segunda-feira, dezembro 10, 2012

“Apenasmente” Cajazeiras - EUGÊNIO BUCCI

Revista Época 


As irmãs Cajazeiras entraram para a história da telenovela brasileira em 1973, com O Bem-Amado, uma das criações geniais de Dias Gomes. As Cajazeiras eram três solteironas mal-amadas e reprimidas que andavam emboladas, como um ente mitológico de seis pernas e três cabeças, esgueirando-se pelas calçadas estreitas da fictícia Sucupira. As três, Dorotéia (Ida Gomes), Dulcinéia (Dorinha Durval) e Judicéia (Dirce Migliaccio), perambulavam aos fuxicos íntimos, praguejando contra os outros personagens e declarando seu amor ardente, louco e platônico (que depois enveredaria pelas vias de fato) ao “coroné” que mandava na prefeitura, o impagável Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo). Elas bem que remoíam seus ressentimentos contra os desmandos de Odorico - desmandos amorosos, inclusive - mas, fiéis como cachorras, não o criticavam publicamente. Jamais.

Agora, o espírito desgarrado das irmãs Cajazeiras parece querer sair da história da telenovela e ingressar na história do Brasil real. Os adoradores e as adoradoras que circundam a aura de Luiz Inácio Lula da Silva, como guardadores de uma imagem estacionada no meio-fio da política, carregam em silêncio eventuais dores e dissabores.

Nunca ousam expressar em público uma letra, uma vírgula de discordância, mesmo que num discreto e mudo repuxar de sobrancelhas. A lealdade irracional e fervorosa desses (e dessas) tomadores (e tomadoras) de conta não cede. Todos e todas, possuídos e possuídas por sua devoção incondicional, numa idolatria que arrebata ateus e crédulos indistintamente, não deixam que se veja em seu ídolo um único lapso de um único desvio. O cenário é francamente grotesco. Blindaram Lula a tal ponto que o ex-presidente começa a lembrar, inadvertidamente, a figura caricata do bem-amado de Dias Gomes. Como um Odorico involuntário, cercado de elegias e apologias tão fa-natizantes quanto patéticas, vê-se prisioneiro do culto de si mesmo. Tão refém que não tem o que dizer. Ou: não tem como dizer o que deveria dizer.

De tudo o que vem explodindo em matéria de escândalos que arranham ou evisceram a reputação do PT e do governo federal, de mensalão a Rosemary, o que mais chama a atenção é exatamente isso: ninguém, ou quase ninguém, virtualmente ninguém no campo do lulismo esboça uma crítica aberta e de boa-fé. No máximo, quando muito, um ou outro considera que seria positivo se o supremo guia se pronunciasse, quem sabe?, mas ninguém parte para o debate franco, destemido, verdadeiro, em público. É como se, aos olhos da nova religião dos idólatras, a opinião pública fosse território inimigo. É como se, fora das hostes do partido, ninguém mais tivesse direito à verdade.

O cajazeirismo vai se impondo como a doença senil do lulismo. Figuras públicas até outro dia respeitáveis por seu espírito livre e por sua inteligência ferina vão se rendendo ao silêncio que faz corar os mais ferrenhos adversários. Seria cômico se não fosse melancólico.

O Odorico da ficção errava na ética e na gramática (era dado a expressões como “talqualmente” e “emborasmente”, além de “apenasmente”, evidentemente), mas tudo na maior empáfia, com empolação e galanteios. Demagogo e autoritário (pois servia de sátira contra o regime militar), fazia da pose o critério da verdade e da moral. Quando precisava acobertar suas trapalhadas, tinha até um assessor de nome Dirceu, o Dirceuzinho Borboleta, borboleteante demais para se prestar a qualquer semelhança com personagens dos tempos presentes. Odorico, em dupla com Dirceu Borboleta, encarnava a esculhambação em feitio de realismo fantástico. Bendita esculhambação. Desclassificado e vaidoso, demagogo e ignaro, fez muito bem aos telespectadores dos anos 1970: ajudou-os a rir dos opressores.

Agora, a cena é distinta. Não há mais ditadura militar no país. Hoje, a assombração de Odorico retorna para zombar não mais de um tirano, mas de um formidável expoente do período democrático, seqüestrado pelo culto à personalidade. O Lula real é muito, mas muito superior à adulação alienante que o sufoca. De líder metalúrgico a presidente da República, deixou uma obra que, em grande parte, orgulha todos os brasileiros. Teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é oco.

Lula, abduzido pelo cajazeirismo, dá sinais de fraqueza. Quanto às irmãs Cajazeiras, que fizeram o Brasil se dobrar de rir, talvez ainda façam o PT chorar.

Raciocinando sobre mitos - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA



A crise brasileira dos anos 80 teve boas e más interpretações sobre as suas causas. As equivocadas eram quase sempre as da esquerda. Muitas viraram mitos. Uma delas atribuía a desaceleração da economia aos acordos com o FMI. Na verdade, foram três as causas básicas: (1) o esgotamento do modelo de desenvolvimento centrado no estado e na substituição de importações: (2) a queda na produtividade: e (3) a inflação, que gerava incertezas, corroía os salários e reduzia a demanda.

A inflação era em grande pane alimentada pela correção monetária. Imaginada para casos restritos, como o dos títulos do Tesouro, essa correção se entranhou nos preços, salários e contratos. Choques como uma quebra de safra se propagavam no sistema de preços e elevavam o patamar da inflação. O processo se acelerava sempre que o período de correção diminuía. Em 1980, quando o reajuste dos salários passou de anual a semestral, a inflação, medida pelo IGP-DI da Fundação Getulio Vargas., saltou de 77,29% para 110,25%.

Na década anterior, o país havia sofrido dois choques do petróleo (1973 e 1979), cujo preço quadruplicou. Na área do crédito, em 1980. o Federal Reserve elevou brutalmente os juros americanos para enfrentar um grave surto inflacionário. Isso impactou a nossa dívida externa, que subira por causa das compras de petróleo (importávamos 80% do que consumíamos) e do financiamento para o plano de desenvolvimento do governo Geisel (1974-1979).

Em 1982, os credores levaram um susto com a tresloucada invasão das Ilhas Malvinas pelos militares argentinos. A confiança na América Latina caiu e em seguida piorou diante da moratória mexicana. Em pânico, os bancos suspenderam o crédito à região, o que contribuiu adicionalmente para quedas no investimento e na atividade econômica. O Brasil buscou o apoio financeiro do FMI para ajustar-se à nova realidade. Era preciso começar a rever o modelo, o que implicava reduzir gastos, privatizar e abrir a economia (processo que se acelerou nos governos Collor e Fernando Henrique).

A esquerda esquecia esses infortúnios, apontava suas armas para o FMI e assim fustigava o regime militar, cuja legitimidade caía com a crise. Apesar das evidências em contrário, o mito da culpa do FMI ficou e ainda guia o raciocínio de muita gente. Basta ler o discurso da presidente Dilma na Espanha na Cúpula Ibero-Americana (17/11/2012).

Lá, a título de transmitir nossas lições aos europeus, ela disse que os governantes da época, "aconselhados pelo FMI, acreditavam, erradamente, que apenas com drásticos e fones ajustes fiscais poderíamos superar com rapidez as gravíssimas dificuldades econômicas e sociais". Mais. "o Brasil estagnou, deixou de crescer e tornou-se um exemplo de desigualdade social". Acontece que o ajuste fiscal não foi forte. A desigualdade, já existente, piorou com a inflação. As causas da desaceleração da economia foram outras.

