qualquer político em Berlim, Bruxelas, Madri ou Moscou sobre as ameaças à segurança russa e os desafios globais, Os diagnósticos provavelmente serão muito similares, e as soluções propostas também. Não gostaria de simplificar em excesso - nem todas as prioridades da Rússia e da UE coincidem totalmente - embora isso não se deva apenas a nossa diferente situação geopolítica. Dentro da própria UE nem sempre há unidade de critérios. O importante é que todos nós - do Atlântico aos Urais, de Vancouver a Vladivostok - estamos unidos por desafios e ameaças comuns. Essa realidade, que é pouco provável que mude no futuro próximo, determinará nossa cooperação em matéria de segurança.

Os céticos alegarão que este não é o melhor momento para empreender novas iniciativas nas relações entre a Rússia e a Europa, demasiado empenhadas como estão ambas em seus assuntos internos. Não seria talvez o caso de fazermos uma parada para avaliar as situações emergentes e só então retomarmos o diálogo?

Quero reafirmar que esse é o caminho do desenvolvimento global, profundo e duradouro, e não um capricho dos políticos. Nossos políticos não podem ignorar as consequências negativas para seus países se demoram a empreendê-lo.

Vivemos no mesmo continente. Não temos tempo sobrando para demonstrar nossa competitividade em um mundo globalizado. Outros países e regiões não vão esperar que superemos nossos ressentimentos, desconfianças e rixas. O mundo continuará avançando e a velocidade da mudança só aumentará. Também aumentará o número de candidatos à liderança mundial; muitos deles não surgirão na Europa. Trabalhando juntos, complementando-se, será mais fácil que Rússia e Europa não sejam perdedores nessa corrida mundial. O século 21 não deve ser um século de previsões sombrias sobre a decadência de nossa civilização comum. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

GOSTOSA


A terceira idade - ALDIR BLANC


O GLOBO - 26/02/12



Do jeito que tenho me sentido, seria preferível escrever logo sobre a Quarta Idade, mas não quero queimar etapas, porque pode ser que não reste mais nada pra queimar...

A Terceira Idade, apesar de todos os brilhantes conselhos dados por especialistas em jornais e TVs, é uma M gigantesca (parodiando o saudoso Francisco Alves, em "Adeus", de Silvino Neto, cinco letras que fedem...). Você acorda - se podemos chamar aquilo de acordar - e toma os primeiros remédios. Diz, tentando ser otimista, "Bom dia, mundo!" e, por vício, aciona a telinha, dando de cara com mais um massacre de sírios perpetrado por Assad. Não dá para entender. Ribamar Mubarak e Edson Kadhafi caíram por bem menos - sem contar com os horrores no Iraque I e II, e com o Afegalisteu, desculpem, Afeganistão, onde todos voltaram a traficar heroína. Ouvindo ruídos no quarto, o megalabrador Batuque salta, com seus belos 60 quilos, sobre o dono amado, e urge ingerir um Tramal porque a coluna foi à... à... Terceira Idade. O café tem ervas (diabetes) de fazer o sempre lembrado tríplice coroado Itajara babar - o que se repetirá na sopa do almoço e no presumível jantar. Bom, nada direi sobre fazer as necessidades porque, como já escrevi, se esforço contasse ponto, eu seria volante da Seleção Canarinho. Telefone: os direitos autorais continuam desabando. Vamos ao e-mail: a situação dos direitos autorais é pior do que a descrita no telefonema anterior. Aproveitando que estou na máquina (da qual fujo como diabo da cruz), assessorado pela netinha Joana, passo uma mensagem para a filha caçula, a Bel, e comento que ando bebendo com valentia Judges (suco em inglês, que os que não conhecem a língua confundem com juicy, que significa juiz). Declaro minha preferência pela mistura de Armendariz e Selmahayek, frutas exóticas deliciosas, mas que é preciso peneirar muito, após bater no liquidificador, por causa dos pelos abundantes. De passagem, magoado, conto que meu parceiro João Bosco fez uma dupla com o neto paulistano, Vinicius, e não me avisaram. Também comento o filme "Mansão Improvável 7 - Não Controlo essa Asma", com o Breaddy Pitta, que se casou com a Ângela Rô Rô. Aproveito para elogiar, embora não tenha entendido tudo, o documentário sobre soluços "Hip! men". Uma hora depois, o geriatra Tarso Mosci está na minha porta! Chamaram um médico, como se eu não estivesse com excelente saúde e em pleno gozo de minhas faculdades mentais. Pude comprovar esse fato com a leitura do livro de neurociências "Muito Além do Nosso Eu", de Miguel Nicolelis (ele é brilhante. Poucos sabem que, sob o pseudônimo de Down Brownie, escreveu "O Código Me dá As Vinte"). Recuso o exame médico, uma afronta, e ligo para um amigo de toda vida, o artista plástico Mello Menezes, que está batendo um bolão, catando folhas no telhado para prevenir a entrada de gambás... E não é que o cara me goza!

- Blanc, acho que você não está na Terceira Idade, mas na Segunda Infância!

Que seja. Aproveitarei para realizar um velho sonho: invadir, só de cueca samba-canção, o consultório do Dr. Roberto Aires, o melhor pediatra do mundo, me deitar na mesa de exames e cair no choro, não porque os dentinhos estejam crescendo, mas pela perda progressiva de cada um deles, e, lá na zona do agrião, tenho ouvido a voz do pintinho, não se lamuriando pela patética fimose de bico, mas também zoando:

- Você me botou em vários lugares e situações constrangedores. Paguei dois ou três micos porque você estava de porre. Chegou a hora da forra. Quero o merecido relax. Vai encomendando os engradados, não mais da cerveja Original, mas de Viagra... No que depender da minha colaboração, vai precisar!

Consciência cósmica - MARCELO GLEISER


FOLHA DE SP - 26/02/12


Quanto mais percebemos a complexificação da matéria, mais entendemos que somos criaturas raras



Desde 1998, o agente literário, empresário e intelectual americano John Brockman vem compilando opiniões de alguns dos cientistas mais conceituados do mundo, publicadas em livros. Cada ano tem um tema diferente. Em 2010 foi discutido "Como a internet está mudando nosso modo de pensar". Neste ano, a pergunta foi "Qual o conceito ou a ideia científica que pode nos aprimorar?" As 151 respostas, vindas de especialistas como Freeman Dyson, Daniel Kahneman e Steven Pinker, acabam de ser publicadas nos EUA em "This Will Make You Smarter"("Isto vai deixar você mais esperto"), livro que já avança na lista dos mais vendidos do país.

Brockman acredita que os cientistas (naturais e sociais) são os que ponderam as questões mais essenciais do nosso tempo. E não falamos apenas de aquecimento global ou do destino do Universo. Questões de natureza pessoal, ou mesmo corporativas, fazem parte da discussão: como viver melhor, o que é moralidade, como lidar com ideias contrárias às suas, como crescer trabalhando em grupos etc.
Inspirado no famoso ensaio "As Duas Culturas e a Revolução Científica", de 1959, do físico e escritor inglês Charles Percy Snow, Brockman propõe uma "Terceira Cultura", em que cientistas-humanistas são os principais criadores de cultura e de revoluções culturais.

