FOLHA DE SP - 24/08
Slogans resumem prioridades de campanhas políticas. São o "espírito do tempo" de uma determinada administração governamental. Cristalizam, com sua simplicidade e abrangência, a missão que protagonistas do poder se prestam a cumprir.
Na história republicana brasileira, a coleção de slogans exibe exemplos curiosos.
O presidente interino Michel Temer passa em frente a slogan 'Ordem e Progresso', usado por seu governo
Tivemos, no governo Campos Salles, o lema "Nossa vocação é agrícola" –frase pronunciada pelo então ministro da Fazenda Joaquim Murtinho– em que muitos enxergam o prenúncio da república do "café-com-leite".
Para Washington Luiz, nos anos 1920, "Governar é abrir estradas". Getúlio, nos 1950, veio com "O Petróleo é nosso".
Já na Nova República, José Sarney sugeria "Tudo pelo social". Num chiste da época, atribuído ao sempre espirituoso Delfim Netto, brincava-se: "o elevador de serviço está quebrado; tudo pelo social".
Mais recentemente, nos depararamos com o fantasioso lema do segundo e –breve– governo Dilma: "Brasil, Pátria Educadora", pouco adequado a uma administração que, em seus primeiros nove meses, contabilizou três diferentes ministros da Educação.
Como sabemos, o governo Temer, ainda em sua interinidade, optou pelo lema inscrito no Pavilhão Nacional: "Ordem e Progresso". Tal slogan é um eufemismo do que realmente a administração pós-Dilma têm à frente até 1o. de janeiro de 2019.
Em verdade, o lema desses próximos dois anos e meio deveria ser "Brasil, correção e terraplenagem".
Mais do que construir o futuro, a missão da equipe de Temer é trazer o Brasil do passado para o presente.
É tarefa precípua "corrigir" a equivocada política das "campeãs nacionais". Eleitoreiras subvenções a preços de gasolina e eletricidade. Anacrônica política industrial centrada no sacrossanto "conteúdo nacional". Inchaço de cargos de confiança. Politização das agências reguladoras. Ineficiência e desestruturação de ícones como a Petrobras e o BNDES.
A lista de distorções a corrigir pode ser aumentada exponencialmente. Apenas nos domínios da política externa ou da estratégia comercial cabem inúmeros "cavalos-de-pau".
Diz-se que destruir é fácil; construir, difícil. Bobagem. Desmantelar o acervo de incompetência na máquina do Estado nesses últimos treze anos é tarefa hercúlea.
Tanto mais ao observar que muitos dos protagonistas do governo Temer, no desfrute da aliança política que sustentou o período Lula-Dilma, foram complacentes ou coniventes com a deterioração da governança no Brasil.
O fato é que agora o Brasil conta com uma boa equipe na Fazenda e no Banco Central. Com uma forte e bem informada liderança na política externa, nas estatais e em seu principal banco de fomento, são boas as chances de que o Brasil "se corrigirá".
Dispor de uma casa macroeconômica minimamente em ordem, no entanto, é algo mais relacionado ao "evitamento do pior" do que um grande diferencial de competitividade.
Daí a razão deste governo Temer ter forçosamente de buscar ao menos colocar a bola em jogo das reformas estruturais. Já passou da hora do Brasil levar a cabo uma harmonização de suas capacidades de competir internacionalmente.
É dizer, ao Brasil cabe nivelar – "terraplenar" – o campo para voltar a ser o país de alto crescimento que seu potencial lhe confere.
Se tergiversar nas reformas, o que agora aparece como enorme boa vontade dos mercados com Temer se diluirá mais rapidamente do que se pode imaginar.
Na dupla tarefa de corrigir e terraplenar, uma constatação salta aos olhos.
Curioso –e inegável– o resultado do nacional-desenvolvimentismo dos últimos treze anos. Como em tantos outros episódios de sua trajetória, o Brasil continua bastante vulnerável a humores internacionais.
E tal "neodependência" se manifesta em ao menos três frentes.
O setor industrial no Brasil está não apenas menor e menos competitivo, mas também mais desnacionalizado – fruto de um voraz processo de fusões & aquisições que se delicia com o baixo preço comparativo dos ativos empresariais brasileiros.
No âmbito comercial, o país necessita turbinar exportações para compensar um momento de particular desaquecimento do mercado interno. Vê-se forçado a perseguir o aumento da fatia que o comércio exterior ocupa em seu PIB num contexto em que o mundo não se encontra especialmente "aberto para negócios ".
O Brasil tem de buscar sua promoção comercial justamente no instante em que as negociações multilaterais andam de lado, blocos como a União Europeia e o Mercosul encontram-se em crise existencial e retórica e prática das principais potências assumem tons francamente protecionistas.
Já na frente de investimentos, a dependência se manifesta num tripla dimensão. Temos de atrair, goste-se ou não, liquidez de curto prazo via mercado financeiro para a sintonia quotidiana do ajustamento fiscal.
Carecemos do investimento estrangeiro direto (IED) dada a nossa baixa capacidade endógena de poupar e investir – pequena mesmo em comparação a outros países emergentes.
E, claro, precisamos de concessões, privatizações e financiamento externo de nossa infraestrutura, tanto mais num quadro estatal debilitado em sua função de investir.
Apesar da predileção por um modelo "autônomo" e "soberano" de crescimento e inserção internacional, não é exagero apontar que se legou ao Brasil de hoje a condição de um país bastante mais dependente do mundo.
FOLHA DE SP - 24/08
Ponha-se na seguinte situação: você tem a receber certo montante de dinheiro de várias pessoas. Não será tudo pago de uma única vez, mas distribuído ao longo de muitos anos. Por outro lado você está endividado e enfrenta dificuldades financeiras. Parece natural, portanto, que pense em alguma forma de antecipar aquilo que irá receber para abater suas dívidas, medida que ainda ajudaria a reduzir suas despesas com juros.
Isto não difere, em essência, da proposta de "securitização de recebíveis" recentemente colocada em discussão no Congresso. Tanto o governo federal como os estaduais têm a receber um fluxo de recursos relativo a tributos que não haviam sido pagos, mas que foram regularizados ao longo do tempo. Tipicamente, empresas prometem pagar os atrasados dentro de um prazo determinado sob certas condições (abatimento de multas, etc).
O que se propõe, neste contexto, é que governos possam antecipar a entrada destes recursos vendendo a potenciais interessados o direito a seu recebimento. Trata-se, em última análise, da venda de um ativo do governo, equivalente à venda de uma propriedade, que, estima-se, poderia gerar algo da ordem de R$ 55 bilhões para o governo federal e R$ 30 bilhões para os governos estaduais.
Há, porém, oposição. Representantes da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional acreditam que o governo só deve vender o osso (créditos com maior risco econômico) e manter para si o filé. É uma bobagem: quem vende osso, recebe o valor de osso; quem vende filé, recebe o valor de filé. A questão aqui é criar mecanismos que favoreçam a competição por estes créditos, de forma a garantir o maior valor possível, deixando claro, desde o início, que o risco de crédito depois da venda fica todo para o comprador, sem passivos para o setor público.
Posto de outra forma, se o filé for realmente tão bom como defendido pela PGFN um leilão bem desenhado (e há gente no governo que entende do assunto ) garantirá que se pague o valor correto por estes créditos.