Outro mito daquela época dizia que os juros altos levavam o setor privado a aplicar no mercado financeiro em lugar de investir. Empresários secundavam a tolice. Agora, o ministro da Fazenda ressuscitou esse mito. Para ele, com a queda dos juros as empresas vão deixar as aplicações financeiras e “migrar para os ativos produtivos". O erro aqui é imaginar que altas taxas de juros superam as motivações para o investimento produtivo. O empresário não olharia a necessidade de atualizar processos tecnológicos e manter participação no mercado nem se influenciaria pelo que Keynes denominou de "instinto animal".

A queda do investimento nos anos 1980 esteve associada às respectivas incertezas e à deterioração do ambiente de negócios provocada pela crise da dívida e pela inflação. Se a interpretação valesse, o melhor para os empresários teria sido vender as empresas e investir no mercado financeiro, o que jamais aconteceu. Curiosamente, ao contrário do que agora pensa o ministro, a taxa de investimento caiu em todos os trimestres posteriores ao início da redução da taxa de juros pelo Banco Central (agosto de 2011).

Os redatores dos discursos presidenciais e o ministro poderiam buscar entender melhor a crise dos anos 1980 e o que influencia as decisões de investir.

O palanque vai ficar elétrico - REVISTA VEJA

Revista Veja 


Ser contra contas de luz mais baratas e como ser contra a queda de impostos, a paz no mundo e a cura do câncer. São coisas contra as quais ninguém se insurge — elas interessam a todos. Algumas empresas, como as fábricas de alumínio, têm 35% de seus custos na conta de luz. Os consumidores domésticos, tenham ou não uma atividade comercial em casa, vão embolsar tudo o que economizarem com a conta mensal. As discordâncias começam no momento de definir o modo de tornar realidade o desconto. No plano de reduzir as tarifas elétricas em 20%, o governo federal escolheu a pior maneira de fazê-lo — a imposição. Ao tentar impor o poder do estado para forçar uma baixa nas tarifas de eletricidade, ignorou as causas do problema e desprezou as consequências de sua ação. Mas, se os resultados não foram os previstos, o plano rendeu outros dividendos. Diante da recusa de adesão de governadores do PSDB, o governo enxergou uma oportunidade de ouro para emparedar os tucanos, seus prováveis adversários na disputa presidencial de 2014. A defesa da causa ficou para o senador mineiro Aécio Neves, na semana passada quase ungido candidato do PSDB á Presidência da República pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Aécio acusou o governo federal de revelar seu "vezo autoritário” ao anunciar o plano de redução das tarifas de eletricidade.

Assim que assumiu seu posto, a presidente Dilma Rousseff estipulou como metas de governo a diminuição do preço da energia. Da mesma forma que a queda nas taxas de juros e o aumento na cotação do dólar, o barateamento no custo da eletricidade era uma das alavancas com as quais ela pretendia dar mais alento à indústria nacional. Tratava-se, e ainda se trata, de uma necessidade fundamental para o país. O Brasil tem hoje uma das tarifas de luz mais altas do mundo. Isso se deve, essencialmente, aos impostos e encargos que recaem sobre o setor. Em uma conta de 1000 reais, apenas 550 reais representam o custo da energia propriamente dito. Os outros 450 reais servem para pagar impostos federais (PIS e Cofins), estaduais (ICMS) e uma cascata de encargos, como o do investimento em energias alternativas e o subsídio para consumidores de baixa renda. Nos estudos que a presidente encomendou à sua equipe para viabilizar a diminuição das tarifas. 20% era a meta estabelecida.

Em setembro, o plano veio a público. O projeto previa que a maior pane da redução das tarifas, em vez de vir do cone de impostos ou encargos, sairia da conta das empresas de geração de energia, que operam as usinas hidrelétricas. Na avaliação do governo, as usinas mais antigas, cujos investimentos já teriam sido amortizados, não precisariam ser remuneradas como se fossem novas. Poderiam, portanto, cobrar menos. Em troca, teriam os contratos de concessão renovados antecipadamente. A Eletrobras, estatal sob controle federal, atendeu prontamente à determinação da presidente. Mas as empresas públicas de quatro estados anunciaram na semana passada que não iriam aderir ao plano por considerar inaceitáveis as condições impostas pelo governo: a Cemig (de Minas Gerais), a Cesp (de São Paulo), a Copei (do Paraná) e a Celesc (de Santa Catarina). As três primeiras permanecem a estados comandados pelo PSDB: a última, a um estado governado pelo PSD. As empresas fizeram suas contas e chegaram à conclusão de que os valores propostos pelo governo seriam insuficientes para cobrir os custos operacionais das usinas e também, é óbvio, para fazer investimentos futuros e remunerar os acionistas.

O presidente da Cesp, Mauro Arce, por exemplo, informou que o custo operacional das usinas de Três Irmãos, Jupiá e Ilha Solteira gira ao redor de 270 milhões de reais ao ano. Nos termos do projeto de Dilma, elas receberiam 184 milhões de reais ao ano — ou seja, um valor abaixo de suas despesas. "O governo federal quer ficar com a luz, mas deixar a conta para nós", diz o secretário de Energia de São Paulo, José Aníbal. A Cemig calcula que teria perdas da ordem de 4 bilhões de reais ao ano. Em alguns contratos, os valores médios de energia cairiam de 100 reais por quilowatts-hora para 27 reais — um tombo de 73%. "Com esses valores, não se pode operar em condições mínimas de segurança e qualidade, muito menos investir no futuro da empresa", diz um diretor da Cemig.

O embate acabou virando pano de fundo para o primeiro confronto público entre a presidente Dilma Rousseff e o tucano Aécio Neves. O senador fez sua entrada no ringue um dia depois de Fernando Henrique Cardoso, em mais uma descoordenada ação do PSDB. afirmar em um seminário para 700 prefeitos do partido que "o Aécio não precisa de convenção, de nada. Será ungido candidato". Nos últimos meses, FHC já vinha fazendo uma espécie de "road-show" discreto com o senador, visitando empresários e industriais. O ex-presidente iniciava as conversas sempre com a frase: "Estamos dando início ao projeto Aécio 2014". Na segunda quinzena de agosto, por exemplo, a dupla teve encontros em São Paulo com os donos de dois dos maiores bancos privados do Brasil. Mesmo assim, da forma como foi feito, o "anúncio" do ex-presidente pegou o próprio Aécio de surpresa. "Não é esse o momento ainda", disse o senador. No dia seguinte, porém, Aécio engrossou a voz — e o assunto escolhido foram as tarifas elétricas: "O PSDB repudia da forma mais veemente a tentativa de alguns setores do PT de politizar uma questão extremamente séria e estratégica para o país. Séria para as famílias consumidoras de energia e estratégica para a produção brasileira. Lamentavelmente, o viés autoritário do governo mais uma vez se faz presente", afirmou.

As contas de luz têm se mostrado um instrumento muito apreciado por governos populistas, como o de Cristina Kirchner. As que os argentinos recebem em casa vêm com uma frase que diz: "Consumo com subsídio do estado nacional”. Ao lado dos dados sobre gastos e valores a ser pagos, vê-se uma tabela que compara os preços pagos pelo cliente argentino com valores cobrados no Brasil, no Uruguai e no Chile. O quadro inclui ainda os preços praticados em províncias argentinas administradas por governadores não alinhados com o governo central. Há cinco anos. Cristina Kirchner mantém as tarifas artificialmente baixas à custa de subsídios, como faz com passagens de ônibus e gás encanado — uma política que os argentinos já apelidaram de "populismo tarifário" e cujo preço são os apagões frequentes, inclusive em Buenos Aires, decorrentes da falta de investimentos no setor.