Segundo ele, a fertilização plural de ideias vindas de áreas diferentes levará não só a soluções para os principais problemas que afligem a humanidade, da energia à fome, como também definirá nosso futuro.
Neste ano, dentre as muitas ideias provocadoras e instigantes, um tema fala mais alto do que os outros. Mesmo que tenhamos muito o que celebrar com relação aos nossos avanços científicos e intelectuais, temos razões de sobra para permanecermos humildes, especialmente ao confrontarmos a vastidão do que não sabemos sobre o Universo e sobre nós mesmos.

Como escreveu o neurocientista David Eagleman, da Faculdade Baylor de Medicina: "Considere as inúmeras decisões políticas, as asserções dogmáticas e as declarações factuais que ouvimos todos os dias e imagine se todas tivessem um mínimo de humildade intelectual".

Na minha contribuição, abordo um tema que explorei em meu livro "Criação Imperfeita" (Ed. Record, 2010): como o progresso na astrobiologia e na cosmologia estão nos fazendo repensar a lição central do copernicanismo, a de que, quanto mais aprendemos sobre o Universo, menos importantes ficamos.
Ao contrário, quanto mais percebemos que a complexificação gradual da matéria ao longo da história cósmica -das partículas elementares à matéria viva- é produto de imperfeições, acidentes e assimetrias sem qualquer grande plano por trás dela, mais entendemos que somos um fenômeno único no Cosmos, criaturas raras, capazes de se questionar sobre o futuro.

Mesmo que outra inteligência exista em algum canto da galáxia, as distâncias interestelares agem como uma barreira que, ao menos pelas próximas gerações, é intransponível. A conscientização de nossa solidão cósmica e da raridade de nossa casa planetária nos leva (ou deveria levar) a uma nova relação com a vida. Está na hora de começarmos a celebrar nossa existência.

A geladeira e o livro - MARTHA MEDEIROS

O GLOBO - 26/02/12


Fazia dois dias que minha geladeira havia entrado em pane. Não deixou de resfriar, mas as luzes do painel piscavam o dia inteiro, como se fosse uma bomba a ponto de explodir, e o alarme disparava de tempo em tempo, mesmo a porta estando bem fechada.

Sou otimista, achei que tudo se resolveria num passe de mágica, mas o coelho não saiu da cartola e acabei tendo que chamar um técnico, que agendou a visita para a manhã seguinte, às 9h30. Quando eram 9h25, as luzes do painel, antes esquizofrênicas, apagaram. O alarme já não disparava desde a noite anterior. Eu não queria mágica?

A primeira coisa que disse ao técnico: “Acredite, há dois dias que esta geladeira está tendo chilique, só parou quando o senhor começou a subir pelo elevador”. Ele me deu um olhar compreensivo, fez um check up no aparelho e descobriu um pequeno defeito. Alívio. Morri com R$ 300, mas a geladeira ganhou uma sobrevida. E minha neura, também.

Ninguém gosta de passar por exagerado. Ao sairmos do cinema, somos capazes de listar um sem-número de elogios ao filme que assistimos, mas basta alguém se empolgar com a nossa descrição e resolver assisti-lo por nossa causa que a responsabilidade começa a pesar: “Olha, eu gostei, mas talvez não seja seu tipo de história. Vá sem expectativas. É meio longo. Tem uma partezinha devagar, mas, sei lá, acho que vale a pena”.

Um amigo me recomendou um livro sensacional. Segundo ele, a melhor coisa que leu no último ano. Bom, então quero ler também. No dia seguinte, ele largou o livro na portaria do meu prédio, e quando liguei pra agradecer, ouvi: “Talvez tu não goste tanto assim. Comprei pra ti uma edição diferente da minha, o tradutor não sei se é tão bom. Tu não é obrigada a gostar, tá?”

Os episódios da geladeira e do livro, cada um a seu modo, demonstram o quanto ficamos inseguros ao virarmos referência. No caso da geladeira, a única prova que eu tinha de que ela estava amarelando eram as luzes piscantes. Quando elas pararam de piscar, passou a valer apenas a minha palavra. Que solidão.

Quando meu amigo incentivou a leitura do livro, estava expondo sua erudição, já que o autor era um filósofo. Mas no momento em que demonstrei interesse em ler também, ele passou a duvidar do próprio entusiasmo. E se o livro não fosse tão bom no meu parecer? De repente, não era mais o livro que estaria em julgamento, e sim ele. Solidão, também.

Outra: uma amiga resolveu ir a Machu Picchu depois que comentei coisas incríveis sobre a viagem que fiz para lá recentemente. Ai, ai, ai. E se ela passar mal com a altitude? E se achar a comida muito apimentada? E se voltar pensando que me empolgo por qualquer ruína de cartão-postal? Já era: terá perdido a chance de ir para outro lugar mais encantador a seus olhos. Por que fui emprestar os meus?

No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados. Por aqueles a quem recomendamos um livro, por quem resolveu viajar incentivado por nós, e, sim, pelo técnico que confirmou que nossa geladeira estava mesmo estragada, contra qualquer evidência. Falando na geladeira, passa bem. As luzes nunca mais piscaram nem o alarme disparou. A não ser o meu: “não se leve tão a sério, não se leve tão a sério, não se leve tão a sério”.

JAPA GOSTOSA


O colchonete - LUIZ FERNANDO VERISSIMO

O ESTADÃO - 26/02/12


– Você mandou me chamar, Dodo?

– Mandei, dona Berenice. Mandei. Por favor, sente-se.

– Algum problema?

– Não, não. Eu só achei que deveríamos conversar sobre o nosso encontro na terça-feira.

– No bloco “Engrena que eu acelero”? Não foi um barato? Acho que nunca me diverti tanto.

– Pois é, dona Berenice. Mas a senhora deve ter notado que eu estava, meio... Qual é a palavra?

– Chumbado?

– Embriagado.

– Você estava ótimo, Dodo! Alegre. Desinibido. É um lado seu que eu não conhecia. Aliás, que ninguém na firma conhecia.

– Você comentou o nosso encontro da terça aqui no escritório, dona Berenice?

– Só comentei. Não contei tudo o que aconteceu. É claro, né Dodo?

– Tudo o que aconteceu?

– Você não se lembra de nada? Do bar? Do fundo do bar? Do colchonete em cima dos engradados de cerveja no fundo do bar? Nada?

– Colchonete?!

- De tudo que nos dissemos e fizemos?

- Defina “tudo”, dona Berenice.

- Tudo! As confidências. As promessas. E o depois.

- O que houve depois?

- Digamos que o colchonete cumpriu seu papel.

- Meu Deus. Eu não sabia que tínhamos chegado ao colchonete.. Um colchonete em cima de engradados de cerveja. Isto não.

- Mas foi lindo, Dodo. Você era outro homem. Não parou nem quando entrou o português do bar e...

- O quê? Entrou um português na história?!

– Ele só foi buscar uma lata de azeite ou coisa parecida. E você não parou. O português entrou e saiu e você continuou. Vupt e vupt. Você, hein Dodo?

– Vupt e vupt. Meu Deus do céu. E as confidências e promessas, dona Berenice?

– O que tem elas?