Isto dito, se a venda de recebíveis equivale à alienação de ativos, seu tratamento contábil não pode ser diferente daquele adotado até agora. Recursos oriundos de privatização, por exemplo, de natureza similar à securitização, não foram tratados como receitas fiscais, ou seja, estes ingressos não se traduziram em redução do déficit público.
Uma analogia pode ser útil: a família que vende um de seus carros não contabilizaria o dinheiro da venda como salário de seus membros. Da mesma forma, vendas de ativos não representam renda corrente regular, mas uma operação pontual, de natureza diferente do fluxo normal de receitas do governo. Devem, portanto, ser entendidas como financiamento do déficit, não como receita do governo.
Também por este motivo eventuais recursos obtidos com a securitização não devem ser usados para o pagamento de despesas correntes. Mantendo a analogia, não seria uma boa ideia para a família acima vender o carro para pagar as férias, em particular se tiver dívidas. Estes recursos devem ser usados para reduzir o endividamento e a despesa com juros.
No final das contas, se bem feita, a securitização pode ajudar a reduzir o ritmo de aumento da dívida. Não vai mudar o jogo, mas daria algum fôlego enquanto o ajuste fiscal não se materializa.
ESTADÃO - 24/08
Há enorme oferta de capitais no mercado global; boa parte deles está à espera de mais confiança nos fundamentos da economia brasileira
O ajuste das contas externas está mais dosado. A redução do rombo em Transações Correntes, que reflete receitas e pagamentos em moeda estrangeira (menos fluxo de capitais), continua firme, no entanto, mais moderada (veja gráfico).
Assim, o movimento predominante é o ajuste, ou seja, é a tendência à reversão do rombo. O fator que está atuando aí é a redução do consumo interno, em consequência da recessão da economia. É o que vem derrubando as importações e, ao mesmo tempo, proporcionando a produção de um excedente que pode ser exportado. O fator moderador é a valorização do real (baixa do dólar, de 18,4% neste ano), que vem reduzindo a receita das exportações em reais e, ao mesmo tempo, barateando as importações.
A aposta de que, uma vez decidido o impeachment, haverá uma revoada de capitais especulativos para o Brasil e, portanto, uma valorização ainda mais forte do real não vem sendo acolhida pelos principais farejadores de tendências. Como vêm mostrando as projeções captadas pela Pesquisa Focus do Banco Central, o mercado espera que a cotação do câmbio interno feche este ano a R$ 3,30 por dólar, mais alta do que a que encerrou os negócios nesta terça-feira (R$ 3,23 por dólar).
Tanto o Banco Central como o mercado apontam um déficit em Transações Correntes ao final deste ano em US$ 15 bilhões, 46% mais baixo do que o registrado nos 12 meses terminados em julho (US$ 27,9 bilhões), como se viu no relatório das Contas Externas divulgado nesta terça-feira.
A área que pode atrair mais moeda estrangeira é a dos Investimentos Estrangeiros Diretos. Como é sabido, há enorme oferta de capitais no mercado global. Boa parte deles está à espera de mais confiança nos fundamentos da economia brasileira e de redefinição de regras do jogo para as concessões de parcerias público-privadas nos serviços públicos, condições que, em princípio, poderão ser apresentadas a partir do momento em que a crise política estiver superada. Tendem a buscar o Brasil não só para aplicação em projetos de expansão de empresas, como, também, de financiamento de obras de infraestrutura.
Apesar da forte retração da atividade econômica e da crise política, a entrada líquida desses recursos de risco no País continua forte. Foram R$ 33,9 bilhões nos sete primeiros meses do ano, apenas um pouco inferiores aos US$ 36,9 bilhões obtidos ao longo do mesmo período do ano passado. O mercado, aferido pela Pesquisa Focus, espera entrada líquida, neste ano, de US$ 65 bilhões. O Banco Central é mais otimista: projeta US$ 70,0 bilhões (no ano passado, foram US$ 75,1 bilhões).
A entrada líquida de aplicações de renda fixa em carteira, tanto em títulos como em fundos de investimento, alcançou em julho o total de US$ 1,4 bilhão, volume relativamente baixo que pudesse caracterizar revoada de capitais especulativos ao Brasil a fim de tirar proveito dos “juros mais altos do mundo”.
CONFIRA:
No gráfico a evolução dos Investimentos (Estrangeiros) Diretos no País.
Viagens
Agosto deverá trazer uma entrada líquida de recursos na rubrica Viagens. O chefe do Departamento Econômico do Banco Central, Túlio Maciel, deu nesta terça-feira uma informação adicional, a de que até o dia 19 havia um registro positivo de entradas líquidas de US$ 297 milhões. Trata-se de um efeito derivado dos Jogos Olímpicos que, segundo Maciel, deverá aparecer até outubro, na medida em que os turistas pagam muitas contas com cartão de crédito.
ESTADÃO - 24/08
Passados os Jogos Olímpicos, voltamos à dura realidade da bestialidade que nos aflige
Característicos da Baixa Idade Média, os bestiários eram textos recheados de belas iluminuras, catálogos detalhados de animais, em sua maioria, imaginários. Bestiário é também o título de uma das melhores coletâneas de contos de Julio Cortázar, o escritor argentino, um de meus favoritos. Como os catálogos da Idade Média, o Bestiário de Cortázar descreve em situações bizarras a condição humana tão próxima das bestas, do estado bruto dos animais.
Passados os Jogos Olímpicos, em que, por duas semanas, ludibriamo-nos com os feitos quase sobre-humanos dos atletas, imagens e histórias que fazem com que acreditemos que somos mais deuses do que bestas, voltamos à dura realidade da bestialidade que nos aflige. Das ignóbeis propostas do candidato republicano à presidência dos EUA ao êxodo de venezuelanos, mais de 300 mil refugiados rumo à Colômbia – sim, há uma crise humanitária em larga escala logo ali, crise ofuscada pelo drama brutal da Síria e do Oriente Médio. Como o Brasil haverá de lidar com a crise da Venezuela? Como enfrentaremos a escalada dos extremismos mundo afora e a bestialidade quase banal do noticiário brasileiro? Nesses primeiros dias pós-olímpicos a ressaca maior não é a ausência de competições e modalidades para acompanhar na TV, mas a constatação de que estamos mais para a estupidez do nadador Ryan Lochte do que para a leveza feroz da ginasta Simone Biles, aquela que voa com o salto que leva seu nome.
Em breve passagem pela cidade pós-olímpica, abro os jornais e leio sobre as afrontas adicionais ao ajuste fiscal pretendido – o possível reajuste dos salários dos ministros do STF. Leio sobre estudo que traça simulações a partir da PEC dos gastos, a proposta de emenda constitucional para limitar as despesas do governo, cuja conclusão é de que há diversos problemas na formulação da proposta.
Salta aos olhos a conclusão da análise preparada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados: “O limite (dos gastos) previsto na PEC pode não ser suficiente para atender os aumentos (do funcionalismo público) já concedidos”.
Espanta-me que o governo fale com tanta desenvoltura sobre a reforma da Previdência quando a população que por ela será diretamente afetada sequer compreendeu por que urge aprovar essa reforma, e como ela haverá de impactar o futuro de milhões de brasileiros.
Fico igualmente surpresa com a tranquilidade com que se trata o impeachment iminente da presidente afastada. Não que eu guarde qualquer boa lembrança de seu desastroso governo – artigos escritos para este jornal ao longo da era Dilma Rousseff atestam minha aversão pelas políticas econômicas por ela postas em prática.