No Brasil, a reação dos investidores ao plano do governo federal para o setor elétrico deixou claro que, ao contrário do que afirmou o secretário executivo de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, o projeto não desagradou apenas a "meia dúzia de acionistas". Desde a sua apresentação, as ações das empresas da área já perderam, juntas, mais de 30 bilhões de reais em valor de mercado. Trata-se de uma péssima notícia para um país que precisa urgentemente ampliar os investimentos em infraestrutura e, sem condições de fazê-lo com recursos próprios, vai ter de atrair capital privado para os maiores projetos. A Cesp tem 13.000 acionistas privados. A Cemig tem ações negociadas nas bolsas de Nova York e de Madri, além de São Paulo, totalizando 130.000 investidores em quarenta países. Uma maneira segura de despertar nos investidores em infraestrutura o instinto animal de fuga, como diz a Carta ao Leitor desta edição, é exatamente o que o governo federal está fazendo com o setor elétrico. Essa intervenção reafirma a disposição do governo de utilizar estatais como instrumento de política econômica, como faz há algum tempo com a Petrobras, convocada para ajudar a conter a inflação ao custo de sua eficiência. Esse tipo de política já foi utilizado no passado. O resultado foi a perda da capacidade de investimento das empresas e o seu sucateamento, além dos efeitos perversos em toda a economia. O Brasil não é a Argentina e Dilma Rousseff não é Cristina Kirchner. Não há estratégia política ou eleitoral que valha o risco de ceder à tentação populista e espantar os investidores privados de que tanto o Brasil depende para avançar.


Leitura para bebês - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

Revista Veja 


Se à pátria só trouxe prejuízos, ao léxico, a gangue dos pareceres, também conhecida como o bando dos “bebês de Rosemary”, trouxe uma contribuição: o uso da palavra “livro” (com as variantes “volume”, “obra” e “exemplar”) como sinônimo de dinheiro. Alguns exemplos, tal qual aparecem em telefonemas e e-mails trocados pelo grupo e interceptados pela Polícia Federal:

De Rosemary Noronha, pivô da gangue, para Paulo Vieira, considerado o chefe supremo: “Se vc acha que não está correio abone o envio dos 30 livros”; De Paulo Vieira para José Weber Holanda, subchefe da Advocacia-Geral da União: “Está em falta o livro sobre terras da União. Eu trouxe aquele volume resumido. Tem o volume resumido que eu mandei comprar pra você e preciso te entregar”; De novo de Vieira para Weber: “Vamos marcar para tomar um café, por causa que (sic) eu te passo o livro lá que eu quero publicar na revista da escola, e em seguida a gente troca uma ideia”;

De Vieira para Esmeraldo Malheiros dos Santos, funcionário do Ministério da Educação: “Há 20 exemplares da obra à sua disposição na minha casa na próxima semana. É para as suas leituras de férias”.

Sinônimos, em princípio, não existem. São repelidos pelo organismo vivo que é a língua, em nome do princípio da economia. Não há uma única palavra que tenha o mesmo exato sentido de “mesa”, como também não há uma única com o mesmo exato sentido de “casa”. Havendo duas palavras com o exato mesmo significado, uma delas fenece e morre. Uma exceção são as variações regionais. Entre muitos exemplos, a mandioca pode ser chamada de aipim, macaxeira e vários outros nomes, conforme a região do Brasil.

Outra exceção, mais interessante e intrigante, são os vocábulos que, por provocar escrúpulos de diversa natureza, clamam por subterfúgios. Nesse caso, registram-se abundantes sinonímias. Contam-se, no dicionário Houaiss, 135 sinônimos para a palavra “diabo” - de “anhanga” a “zarapelho”. O medo de, ao nomeá-lo, invocar sua indesejada presença, leva a tratá-lo de formas aproximativas. Ele é o “tinhoso”, o “rabudo”, o “coxo”; prefere-se mencionar atributos seus do que ir direto à repelente pessoa. No mesmo dicionário, a palavra “meretriz” tem 110 sinônimos, de “alcouceira” a “zoina”. Como é próprio aos assuntos de sexo, ou se reage com envergonhado pudor ou com aberta falta de vergonha. Os primeiros preferirão os eufemísticos “mulher da vida” ou “mulher-dama”, enquanto os segundos partirão para os desavergonhados “marafona” e “piranha”. A palavra maconha, que designa um objeto proibido, adquirido em mercados clandestinos e consumido em ambientes restritos, tem 31 sinônimos, de “abango” a “umbaru”.

Dinheiro também está entre as campeãs. O Houaiss lhe dá 127 sinônimos, de “algum” e “arame” a “zergulho” e “zinco”. Com a contribuição de Rosemary e seus bebês, agora são 128. Dinheiro combina algo do sexo, no sentido de que provoca do pudor à sem-vergonhice, com algo da maconha, quando é adquirido e consumido nas sombras, e muito do diabo: como o “cão”, o “capeta”, o “moleque”, também o “cobre”, a “gaita”, a “grana” tem a mania de reclamar a alma em troca. A originalidade da gangue de Rosemary está no fato de, ao contrário de buscar inspiração no território chão da gíria, ter escolhido um objeto de prestígio, como o livro. Em termos práticos, não adiantou. Na verdade, o simples fato de não chamar o dinheiro de “dinheiro” já é indicativo óbvio de que a “bufunfa”, o “cacau”, a “prata” tem raiz no crime. A fantasia de que se estão negociando preciosas bibliotecas, num diálogo entre doutos acadêmicos, evidencia um arrivismo que só realça a vulgaridade do pessoal.

Niemeyer lembra JK, que lembra Tom Jobim, que lembra Villa-Lobos, que lembra Di e Portinari, que lembram Drummond, Vinícius e Cabral, que lembram Guimarães Rosa, Jorge Amado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Pelé e Garrincha. Turma nem de longe igualada pelos que vieram depois, ela criou a ideia de Brasil tal qual hoje a concebemos. O Brasil atual é muito melhor – mais estruturado nas instituições, incomparavelmente mais forte na economia, e até mais justo, mas falta-lhe algo que essa turma inventou, junto com a ideia de Brasil – a esperança. Hoje a ordem é caminhar (e bem ou mal se caminha) sem ilusões. Pensando bem, é melhor assim.

A quadrilha no seio do Poder - RUTH DE AQUINO

Revista Época - 10/12


O que é uma “quadrilha”? Pelo Código Penal brasileiro, são necessárias mais de três pessoas para formar uma quadrilha. É quase um sinônimo de gangue. Se quatro ou mais pessoas conspirarem para cometer algum delito, podemos dizer, sem medo de errar, que elas formam uma quadrilha. Segundo a Interpol, quadrilhas costumam ter um chefão e um mentor. Às vezes são a mesma pessoa, às vezes não.

Com o julgamento do mensalão pelo STF e o novo escândalo da Operação Porto Seguro, os brasileiros aprenderam que “quadrilha” não é um termo aplicado apenas a traficantes ou bandidos comuns que não terminaram o ensino fundamental. Há quadrilhas no Congresso e há quadrilhas no Poder Executivo. Muitos de seus integrantes têm diploma de ensino superior - embora alguns sejam falsos, como o do ex-marido de Rosemary Noronha,

Mas falsificar um diploma universitário para conseguir um cargo na seguradora do Banco do Brasil é um detalhe, não? Afinal, quem pedia e pressionava por irregularidades mil era uma mulher viajada, santa protetora dos Irmãos Metralheira. Rose era a secretária íntima e de total confiança de JD e do PR. Telefonou para um e para o outro logo que recebeu a visita de policiais.

Por isso, e só por isso, Rose mereceu a defesa veemente do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Ele explicou por que o sigilo telefônico dela não foi quebrado; “Não há quadrilha no seio da Presidência da República (...). Rosemary Noronha foi cooptada no esquema e não é integrante da quadrilha” Ninguém dará a ela o direito de depor e se defender da fama injusta de quadrilheira. Rose foi “cooptada”? Então tá!