– Você sabe que um homem bêbado em cima de um colchonete diz qualquer bobagem. O colchonete está na fronteira entre o recato e a exposição total, à autopiedade e ao ridículo. Um homem num colchonete perde todo o escrúpulo e confessa tudo, até o que não fez. E promete o que não pode dar.

– Não se preocupe, Dodo. As confidências eu esqueci, e as promessas eu não levei a sério. Nem a promessa de casamento. Eu sabia que não eram para valer. Afinal...

– O que, dona Berenice?

– Era Carnaval.

– Obrigado, dona Berenice. Obrigado. Pela sua compreensão e pela sua discrição. Vamos fingir que nada aconteceu, e tudo volta ao normal. Inclusive, dona Berenice, vou lhe pedir um favor...

- O quê?

- Volte a me chamar de Dr. Odorico.

Escada acima, ladeira abaixo - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 26/02/12


Num momento de alma enfarruscada, me pego pensando se um dia já não darei conta de superar com pernas próprias os 24 degraus que conduzem a este apartamento. A questão não me ocorria quando, faz quase 20 anos, cheguei de treco & tralha a este edifício da década de 1940, o Damião, gêmeo do vizinho Cosme, numa quadra em que Perdizes vira Pacaembu. Na época, eu subia de dois em dois, e até de três em três, dependendo da motivação, os meus degraus de granilito. Hoje me pergunto se já eram 24.

Quem me viu, quem me vê. Houve um tempo em que, malgrado o Gauloise nos lábios e o fumacê nos bofes, eu encarava lampeiro, várias vezes por dia, os 99 degraus de acesso ao sexto andar de um prédio parisiense sem elevador onde passei um ano inesquecível. Prédio mais antigo, aliás, e isso me impressionava, do que a cidade onde nasci: fazia 17 anos que estava de pé no boulevard Montparnasse quando, em 1897, Belo Horizonte foi inaugurada. Continua firme. O charme está até na numeração: 55 bis. Como se a qualquer momento o edifício fosse decolar, que nem o 14 Bis de Santos Dumont. Depois habitei cafofos mais acessíveis e confortáveis. Nenhum deles, porém, tão mobiliado com boas lembranças quanto aquele.

Caiu do céu, como se diz. Pertencia a uma francesa simpática e de língua presa, Marie-Hélène de Oliveira, Oliveira porque remotamente casada com um português. Acho que já contei a história - me interrompa, por favor, se estiver me repetindo. Me repito como uma roda-gigante (isto, certamente, já falei). Pois bem, Marie-Hélène se casou com o portuga e veio viver em Fortaleza. Mal tiveram um filho, Cédric, e o casamento, numa triste rima, foi a pique. O Sr. Oliveira ficou por aqui e Marie-Hélène, com a cria, se mandou de volta para a França.

Quando a conheci, sonhava unilateralmente com uma recaída matrimonial e armava o bote para nova temporada brasileira. Procurava alguém que alugasse o apartamento de Paris - e quanto a isso também eu lhe caí do céu, pois estava em condições de lhe pagar o aluguel no Brasil. Tinha aqui, saudosos tempos, umas gorduras financeiras, e lhe propus mais: um ano adiantado, desde que me fizesse desconto. Fechamos negócio. Fechamos também o único quarto do apartamento, não só para baratear o aluguel como para livrar a sala dos cacarecos da proprietária. E para cá veio a romântica Marie-Hélène, não sem antes me confessar, ruborizada de felicidade, que pusera na bagagem seu veterano vestido de noiva.

Tamanha fé no amor não nos permitiu imaginar que poucos meses depois a minha senhoria haveria de refluir a Paris, com o filho, o vestido e um coração devastado. Não era para menos: sob o sol dos trópicos, encontrou o ex-marido convertido num português do folclore, ou seja, aninhado nos braços de uma mulata. E o gajo ainda teve o desplante de lhe propor um ménage à trois em que ela e a globeleza dividiriam o posto de Sra. Oliveira. Desgraça pouca sendo bobagem, Marie-Hélène contraiu uma dessas doenças tropicais que só nós somos capazes de proporcionar a um habitante do Hemisfério Setentrional - e, sem recursos nem relações na cidade, foi acabar, Cédric a tiracolo, na enfermaria de um hospitalão do Rio de Janeiro. Por pouco seus ossos não ficaram para sempre entre nós.

De volta à terra, esquálida, acabada enquanto pessoa, Maria Hélène tentou obter de mim a devolução do apartamento. Diante da negativa, deu uma de Sr. Oliveira e me propôs dividirmos o mocó, onde ela e o rebento ocupariam o quarto atulhado de cacarecos. Nananinanana, Marie-Hélène. A moça pôs uma tromba e foi se instalar sobre meu teto, numa glacial chambre de bonne. Se você já foi ver o divertido As mulheres do 6.º andar, terá em mente os quartinhos claustrofóbicos, sem banho, WC e água quente, que se usava construir no topo dos edifícios para aquartelar a criadagem. Até o final daquele inverno, que foi brabo, volta e meia eu topava nas escadas com Marie-Hélène, encapotada qual esquimó.

Mas não era da dona, e sim do apartamento, que eu pretendia falar. Falarei no domingo que vem, se houver.

Como levar um rato ao suicídio - ALDO PEREIRA


FOLHA DE SP - 26/02/12


Para infectar gatos, um micróbio ataca o rato e faz o bicho perder o medo; se ele também puder manipular vontades humanas, o livre-arbítrio se torna ilusão?


A propensão a movimentos furtivos confere a ratos e camundongos certa proteção contra predadores, especialmente gatos. Os gatos, também por instinto, prontamente reconhecem indícios visuais e auditivos da presença de roedores. O encontro fatal, contudo, pode ser facilitado se o rato sofrer de toxoplasmose.
Isto porque o Toxoplasma gondii, o protozoário causador da doença, destrói certas células cerebrais, causando alteração de comportamento: substitui o impulso de esquiva pelo de busca do inimigo natural.
Por assim dizer, o micróbio induz o rato a suicídio específico: morte seguida de ingestão por gato.
O "interesse" do micróbio: passar do organismo do rato ao do gato, único ambiente em que pode cumprir a fase de reprodução sexuada de seu complexo ciclo de vida. A prole resultante, talvez milhões de "ovos", emergirá nas fezes do gato. (Parece ação teleológica de espíritos, mas o fenômeno tem plausível explicação darwiniana.)
Dessa complicada história natural, importa considerar sobretudo:
1) Somos todos suscetíveis a infeções por T. gondii? (Sim.)
2) Elas podem afetar o cérebro humano? (Sim.)
3) Podem induzir alterações vitais na personalidade? (Sim, mas o júri de parasitologistas, neurologistas, psiquiatras e outros cientistas ainda qualifica o veredito.)
Há muitas décadas, todo médico sabe que uma mulher grávida portadora de T. gondii pode contagiar o feto e sujeitá-lo assim a afecções encefálicas gravíssimas, até mortais.
Já em adultos normais, os sintomas são geralmente brandos, confundidos com outros mal-estares e tipicamente seguidos de migração do micróbio para o cérebro.
Até anos recentes se acreditava que ele permanecesse inofensivo ali, em "animação suspensa" dentro do cisto que constrói em torno de si. Mas, há uns 20 anos, certo obscuro biólogo tcheco, Jaroslav Flegr, da Universidade Charles, em Praga, começou a suspeitar que o T. gondii hospedado em sua cabeça vinha induzindo alterações patológicas em seu comportamento.
Não era difícil para Flegr convencer os colegas de que estivesse ficando maluco; difícil foi demonstrar que a causa da insanidade fosse o T. gondii.
Hoje, a teoria e a laboriosa pesquisa de Flegr são acolhidas com respeito e interesse em universidades de alto renome, como a de Leeds, na Inglaterra, e as americanas de Stanford, Johns Hopkins, Binghamton e Estadual de Colorado.
Muitos duvidam quando Flegr conjectura que toxoplasmose pode matar mais gente do que malária, embora por meios indiretos, como induzir comportamento imprudente ao volante ou complicar, quando não determinar, esquizofrenia conducente a distúrbios letais.
O caso intriga não apenas cientistas, mas também juristas, mandatários, filósofos e até mesmo teólogos. O fato de um reles micróbio manipular a nossa vontade e a nossa identidade acentua o argumento fatalista e revive crença em destino: a liberdade, especialmente o livre-arbítrio, seria ilusão?