Contudo, impeachment não é coisa corriqueira, da vida, de todos os dias. É ferida que conosco permanecerá depois de Temer receber a faixa presidencial. Michel Temer, aquele que em breve assumirá a liderança definitiva do País. Que rumos dará ao Brasil? Terá pulso para enfrentar a bestialidade de nossa política, pergunta que já fiz em artigos anteriores? Conseguirá encontrar solução para a destruição das finanças estaduais e municipais que ameaça qualquer tentativa de ajuste fiscal e de reconstrução institucional?
No Bestiário de Cortázar há um conto curioso. Um homem escreve cartas para uma amiga que viajou para Paris. Ele está hospedado em seu imaculado apartamento, meticulosamente arrumado, tudo disposto milimetricamente em seu lugar. O problema é que o homem padece de patologia bestial: ele vomita coelhinhos. Os pequenos roedores destroem, pouco a pouco, tudo o que está no apartamento – os móveis, as roupas nos armários, os objetos de estimação da dona ausente.
Temer é homem que tomará conta do País que, ao contrário do apartamento da viajante do conto de Cortázar, nada tem de meticulosamente arrumado. Será ele capaz de feito olímpico, digno de deuses, para colocá-lo no lugar? Ou será ele como seus antecessores, mais um vomitador de coelhinhos? A trégua que lhe foi concedida acaba de se encerrar. Resta-lhe pouco tempo para mostrar a que veio.
*Economista, é pesquisadora do Peterson Institute For Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
O Globo - 24/08
Multiplicam-se os casos de ‘fracasso escolar’ causados não por suposta ‘dificuldade de aprendizagem’, mas por inadequação da escola às possibilidades de cada faixa etária
Em 2016 completa-se uma década da implantação do nono ano do ensino fundamental, prazo que autoriza balanços e avaliações. Em tese, a medida adotada em 2006 visava a proporcionar às crianças brasileiras um ano a mais de estudo.
A geração que frequentou a escola até os anos 1960/70 se lembra da quinta série, ou “admissão”, que marcava a transição entre o primário e os quatro anos do ginásio. O termo “admissão” referia-se ao exame exigido para o ingresso no curso ginasial. Era um perverso gargalo, capaz de abreviar e encerrar a curta escolaridade de muitas crianças, que só completavam o primário. Em 1971, a Lei 5.692 estabeleceu um fluxo contínuo até a oitava série do primeiro grau.
A lei eliminou o obstáculo, mas reduziu a trajetória escolar em um ano. A mesma estrutura foi mantida quando, em 1996, o primeiro grau se tornou ensino fundamental. Assim, as gerações que frequentaram a escola nas décadas de 1970, 1980 e 1990 cursaram, todas elas, o primeiro grau em oito séries.
Decorridos 30 anos, já na primeira década deste século, constatou-se que era curta a trajetória escolar proporcionada pelo Brasil às suas crianças. Caberia oferecer-lhes um ano a mais de estudo no ensino fundamental, antes que chegassem ao ensino médio.
A Lei 11.274/06 teve como prioridade a rede oficial, cuja realidade impunha a necessidade de se antecipar o ingresso do aluno na escola. Era também conveniente que as verbas destinadas à alfabetização da criança brasileira aos 6 anos de idade fossem alocadas no segmento do fundamental.
Na prática, a expansão consistiu em incluir a classe de alfabetização (CA) — até então uma etapa da educação pré-escolar — no ensino fundamental. O CA passou a ser chamado de primeiro ano. E as demais séries do fundamental foram apenas renomeadas anos.
Em um contexto mais amplo, essa condução trouxe certa perplexidade. Chegava-se formalmente ao nono ano do ensino fundamental, sem, na verdade, prolongar a escolaridade. Na época, as escolas foram então “tranquilizadas” pelo governo, que esclareceu que a inclusão de um ano a mais não implicaria alteração nos programas ou conteúdos a serem ensinados: na prática, nada mudava.
Decorridos dez anos de sua implantação, caberia fazer-se um balanço da eficácia dessa lei e de seus efeitos sobre a trajetória escolar.
À primeira vista, os dados apurados recentemente pela Avaliação Nacional de Alfabetização sugerem que a estratégia parece não ter garantido um impacto efetivo. Os resultados são, no entender do próprio governo, preocupantes: revelam que, ao concluírem o terceiro ano do fundamental, muitos alunos demonstram um domínio insatisfatório de leitura e de escrita. Aos 8 anos de idade, muitos apenas decifram palavras isoladas, mas não compreendem uma frase completa. Por mais louváveis que fossem os objetivos, a opção feita pelo país não garantiu resultados na camada que mais precisaria.
À medida que se aproxima o fim do ensino fundamental, multiplicam-se os casos de “fracasso escolar” que não decorrem de uma suposta “dificuldade de aprendizagem”, mas de uma inadequação da escola às possibilidades de cada faixa etária.
Hoje, muitos alunos concluem o fundamental não apenas despreparados, como também imaturos para enfrentar as exigências do atual ensino médio. O descompasso criado torna ainda mais urgente a revisão curricular e a diversificação das trajetórias nesse último segmento da educação básica.
FOLHA DE SP - 24/08
Os impostos federais não vão aumentar pelo menos até 2018, disse nesta terça (23) Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil. Disse ainda que foi essa a orientação de Michel Temer para Henrique Meirelles, ministro da Fazenda.
Era esse o "programa" de quem assumiu o poder com a deposição de Dilma Rousseff. Padilha ratificou tal programa dizendo ontem que "a sociedade neste momento não tem condições" de pagar mais impostos.
Primeiramente, "a sociedade" em geral não existe quando se discutem política e economia. Pode ser que parte da sociedade possa ou deva pagar mais impostos; pode ser que o balanço socioeconômico do custo de aumentar impostos e de seus benefícios gerais seja positivo.
Tal contas decerto são muito complicadas mesmo em tempos normais, que dirá durante este rescaldo de desastre. Ainda assim, o governo fez tais estimativas? Quede?
A carga tributária federal diminui desde o início do governo de Dilma Rousseff, 2011. Isto é, a receita do governo equivale a parcela menor do PIB, da produção ou da renda nacional. A arrecadação baixou ainda mais que o PIB. Caía mesmo antes da recessão, em parte devido às desonerações de impostos.
A arrecadação federal era de 22,54% do PIB ao final de 2011, fim do primeiro ano de Dilma 1. Caiu a 20,96% do PIB nos 12 meses até junho de 2016. Baixa de mais de um ponto e meio de PIB, um desastre.
Não se trata de dizer que "está sobrando PIB" para ser tributado, dado que a receita encolheu ainda mais que a economia. Além do mais, decisões sobre impostos jamais são neutras em termos de eficiência arrecadatória, econômica, impactos sociais etc. Mas fica a questão: além da oposição de setores sociais com voz, especialmente neste governo, qual o argumento para não bulir com os impostos?
Sem impostos adicionais, em tese a dívida pública vai crescer mais rapidamente, as taxas de juros cairão mais devagar. Parte maior da renda nacional ainda será dedicada ao pagamento de juros da dívida pública, uma transferência de renda regressiva. Etc.
No entanto, é possível que impostos adicionais limitem a disposição de consumir e investir (e, assim, o PIB); talvez pressionem a inflação. Não se sabe, sem mais, qual o sucesso arrecadatório de aumentar impostos agora.