Uma quadrilha não precisa operar com armas de fogo para ser chamada assim. No Artigo 288 do Código Penal, que define o crime, o parágrafo único determina que a pena de reclusão seja em dobro, “se a quadrilha ou bando for armado”. A pena também deveria ser dobrada para as quadrilhas que tiram proveito de cargos públicos para assaltar a população.

O valor que o governo dá em bolsas isso ou aquilo é ínfimo se compararmos ao ralo da corrupção e das propinas de bandidos infiltrados nos Poderes. Enxugaremos gelo até a Polícia Federal identificar todas as quadrilhas sanguessugas que impedem o país de avançar em seu IDH, o índice de Desenvolvimento Humano. Por que eles resistem tanto a ser chamados “quadrilheiros”?

Somos a sexta economia do mundo, mas precisamos desesperadamente de obras de infraestrutura, saneamento nas favelas com esgoto a céu aberto, moradias populares, uma rede de trens e de metrôs, educação com qualidade, creches para as mães trabalhadoras, um sistema que não abandone seus velhos e hospitais que não desrespeitem seus pacientes. Para onde vão nossos impostos de Primeiro Mundo?

Na Zona Portuária do Rio de Janeiro, mais de 1.000 pessoas de idades e graus diversos de dor se enfileiraram na rua a 34 graus de calor, em busca de atendimento em 2013 no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), inaugurado por Dilma no ano passado. O Into é um espetáculo. Mas o que você e eu vimos pela TV me pareceu próximo de tortura. E acontece cotidianamente em unidades públicas no Brasil. Podem prometer marcação de consultas por telefone ou por computador, mas deve ser para tirar da televisão as filas. Fiquei descansada quando o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, anunciou que haverá cirurgias aos sábados e o número de atendentes do call center do Into aumentará de 14 para 50... Então tá!

Quem rouba dinheiro de famílias desabrigadas por tempestades - como vem acontecendo nas cidades serranas do Rio - deveria estar numa dessas cadeias classificadas de medievais por nosso ministro Cardozo. Temos quadrilhas de ladrões bem-apessoados na serra, com endereços conhecidos. Mais um dezembro de crianças e velhos empoleirados em áreas de risco em Teresópolis e Friburgo, rezando a Deus para não ser levados pelas águas... Então tá!

Temos também quadrilhas nas polícias. O Rio prendeu e deu os nomes de 63 policiais militares que achacavam traficantes. Como diz o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, bandido de farda é bandido ao quadrado. Aguardo exemplos concretos de fim de corporativismo policial em São Paulo. Após meses de execuções diárias, atentados e guerra entre policiais e bandidos, com centenas de mortes, o novo secretário de Segurança de São Paulo, Fernando Grella Vieira, “cria gabinete para combater crise” e admite que o PCC “é uma das facções criminosas” a enfrentar... Então tá!

Nesse cenário de carências inadmissíveis e próprias de Terceiro Mundo, quem entra para o serviço público ou é eleito prefeito, governador, deputado, senador e presidente tem dupla responsabilidade. Extraindo do seio, do coração e da cabeça do Poder os focos de gangues, sobrará dinheiro para o que interessa.

Venda de ingressos - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 10/12


A venda de ingressos para a Copa das Confederações 2013 está batendo recordes: até agora já foram mais de 130 mil bilhetes.
Na África do Sul, em 2009, no mesmo período, as vendas não tinham passado de 10 mil.

De volta para casa
O presidente da CBF, José Maria Marin, assim que retornar do Japão, onde foi participar de uma reunião da Fifa, subirá a serra de Teresópolis.
Vai formalizar a decisão de fazer, de novo, a Granja Comary a casa do futebol brasileiro.

Disputa pela CSA
A argentina Techint deve ficar com a Cia. Siderúrgica do Atlântico.

Falta de tempo
Sete em cada dez mulheres admitem que a falta de tempo as impede até de cuidar de si próprias.
A pesquisa é do Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo) e do Data Popular, de Renato Meirelles.

Segue...
O estudo examina a rotina feminina e revela que a falta de tempo atinge mulheres de todas as classes sociais.

Das entrevistadas, 58%
responderam que falta tempo para cuidar delas; 46% precisam de tempo para ficar com a família; 42% dizem não haver tempo para diversão. Aliás, falta tempo até para descansar.

Cena carioca
De um militante do Centro Cultural Casa Amarela, no Morro da Providência, no Rio, “invadido” quinta por policiais militares que, com pistolas em punho, perseguiam um bandido.
— Realmente não estamos na Livraria da Travessa (no Leblon) ou Casa do Saber (na Lagoa).
Faz sentido. 

Calma, gente
Num tempo de relações amenas entre Brasil e EUA, o consulado americano no Rio saiu do tom com a psicóloga carioca Cláudia Belinaso, filha do coleguinha Léo Batista, da TV Globo.
Na contramão do que pediu Obama, que convidou os brasileiros a irem aos EUA, ela teve o visto negado, por uma ríspida funcionária.

Segue...
O curioso é que Cláudia já teve o visto concedido várias vezes, a ponto de ter um apartamento alugado em Miami.
Agora, ia passar o Natal e o Réveillon com a família lá. O boa gente Léo tenta reverter o caso, apelando ao cônsul-geral.

Arlindo e Robinho
Arlindo Cruz, que embarcou para sua primeira turnê na Europa terá como anfitrião na Itália nosso craque Robinho, do Milan.


Bença, vó
A ministra Helena Chagas e seu marido, o coleguinha Bernardo Estelita Lins, acabam de ganhar a primeira neta, Eloisa.
A bebê tem um irmãozinho, Raul. Os dois são filhos de Cláudia, filha do casal.

Memorial Niemeyer
Um projeto do professor Candido Mendes pode sair do papel: transformar o antigo centro de estudos da IBM no Memorial Oscar Niemeyer. Fica na Estrada das Canoas 3.520, em São Conrado, no meio da Mata Atlântica.
O lugar tem 300 mil m2 e 52 suítes.

Noivinha do MEC
A Vale, antes da crise do preço do minério, tinha plano de erguer uma nova torre, ao lado da atual, projeto de Oscar Niemeyer, ali na Av. Graça Aranha, sede da empresa no Rio.
O prédio da Vale tinha o apelido de “noivinha do MEC” porque fica ao lado do Palácio Capanema, marco da arquitetura moderna brasileira.

Do samba e da neve
Fernanda Montenegro, dama maior da nossa dramaturgia, mostrou que entende de... samba.
Na inauguração da Arena Carioca no Parque Madureira, batizada com o nome de seu marido, Fernando Torres (1927-2008), sugeriu músicas de artistas que deram fama à região.

Segue...
Pediu “Argumento” e “Foi um rio que passou em minha vida”, de Paulinho da Viola, “Sonho meu”, de Dona Ivone Lara, e “Alô, Madureira”, de João Nogueira. Sabe tudo.

Repouso da guerreira...
Aliás, Fernanda, com quase toda família, sai dia 16 de férias: um mês pela Itália, “mesmo com frio e neve”.

Lapa americanizada
A editora Rio Lapa foi autorizada a captar R$ 638.760,40 pela Lei Rouanet para produzir 12 edições do jornal cultural Rio Lapa News.

Só que...
Rio Lapa News é o cacete.

Natal em família - KLEDIR RAMIL

ZERO HORA - 10/12


Natal em família é sempre uma alegria e uma grande confusão. Reunir a família – qualquer família – é um risco que deveria ser acompanhado pela Brigada Militar, para evitar maiores problemas.

