O buraco negro entre governo e sociedade
ARNALDO JABOR
O GLOBO - 18/05/10
Diante do pedido de urgência para se votar o projeto Ficha Limpa, irritado com a pressa de mais de 1,8 milhão de assinantes pedindo a sua aprovação, o senador Romero Jucá produziu uma frase definitiva que ilumina o país: "Esse projeto Ficha Limpa não é um projeto do governo; é da sociedade..."
Com raro e inspirado brilho, o senador, líder do governo Lula, o homem das sete fazendas imaginárias, deu-nos um show de ciência política.
A frase é uma síntese do Brasil. É como se o inefável Jucá dissesse: "O tempo do governo é diferente do vosso. O problema é de vocês - apressadinhos comem cru".
Sérgio Buarque de Holanda teria aplaudido esse belo resumo de nossa organização política e poderia completar, como em seu livro seminal "Raízes do Brasil": "... para o funcionário patrimonial, a própria gestão política se apresenta como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses em que prevaleçam a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos...".
E completa: "a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la a seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido no Velho Mundo o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação colonial, ao menos como fachada ou decoração, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época, exaltados nos livros e discursos...".
Para políticos como Jucá, a única "democracia" é um vago amor pelos amigos, uma poética queda para a camaradagem, a troca de favores, sempre com gestos e abraços risonhos, na doce pederastia de uma sociedade secreta.
Somos tecnicamente uma "democracia", que é vivida por eles como porta aberta para oportunismos, pois a "cana" é menos dura...
A frase iluminada de Jucá mostra-nos que há uma fenda secular, um abismo entre sociedade e governo, e que há uma inversão de valores - o governo tem vida própria e a sociedade existe apenas para legitimá-lo. O Estado é uma ilha de interesses políticos habitada por uma "sociedade" feita de 513 deputados, 82 senadores, funcionários públicos etc...
A frase de Jucá pode ser montada com o belo chiste do Tuma Jr., com seu corpanzil de leão marinho barbudo: "Tirem o cavalo da chuva... Não vou sair!" Sair por quê? Sair de sua "casa", de sua "propriedade", logo ele que sabe dos segredos de alcova de seus colegas, ele que administrou como delegado até o caso de Celso Daniel? "Não vou cair calado!", berrou.
Não é sublime tudo isso?
Nunca antes em nossa história alianças tão espúrias tiveram o condão maravilhoso de nos ensinar tanto sobre o Brasil. A cada dia, nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre essa grande chácara de oligarquias.
Lula teve a esperteza política de usar essa anomalia secular em proveito de seu governo.
Todos os presidentes têm de fazer isso, senão não governam, sabemos. Mas Lula protegeu demais as mentiras para que a falsa verdade do país permaneça. Viciou malandros com uma dieta gorda, cevou-os com uma fé na impunidade sem limites que abriu um caminho difícil de fechar.
Aliás, essa foi a realização mais profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo burguês e o desenho de um nascente patrimonialismo de Estado.
Sinto nesses sintomas parlamentares a volúpia de ir contra o senso comum, contra o que a maioria pensa; há uma postura sádica de contrariar a população, de proteger uma obscuridade secreta, de defender o direito à mentira como um bem precioso, um direito natural. Eles se banham na beleza de um "baixo maquiavelismo", no cinismo dos conchavos, atribuem uma destreza de esgrima às chantagens e manipulações. "Esperteza" é um elogio muito mais doce do que "dignidade". Lembram da resistência espantosa de Renan para não sair da presidência da Câmara? Isso parece até um "heroísmo" em prol do personalismo colonial atávico, contra essa "violência" que cidadãos "menores" chamam de "interesse público".
Precisamos entender que o atraso é um desejo, uma ideologia. Eles são fabricados entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. O atraso dá lucro.
Se o desejo da sociedade se impuser, se a transparência prevalecer, como viverão felizes as famílias oligárquicas? Como vão vicejar as fazendas imaginárias, as certidões falsificadas, os rituais das defraudações, as escrituras e contratos superfaturados? Que será da indústria da seca, não só a seca do solo, mas a seca mental, em que a estupidez e a miséria são cultivadas para criar bons serviçais para a burguesia semifeudal? Como ficarão as doces camaradagens corruptas em halls de hotel, os almoços gordurosos, as cervejadas de bermudão, as gargalhadas, as "carteiradas" autoritárias, os subornos e as chaves de galão? Como serão os jantares domingueiros, como manter a humilhação e a fidelidade consentida das esposas de botox, o respeito cretino dos filhos psicopatas? Como se manterá a obediência dos peões, dos capatazes analfabetos? Que será do "sistema" cafajeste e careta que rege o país?
Os congressistas talvez acolham o projeto Ficha Limpa pela pressão popular e pela proximidade das eleições; mas tudo a contragosto, com medo de que sejam desarmados os curraizinhos onde paparicam seus eleitores, com medo de perder o frisson dos jaquetões lustrosos, dos bigodes pintados, das amantes nos contracheques, das imunidades para humilhar garçons e policiais.
Eles formam um país isolado. Eles detestam tudo que os obrigue a "governar" o outro país, a chamada "sociedade".