Por outro lado ainda, receitas ainda limitadas vão tolher, por exemplo, investimento público, também empecilho para a retomada econômica.
Na ausência de um programa de aumento de eficiência do gasto público, ora inexistente, despesas sociais tendem a ser asfixiadas. O investimento público continuará na metade do pouco que era já em 2014. Porém, um programa de concessões bem-feito poderia compensar a falta de obras públicas e até resultar em alguma ganho de receita.
Enfim, a depender do tipo de imposto a ser cobrado, sobre quem, do tamanho do aumento, de sua duração etc., os efeitos são diversos.
Essa é a exposição mais rudimentar que se pode fazer do dificílimo balanço de perdas e ganhos com altas (ou não) de impostos. Mesmo assim, é fácil perceber que a questão é grave, complexa e afeta partes da "sociedade" de modo diferente.
Mas não há nenhuma discussão qualificada e pública do problema. Grita quem não quer pagar o pato, paga quem pode gritar menos.
O Globo - 24/08
O balanço das empresas na bolsa mostra que o endividamento das companhias mais do que dobrou desde 2010. Elas passam por um período de ajuste, o que dificulta os investimentos e as contratações. A boa notícia é que, entre as famílias, os dados do Banco Central indicam que as dívidas recuaram ao menor patamar desde junho de 2012. Isso pode estimular novamente o consumo e ajudar na recuperação.
Desde o pior momento, o endividamento total das famílias brasileiras, em relação à renda de um ano, caiu de 46,39%, em abril do ano passado, para 43,38%, em maio deste ano (vejam o gráfico). Isso mostra que os brasileiros estão conseguindo reequilibrar suas finanças, apesar do desemprego e da inflação. O consumo está em queda, mas a renda disponível está sendo usada para a redução do endividamento. Se a conta for feita sem a dívida imobiliária, o ajuste é maior: caiu para 24,83% da renda, patamar mais baixo desde outubro de 2007.
Na bolsa, também houve queda no endividamento das empresas de capital aberto nos últimos meses, principalmente por causa da valorização do real. Mas os dados continuam altos, segundo levantamento feito pela consultoria Sabe. O total das dívidas de 316 empresas não financeiras na bolsa brasileira saltou de R$ 527 bilhões, no quarto trimestre de 2010, para R$ 1,57 trilhão no quarto trimestre do ano passado, o pior momento. No segundo trimestre deste ano, houve redução para R$ 1,45 trilhão, ainda bastante elevado.
— Quando a gente olha para o total das dívidas sobre a geração de caixa de um ano, o número salta de 2,59 para 10,59 desde o quarto trimestre de 2010. Isso quer dizer que antes as empresas precisavam de dois anos e meio de geração de caixa para pagar as dívidas e agora elas precisam de mais de 10 anos — explicou Luiz Guilherme Dias, sócio e diretor da Sabe.
Na avaliação da consultoria, esse nível elevado de endividamento levará a um processo de fusões e aquisições, com as empresas em dificuldades sendo absorvidas pelas companhias que estão em melhor condição financeira. Mas isso somente depois que a incerteza política diminuir e a economia se estabilizar.
— Cada setor tem uma empresa líder. Então sempre há uma que está indo bem, mesmo na crise. Essas poderão comprar e incorporar as menores, que estão em dificuldade. Os estrangeiros também virão comprar ativos que estão baratos no Brasil — completou Carlos Antônio Magalhães, sócio e diretor na Sabe.
Os números dos balanços mostram que a recessão está tendo um impacto muito forte sobre as companhias, com redução de margens operacionais e baixo retorno para os acionistas, que foi de apenas 7,5%, anualizado, no primeiro semestre. Para se ter uma ideia, quem aplica em títulos do Tesouro tem rentabilidade associada à taxa Selic, que está em 14,25%. As receitas tiveram crescimento nominal de apenas 3,94%, com queda real, ou seja, quando descontada a inflação. Os bancos também estão sentindo a crise. O crescimento das receitas foi de apenas 5%.
Apesar do mau resultado das empresas no primeiro semestre, o Ibovespa acumula alta de 56% desde o pior momento do ano, em janeiro. Saiu de 37 mil pontos para 58 mil. Isso porque o mercado financeiro vem apostando que o pior momento da recessão ficou para trás e que o governo Temer conseguirá aprovar o ajuste fiscal. As estimativas feitas pelo Banco Central com bancos e consultorias também vêm mostrando aumento das projeções para o PIB do ano que vem, que saíram de 0,2%, em abril, para 1,2%, esta semana.
ESTADÃO - 24/08
O veto ao financiamento por parte de pessoas jurídicas é a pedra de toque das eleições municipais de outubro, uma dura e inédita prova para os meios e modos adotados por partidos e candidatos nas campanhas ao longo das últimas décadas e um “test-drive” para as disputas eleitorais daqui em diante.
No sentido figurado, a expressão “pedra de toque” refere-se à maneira de se avaliar ou aferir alguma coisa. No sentido literal significa o uso de um elemento mineral (rocha escura) para qualificar a pureza dos metais. Misturados os conceitos, chegamos ao nosso tema de interesse: a depuração da metodologia político-eleitoral a partir de modificações pontuais na legislação, ainda que não se tenha feito a celebrada reforma política.
A principal e determinante mudança foi a proibição de doações das empresas, habitualmente responsáveis pela quase totalidade do financiamento de campanhas, que se tornaram milionárias e dependentes do marketing, referidas na forma em detrimento do conteúdo. Isso vai mudar. Não por vontade dos candidatos e dos partidos, mas por imposição das circunstâncias.
Levantamento do Estadão Dados mostra que as três maiores legendas do País (PT, PMDB e PSDB) receberão R$ 1 bilhão entre os anos de 2009 e 2012, o equivalente a dois terços, em média, dos respectivos partidos. Em 2011, o Tribunal Superior Eleitoral concluiu que no ano anterior foram feitas doações ilegais da ordem de R$ 214 milhões. Só o PT doou mais de R$ 10 milhões a partidos nanicos. Os gastos totais em campanhas no ano de 2014 chegaram a quase R$ 5 bilhões.
Tempos que não voltam mais, a não ser que depois da temporada restrita os partidos se organizem no Congresso para mudar a regra. Hoje, sem dinheiro para gastar com maquiagens e artificialismos, os políticos serão obrigados a investir no conteúdo para conquistar votos. O eleitorado, por sua vez, será instado a trocar a posição de espectador passivo das realidades postiças para agente ativo para do mundo real, ciente do valor de voto.
Em geral, nossa tendência é relegar a importância de eleições municipais, notadamente frente às disputas nacionais, muito mais importantes. Ocorre que esta agora de 2016 terá regras inéditas, obrigando partidos e candidatos a esperar para ver como, quando e de que maneira virão as mudanças.
Perdas sentidas. Neste malfadado mês de agosto, o País perdeu três grandes jornalistas: Luiz Antônio Novaes (o Mineiro), Beth Orsini e Geneton Moraes Neto, todos impedidos pelo destino de prosseguir quando ainda tinham muito a contribuir: Mineiro aos 56, Beth aos 68 e Geneton aos 60 anos de idade. Fui amiga do primeiro, muito próxima da segunda, acompanhei à distância o terceiro e admirei com entusiasmo reverencial os três, cada qual na sua área.