Como vocês sabem, faço parte de uma tribo que tradicionalmente se reúne no fim do ano. O local é sempre o mesmo, a casa da mãe na praia do Laranjal, em Pelotas. Somos um monte de irmãos que, seguindo as ordens do Chefe, cresceram e multiplicaram-se. Essa mania da humanidade de acasalar e procriar já anda pela casa dos 7 bilhões e nossa modesta contribuição se resume a 36 seres humanos. Por enquanto.

O problema de juntar 36 pessoas na volta de uma mesa começa na hora de definir a ceia de Natal. Existe na família uma ala vegetariana, que cresce a olhos vistos. Entre os irmãos, há uma nova tendência dos intolerantes a lactose. E há um sem-número de restrições alimentares por conta da saúde debilitada de uns e outros, que ano após ano aumenta em proporção assustadora.

Temos os diabéticos, os cardíacos, os hipertensos, os alérgicos, os de colesterol alto e os cheios de frescura, como eu. Isso sem falar dos que apresentam transtorno obsessivo compulsivo. Ou seja, chegar a um acordo sobre o cardápio da noite de Natal é uma tarefa de gincana, administrada com sabedoria e paciência pela Dona Dalva.

A escolha dos presentes também é motivo de tensão. Já há alguns anos se estabeleceu a prática do amigo secreto. Um para os adultos e outro para a gurizada. Com um valor determinado de gasto, para não haver a injustiça de alguém dar uma TV LED 3D e ganhar um par de meias, com a desculpa de que “é apenas uma lembrancinha”. Este ano, surgiu a ideia de um amigo secreto único, reunindo velhos e jovens, e a coisa virou um caos, uma loucura. Ânimos exaltados, grosserias, acusações. Como até agora não houve consenso, estamos pensando em chamar o Joaquim Barbosa.

Na hora de escolher quem seria o Papai Noel, a situação fugiu ao controle. Os primeiros citados foram os de barriga mais avantajada e aí, se ofenderam. Começaram a se xingar e chegaram a questionar a masculinidade uns dos outros. Com insinuações do tipo “e tirou o lenço de seda da Pérsia do bolso de seu paletó e secou a lágrima do amigo de tantos anos...”. Sim, o bate-boca é em alto nível e por vezes até poético. O que não diminui sua carga de agressividade.

Tudo isso por e-mail e telefone. Imagina quando se encontrarem na noite de Natal. Vamos precisar da Brigada Militar.

Malditos fios - MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

FOLHA DE SP - 10/12


Reforma da Faria Lima mostra como a cena muda quando somem a horrenda fiação aérea e seus postes


Vou descendo a pé pela agradável e arborizada Sampaio Vidal, no Jardim Paulistano, até chegar à esquina da Faria Lima. É hora do rush. Carros e ônibus movem-se pela avenida a velocidade de galinhas. Pessoas transitam para lá e para cá, helicópteros cruzam o céu e rapazes afrouxam as gravatas nas mesinhas da happy hour.

Há alguma coisa diferente, entretanto, nessa característica cena paulistana -e não são apenas as novas e civilizadas calçadas, a iluminação reformada ou as bicicletas que já circulam pela ciclovia do canteiro central.

É que a Faria Lima, do Itaim à Rebouças, não tem mais fios. Sem eles e seus horrendos postes, a escala muda, o olhar acalma e a paisagem urbana desanuvia.

Em São Paulo, o bônus visual do enterramento da fiação é potencializado pela limpeza anterior, quando a prefeitura, numa investida de vanguarda, baniu outdoors, restringiu drasticamente a publicidade no espaço público e regulamentou o uso comercial das fachadas.

A cidade que se realça quando cai a crosta da poluição visual pode não ser o melhor exemplo de acerto arquitetônico, mas a limpidez -já por si um ganho- também deixa ver belezas insuspeitadas, bons edifícios e situações urbanas cosmopolitas.

A revalorização do espaço público traduz-se também em ganhos econômicos. Isso aconteceu, por exemplo, em ruas comerciais, como a Oscar Freire. Depois do "tapa" urbanístico por que passou nossa via Montenapoleone, floresceu como nunca um centro de comércio de rua sofisticado e civilizado. E os efeitos se irradiaram pelas alamedas vizinhas.

Pena que os malditos fios da Eletropaulo ainda poluam mais ruas e avenidas do que se poderia esperar. "Malditos fios da Eletropaulo" é o mote de uma campanha bacana que o jornalista Leão Serva vem fazendo pelo Instagram. Desde o ano passado ele já postou mais de 400 imagens de lugares em que a fiação aérea interfere de maneira grosseira no visual da cidade.

Leão lembra que o município tem uma lei (de 2005) que determina padrões anuais de enterramento dos fios. O problema é que o cumprimento da legislação esbarrou numa questão básica -quem paga a conta. A prefeitura tem seus limites e prioridades orçamentárias, e a Eletropaulo alega restrições financeiras e dificuldades para repassar os custos ao consumidor. Recentemente a empresa estimou em R$ 100 bilhões o valor para o enterramento de toda a fiação de São Paulo.

A crer nessa estimativa, a soma é mesmo alta. O Orçamento municipal do próximo ano, para que se tenha uma ideia, é de R$ 40 bilhões. Mas o enterramento dos fios não precisa ser feito na cidade inteira, de uma só vez e pago por apenas um dos envolvidos. Há formas de escalonar e ratear despesas.

A Eletropaulo, diga-se, costuma culpar São Pedro quando a eletricidade é interrompida pelas quedas de árvores em dias de chuva -se fosse subterrânea, a fiação estaria mais bem protegida. A empresa, no entanto, lucra com os postes, que aluga para concessionárias de telefonia e TV a cabo. E nada se paga para explorar o espaço aéreo da cidade.

Já é hora de São Paulo dar um passo e criar um programa realista para o enterramento de fios. Já se vão mais de cem anos desde que a Ligth, em 1905, acendeu as primeiras luzes elétricas em vias públicas da cidade. De lá para cá plantou-se na Pauliceia uma floresta de postes, que sustentam milhares de quilômetros de fios.

Malditos fios.

Cairo, a cidade eterna - ROGER COHEN

FOLHA DE SP - 10/12


Parte da magia desta grande cidade, mesmo quando abalada por turbulências políticas, reside na sua aparente capacidade de absorver qualquer revolta, desafiar as probabilidades, superar tudo -dos engarrafamentos à burocracia- e sobreviver. Como o Nilo, a sua referência, o Cairo tem o fascínio do eterno.

A grandeza de nenhum edifício resiste à marcha de poeira, e, no entanto, a cidade retém algo da sua inefável majestade. As lutas dos seus muitos milhões de habitantes estão sempre aparentes, mas sua dignidade em meio às dificuldades é menos visível. A cidade derrota verdades simples.

Isso é bom. Gostamos das nossas verdades simples hoje em dia. Preto ou branco é o que queremos. "Só que", responde o Cairo, "eu sou cinza!".

A turbulência política do Egito pós-revolucionário é óbvia. Menos óbvia é a forma como a sabedoria e o bom humor daqui temperam e moldam os fatos. Uma coisa é viver num país como a Síria, com fronteiras desenhadas no começo do século 20 por algum burocrata britânico dispéptico, onde a tentação da dissolução nunca está muito abaixo da superfície. Outra coisa é ser parte de uma terra e uma cultura tão antigas quanto as do Egito.

Comecei a pensar nisso durante a rebelião de dois anos atrás na praça Tahrir, que levou à queda de Hosni Mubarak. Toda noite, dezenas de milhares de pessoas, incluindo mulheres e crianças, saíam da praça através do estreito espaço entre dois tanques. O potencial para um desastre era alto. Um momento de pânico ou de afobação poderia levar a um tumulto e a um banho de sangue. Mas a civilidade, o respeito e a paciência prevaleceram.