O destino e a prévia - MERVAL PEREIRA


O GLOBO - 26/02/12

As trapaças do destino acabaram aprontando das suas na sucessão paulistana, que se transformou em centro da disputa nacional pelo poder entre PT e PSDB. O partido que escolhia seus candidatos "ouvindo as bases" deixou de fazê-lo quando chegou ao poder real, passando a impor seus preferidos às direções regionais e a reservar para Lula o papel de candidato único à Presidência da República, sem contestações. Já ao PSDB, diante de um quadro partidário fragmentado e sem grandes nomes para disputar a prefeitura de São Paulo, não restou alternativa que não fossem as prévias, uma maneira de a direção partidária lavar as mãos na escolha de seu candidato, deixando que a frágil militância tucana decidisse o destino do partido que, pela primeira vez em muitos anos, a direção não conseguiu definir.

Agora que o ex-governador José Serra parece ter decidido concorrer à prefeitura, não há mais como desistir das prévias e aclamá-lo candidato único, como era a vontade da direção nacional no início do processo. O próprio Serra, e o governador Geraldo Alckmin, encarregado de fazer as sondagens iniciais com os pré-candidatos a prefeito, chegaram à conclusão de que não realizar as prévias seria um mau começo para uma eventual campanha de Serra.

Ele disputará as prévias, com o apoio das executivas nacional e estadual, e, provavelmente, será o vencedor. Mas terá que cumprir essa etapa.

As prévias, embora existam ainda no estatuto do PT, assim como a defesa do socialismo, foram se tornando um hábito arcaico, um modelo que não serve mais aos interesses embutidos no estágio de poder a que o partido chegou a nível nacional.

O ministro Gilberto Carvalho, representante formal de Lula no governo Dilma, chegou a dizer que seria "um desastre" a realização de prévias para escolher o candidato petista à prefeitura, como chegou a defender o senador Eduardo Suplicy.

Pelo menos coerente ele é, naquele seu jeito sonso de fazer política. Ele e Cristovam Buarque, ambos senadores petistas na ocasião, comandaram uma rebelião na escolha do candidato do partido à Presidência da República em 2002, depois de Lula ter sido derrotado quatro vezes anteriormente, duas para Collor, no primeiro e segundo turnos de 1989, e duas no primeiro turno para Fernando Henrique em 1994 e 1998.

Os dois lançaram dentro do partido a ideia de que Lula deveria dar lugar a uma candidatura de renovação - a mesma tese, aliás, que Lula defendeu agora para tirar da disputa pela prefeitura Mercadante e Marta Suplicy e lançar Fernando Haddad.

Colocaram-se então à disposição do PT para ser esse candidato, a ser escolhido em uma prévia. A candidatura de Lula mais uma vez era bancada pela direção nacional, que, no entanto, não teve força para evitar as prévias.

Cristovam acabou desistindo da empreitada, mas sua pretensão de confrontar o "grande líder" não foi perdoada: convidado para ser ministro da Educação do primeiro governo Lula, acabou demitido por telefone meses depois e teve de sair do PT, indo para o PDT, onde foi candidato a presidente contra Lula nas eleições de 2006.

Suplicy levou adiante sua candidatura e foi massacrado, perdendo por 84,4% a 15,6%. No início do processo atual, para irritação do ex-presidente Lula, ele decidiu pedir a realização de prévias no PT para a escolha do candidato à disputa pela prefeitura de São Paulo em 2012.

O verdadeiro obstáculo ao "dedaço" de Lula que indicou Haddad como candidato era, porém, outra Suplicy, a ex-prefeita Marta, que, até o momento, não aderiu integralmente à campanha petista.

Aguarda o desfecho dos acordos com o prefeito Gilberto Kassab, do PSD, para tomar uma decisão. Já disse que, com Kassab, não sobe no palanque de Haddad, mas quem deve salvá-la dessa saia justa política é nada menos que seu algoz, o ex-governador José Serra.

Com a decisão de disputar a prefeitura, Serra terá o apoio "incondicional" do PSD do atual prefeito Gilberto Kassab, que está no cargo devido ao apoio do então governador Serra à sua reeleição em 2008, contra o atual governador Geraldo Alckmin.

Os tucanos estão à frente do governo do estado de São Paulo há nada menos que 16 anos, e retomaram o controle da prefeitura em 2004, quando Serra, derrotado em 2002 para a Presidência da República por Lula, venceu a petista Marta Suplicy, tendo como vice Gilberto Kassab, àquela altura no DEM, que assumiria o posto para Serra disputar (e vencer) o governo do estado em 2006.

Esse verdadeiro "samba do crioulo doido" da política paulista leva, portanto, o PSDB a mudar seu sistema verticalizado de escolha de candidatos para uma prática mais democrática.

Tentando fazer do limão uma limonada, os dirigentes tucanos viam nas prévias a possibilidade de impulsionar uma revitalização da militância tucana na capital paulista, o que daria novo fôlego ao partido, mesmo sem um nome forte para candidato.

Agora, as prévias se transformarão num primeiro teste para a candidatura de José Serra, que pode sair delas tão fortalecido partidariamente quanto Lula saiu das prévias petistas para vencer a eleição presidencial de 2002.

A candidatura de Serra tem a motivação menos pessoal e mais partidária de quantas eleições já disputou: o partido precisa dele para tentar manter o poder na capital, para Geraldo Alckmin disputar a reeleição no governo do estado em 2014 em condições de vencer.

Caso contrário, o PT estará pronto para assumir o controle político de São Paulo, reduzindo o espaço da oposição ainda mais.

PSD quer limitar apoio a SP - JOÃO BOSCO RABELLO


O Estado de S.Paulo - 26/02/12


Em política não há sentenças definitivas, mas a confirmação da candidatura à Prefeitura, nas circunstâncias atuais, representa para o ex-governador José Serra a abdicação do projeto pessoal de chegar à Presidência da República.