Talvez o prezado leitor e a cara leitora não saibam a dimensão da perda. Foi enorme e por ela rendo graças ao Poder Superior (na forma como cada um o entenda) e suplico para que os trate bem na vida em que serão eternos a fim de que seus entes queridos se pacifiquem nas respectivas dores.
ESTADÃO - 24/08
De lorota em lorota, Dilma tenta adiar o ostracismo o quanto pode à custa da Nação
O comparecimento da presidente afastada, Dilma Rousseff, ao julgamento de seu impeachment foi agendado e ela tratou na semana passada com o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (PMDB-AL), do rito a ser adotado na sessão. Foi-lhe atribuída a intenção de reverter a crônica da condenação anunciada com um discurso capaz de constranger oito dentre os julgadores, que foram seus ministros, a votar por sua volta, depois de terem aprovado a pronúncia dela na votação anterior. Eles figuraram entre os 55 favoráveis a seu afastamento, e não entre os 21 que decidiram paralisar o processo, menos da metade dos 43 necessários (metade mais um).
O crítico severo poderá achar destemperado o gesto, o que condiz com seu temperamento tempestuoso. Mas é contrário a todas as leis da probabilidade e da lógica. Pois é Dilma a maior responsável pelo calvário que ela mesma, seu criador, Luiz Inácio Lula da Silva, e o Partido dos Trabalhadores (PT), de ambos, estão vivendo neste agosto de seu desgosto. Em março de 2014 o Estadão publicou documentos, até então inéditos, revelando que em 2006, quando era ministra da Casa Civil e presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, ela aprovou a compra onerosa de 50% de uma refinaria da belga Astra Oil em Pasadena, no Texas (EUA). Divulgada a notícia, explicou a discutível decisão dizendo que só a apoiou por ter recebido “informações incompletas” de um parecer “técnica e juridicamente falho”. Sua primeira manifestação pública sobre o tema foi chamada, e com toda a razão, de “sincericídio”.
Pois às vésperas de se impor como candidata à reeleição presidencial, contrariando a vontade de Lula, responsável por sua eleição em 2010, Dilma acendeu o estopim de uma bomba que viria a explodir no colo de ambos, ao delatar e encalacrar o ex-diretor internacional da petroleira, Nestor Cerveró. Aí, este, como delator premiado na Operação Lava Jato, virou um algoz de que Lula e ela não se livraram e, ao que tudo indica, nunca se livrarão.
A expulsão de Lula do páreo provocou ressentimento nesse patrono de seus triunfos. Apesar de tudo, Dilma reelegeu-se. Mas isso complicou seu desempenho no cargo em quase todas as decisões importantes que tomou, ou deixou de tomar. Ela obteve 51,64% dos votos e Aécio Neves, do PSDB, 48,36%. A diferença foi de 3,4 milhões. Essa foi a menor margem de sufrágios em segundo turno desde a redemocratização. No entanto, ela reagiu como se tivesse obtido a votação total. Em contraste com a atitude educada do opositor, que a saudou pela vitória, afirmou: “Não acredito que essas eleições tenham dividido o País ao meio.” Assim, inaugurou uma falsa aritmética, na qual o mais sempre vale tudo.
Seu primeiro erro fatal, após empossada pela segunda vez, foi atender a seus espíritos santos de orelha Cid Gomes e Aloizio Mercadante Oliva, entrar na fria de enfrentar Eduardo Cunha e o PMDB do vice eleito com ela, Michel Temer, e apoiar Arlindo Chinaglia (PT-SP) na disputa pela presidência da Câmara. Perdeu no primeiro turno por larga maioria, na primeira de uma série de derrotas que, mesmo nas vezes em que teve apoio de menos de um terço, ela nunca aceitou.
Tentando corrigir esse erro, ela prometeu os votos do PT no Conselho de Ética da Casa para evitar a punição de Cunha, que, acusado de corrupção ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, mostrara força reduzindo a pó projetos do governo com “pautas-bomba”. Só que o PT lhe puxou o tapete, negou apoio ao desafeto e aprofundou o fosso que a separava do parceiro majoritário na base parlamentar. Cunha virou algoz, aceitando o processo de impeachment contra ela da lavra de um fundador do PT, Hélio Bicudo, do ex-ministro da Justiça do tucano Fernando Henrique Miguel Reale Júnior e da professora de Direito da USP Janaína Paschoal.
Nos 272 dias sob julgamento no Congresso – 160 no cargo e 112 dele afastada (se for mesmo impedida em 1.º de setembro) – ela atribuiu o dissabor à “vingança” de Cunha. Este, de fato, o abriu, mas não foi decisivo na maioria contra ela na comissão da Câmara (38 a 27), composta à feição dos interesses de sua defesa por intervenção do STF. Nem em mais quatro sessões: duas na comissão (15 a 5 e 14 a 5) e duas no plenário do Senado (55 a 22 e 59 a 21). E mais: mesmo tendo até agora logrado adiar sua cassação, o ex-presidente da Câmara não provou ter os votos de que precisa para manter o mandato.
Outra conta de seu lorotário é a do presidente em exercício, seu único sócio na chapa vencedora de 2014, com 54,5 milhões de votos. Temer tem o dever funcional, exigido pela Constituição, de assumir seu lugar, não merecendo, assim, as acusações que amiúde ela lhe faz de “traidor e golpista”.
Na dita “mensagem ao Senado Federal e ao povo brasileiro”, divulgada em palácio e na presença decorativa de repórteres, ela repetiu as lorotas de hábito. Pela primeira vez reconheceu ter cometido um “erro”. Este seria a escolha do vice e, em consequência, a aliança com o PMDB. Esqueceu-se de que sem esses aliados não teria sequer disputado o segundo turno em 2010 e 2014. Comprometeu-se ainda a adotar “as medidas necessárias à superação do impasse político que tantos prejuízos já causou ao povo”. Sem contar sequer com um terço do Senado e da Câmara, cujas decisões têm sido referendadas pelo STF, contudo, a única medida que ela poderá tomar será imitar Fernando Collor, atualmente seu prestativo serviçal, e renunciar. Para tanto, contudo, a Nação não aceita pacto de nenhuma espécie, seja a imunidade penal pessoal, seja outro privilégio. Não tem, muito menos, como convocar plebiscito para eleger quem cumpriria o resto do mandato, se a ele renunciar.
Só lhe restará, então, voltar ao merecido ostracismo, do qual não deveria ter sido retirada, e responder pelos vários crimes de que é acusada – e nega.
*Jornalista, poeta e escritor
O Globo - 24/08
Não tem o menor sentido a decisão do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de cancelar as negociações para a delação premiada dos executivos da empreiteira OAS pelo que chamou de “estelionato delacional”, ou seja, a divulgação de um documento com insinuações contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli que não foi apresentado oficialmente.
Tamanha falsidade mereceria uma investigação aprofundada, não o fim das negociações. Agindo assim, Janot está ajudando quem “plantou” essas acusações na revista “Veja” justamente, ao que tudo indica, para criar um clima antagônico entre o Ministério Público e o Supremo.
Não parece lógico que a própria OAS tenha interesse em estragar sua delação, pois, se fosse assim, bastaria que se recusasse a fazê-la. E também não faz sentido a desconfiança de Janot de que a empreiteira vazou a falsa delação para obrigar o Ministério Público a aceitar suas bases na negociação.
