O estresse vivido pelos mercados nas últimas semanas não representa uma nova crise financeira mundial, mas, sim, um desdobramento da crise de 2008. O que está ocorrendo nas bolsas é uma forte correção de preços das ações de bancos e empresas, em função da frustração do crescimento das principais economias desenvolvidas, especialmente da americana.
As medidas adotadas pelos governos no pós-crise recuperaram rapidamente os mercados acionários, mas não a economia real. Empresas e consumidores no mundo rico estão reduzindo seus níveis de endividamento e aumentando a poupança, e isso provoca contração da atividade econômica. No caso dos Estados Unidos, esse processo pode durar cinco anos.
As avaliações são do economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, hoje sócio da Lanx Capital, uma das maiores gestoras de recursos do país. "Não houve nenhum dado novo, não é uma nova crise. Acho que é de fato um desdobramento da mesma crise. Ela apenas não acabou", diz Lara Resende nesta entrevista ao Valor.
No caso do Brasil, ele faz uma crítica dura à reação do governo à crise de 2008. Diz que, ali, foi perdida uma oportunidade histórica para derrubar a taxa de juros de forma agressiva. O país, que, na sua avaliação, caiu numa "armadilha" ao adotar o binômio juros altos-câmbio sobrevalorizado para atrair poupança externa e aumentar os gastos públicos, deveria ter mantido a austeridade das contas públicas, em vez de forçar a recuperação da demanda com estímulos fiscais.
Agora, se houver uma nova desaceleração mundial, a chance de reduzir os juros reaparecerá. Mas, para tirar proveito dela, diz Lara Resende, o governo deve fortalecer as contas fiscais.
Valor: Qual é a gravidade dessa crise que se anuncia nas economias centrais?
André Lara Resende: O que ocorreu agora foi a queda das bolsas, a desvalorização de ativos de risco, principalmente no mercado acionário. Não houve nenhum fato novo. Quando o impasse sobre a elevação do teto da dívida dos EUA foi resolvido, imaginou-se que isso deveria dar um alívio ao mercado. O problema é que veio o rebaixamento dos EUA pela Standard and Poor's. Como as coisas foram logo em seguida e a bolsa teve uma grande queda, deu uma certa sensação de que estávamos tendo uma nova rodada de crise como houve em 2008. Não é o caso.
Valor: Por quê?
Resende: Porque a questão dos ratings é, no fundo, burocrática. As agências de rating não deveriam ter a credibilidade que têm. Existem porque a regulamentação exige que alguns investidores institucionais tenham que ter em suas carteiras títulos de bom rating. Por causa disso, as agências têm um poder de oráculo que, na verdade, elas não possuem. Tanto que se equivocaram nos anos que antecederam a crise. Elas estão, de fato, desmoralizadas, mas acho que esse é um problema menor.
Valor: O que causou, então, esse estresse nos mercados nas últimas duas semanas?
Resende: Houve apenas uma revisão das expectativas de crescimento, especialmente da economia americana. Isso não me surpreende porque numa crise da gravidade da de 2008, em que um país como os EUA estava sobre-endividado, há um período longo em que os agentes vão tentar reduzir o endividamento. Ao fazer isso, aumentam muito a poupança e reduzem, portanto, a demanda. E isso é recessivo. Nos EUA, o super endividamento privado foi transferido para o setor público. Logo, os americanos estão tendo um problema de dívida pública que eles não tinham. E estão fazendo, com grande ambiguidade, uma política keynesiana de expansão.
Valor: Isso pode durar quanto tempo?
Resende: Nós sabemos que a experiência mais recente de sobre-endividamento é a japonesa. O Japão está há 17 anos em estagnação, depois de passar por uma crise de endividamento e de sobrevalorização de ativos.
Valor: Os EUA podem viver situação parecida com a japonesa?
Resende: A economia americana é mais flexível que a japonesa, então, não seria de se esperar que os EUA também tivessem um período tão longo, de mais de uma década, de estagnação, mas eu sempre disse, a partir da crise de 2008, que os EUA passariam por, pelo menos, cinco anos de estagnação. Aquela crise não foi uma recessão comum, em que se tem um recuperação rápida depois de um ano, 1,5 ano no máximo, de contração.
Valor: Era essa a expectativa do mercado?
Resende: O mercado passou um pouco a acreditar nisso. Houve uma recuperação grande dos mercados acionários, muito turbinados pela política do banco central americano de manter a taxa de juros extraordinariamente baixa. Mas o mercado acionário só não via que esses níveis exigiam que a recuperação da economia americana se confirmasse. Agora, ficou claro que a recuperação está muito mais lenta do que parecia. Então, houve nos mercados uma correção em relação às expectativas de crescimento da economia americana e de resultado das empresas. Mas há três problemas para a recuperação da economia mundial hoje.
Valor: Quais são?