A lógica indica ter prevalecido no PSDB a percepção de que a batalha da hora é impedir a conquista da Prefeitura de São Paulo pelo PT, primeiro passo do adversário histórico dentro da estratégia mais ampla de chegar ao Palácio Bandeirantes.

O que, se eventualmente ocorrer, significará o que na linguagem popular do futebol se traduz por fazer "barba, cabelo e bigode", dito aplicado a um time que obtém conquistas simultâneas. O PT, se consumada sua estratégia, teria a prefeitura e o governo do Estado mais importante, além da Presidência da República, na suposição da reeleição de Dilma Rousseff em 2014.

Serra vive seu momento mais difícil e desafiante: a vitória ou a derrota o inviabilizam para 2014. A primeira o devolve ao poder político, mas o faz prisioneiro do mandato; a segunda certamente representará a aposentadoria.

É com esse raciocínio que o PSD respalda a confiança na garantia recebida do prefeito Gilberto Kassab de que o acordo com o PSDB se restringe à eleição municipal. Montado com apoio do PT na maioria dos Estados, nos quais é sublegenda de governadores, o partido não quer abrir mão do apoio à reeleição de Dilma em 2014.

A exceção a esse planejamento seria um desastre na administração Dilma, capaz de inviabilizá-la eleitoralmente, hipótese considerada remotíssima pela maioria dos estrategistas dos partidos políticos, mesmo os da oposição.


Tempo de TV, moeda decisiva

A pedra no caminho do PSD na tentativa de se tornar parceiro indispensável no apoio à reeleição de Dilma Rousseff, o que disputa com o PMDB, é o tempo de televisão que reivindica junto à Justiça Eleitoral. Ainda mais se o PMDB se fortalecer com o apoio ao PT num segundo turno em São Paulo. Por isso, o partido estranha que o PSDB esteja na oposição à causa, até porque reduz o tempo de propaganda também para José Serra. Porta-vozes do partido cobram reciprocidade.

Sarney fica menor no Amapá

Cristina Almeida (PSB), que em 2006 ameaçou a reeleição do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP) - ficou 4 pontos atrás dele nas pesquisas -, volta à cena na disputa pela Prefeitura de Macapá, apoiada pelo governador Camilo Capiberibe. Ela tem 11% nas sondagens, logo atrás do prefeito Roberto Góes (PDT), que busca a reeleição. A interlocutores, Sarney afirmou que não se envolverá na disputa no Amapá neste ano. Seu espaço ficou menor.

Mandatos eternos

O Supremo Tribunal Federal deve julgar brevemente o caso dos "prefeitos itinerantes" - políticos que driblam o limite constitucional de dois mandatos consecutivos, mudando o domicílio eleitoral e elegendo-se em municípios vizinhos. Há casos como o do prefeito de Paulista (PE), Yves Ribeiro (PSB), há 20 anos no cargo. No STF, por mais incrível, há quem ache normal, como os ministros Marco Aurélio Melo e Cármem Lúcia.

Abrindo o bico

O ex-deputado Hildebrando Pascoal, do "crime da motosserra", driblou a segurança da penitenciária do Acre e enviou cartas ao Judiciário ameaçando contar o que sabe. Treze anos após sua prisão, seu sobrenome pode voltar à Câmara: se o TSE cassar a deputada Antônia Lúcia (PSC-AC), quem assume a vaga é Solange Pascoal (PMN-AC), sua prima.

EMPADA SEM AZEITONA


A luta continua - GILBERTO KASSAB

FOLHA DE SP - 26/02/12

A caminhada de quase um ano pela consolidação do PSD é uma história de luta e perseverança. Começou com a determinação de lideranças do Brasil inteiro de unir esforços para construir um partido moderno, com comando democrático, participativo e com real envolvimento da militância. Todos que nos reunimos em março de 2011, na Assembleia Legislativa de São Paulo, para lançar o Partido Social Democrático tínhamos convicção de que era possível fazer política de maneira consequente, madura, sem ranços nem preconceitos, a favor do Brasil.

Forças partidárias contrariadas saíram a campo e ocuparam a mídia com intrigas, denúncias falsas, calúnias e provocações. Tínhamos certeza de que enfrentaríamos barreiras, incompreensões e resistências poderosas. Mas fomos em frente. Lutamos e cumprimos todas as normas e exigências do Tribunal Superior Eleitoral. E, na noite de 27 de setembro do ano passado, por sete votos a dois, em um julgamento memorável, nasceu o PSD. As calúnias, investigadas e analisadas uma a uma, caíram diante do trabalho e do lúcido relatório da ministra Nancy Andrighi.

As diretrizes de março foram publicadas no dia seguinte, já como princípios e valores do PSD. Anunciamos em Brasília bandeiras claras: uma nova Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, para discutir as reformas necessárias; a defesa do voto distrital; e a luta por um novo pacto federativo. Criamos o Espaço Democrático, fundação para discutir saídas para a modernização e desenvolvimento do nosso país. Em seminários liderados pelo vice-governador Afif Domingos, presidente do Espaço Democrático, estamos percorrendo o Brasil, levando a nossa mensagem, dialogando, cadastrando militantes e ativistas. É um trabalho animador!

Nesse cenário de pré-eleições municipais, continuamos enfrentando preconceitos, carimbos e análises tão ligeiras quanto equivocadas. Em todo o Brasil, as coligações partidárias municipais obedecem a lógica local, regional.Seguimos respeitando os compromissos assumidos anteriormente pelas forças parlamentares municipais e estaduais que nos apoiam e nos apoiaram desde o início. É natural que as eleições municipais de São Paulo, onde se encontram expressivas lideranças partidárias, chamem a atenção do país. Desde o início, fomos transparentes, colocando com firmeza as opções e prioridades do PSD. Procuramos e fomos procurados. Dialogamos civilizadamente.

Definida a candidatura Serra, estaremos unidos para mais uma batalha, na defesa do legado das realizações que construímos juntos e na consolidação de uma cidade moderna, com políticas públicas eficientes e de qualidade. O diálogo com o PT e com outros partidos continua em novas frentes municipais pelo país afora.Com lealdade aos milhares de militantes, temos certeza de que iremos, em todo o Brasil e aqui em São Paulo, lutar a boa luta -aquela que nos manterá vivos, de cabeça erguida, com condições de defender o grande legado de realizações paulistanas. Os dados estão lançados. Conscientemente, estamos prontos para assumir as nossas responsabilidades nestas eleições municipais. E nas outras que virão.

Cambalhota em São Paulo - ELIANE CANTANHÊDE


FOLHA DE SP - 26/02/12

O pouso de José Serra cria um novo epicentro na eleição para a Prefeitura de São Paulo.

Se todas as atenções, espaços de mídia e, principalmente, articulações políticas giravam em torno de Lula e Haddad, passam agora a girar em torno de Serra e Alckmin.

Serra e Alckmin são amigos na origem, adversários no PSDB e fadados a uma convivência forçada para, quem sabe, todo o sempre.

Serra precisa da força de Alckmin e da máquina do principal governo do país. Alckmin também precisa de Serra, para garantir São Paulo nas mãos dos tucanos.