O episódio acabou revelando um sentimento crítico em relação à Operação Lava-Jato que já estava latente no ministro do STF Gilmar Mendes, surgindo aqui e ali em comentários ácidos sobre os procuradores de Curitiba. Como é de seu estilo, Gilmar Mendes saiu acusando os procuradores de terem vazado a delação para atingir o ministro Toffoli, que tomou decisões no processo da Lava-Jato que desagradaram aos investigadores de Curitiba, como o fatiamento do processo, encaminhando partes dele para outras instâncias que não Curitiba, e concedendo um habeas corpus para o ex-ministro Paulo Bernardo.
A ida de Toffoli para a Turma que cuida do processo do petrolão, no entanto, foi arquitetada pelo ministro Gilmar Mendes. Os ministros da Segunda Turma estavam incomodados, em março de 2015, com a falta do quinto nome do grupo, pois já há sete meses esperavam pela definição da presidente Dilma sobre o novo indicado ao STF, que completaria o plenário de 11 ministros.
Estavam preocupados não apenas com sua ausência, mas com a possibilidade de que o indicado fosse visto pela opinião pública como escolhido a dedo pelo Planalto para ajudar os petistas no julgamento.
A primeira medida cogitada foi realizar uma eleição informal para colocar na presidência da Turma no primeiro ano a partir de maio, quando se encerrava a presidência de Teori Zavascki, o decano Celso de Mello. Seria uma maneira de evitar que o mais novo indicado assumisse a presidência, para preservá-lo, e também o Supremo.
Embora o cargo seja só formal, é preciso conhecer o funcionamento da Casa, e sobretudo afastar qualquer dúvida sobre o encaminhamento dos trabalhos. Já acontecera isso quando a ministra Rosa Weber, recém-indicada ao STF, teria de assumir a presidência de uma das Turmas, e ela mesma pediu para ser substituída. Assumiu então o ministro Marco Aurélio, que era o mais antigo do grupo.
A ideia de completar o grupo com a transferência de um ministro da Primeira Turma tinha o objetivo de agilizar os trabalhos, pois algumas decisões teriam que ser tomadas, e o perigo de haver empate persistia. Há no regimento a possibilidade de chamar pontualmente ministros da outra Turma para desempatar votações, mas em casos criminais, como é o petrolão, o empate favorece o réu.
Para os procuradores, Toffoli se prestou a mudar de Turma com a intenção de proteger seus antigos companheiros petistas. Essa disputa entre ministros do Supremo e os procuradores de Curitiba se dá tendo como pano de fundo as medidas de combate à corrupção. Os procuradores acham que o projeto de abuso de poder desengavetado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, tem o objetivo de impedir a ação do Ministério Público, e ao mesmo tempo querem aprovar as 10 medidas de combate à corrupção, propostas em projeto de iniciativa popular com mais de 2 milhões de assinaturas.
Gilmar Mendes defende o projeto de controle do abuso de poder e critica as propostas de combate à corrupção, avaliando que os procuradores se consideram missionários e acima do bem e do mal, cultivando um espírito autoritário que muitas vezes se sobrepõe à própria legislação.
É uma disputa que só pode fazer mal às investigações e que ajuda os que querem melar os resultados da Operação Lava-Jato.
FOLHA DE SP - 24/08
BRASÍLIA - A crise entre o Ministério Público e o Supremo alcançou um novo patamar nesta terça (23). A água que esquentava desde o fim de semana atingiu o ponto de ebulição. Coube ao ministro Gilmar Mendes soprar o apito. Ele atacou os procuradores da Lava Jato, a quem acusou de vazar uma pré-delação para constranger o tribunal.
Gilmar abriu o verbo depois de a operação esbarrar na proximidade entre o empreiteiro Léo Pinheiro e o ministro Dias Toffoli. Ele sugeriu à colunista Mônica Bergamo que os procuradores seriam movidos a "delírios totalitários". "Me parece que [eles] estão possuídos de um tipo de teoria absolutista de combate ao crime a qualquer preço", afirmou.
Mais tarde, ao jornal "O Estado de S. Paulo", o ministro disse que "é preciso colocar freios" nos investigadores, que se sentiriam "onipotentes". Sem apresentar provas, ele disse que os procuradores "decidiram vazar a delação" para fazer um "acerto de contas" com seu colega.
O procurador Rodrigo Janot aderiu ao bate-boca. Depois de suspender a delação sem explicar suas razões, ele disse que a menção a Toffoli teria sido inventada. Em seguida, num recado a Gilmar, questionou: "A Lava Jato está incomodando tanto? A quem e por quê?"
O ministro tem certa razão ao pedir que os procuradores calcem as "sandálias da humildade", embora ele nunca tenha encontrado um par do seu número. Desde o início da Lava Jato, é comum ver investigadores exagerando na autopromoção e no ativismo político. No entanto, chama a atenção que Gilmar tenha resolvido protestar quando a operação ameaça atingir um de seus colegas.
Os ministros do Supremo merecem respeito, mas não podem ser tratados como indivíduos acima da lei. Em março, quando a Lava Jato divulgou gravação de Lula e Dilma Rousseff, Gilmar não manifestou a mesma indignação com o vazamento. Na época, o que importava para ele era discutir "o conteúdo" do grampo.
Zero Hora - 24/08
Michel Temer faz um corpo a corpo às vésperas da retomada do processo de impeachment no Senado porque planeja uma aprovação com larga vantagem. Enquanto são necessários 54 votos para o afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff, o Planalto trabalha com até 62 votos. Por isso, a reunião de última hora com senadores do Nordeste. Quanto maior o apoio do Congresso, maior a legitimidade do governo que – se confirmado o impedimento de Dilma - não terá mais a desculpa da interinidade. Dependente de uma base gelatinosa, precisará de força política para aprovar medidas polêmicas. Enquanto isso, senadores petistas reconhecem que nem o ex-presidente Lula tem mais condições de virar votos. Os 22 apoiadores de Dilma se reuniram ontem para traçar a estratégia sobre as perguntas às testemunhas e à presidente, em um dia que será histórico. Para eles, o melhor dos mundos é que Dilma consiga sair como vítima, ao menos aos olhos da militância.
PAPO RETO
Michel Temer também está trabalhando no primeiro discurso a ser apresentado ao país, em caso de confirmação do impeachment. Assessores o aconselham a ser bem claro sobre os planos de seu governo nos próximos 28 meses. Ele vai dizer que pretende colocar ordem na casa e apontar os avanços para o período.
SE É PRA VALER
Aprovação de reajuste dos salários de ministros do STF no Senado será um desgaste sem tamanho para o governo Temer. Enquanto ministros falam de austeridade, PMDB diz o que bem entende. Para manter o discurso, presidente ficará obrigado a vetar.
FREIO
Está na agenda do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), viagem ao Rio Grande do Sul no próximo final de semana. Ele deve ir à Expointer no domingo, prestigiar a final do Freio de Ouro. O ministro Blairo Maggi(Agricultura) estará com ele.
DE MAL
A bancada ruralista está descontente com o presidente da Câmara. Ele não estendeu os trabalhos da CPI da Funai. Integrantes da CPI acusam o presidente de ter sucumbido às pressões do PT. Com isso, as quebras de sigilo de ONGs, que já estão na comissão, não poderão ser analisadas. A suspeita é que um ex-ministro de Dilma está bem enrolado.