Tais verdades nos dizem mais sobre as perspectivas de longo prazo de um país do que fatos mais imediatos e chamativos. A humanidade da Itália, o otimismo do Brasil e a abertura dos EUA são qualidades que as estatísticas não conseguem mensurar. Da mesma forma, não há contagem ou pesquisa que identifique essa qualidade que encontrei na praça Tahrir. Não é à toa que o Egito, ciente do preço e da inutilidade da guerra, foi o primeiro país árabe a fazer a paz com Israel.

Gosto de parar no Cairo para sentir os ritmos da cidade. Como muitos lugares, o Cairo oferece dois universos distintos.

Há os estabelecimentos globalizados, reluzentes, com ar-condicionado, onde você toma um café com leite pelo mesmo preço de Paris ou Nova York. Aqui o tempo corre na velocidade do século 21. Noticiários e desfiles de moda passam na TV.

E há então o mundo lento no qual a maioria dos cairotas vive e ri, com suas espeluncas oferecendo chá ou café doce e porções de feijões ("ful"). Você poderia viver feliz durante alguns dias com os feijões não globalizados pelo preço de um daqueles cafés globalizados. Muitos cafés no mundo lento oferecem "shishas" (narguilés) para fumar tabaco com aroma de maçã enquanto você vê o dia ir embora. É um ritual agradável de observar. Um homem de movimentos precisos abana as brasas, sacudindo-as em uma concha metálica escurecida, antes de colocá-las com uma pinça, uma a uma, no narguilé. Nada é feito com pressa aqui, porque nada vai mudar.

Confundimos atividade e movimento com realizações. Pode-se ganhar mais com uma pausa. Cada época tem suas ilusões. Recentemente, li uma revista de 1938. Um editorial dizia: "A máquina deixou os homens frente a frente como nunca antes na história. Paris e Berlim estão mais perto hoje do que aldeias vizinhas estavam na Idade Média. Em certo sentido, a distância foi aniquilada".

Isso foi mais de meio século antes da invenção da internet. É importante desacelerar, no mínimo porque estamos longe de ser os primeiros humanos a acreditar que o mundo se acelerou. Mesmo no mundo lento do Cairo há surpresas. Enquanto eu fumava "shisha" num modesto estabelecimento da rua Kasr el Nil, uma amiga observou que o local anunciava uma conexão wireless.

"Qual é a senha?", perguntou ela ao proprietário.

"Nike", respondeu ele, que continuou passando um café.

Neorrealismo - RUBENS RICUPERO

FOLHA DE SP - 10/12


Crise atual dá força à teoria segundo a qual crescimento rápido é exceção, não regra na experiência humana


Ou será neopessimismo? O fato é que, no bojo desta crise interminável, ganham ar de verossimilhança as previsões de que o crescimento rápido é mais uma exceção do que regra na experiência humana.

Contrariando a crença dos iluministas num progresso infinito e eterno, os dias felizes da expansão acelerada não voltariam mais.

Houve uma onda parecida logo após os choques do petróleo que puseram fim aos "30 anos gloriosos" depois da Segunda Guerra Mundial. O retorno da estagnação e a instalação na Europa do desemprego estrutural alimentaram então especulações sombrias sobre o futuro.

A fase coincidiu, não por acaso, com os chamados "anos de chumbo" do terrorismo europeu. Escrevendo nessa época, Fernand Braudel se perguntava em "Le Temps du Monde" se o primeiro choque petrolífero (1973) não marcaria o início da longa descida de um dos seus ciclos seculares de expansão.

Passada a ascensão, iniciada em 1896, o ciclo declinaria por umas duas gerações até atingir o fundo do poço, mais ou menos meio século a partir de 1973.

O que não se imaginou, foi o impacto que teria o vertiginoso crescimento da China por mais de 25 anos e o efeito dinamizador trazido pela revolução dos computadores, das telecomunicações e da internet.

Tampouco se calculou, no lado negativo, o agravamento dos limites ocasionados pelo aquecimento global, subestimando-se igualmente a perda de dinamismo consequente ao colapso da demografia e o envelhecimento da população.

Dos estudos recentes, o que mais faz pensar é "Is U.S. Economic Growth Over?", do professor Robert J. Gordon, que pode ser facilmente acessado na internet. A primeira versão é de 2006, não sendo assim produto da crise financeira.

O autor estabelece vínculos entre períodos de expansão rápida e as inovações características das três revoluções industriais: 1ª) a das ferrovias, vapores e indústria têxtil, de 1750 a 1830; 2ª) a da eletricidade, motor de explosão, água encanada, banheiros e aquecimento dentro de casa, petróleo, farmacêuticos, plásticos, telefone, de 1870 a 1900; 3ª) a dos computadores, internet, celulares, de 1960 até hoje.

A segunda teria tido importância superior às outras, garantindo 80 anos de acelerado avanço na produtividade. Desta vez Gordon receia que os Estados Unidos não sejam capazes de aproveitar o impulso de futuras inovações devido a seis problemas graves: demografia, desigualdade, educação deteriorada, obstáculos ambientais, competição da globalização e o peso da dívida dos particulares e do governo.

O autor se limitou aos EUA e convidou estudiosos a compararem os resultados com suas experiências nacionais. No caso do Brasil, é óbvio que só agora a maioria da população começa a ter acesso às inovações da segunda e terceira revoluções industriais. Só isso nos garantiria boas décadas de expansão.

Por outro lado, muitos dos obstáculos dos EUA nos afetam de modo agudo. Sem falar em educação, desigualdade ou competitividade, basta lembrar que o envelhecimento da população será aqui mais fulminante não só que nos EUA, mas até na Argentina e no Uruguai!

Transição incompleta - PAULO GUEDES

O GLOBO - 10/12



Surge agora a verdadeira causa do avanço oportunista e antirrepublicano sobre os royalties do petróleo, por parte de governadores como Cid Gomes (Ceará), Eduardo Campos (Pernambuco) e suas bancadas no Congresso. A queda da arrecadação federal e a concessão de incentivos fiscais derrubaram os repasses da União para Estados e municípios. Mas o veto da presidente Dilma ao projeto de lei dos royalties frustrou intenções explícitas de canibalismo federativo desses governadores, recolocando a disputa por recursos no âmbito adequado de um novo Pacto Federativo.

A visão correta é a do governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia, para quem "a concentração exagerada de poderes na esfera da União limita a autonomia dos Estados". Precisamos de uma reforma fiscal que nos permita completar a transição de um regime político fechado, que concentrou poderes e recursos na União, para o regime fiscal de uma Grande Sociedade Aberta, em que são descentralizados recursos e atribuições para as diversas esferas administrativas de uma autêntica Federação.

Cid Gomes está correto quando registra que "Estados e municípios estão pedindo socorro". E ainda quando denuncia o julgamento assimétrico das políticas de desoneração praticadas: "Quando os Estados fazem uma renúncia fiscal, são acusados de promover guerra fiscal. Mas, quando o governo federal abre mão do IPI para socorrer o setor automobilístico, chama de política de manutenção de empregos." Como também está certo Eduardo Campos quando observa que "a desoneração hoje praticada pelo governo federal acaba favorecendo apenas os Estados em que estão os setores eleitos para receber tais benefícios".

A melhor forma de corrigir tais distorções é por meio de uma ampla reforma fiscal, abandonando medidas casuísticas restritas a setores eleitos. Temos de evitar ainda o velho hábito de legislar em causa própria. Isso ocorre quando o governo federal aumenta as contribuições sociais, que não são compartilhadas com os demais entes federativos, enquanto reduz impostos cujas receitas abastecem os Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios. As contribuições sociais teriam de ser também compartilhadas no processo de descentralização política e administrativa de uma democracia emergente.