Haddad míngua, Gabriel Chalita perde até a equipe, Gilberto Kassab assume ares de coordenador e porta-voz, como se sua ostensiva aproximação com Lula e Haddad jamais tivesse existido. Os partidos satélites reavaliam as condições das candidaturas e se reposicionam.

Trata-se, pois, de uma mudança e tanto no quadro e no cenário paulistanos. Mas a eleição ainda não começou... Serra venceu a primeira fase, mas faltam as prévias e a campanha não vai ser fácil. Há dúvidas, como sempre, sobre a participação efetiva dos tucanos: até onde eles vão ajudar, até onde poderão atrapalhar. É o "fenômeno Aécio", que se materializa a cada eleição.

Perfeccionista, obcecado, aplicado, autocentrado e irritante, tudo em Serra parece menor ou maior do que é -e polarizado. Ele é o primeiro nas pesquisas, mas acumula enorme rejeição; boia de salvação para os tucanos, não tem a simpatia de 9 entre 10 deles; é "O" candidato a prefeito, mas só pensa em ser presidente da República.

Convém ter um pé atrás diante das promessas de que Serra não vai abdicar da Prefeitura -de novo- para disputar a Presidência. Sua candidatura não apenas muda o epicentro da eleição paulistana como começa a definir também a campanha presidencial. Com Serra prefeito de São Paulo, tudo pode acontecer.

Um fundo para distribuir renda - SUELY CALDAS


O Estado de S.Paulo - 26/02/12


Finalmente - se não surgirem novas resistências - a Câmara dos Deputados vai retomar esta semana a votação da criação do Funpresp, o Fundo de Previdência Complementar do Serviço Público Federal, que o governo pretendia aprovar em 2011, mas o PT e outros partidos aliados boicotaram. O último boicote foi o faniquito do presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), que bateu o pé e, intempestivamente, retirou a matéria de pauta em represália à não nomeação de um apadrinhado seu para a diretoria do Banco do Brasil. É com tal descaso e desrespeito aos eleitores e ao País que parlamentares do PT tratam os problemas da República. Mas agora parece não haver mais desculpa e o fundo pode ser definido esta semana.

A criação do fundo não resolve no curto prazo o bilionário déficit previdenciário dos servidores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que saltou de R$ 29,5 bilhões, em 2002, para R$ 56 bilhões, em 2011, e vai terminar 2012 acima de R$ 60 bilhões. Mas aprová-lo é uma questão de justiça social. Além de vedar o ralo por onde se esvaem a cada ano mais e mais bilhões de reais, no longo prazo ele resolve em definitivo o maior foco da desigual e injusta distribuição de dinheiro público no País.

Algumas comparações comprovam a injustiça: enquanto 1 milhão de servidores (0,005% da população) mordem R$ 56 bilhões do dinheiro que os 190 milhões de brasileiros pagam em impostos, o governo vai aplicar este ano apenas R$ 42,5 bilhões em investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento - incluindo rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas, saneamento, habitação. E a vida de muitos milhões de brasileiros poderia melhorar se o governo aumentasse esse valor. Tanto se fala em deficiências em saúde e educação, mas, se essa minúscula parcela de 0,005% da população não concentrasse tanta verba pública, sobraria mais dinheiro para melhorar esses serviços.

O Brasil é o país que mais gasta para seus servidores terem o privilégio de se aposentar com o mesmo salário da vida ativa. Até os ricos países europeus da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) - e sua conhecida generosidade com sistemas previdenciários - gastam menos do que nós. Os funcionários aposentados desses países custam aos governos em média 2% do PIB (varia entre 0,8% a 3,5%), equivalente a 5% da arrecadação tributária (entre 2,4% a 7,6%). Já o Brasil gasta quase 5% do PIB ou 15% da receita com impostos. O governo Dilma tem pressa em aprovar o fundo porque em 2012 estão previstas 57 mil novas contratações de servidores, que já entrariam sob o novo regime.

O projeto original do governo foi modificado, em comissões na Câmara, em três itens essenciais:

ele igualava em 7,5% do salário a contribuição mensal do governo e a dos servidores. Na nova versão, o governo contribui com 8,5%, rompendo a paridade;

o projeto original previa a constituição de um único fundo para os Três Poderes. Por pressão do Judiciário, ficaram três fundos distintos;

e a gestão do dinheiro seria profissional, terceirizada e confiada a instituições financeiras especializadas. O novo projeto entrega a gestão a diretorias e conselhos indicados pelos Três Poderes e seus funcionários.

Das três mudanças, a mais perigosa é a relativa à gestão. O passado dos fundos de estatais é estarrecedor em matéria de incompetência e interferências políticas que resultaram em prejuízos enormes aos participantes dos fundos. Está tudo documentado no relatório de uma CPI em que aparecem investimentos desastrosos em imóveis, hotéis, shoppings e até em sepulturas. Marcados por corrupção e desvio de dinheiro, esses investimentos geraram déficits milionários que os 190 milhões de contribuintes sempre bancavam. É arriscado abrir brechas para repetir essa prática. O governo não deveria abrir mão da terceirização. Ela é quase uma norma em fundos de empresas privadas, com resultados altamente positivos. Já a gestão entregue a sindicalistas ou apadrinhados políticos... nossa história é farta em desastres para aceitar repeti-los.

Por que Serra cedeu - DORA KRAMER

O ESTADÃO - 26/02/12

José Serra foi para Buenos Aires no carnaval já praticamente decidido a ser candidato a prefeito de São Paulo, faltando apenas organizar na cabeça as razões políticas e pessoais que o fariam entrar numa empreitada até então rejeitada com veemência.

Viajou na companhia de seu melhor confidente: o filho Luciano, com quem pesou os prós e mediu os contras. De volta, na sexta-feira acordou pronto a comunicar a decisão ao governador Geraldo Alckmin o mais rápido possível. Naquela mesma noite ou sábado no mais tardar.

As prévias marcadas para 4 de março, a intensa pressão do PSDB e a indicação dos dias anteriores de que caminhava mesmo para rever sua posição não davam margens a hesitações e adiamentos. Era pegar ou largar e Serra resolveu pegar.

Na realidade porque concluiu não existirem contras - a não ser a possibilidade da derrota e o fato de que o projeto de disputar a Presidência da República em 2014 teria de ser necessariamente adiado.

Note-se, adiado, não cancelado, mas essa é outra história a ser construída mais à frente se as circunstâncias assim permitirem.

Por ora, a decisão de José Serra guarda relação com vários fatores, sendo o principal deles a premência de tentar impedir o PT de conquistar São Paulo, a mais vistosa cidadela do PSDB, na perspectiva de que em 2012 seria a prefeitura e em 2014 o governo do Estado.

Uma conta pragmática: perder a prefeitura seria muito pior que não concorrer e ganhar pode significar renascer.

Afinal, a eleição é local, mas em São Paulo tem um caráter nacional inequivocamente simbólico. Na prática, abre-se a Serra a oportunidade de mostrar um enfrentamento com o PT que na campanha de 2010 deu-se de maneira dúbia.

O movimento de aproximação do prefeito Gilberto Kassab em direção ao PT teve um peso fortíssimo: muito provavelmente levaria o candidato Fernando Haddad a uma vitória no primeiro turno e o PSDB a um beco sem saída.