Resende: Do lado americano, a situação está muito complicada do ponto de vista político. É evidente que há um impasse pelo menos até o fim do governo Obama [janeiro de 2013]. Não se pode, portanto, contar com estímulos à economia mundial vindo dos EUA. Os americanos demonstraram que vivem uma situação de semi-paralisia.
Valor: Isso piorou com o acordo para o aumento do teto da dívida?
Resende: O Obama foi chantageado pelo Tea Party, a ala radical do Partido Republicano, e cedeu. Isso mostrou a fraqueza do governo. Acho sempre difícil fazer previsões, mas não imagino que, dos EUA, venham novidades negativas.
Valor: O senhor mencionou três problemas. Quais são os outros dois?
Resende: O primeiro é a China, que está super aquecendo sua economia há alguns anos e, agora, está com a inflação bastante alta. Está fazendo neste momento um esforço de desaceleração gradual. Se der uma engasgada mais brusca, isso terá repercussões muito sérias sobre a economia mundial, especialmente quando a principal locomotiva, que até pouco tempo sempre foi a americana, vai estar estagnada.
Valor: Qual é o terceiro problema?
Resende: É a Europa. Este é o ponto mais frágil de todo esse cenário da economia global. A Europa sofreu do mesmo problema americano de super valorização de ativos, especialmente no mercado imobiliário. Alguns países mais, outros menos, mas todos foram vítimas da doença da bolha de ativos. A Europa vinha com uma experiência que considero a mais importante da nossa época moderna - o euro e a União Europeia.
Valor: Não se trata de uma experiência bem-sucedida?
Resende: O problema é que todos os economistas sabem que uma união monetária, sem algum tipo de união fiscal, é frágil. A Europa fez um movimento audacioso de permitir o livre trânsito de pessoas e de ter uma moeda única. O passo seguinte que com certeza ia ser feito em algum momento é a união fiscal, a criação de uma orçamento fiscal europeu, ainda que, evidentemente, preservando os orçamentos nacionais. O que poderia ser feito com calma e com sucesso pode acabar sendo feito obrigado pela crise.
Valor: Como?
Resende: Começou com a deficiência fiscal da Grécia, que claramente tinha falsificado suas contas e apareceu com um problema muito maior do que se imaginava. Foi criado um fundo de estabilidade financeira europeu, primeiro com mais de € 70 bilhões, e que já foi aumentado duas vezes, na última para cerca de € 400 bilhões. Isso, de certa forma, já é o primeiro passo de um orçamento fiscal europeu.
Valor: Há consenso na Europa em torno de um orçamento unificado?
Resende: Não. A união fiscal ainda enfrenta extraordinárias resistências políticas, especialmente, dos países mais superavitários e conservadores fiscalmente, como Alemanha e Holanda. A população desses países diz: 'Não estamos aqui para pagar impostos pelos excessos dos nossos sócios que foram irresponsáveis'. Isso é um clássico, um problema político muito complicado.
Valor: Por que a situação na Europa segue se deteriorando, apesar das medidas adotadas?
Resende: O que ocorreu nas últimas semanas é que a crise, que inicialmente parecia limitada aos países menores e periféricos, como Grécia, Portugal e Irlanda, começou a atingir a Espanha e, surpreendentemente, a Itália. Quando as taxas de dívida soberana desses países começam a crescer, significa dizer que os preços dos títulos em carteira começam a cair. Os bancos italianos, por exemplo, são muito frágeis, estão carregando papéis da dívida italiana que estão se desvalorizando, então, isso pode botar o sistema bancário novamente sob pressão.
Valor: A forte queda nas ações dos bancos reflete essa percepção?
Resende: Há uma perfeita simetria. O aumento das taxas dos títulos de dívida soberana é acompanhado, desde o início do ano, pela queda do valor das ações dos bancos. Esse processo já vem de algum tempo e se intensificou na semana passada. Não houve nenhum dado novo, portanto, não é uma nova crise. Acho que é de fato um desdobramento da mesma crise, ela apenas não acabou.
Valor: O senhor acha que há risco de uma nova crise bancária, como a de 2008?
Resende: Sempre há. Os bancos ainda estão muito fragilizados. Eles foram recapitalizados, boa parte de seus ativos, especialmente nos EUA com o "quantitative easing" [política em que o banco central compra papéis dos bancos para aumentar a liquidez da economia], foi transferida para o Federal Reserve [o BC americano]. Os bancos na Europa também foram recapitalizados, mas não estão no melhor da sua saúde.
Valor: Por quê?
Resende: Porque a desconfiança hoje passou a ser sobre a saúde dos bancos que estão carregando parte dos títulos de dívida soberana. Antes, havia um excesso de endividamento privado, então, você tinha dívida privada carregada pelos bancos. Com a crise de 2008, os ativos se desvalorizaram muito e parte disso foi transferida para o setor público. Agora, há uma percepção de que há um excesso de endividamento público, especialmente, em alguns países da Europa.
Valor: O Brasil, como sustenta o governo, está preparado para enfrentar uma nova crise?