A mão visível - LUÍS EDUARDO ASSIS

O Estado de S. Paulo - 10/12


As crises, muitas vezes, purgam as ideias. Uma das situações mais des­concertantes nos últi­mos anos foi o depoimento de Alan Greenspan ao Congresso americano em outubro de 2008. Ali, diante dos deputados, um hu­milde senhor de 82 anos foi força­do a admitir candidamente que a ideia de autorregulação dos mer­cados era falaciosa - "o edifício intelectual desabou", nas suas pa­lavras. O estouro da bolha imobi­liária, algo antes considerado alta­mente improvável pelo próprio Greenspan, abalou a crença de que os bancos necessitavam de pouca regulação, já que, argumen­tava-se, eles não agem como le-mingues suicidas e a defesa dos seus próprios interesses seria su­ficiente para evitar um desastre.

O conceito de que os merca­dos se regulam automaticamen­te é antigo e deriva da tese de que o esforço de cada agente econô­mico na busca de seus objetivos

individuais tem o condão de pro­mover o interesse coletivo, algo que a "mão invisível" de Adam Smith já sugeria na Teoria dos Sen­timentos Morais, de 1759, livro que antecede A Riqueza das Na­ções (1776). Os economistas mo­dernos ampliaram e distorce­ram a concepção original de Smith para concluir que a regula­ção dos mercados era prescindí­vel. Daí a reação estupefata de Greenspan, genuinamente de­cepcionado com a constatação de que os mercados falham.

Dizia Millôr Fernandes que uma ideologia, quando fica bem velhinha, vem morar no Brasil. Não deu tempo desta vez. O fato é que o Banco Central brasileiro nunca aderiu à tese da desregulamentação, para nossa fortuna. Se isso coibiu a inventividade do nosso sistema financeiro, ainda pouco sofisticado, também cerceou a possibilidade de bolhas e crises.

As agruras do livre mercado, no entanto, parecem ter induzi­do o atual governo a uma nova aventura, em tudo a ele antagônca. Uma coisa é não acreditar na ; metáfora da mão invisível. Jose-I ph Stiglitz, Prêmio Nobel de Eco­nomia de 2001, lembra que a ra­zão pela qual é difícil "ver" a mão invisível é que muitas vezes ela simplesmente não existe. Outro enfoque, que parece seduzir quem faz política econômica no Brasil, é acreditar que o funciona­mento dos mercados conduz a aberrações que devem ser combatidas com a participação direta l do Estado na economia.

Um exemplo poderá ilustrar o argumento. Diante da desaceleração do crédito privado, acuado pelo crescimento significativo da inadimplência, os bancos priva-j dos adotaram a boa prática prudencial e diminuíram o ritmo de \ crescimento de seus empréstimos. É assim que se faz, se o objetivo for preservar os interesses dos acionistas, como é natural I que seja no capitalismo. Os bancos públicos, ao contrário, foram instados a acelerar quando a es­trada ficou mais sinuosa e o tem­po fechou. O que fazer se o dinheiro emprestado não retorna? Em­prestar mais, diz a lógica estrambólica do controlador dos bancos estatais.

Forçar os mamutes estatais a empurrarem os bancos privados na direção da expansão da econo­mia apenas põe em risco, desne­cessariamente, o dinheiro do con­tribuinte, que poderá pagar a con­ta da inadimplência mais adiante I (o argumento de que a qualidade : de crédito não se deteriorou é pre­cipitado, já que toda carteira me­lhora quando recebe o influxo de novos empréstimos).

Ganharíamos todos, se o gover­no acreditasse que uma de suas funções é estimular a concorrên­cia entre os agentes privados, combatendo as imperfeições de mercado que limitam a função alocativa da "mão invisível".

Uma distorção frequente no mer­cado bancário brasileiro é a pre­sença de informação assimétrica. A assimetria de informação con­traria o credo neoliberal e ocorre quando uma das partes detém mais informação do que a outra, abrindo espaço para uma transa­ção não equitativa. Se o objetivo for o de estimular maior eficiên­cia no setor, empurrando para baixo as taxas de juros, seria opor­tuno promover a concorrência, o que implica restringir a informa­: cão assimétrica por meio de medi­das que aumentem a transparên­cia. Três iniciativas poderiam aju1 dar nesse sentido."

A primeira é retomar as discus­sões sobre o cadastro positivo. Da maneira como está regula­mentado, teremos de esperar anos para que isso tenha algum efeito prático sobre a precificação do risco e as taxas de juros. Outra providência, esta simples, séria facilitar o encerramento e a transferência de contas corren­tes. Os bancos, em geral, ainda exigem que os correntistas comu­niquem por escrito a decisão de romper o relacionamento. Num país onde 38% dos universitários são analfabetos funcionais, isso significa uma formidável barrei­ra. Se a prática fosse adotada pela indústria automobilística, o Aero Willys não teria saído de linha. Por" fim, a concorrência poderia ser estimulada se os clientes de serviços bancários tivessem aces­so a um extrato simplório, padro­nizado para permitir compara­ções, que dissesse quanto se paga de serviços bancários por mês. Sa­bemos quanto pagamos de água, luz e telefone. Mas quanto paga­mos "de banco"?

O governo parece ter especial prazer em cultivar o hábito de in­terferir nos mercados com a "mão grande" das estatais, negli­genciando a necessidade de cor­rigir as distorções do mercado para que a concorrência faça o resto. Esse dirigismo interven­cionista não só sufoca a máquina estatal com tarefas que não lhe são intrínsecas, ocupando pre­cioso tempo que poderia ser usa­do na definição de uma estraté­gia de crescimento de longo pra­zo, como expõe as finanças públi­cas a um risco desnecessário. E um grande equívoco pensar que os mercados funcionam a con­tento, e as crises financeiras são o testemunho disso. Mas é equivo­cado também imaginar que o Esta­do pode suprir diretamente essas falhas. Regular a concorrência é melhor que concorrer.

Crise financeira ou de informação? - KENNETH ROGOFF

O Globo - 10/12


Um fraco crescimento já se projeta para o ano seguinte, enquanto aumenta o debate sobre o que esperar das próximas décadas. A crise financeira global foi um severo, mas transitório, revés para os países avançados, ou expôs uma doença mais profunda e de longo prazo?

Recentemente, analistas como o empreendedor da internet Peter Thiel e o ativista político e ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov esposaram uma interpretação bastante radical da desaceleração. Num livro a ser lançado, argumentam que o colapso do crescimento dos países avançados não resulta meramente da crise financeira; em sua raiz, dizem eles, a fragilidade desses países reflete uma estagnação em tecnologia e inovação. Dessa forma, sem mudanças radicais em sua política de inovação, eles não deverão registrar recuperação baseada no crescimento da produtividade.

O economista Robert Gordon leva essa ideia mais longe ao defender que o período de rápido progresso tecnológico que se seguiu à Revolução Industrial pode ter sido uma exceção de 250 anos à regra da estagnação na história humana. De fato, ele sugere que as inovações tecnológicas de hoje são pálidas em comparação com avanços como a eletricidade, água corrente, o motor a combustão e outros feitos que têm mais de um século.

Recentemente, debati a tese da estagnação tecnológica com Thiel e Kasparov na Universidade de Oxford, juntamente com o pioneiro da criptografia Mark Shuttleworth. Kasparov perguntou incisivamente que produtos, tais como o iPhone 5, realmente contribuem para ampliar nossas capacidades e argumentou que a maior parte da ciência por trás da moderna computação foi estabelecida nos anos 70. Thiel sustentou que os esforços para combater a recessão via política monetária frouxa e estímulo fiscal hiperagressivo tratam da doença errada e, assim, podem ter efeitos muito perigosos. São ideias muito interessantes, mas a evidência ainda parece esmagadora de que a freada na economia global reflete principalmente o resultado de uma profunda crise financeira sistêmica, não uma crise de inovação de longo prazo.