O GLOBO - 24/08
Dilma será deposta, Lula está nas cordas, acabou-se o ciclo de poder do PT, e ninguém sabe para onde ele vai
Começa amanhã o julgamento de Dilma Rousseff. Ela será condenada. Os julgamentos que decidem o destino dos presidentes são políticos. Formalmente, Dilma será deposta pelo desembaraço de sua contabilidade criativa, mas sempre será repetida a frase da senadora Rose de Freitas, líder do governo de Michel Temer no Senado: “Na minha tese, não teve esse negócio de pedalada, o que teve foi um país paralisado, sem direção e sem base nenhuma para administrar”.
Pura verdade, que pode ser contraposta a outro julgamento de impeachment de um presidente, o de Bill Clinton em 1999. Ele era acusado de práticas mais simples, comuns e disseminadas do que as “pedaladas fiscais”. Uma pessoa pode não entender de contabilidade pública, mas entende o que a estagiária Monica Lewinsky fazia com o presidente dos Estados Unidos na Casa Branca. Clinton foi absolvido porque o país não estava paralisado, e a renda per capita dos americanos cresceu enquanto a dívida pública encolheu. Com Dilma, aconteceu o contrário. Todo mundo sabia o que Clinton fez e, apesar disso, achou-se que deveria continuar. No caso de Dilma, não se sabe direito o que eram as pedaladas, mas acha-se que ela deve ir embora.
Quando Dilma entregar as chaves do Palácio da Alvorada, estará encerrado um ciclo de 13 anos de poder do Partido dos Trabalhadores. Em 2003, Lula vestiu a faixa, e a oposição foi para o poder. Hoje ninguém haverá de dizer o mesmo. Michel Temer era o vice-presidente de Dilma, e seu primeiro escalão ampara-se em figuras que sustentaram o comissariado petista. Henrique Meirelles presidiu o Banco Central de Lula, Eliseu Padilha e Gilberto Kassab foram ministros de Dilma. Mudança imediata, drástica e irrecorrível, só a do garçom Catalão, do Palácio do Planalto, que hoje está no gabinete da senadora Kátia Abreu, ministra de Dilma e adversária do impeachment.
O PT foi apeado do governo e, de uma maneira geral, abriu espaço para quem nunca saiu dele. O tempo dirá quanto custou ao comissariado o inchaço de sua base de apoio e, sobretudo, a expansão de seus interesses pecuniários. Lula e Dilma viveram o engano de um governo com o mínimo possível de oposição. Depostos, Dilma cuidará da vida, Lula tentará se reinventar, mas alguns comissários sabem que suas carreiras estão encerradas. Outros seguem a ordem de batalha do coronel Tamarindo em Canudos: “É tempo de murici, cada um cuide de si”. Astro dessa categoria é Cândido Vaccarezza, líder do PT na Câmara até 2012. Dois anos depois, ele perdeu a eleição. Deixou o partido e aninhou-se na campanha de Celso Russomanno (PTB) pela prefeitura de São Paulo.
Cortando aqui e perdendo ali, sobra uma militância cujas raízes estão nos anos 70 do século passado. Defendiam o fim da unicidade sindical, a reforma da CLT, as negociações diretas entre empresas e trabalhadores e tinham horror a empreiteiros. (A recíproca era verdadeira.) Esse era um tempo em que os sindicalistas do PT eram bancários. Com o acesso aos fundos estatais, alguns viraram banqueiros e, como João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do partido, estão na cadeia.
Oposição, com algumas ideias na cabeça e pouco dinheiro no bolso, é tudo o que o Brasil precisa.
Elio Gaspari é jornalista
ZERO HORA - 24/08
Dando andamento ao que considera o primeiro movimento efetivo de controle dos gastos públicos no Brasil nas últimas décadas, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, reuniu-se ontem com 18 deputados que integram a comissão especial da Câmara constituída para analisar a proposta de emenda constitucional que cria um teto para o crescimento das despesas do governo federal. A ideia básica do projeto, que é considerado peça central do ajuste fiscal do governo interino, é limitar os aumentos à variação da inflação do ano anterior — medida razoável se considerarmos o histórico descontrole das contas públicas no país, mas incompatível com as boas práticas de gestão.
Mais adequado do que retroagir ao vício da memória inflacionária seria partir do orçamento base zero, como fazem as empresas mais eficientes, sem levar em conta a chamada base histórica, que são as receitas, custos, despesas e investimentos de exercícios anteriores. Está mais do que na hora de se adotar modelo semelhante para a gestão pública, evidentemente sem desconsiderar peculiaridades específicas das administrações estatais.
Difícil é convencer o Congresso a enfrentar resistências de sindicatos e servidores para aprovar qualquer medida restritiva ao sempre crescente aumento das despesas públicas. Já na renegociação da dívida dos Estados, o governo tentou colocar como contrapartida não o teto de gastos, mas também um veto por dois anos a qualquer reajuste para os servidores. Teve que recuar em relação à proibição de reajustes. Ficou o teto, embora continue sendo questionado por corporações poderosas, justamente aquelas que reúnem servidores melhor remunerados.
O ministro da Fazenda defende que a PEC do teto tenha validade por um período suficientemente longo, que dê confiança à sociedade de que as despesas públicas serão controladas, permitindo que o país volte a crescer. Esse prazo, que o próprio ministro estima em duas décadas, poderia ser reduzido se os administradores públicos adotassem programas de gestão eficiente, com planejamento rigoroso e execução concentrada nas prioridades da população — e não prioritariamente nos interesses dos integrantes da própria máquina administrativa.
ESTADÃO - 24/08
O consumidor carioca corre o risco de ter um aumento na sua conta de luz em razão dos investimentos feitos para os Jogos Olímpicos Rio 2016
O consumidor carioca corre o risco de ter um aumento na sua conta de luz em razão dos investimentos feitos para os Jogos Olímpicos Rio 2016. Trata-se de um evidente abuso, que não deve ser tolerado. A Olimpíada é um evento privado, que não tem qualquer parcimônia na hora de cobrar seus ingressos – assistir a um jogo de futebol, por exemplo, custou em algumas partidas mais de R$ 500. A organização do evento deve ser, portanto, responsável por todos os gastos e investimentos que exigiu. Não cabe agora, depois da festa, repassar ao consumidor a conta, que pode ser inflacionária, afetando, assim, todos os brasileiros.
A possibilidade de que ocorra o absurdo repasse ao cidadão da conta relativa aos investimentos feitos para atender à Olimpíada Rio 2016 veio à tona quando a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no dia 16, permitiu que as distribuidoras de energia que não aderiram à renovação de contratos no ano passado renovem agora seus contratos. Com isso, abriu-se a oportunidade para que as empresas de energia mudem seu calendário de reajustes e revisões de tarifas. Na prática, a revisão tarifária que ocorreria em 2018 pode ser antecipada para 2016.
Conforme informou o jornal O Globo, a Light, empresa responsável pela distribuição de energia no Rio de Janeiro, pretende, na revisão contratual, pleitear um aumento extraordinário de tarifa tendo como motivo, entre outros, os investimentos no sistema elétrico feitos exclusivamente para atender aos Jogos Olímpicos Rio 2016.
Segundo a Light, os investimentos olímpicos alcançaram a cifra de R$ 909,9 milhões. Só na infraestrutura de energia para atender a região da Barra da Tijuca – onde foi construído o Parque Olímpico, com suas várias arenas – foram gastos cerca de R$ 250 milhões.