Estão no Congresso para se proteger de fichas sujas, para levar "vantagem em tudo, certo?" Se não, qual a vantagem da política?
Com raro e inspirado brilho, o senador, líder do governo Lula, o homem das sete fazendas imaginárias, deu-nos um show de ciência política.
A frase é uma síntese do Brasil. É como se o inefável Jucá dissesse: "O tempo do governo é diferente do vosso. O problema é de vocês - apressadinhos comem cru".
Sérgio Buarque de Holanda teria aplaudido esse belo resumo de nossa organização política e poderia completar, como em seu livro seminal "Raízes do Brasil": "... para o funcionário patrimonial, a própria gestão política se apresenta como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses em que prevaleçam a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos...".
E completa: "a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la a seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido no Velho Mundo o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação colonial, ao menos como fachada ou decoração, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época, exaltados nos livros e discursos...".
Para políticos como Jucá, a única "democracia" é um vago amor pelos amigos, uma poética queda para a camaradagem, a troca de favores, sempre com gestos e abraços risonhos, na doce pederastia de uma sociedade secreta.
Somos tecnicamente uma "democracia", que é vivida por eles como porta aberta para oportunismos, pois a "cana" é menos dura...
A frase iluminada de Jucá mostra-nos que há uma fenda secular, um abismo entre sociedade e governo, e que há uma inversão de valores - o governo tem vida própria e a sociedade existe apenas para legitimá-lo. O Estado é uma ilha de interesses políticos habitada por uma "sociedade" feita de 513 deputados, 82 senadores, funcionários públicos etc...
A frase de Jucá pode ser montada com o belo chiste do Tuma Jr., com seu corpanzil de leão marinho barbudo: "Tirem o cavalo da chuva... Não vou sair!" Sair por quê? Sair de sua "casa", de sua "propriedade", logo ele que sabe dos segredos de alcova de seus colegas, ele que administrou como delegado até o caso de Celso Daniel? "Não vou cair calado!", berrou.
Não é sublime tudo isso?
Nunca antes em nossa história alianças tão espúrias tiveram o condão maravilhoso de nos ensinar tanto sobre o Brasil. A cada dia, nos tornamos mais sábios, mais cultos sobre essa grande chácara de oligarquias.
Lula teve a esperteza política de usar essa anomalia secular em proveito de seu governo.
Todos os presidentes têm de fazer isso, senão não governam, sabemos. Mas Lula protegeu demais as mentiras para que a falsa verdade do país permaneça. Viciou malandros com uma dieta gorda, cevou-os com uma fé na impunidade sem limites que abriu um caminho difícil de fechar.
Aliás, essa foi a realização mais profunda do governo Lula: o escancaramento didático do patrimonialismo burguês e o desenho de um nascente patrimonialismo de Estado.
Sinto nesses sintomas parlamentares a volúpia de ir contra o senso comum, contra o que a maioria pensa; há uma postura sádica de contrariar a população, de proteger uma obscuridade secreta, de defender o direito à mentira como um bem precioso, um direito natural. Eles se banham na beleza de um "baixo maquiavelismo", no cinismo dos conchavos, atribuem uma destreza de esgrima às chantagens e manipulações. "Esperteza" é um elogio muito mais doce do que "dignidade". Lembram da resistência espantosa de Renan para não sair da presidência da Câmara? Isso parece até um "heroísmo" em prol do personalismo colonial atávico, contra essa "violência" que cidadãos "menores" chamam de "interesse público".
Precisamos entender que o atraso é um desejo, uma ideologia. Eles são fabricados entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. O atraso dá lucro.
Se o desejo da sociedade se impuser, se a transparência prevalecer, como viverão felizes as famílias oligárquicas? Como vão vicejar as fazendas imaginárias, as certidões falsificadas, os rituais das defraudações, as escrituras e contratos superfaturados? Que será da indústria da seca, não só a seca do solo, mas a seca mental, em que a estupidez e a miséria são cultivadas para criar bons serviçais para a burguesia semifeudal? Como ficarão as doces camaradagens corruptas em halls de hotel, os almoços gordurosos, as cervejadas de bermudão, as gargalhadas, as "carteiradas" autoritárias, os subornos e as chaves de galão? Como serão os jantares domingueiros, como manter a humilhação e a fidelidade consentida das esposas de botox, o respeito cretino dos filhos psicopatas? Como se manterá a obediência dos peões, dos capatazes analfabetos? Que será do "sistema" cafajeste e careta que rege o país?
Os congressistas talvez acolham o projeto Ficha Limpa pela pressão popular e pela proximidade das eleições; mas tudo a contragosto, com medo de que sejam desarmados os curraizinhos onde paparicam seus eleitores, com medo de perder o frisson dos jaquetões lustrosos, dos bigodes pintados, das amantes nos contracheques, das imunidades para humilhar garçons e policiais.
Eles formam um país isolado. Eles detestam tudo que os obrigue a "governar" o outro país, a chamada "sociedade".
Estão no Congresso para se proteger de fichas sujas, para levar "vantagem em tudo, certo?" Se não, qual a vantagem da política?