Do ponto de vista pessoal, Serra concluiu que se quisesse permanecer no jogo político não tinha opção a não ser se candidatar.

Uma, para não ser apontado como o responsável pelo início do fim do partido. Outra, porque não adiantava ficar pendurado na hipótese de 2014 levando em conta a situação de correlação interna de forças, a desorganização e a falta de unidade reinante no PSDB.

O governo do Estado desta vez não seria uma alternativa, pois Alckmin é candidato à reeleição.

A candidatura agora seria, então, uma maneira de reorganizar as tropas em São Paulo, reaproximando Gilberto Kassab de Geraldo Alckmin e partindo para a formação de uma aliança com o DEM, o PSD, talvez o PSB e outras legendas menores, mas essenciais para aumentar o tempo no horário eleitoral de rádio e televisão.

O PPS formalmente fica de fora, com a candidatura de Soninha Francine, mas na prática não deixa de ser uma espécie de linha auxiliar.

Contrariando as versões correntes, não houve exigências de cancelamento das prévias nem de formação de chapa puro-sangue. O lugar de vice está aberto, mas a decisão só será tomada em meados do mês de maio, porque depende de negociações: o DEM quer o lugar e Kassab, embora diga o contrário, também pleiteia o direito à indicação, o que certamente conseguirá.

Quanto às prévias, tudo depende dos quatro postulantes à candidatura. Se todos desistirem, ficam naturalmente canceladas. Se alguém persistir, Serra se inscreve e "concorre". Uma disputa de fachada que, no entanto, custaria menos que o desgaste de insistir no cancelamento.

Nostalgia. Os grupos de militares da reserva que reclamaram da falta de censura por parte da presidente Dilma Rousseff às críticas de suas ministras ao governo autoritário queriam o quê?

Pelo visto, interditar o direito à livre manifestação, num surto saudosista. Foram obrigados a recuar, chamados à realidade de que estão fora do jogo político desde a volta ao País à legalidade com o fim do regime de exceção.

Na arena da transgressão - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

O ESTADÃO - 26/02/12

Pulamos da era do animal para a era da máquina, pilotando carros e jet skis como num rodeio. A diferença é que o cavalo age com inteligência, mesmo quando o cavaleiro é burro


Repetidos acidentes, até fatais, por uso de veículos por pessoas inabilitadas recebem entre nós o rótulo de "fatalidade". Mas há fatalidades previsíveis, que podem ser evitadas e não o são. Alguém é responsável por elas. A adoção de equipamentos e instrumentos que dependem de maturidade e habilitação para ser manejados deu-se no Brasil como uma espécie de salto do passado ao futuro, sem passagem pelo presente da ressocialização e da reeducação para seu uso. Pulamos da era do cavalo para a era da máquina, dirigindo máquina como quem dirige cavalo. A diferença é que o cavalo é um animal que age inteligentemente, mesmo quando o cavaleiro é burro. No caso da máquina, se falta prudência, maturidade e habilitação, não só o usuário corre risco. Também a sociedade o corre. Nesse risco temos vivido. Basta fazer um recorte temporal, mesmo num curto período, para que nos defrontemos com uma coleção de casos recorrentes.

A morte da menina de 3 anos de idade na praia, em Bertioga, atingida por um jet ski desgovernado, pilotado por um moleque de 13 anos, foi apenas um dos casos de uso irresponsável de máquinas mortíferas nos dias do carnaval. Na represa de Guarapiranga, dois jet skis se chocaram e um dos pilotos, de 20 anos, ficou ferido. Os dois pilotos, maiores de idade, não tinham habilitação, só concedida a quem tenha 18 anos completos. Em novembro, numa lagoa de Ribeirão Preto, dois jet skis, dirigidos por um adolescente de 15 anos e por um homem de 28 anos, se chocaram. O homem morreu. Nenhum dos dois tinha habilitação, concedida pela Marinha.

Não só na água a síndrome de Superman produz vítimas. No Rio Grande do Sul, na praia do Quintão, nestes mesmos dias de folia, um jovem de 18 anos dirigindo um carro entrou numa rua interditada aos veículos pela realização do desfile de carnaval local e atropelou 17 pessoas, das quais 9 foram hospitalizadas. Em fevereiro de 2011, um carro entrou propositalmente sobre os ciclistas de uma demonstração do movimento Massa Crítica, numa rua de Porto Alegre, atropelando vários. Nove foram hospitalizados, com ferimentos leves. No caso de Bertioga, não houve nem mesmo a prestação de socorro à vítima. A família do atropelador deixou o local de helicóptero.

O País continua regido por uma cultura da transgressão, própria de uma sociedade de senhores e de escravos. Nela, diferentemente do que ocorre em sociedades civilizadas, o outro é irrelevante; relevantes são o sentimento de superioridade em relação aos demais e a esperteza para escapar das formalidades da lei. Herdamos essas concepções da sociedade colonial, que por ser fundada na desigualdade era também fundada no pressuposto de que o ter e o mandar sobrepõem-se ao ser. Passou o tempo, e o advento da sociedade moderna - e com ela o da classe média e da ascensão social -, em vez de disseminar o cidadão e a igualdade, difundiu a aspiração da afirmação da desigualdade em nome dos valores retrógrados do antigo regime. A lei mudou, na letra e na forma, mas o egoísmo consumista e moderno revigorou costumes e mentalidades.

Há deturpação e crime na licença que usuários se dão de dirigir bêbados um carro ou dirigir um jet ski como se fosse um cavalo num rodeio, o que é próprio de uma sociedade em que nem sempre é a função do objeto que determina seu emprego, mas o abuso, o prazer mórbido de transgredir, a ilusão de poder que dele decorre. Incorporamos os meios e confortos da modernidade, mas não suas funções sociais e, portanto, não as regras de civilidade nelas pressupostas, o preço a pagar.

O caso de Bertioga é particularmente grave porque envolve duas crianças. O atropelador, nos procedimentos para protegê-lo das consequências do crime que cometeu, recebe a feia lição de que mesmo o assassinato pode ser contornado. Mas carregará para o resto da vida a consciência de que tirou a vida de outra criança. Os especialistas que se manifestaram já deram a entender que ele não será punido, o que se compreende. De fato, ele não é um infrator; infrator é quem lhe colocou nas mãos a máquina mortal, sabendo que se tratava de uma ilegalidade e que havia risco para terceiros e para o próprio. Quando muito, os responsáveis indenizarão a família da vítima, como já aconteceu em casos parecidos. Tudo se resolverá na mesquinha lógica mercantil que dissemina de maneira irresponsável a cultura do consumo sem freio, mesmo que seja colocando instrumentos de violência nas mãos de imaturos. Pais e parentes se tornaram acólitos e servos dessa cultura de ostentação, entulhando suas vidas e a de seus filhos com instrumentos que, no limite, matam. Afirmam prestígio na exibição de signos de status à custa de crianças e jovens, até dos próprios filhos, pondo-lhes nas mãos ferramentas de homicídio. A indulgência da lei e dos tribunais acaba fechando o círculo vicioso da impunidade, que consagra a injustiça e não dá ao transgressor a oportunidade de expiar seu delito. Viverá com a alma manchada pelo sangue alheio.