Resende: A crise de 2008 foi uma crise bancária e financeira muito séria e interrompeu completamente os financiamentos do mercado internacional de crédito. O Brasil é um país que poupa pouco - menos de 17% do PIB -, enquanto a Índia poupa pouco mais de 30% do PIB e a China, mais de 50% do PIB. As razões da baixa poupança no Brasil são controversas, mas é um dado. O Brasil tem ambiciosas metas de investimento, especialmente de gastos públicos. Se essas metas são justificáveis ou não é outra questão, mas o fato é que esse quadro cria uma insuficiência de poupança.
Valor: Como o país enfrentou essa insuficiência ao longo do tempo?
Resende: Uma maneira foi criar poupança forçada através da inflação, usada pelo governo para financiar o excesso de investimentos e de gastos públicos. Esse modelo foi adotado desde o fim da Segunda Guerra Mundial e se esgotou quando a inflação subiu e ameaçou caminhar para uma hiperinflação. Com a estabilização promovida pelo Plano Real, a ideia de usar poupança forçada via inflação tornou-se disfuncional.
Valor: O que foi feito a partir daí?
Resende: Em vez de usar poupança forçada, o país passou a usar poupança externa, que é outro nome para déficit externo ou déficit em conta corrente. Como estabilizou a inflação e estava com as contas públicas relativamente estabilizadas, surgiu um espaço de confiança muito grande e, assim, o Brasil teve acesso a financiamento externo. O país caiu, no entanto, numa armadilha.
Valor: Qual?
Resende: É o que chamo de 'armadilha brasileira', que é o juro real muito alto e o câmbio sobrevalorizado para viabilizar o acesso à poupança externa. O Brasil está amordaçado numa taxa de juros elevada porque essa é a forma de viabilizar o uso de poupança externa. Substituíram-se a inflação e a poupança forçada pelo juro alto com câmbio valorizado e poupança externa. O que ocorreu no Brasil em 2008 é que o financiamento externo se interrompeu temporariamente, o real se desvalorizou subitamente e a economia parou. A reação de política econômica brasileira foi totalmente equivocada. O país perdeu uma oportunidade de sair da armadilha.
Valor: O que deveria ter sido feito?
Resende: O Brasil deveria ter reagido com uma política monetária muito mais folgada, mantendo a política fiscal restritiva. O que o país fez foi totalmente equivocado. Adotou uma política fiscal expansionista, elevando os gastos correntes do governo. Se tivesse fortalecido a situação fiscal e reduzido os juros de forma mais agressiva, poderia ter terminado a crise com nível de juros mais baixo e câmbio mais desvalorizado do que no período pré-crise. O governo reagiu, no entanto, como se o país tivesse um problema de insuficiência de demanda keynesiana, que é o caso dos EUA, mas não do Brasil.
Valor: Por quê?
Resende: Porque o Brasil não estava com sobre-endividamento, não tinha esse problema de demanda doméstica, as pessoas aqui não estavam poupando para reduzir o endividamento. É o contrário! O que houve foi uma certa desculpa. Afinal, no Brasil, sempre se gosta de aumentar o gasto público. À medida que a economia mundial se recuperou um pouco, houve pressões cada vez maiores tanto de aumento do déficit externo quanto inflacionárias. Por quê? Porque, para que o Brasil pudesse não ter pressão inflacionária, teria que deixar o déficit em conta corrente aumentar mais e a moeda se valorizar mais ainda, mas isso é intolerável porque provoca pressões sobre a indústria doméstica inteira. O governo acabou reagindo.
Valor: De que forma?
Resende: Começou a dizer: 'Eu boto um teto na valorização do real ou um piso na desvalorização do dólar'. Ao fazer isso, começa a acumular reservas, mas, como está com a taxa de juros muito alta, fica oneroso para o Estado. Acho que o momento atual não é igual ao de 2008, mas, se a coisa se agravar e houver de fato uma nova desaceleração da economia mundial, que afete o Brasil, a reação correta é baixar os juros e apertar a política fiscal, desfazer o que foi feito em 2008.
Valor: O governo alegou naquela época que, sem o afrouxamento da política fiscal, a recessão teria sido mais forte. Além disso, a taxa de juros foi reduzida (de 13,75% para 8,75% ao ano).
Resende: Poderia ter caído muito mais. Poderia ter usado aquele momento para sair da armadilha.
Valor: O governo, agora, anunciou que preservará a situação fiscal, dando a entender que a resposta, para enfrentar uma nova crise, será monetária.
Resende: Está corretíssimo. Este é o caminho. Se você quer pôr um piso na queda do dólar, deve baixar a taxa de juros. Agora, se você quer manter a taxa de juros alta, tem que aceitar a valorização do real.
Valor: Mas, se baixar os juros, não vai ter inflação?
Resende: Então, tem que usar a política fiscal para enfrentar a inflação. É o excesso de política monetária apertada, dado que a política fiscal é folgada, que está provocando a valorização da moeda.