Parte dessa conta teria sido paga pelo governo federal, no valor de R$ 477,8 milhões. Já os restantes R$ 432,1 milhões ficaram a cargo da Light, que agora almeja cobrar do consumidor, por meio de aumento extraordinário da conta de luz, o valor investido.
Caso seja aprovado, seria um segundo aumento em menos de um ano, já que, em novembro de 2015, houve um reajuste de 15,99% para os consumidores residenciais. Até o momento, não se sabe qual seria o impacto porcentual dos R$ 432,1 milhões em cada conta de luz.
Em nota, a empresa distribuidora de energia do Rio de Janeiro informou que “o desequilíbrio atualmente vivenciado pela Light decorre, primordialmente, da antecipação relevante de investimentos realizados para os Jogos Olímpicos Rio 2016 e do aumento expressivo dos custos de compra de energia e encargos”. A Light sustenta ainda que o contrato de concessão e a legislação pertinente ao caso permitem o pedido de revisão extraordinária da tarifa, com o fim de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro da empresa.
A Aneel, que ainda não se pronunciou sobre o pedido de aumento da Light, apenas informou por nota que o ato publicado em 16 de agosto, aprovando o termo aditivo ao contrato de concessão de distribuição de energia elétrica, é “um avanço no sentido de reduzir o risco do negócio que atua em favor do consumidor e da modicidade tarifária”.
Seja agora, seja em 2018, é um abuso obrigar o consumidor a pagar a conta dos investimentos feitos exclusivamente para atender aos Jogos Olímpicos Rio 2016. Não há razão – jurídica ou de fato – que possa sustentar o repasse à população dos investimentos feitos para atender a um evento privado.
Além de inflacionário, o aumento na conta de luz seria cristalina demonstração de abuso de poder. A lei e as instituições de um país não podem ser utilizadas para impor à parte mais fraca – o cidadão – custos que em nada lhe dizem respeito. Quem quis participar do evento esportivo pagou seu ingresso e desfrutou do espetáculo. Os organizadores, ao que se informa, tiveram substanciosos lucros. Pretender que, agora, terminada a festa, os cariocas paguem uma fatura que não é deles nada tem de espírito olímpico. É pura desfaçatez.
FOLHA DE SP - 24/08
Causa inquietação que chegue ao ponto a que chegou, em termos de repercussão, o caso da pré-delação da Lava Jato que menciona o ministro José Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF). Mais, ainda, que evolua para uma crise permeada de desacertos entre o Supremo e a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Foi por meio de mais um vazamento de informação que veio a público, em reportagem da revista "Veja", a menção ao ministro em tratativas para acordo de delação entre a PGR e Léo Pinheiro, ex-presidente da empreiteira OAS. O conteúdo vazado, contudo, por sua insignificância aparente, tem mais de denúncia vazia do que de escândalo para abalar a República.
Dias Toffoli, indicado ao STF pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teria mencionado, em conversa com o executivo, problemas de infiltração em imóvel seu. Funcionários da OAS fizeram vistoria e indicaram empresa especializada, que fez o reparo, devidamente pago pelo próprio ministro.
Não há elementos, no presente, para duvidar dessa versão, embora também seja impossível descartar que haja algo mais detrás dela.
Por ora, só é possível dizer que, mesmo não se sabendo de onde partiu o vazamento nem sua motivação, o efeito óbvio foi constranger Dias Toffoli, mais que implicá-lo de fato na investigação —o que não seria descabido, ressalve-se, caso houvesse evidência de irregularidade e a delação terminasse homologada; ninguém se acha acima da lei, nem mesmo no Supremo.
Apesar de sua imaterialidade, a pré-delação de Léo Pinheiro deflagrou reação destemperada do ministro Gilmar Mendes. Ele sugeriu que a investigação do vazamento deveria começar pela própria força-tarefa da Lava Jato.
Mesmo não sendo conhecido por continência verbal, Mendes fez emprego de vocabulário inusualmente ácido contra a PGR: "Já estamos nos avizinhando do terreno perigoso de delírios totalitários. Me parece que [os procuradores da Lava Jato] estão possuídos de um tipo de teoria absolutista de combate ao crime a qualquer preço".
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de seu lado, também causou espanto: rompeu a negociação com a OAS para um acordo de delação, alegadamente por quebra de confidencialidade.
Não terá sido a primeira vez. Mas não se tem notícia de que inconfidências aatingir outros políticos mencionados por Léo Pinheiro —de Aécio Neves (PSDB) a Marina Silva (Rede) tenham desencadeado reação tão rigorosa. Tudo indica que se trata de um caso flagrante de dois pesos e duas medidas, se não de manobra corporativa para circunscrever a Lava Jato.
O GLOBO - 24/08
Potências rivais se unem estrategicamente para combater o ‘inimigo comum’ e evocam os regimes bolivarianos da América Latina
Desde o ano passado, o mundo testemunha uma intensa mobilização geopolítica entre potências regionais em torno de alianças estratégicas que têm em comum um posicionamento contra os Estados Unidos. Nem sempre aliados no passado, esses países se aproximam ao compartilhar um sentimento antiamericanista. São todos, sem exceção, regimes autoritários, onde as liberdades civis estão sob constante ameaça.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, por exemplo, se acercou de Moscou poucos meses após as Forças Armadas turcas terem derrubado um caça russo, matando os dois pilotos, o que levou Moscou a impor sanções. Esta reaproximação pode parecer estranha, uma vez que o presidente russo, Vladimir Putin, é aliado de Bashar al-Assad, presidente sírio e inimigo de Erdogan; e também porque os EUA são um importante aliado da Turquia, onde operam uma estratégica base aérea. O país, ademais, é membro da Otan. Mas, as relações entre Ancara e Washington azedaram após a tentativa frustrada de golpe de Estado no mês passado. O presidente turco acusou o governo americano de apoiar o levante.
Putin e Erdogan negociam o uso por caças russos da base aérea turca hoje utilizada pelos EUA para atacar posições do Estado Islâmico na Síria, o que implicaria a retirada das tropas americanas do país. Ao mesmo tempo em que a Turquia dá uma guinada à iraniana, apontando o os EUA como o “grande satã”, o regime recrudesce o autoritarismo e as violações de direitos humanos.
Outra aliança improvável que vem se desenhando no mapa mundi geopolítico em contraposição aos EUA é expressa pela realização de operações militares conjuntas entre Irã e Rússia. Além de um acordo para a compra de armamento de última geração, inclusive usinas nucleares russas, os dois países realizaram exercícios militares conjuntos no Mar Cáspio. E o Irã autorizou na semana passada que uma bases aérea sua fosse usadas por caças russos para realizar ataques na Síria, embora a divulgação desse acordo pelo Kremilin tenha levado à sua suspensão por Teerã. Moscou e Pequim também se uniram, num pacto incomum, para realizar exercícios militares de suas marinhas no Mar do Sul da China, área que vem sendo disputada pelo governo chinês e outros países asiáticos na região.
Essas alianças na Ásia e no Oriente Médio, guardadas as devidas proporções, são espelhos de um movimento semelhante nos últimos anos na América Latina. O lulopetismo, no Brasil; o kirchnerismo, na Argentina; o chavismo na Venezuela; e o bolivarismo em geral em Equador, Nicarágua e Bolívia, ideologias autoritárias e populistas, nutriram uma retórica antiamericana, que remonta aos tempos da Guerra Fria. Menos mal que, pelo menos neste lado do planeta, tal retórica vem perdendo força.