Vida cigana - MÔNICA BERGAMO

FOLHA DE SP - 26/02/12
A nova estrela do MMA festeja a vitória mundial nos pesos-pesados. E alerta que o esporte precisa de apoio para florescer ainda mais no Brasil, onde jovens lutadores "têm empregos extras para sustentar a família"

Claudia Leitte atrasou um show, em novembro, para assistir à luta em que o brasileiro Junior dos Santos, o Cigano, sagrou-se campeão mundial de pesos-pesados do UFC, principal torneio de MMA (artes marciais mistas). Quando o encontrou, dias depois, em um programa de TV, contou isso a ele e incluiu seu apelido numa música que cantou na atração.

De Ivete Sangalo, no alto de um trio elétrico, semanas depois, ouviu "alguns conselhos, como se ela fosse minha chegada. Disse para eu tomar cuidado na vida, cuidar de mim mesmo e da família. Foi bom ouvir isso de alguém que eu admiro", conta ao repórter Diógenes Campanha.

O assédio de anônimos e famosos aumentou desde que Junior Cigano conquistou o cinturão, na luta que também marcou o início das transmissões do MMA pela TV Globo. Ele passou a formar a trinca de campeões brasileiros, com Anderson Silva (peso-médio) e José Aldo (peso-pena).

Virou hit, na TV e na internet, a narração em que Galvão Bueno, aos gritos, contava os golpes com que nocauteou o rival Cain Velasquez: "Mão esquerda! Um, dois, três, quatro, bate! 'Cabô', 'cabô', acaboooou!"

"Foi uma segunda emoção", diz ele, que assistiu à narração no carro, quando voltou de Los Angeles, local do combate. "E ele falou 'Júnior Cigano do Brasil'. A única pessoa pra quem ele falava isso era o Ayrton Senna, o Ayrton Senna do Brasil. Foi uma coisa muito forte que veio do Galvão, um dos maiores, ou o maior, narrador de todos os tempos."

Na loja da grife Pretorian, seu patrocinador, na rua Oscar Freire, Cigano, 28, tira medidas para roupas. O funcionário passa a fita em seu bíceps, que, relaxado, tem 43 cm. Brinca ao fazer movimentos para contrair o músculo. "Vai pra lá? Vai pra cá? Troca lâmpada?" Mais cinco centímetros. Com 1,92 m e 110 kg, experimenta uma camisa GG. "Essa está ótima, não está 'palhacenta'." A de tamanho G tinha ficado muito justa.

Ele exibe um escapulário de ouro português, com Jesus, Nossa Senhora do Carmo e uma Nossa Senhora Aparecida com manto de safiras azuis e detalhes de brilhantes. A mulher, Vilsana Almeida, 42, tem um igual. "Mandei fazer esses, porque outros têm correntes bem fininhas", conta ela. "E tudo o que ele mete a mão é com força, acaba partindo."

Devoto de Nossa Senhora, Cigano deve uma visita à cidade de Aparecida (SP) para pagar promessa feita antes da luta com Velásquez. Não para ganhar o cinturão, mas para curar uma lesão sofrida no joelho, dez dias antes do combate. "Foi um momento muito frustrante. Eu pedi a Deus e à Nossa Senhora para ter a oportunidade de pelo menos subir lá, porque eu já tinha treinado três meses."

"Não interessava o resultado. Eu queria mesmo era a chance de mostrar por que eu merecia estar lá." Recuperou-se em tempo e, "incrível, não senti nada no joelho na luta".

Agenda sempre à mão, Vilsana calcula que, "com médico e tudo", gastaram "mais de R$ 100 mil" na preparação para o combate. Convidou e alojou em Salvador, onde mora, profissionais de diversas modalidades de luta, brasileiros e estrangeiros, para treinar com eles. E um preparador físico. "Você tem que pagá-los, colocar empregada para fazer comida para eles, dar carro. É caro, é caro", diz Cigano, que afirma que "o MMA ainda não dá aquela dinheirama toda". Agradece o patrocinador, que "me ajudou antes mesmo de eu disputar o cinturão."

Por esse motivo, vê com ressalvas a recente entrada de empresários como Eike Batista, Nizan Guanaes e o ex-jogador Ronaldo (que gerencia a carreira de Anderson Silva) no MMA. Acha que falta apoio a lutadores iniciantes. "Muitos ainda têm empregos extras para poder sustentar a família. É preciso, tipo, acreditar, entendeu?"

"Quando o negócio está bom, é fácil chegar e dizer: "Ah, eu tô junto". Quero ver estar junto no início, entendeu? É disso que a gente precisa. Que acredite, invista e depois colha os frutos. O pessoal chega depois que tudo aconteceu e quer dizer que está junto. Ainda tem muito o que melhorar, mas vai acontecer. Já está acontecendo."

Apesar da exposição, não tem assessor nem treina para dar entrevistas, como centenas de estrelas. "Por enquanto vou levando meio nas 'toras'. Mas só mostro quem eu sou. Se eu usar uma máscara, uma hora ela cai, entendeu?." A mulher, Vilsana, largou a arquitetura para cuidar de sua carreira. "É muita coisa: agenda, treinos, alimentação, me meto em tudo. Negocio com patrocinadores, convido os treinadores." Ela evita sair em fotos. Topou apenas o clique com o escapulário, que ilustra esta página. "Falo que sou o universo, que é escuro, e ele é o sol, que brilha. Eu não tenho limite, mas é ele que dá a luz." Cigano retribui: "É a mulher mais inteligente que já conheci. Foi o alicerce da minha vida. Sem ela, com certeza, eu não estaria aqui. Foi um anjo, é um anjo para mim."

Eles se conheceram há nove anos num restaurante em Salvador. Ela cliente, ele garçom, um dos primeiros empregos que teve ao desembarcar na Bahia, vindo de Caçador (SC), com R$ 80 no bolso. Junior deixou a cidade de 71 mil habitantes, no oeste catarinense, aos 18 anos, com ensino médio incompleto, para "tentar alguma coisa".

Mais velho dos três filhos de uma faxineira com um mecânico (que já tinha outros dois filhos), ele tinha oito anos quando o pai saiu de casa. "Às vezes eu chegava em casa e ela estava chorando. Tinha recebido o salário e mal dava para pagar as compras que tinha feito fiado no mercado." Nos momentos de maior necessidade, comia farinha de milho cozida com água. Aos 12 anos, vendeu picolés na rua. O primeiro emprego "fichado, com carteira assinada", foi aos 14, entregando jornais. Também colheu frutas e carregou caminhões de carga.

"Olha minhas gordurinhas, viu?", diz, depois de posar sem camisa. Ele depila o peito para os pelos "não ficarem enrolados". Fora isso, diz que seu único ritual de beleza é raspar a cabeça, hábito que iniciou aos 22, quando começou a ficar careca.

Antes, exibia cabeleira até o ombro, que amarrava quando começou a treinar jiu-jítsu para perder peso. "E os colegas achavam parecido com um cigano de uma novela da época. Eu não gostava, aí é que o apelido pegou mesmo. Depois fiquei tão acostumado que acabei gostando." Perdeu os cabelos, mas ficou com o nome que, anos mais tarde, levaria para o ringue.