Certamente há os que acreditam que os mananciais da ciência estão secando e que, quando se olha de perto, os últimos gadgets e ideias que impulsionam o comércio global são, essencialmente, secundários. Mas a vasta maioria de meus colegas cientistas em universidades de ponta parece terrivelmente excitada sobre seus projetos em nanotecnologia, neurociência e energia, entre outros campos. Acreditam estar mudando o mundo de forma tão rápida como nunca vimos. Quando penso na estagnação inovativa como um economista, preocupo-me com a forma como monopólios presunçosos sufocam ideias e como recentes mudanças, estendendo a validade de patentes, exacerbaram este problema.

Não, a principal causa da recente recessão é certamente a bolha global de crédito e sua subsequente explosão. Não é meramente quantitativa a profunda semelhança entre o que acontece hoje e depois de profundas crises financeiras sistêmicas do passado. As pegadas da crise são evidentes em indicadores que vão do desemprego ao preço dos imóveis e ao acúmulo de dívidas. Não é acidental que a era atual pareça tanto com o que ocorreu em dezenas de profundas crises financeiras no passado.

A bolha de crédito pode estar enraizada no otimismo excessivo num ambiente de potencial crescimento econômico implícito na globalização e nas novas tecnologias. Como Carmen Reinhart e eu enfatizamos em nosso livro "Desta vez é diferente", tais fugas de otimismo frequentemente acompanham rápidas expansões de crédito, e esta não é a primeira vez que a globalização e a inovação tecnológica desempenharam um papel central.

Atribuir a atual desaceleração à crise financeira não implica ausência de efeitos de longo prazo. Contrações de crédito quase sempre atingem mais fortemente as pequenas empresas e as que estão iniciando operações. Como muitas das melhores ideias e inovações vêm das pequenas companhias, a atual contração de crédito terá inevitavelmente custos no crescimento a longo prazo. Ao mesmo tempo, as habilidades de trabalhadores desempregados ou subempregados estão se deteriorando. Muitos recentemente formados em faculdades também estão perdendo porque está mais difícil encontrar empregos que estimulem sua capacidade e concorram para aumentar sua produtividade e renda a longo prazo.

O crescimento a médio prazo não escapará de ser atingido, uma vez que os governos, sem dinheiro, estão adiando projetos públicos de infraestrutura. E, independentemente de tendências tecnológicas, outras tendências antigas, como o envelhecimento da população nos países mais avançados, estão cobrando seu preço nas perspectivas de crescimento. Mesmo se não houvesse crise, os países teriam de fazer ajustes politicamente dolorosos nos programas de previdência e de saúde.

Todos juntos, esses fatores tornam fácil imaginar um índice de crescimento um ponto percentual abaixo do normal por mais uma década, talvez mais. Se a hipótese de Kasparov-Thiel-Gordon estiver certa, o panorama é ainda pior - e a necessidade de reforma, muito mais urgente. Afinal, a maioria dos planos para emergir da crise financeira assume que o progresso tecnológico fornecerá uma fundação sólida para o crescimento da produtividade que, ao final, sustentará a retomada.

Então, a principal causa da recente desaceleração é uma crise de inovação ou uma crise financeira? Talvez as duas, mas certamente o trauma econômico dos últimos anos reflete o derretimento financeiro, mesmo se o caminho adiante precise levar em conta outros obstáculos ao crescimento de longo prazo.

Ringues armados - DENISE ROTHENBURG


CORREIO BRAZILIENSE - 10/12


Esta semana promete. É PMDB versus PMDB, PT versus PT, Supremo Tribunal Federal versus Câmara dos Deputados, em meio a uma série de confraternizacões para aliviar o clima frenético de fim de ano. Dentro do PMDB, a briga pelo comando da Câmara ganha corpo com a apresentação da candidatura da vice-presidente da Casa, deputada Rose de Freitas (ES). Por mais que se diga nos bastidores que ela não tem chance, só o fato de existir outras alternativas — há a pré-candidatura do deputado Júlio Delgado (PSB-MG) — dá aos parlamentares do PMDB e de fora dele, a oportunidade de promover um debate mais amplo sobre como deve agir um presidente da Casa, e quais devem ser suas prioridades.

Um debate que seria de bom tom aos pré-candidatos a presidente da Câmara é o que está posto esta semana entre a Câmara e o Supremo Tribunal Federal. O horizonte indica uma troca de farpas entre Joaquim Barbosa e o presidente da Câmara, Marco Maia nos próximos dias, quando o Supremo decidirá se cabe ou não a seus ministros incluir na sentença dos réus a perda do mandato parlamentar.

Até aqui, sempre foi a Câmara dos Deputados quem deu a palavra final sobre esse tema. Os congressistas esperam que continue sendo assim. Citam o artigo 55 do texto constitucional, que dá essa prerrogativa aos parlamentares. Mas Barbosa considera que, para os deputados condenados, o mandato já era. Caberia apenas à Câmara declarar extintos os respectivos mandatos.

A discussão sobre esse tema tem vários ângulos e indica que é preciso pensar nossas instituições. O STF vem mudando diversas jurisprudências ao longo do julgamento da Ação Penal 470. Se decidir por incluir a perda do mandato na sentença, terá mais uma vez inovado ao tratar dos mandatos parlamentares, no caso, de João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP).

Entre todas as inovações feitas até aqui, esta será a única que dirá respeito a outro Poder da República. Daí, o receio de muitos, de que essa querela deságue em crise institucional, não tem fundamento. Até aqui, não se ouviu uma palavra a respeito vinda dos interessados em presidir a Câmara e o Senado. A impressão que fica é a de que uma grande parcela dos 500 eleitores parece mais interessada em cobrar cargos e funções de destaque na futura gestão do que compromissos republicanos.

A história mostra que o próprio Supremo tem sido moroso na hora de ajudar o Legislativo a cumprir o preceito constitucional nessas condenações. Basta ver o caso do deputado Natan Donadon (PMDB-RO), condenado pelo STF a 13 anos de prisão em outubro de 2010 por formação de quadrilha e peculato. Donadon continua no exercício do mandato porque os embargos ainda não foram julgados. E, sendo assim, a Câmara só poderia abrir processo de cassação se algum partido entrasse com o pedido, o que até hoje também não ocorreu.

Talvez por observar esse caso de Donadon, alguns ministros do STF — ainda não é possível saber precisamente quantos — querem incluir logo a perda do mandato na sentença dos parlamentares condenados na Ação Penal 470. Mas muitos consideram que é preciso ter cuidado para que isso não se transforme na velha história da bacia cheia de água suja com a criança dentro. Não dá para jogar fora a água suja e com ela os limites de atuação de cada Poder. E é por isso que, esta semana, teremos talvez a mais bela das discussões sobre esse tema. Vamos acompanhar.

E por falar em limites de atuação…

Passada a reunião do diretório nacional do PT, a impressão que se tem é a de que o partido virou a página do mensalão. Ao não topar ir às ruas contra o resultado do julgamento, fica a ideia de que os petistas querem tocar a sua história em frente, sem grande estardalhaço ou um problema institucional entre o partido e o Supremo.

Interessante observar ainda a forma como o PT lida com José Dirceu, um de seus grandes líderes. Há a clara sensação de que o partido não deseja dar ao público externo a dimensão exata do poder dele dentro da legenda. Primeiro, não colocou em votação o pedido de uma campanha pública contra o julgamento. Mas não deixa de promover uma “vaquinha” para pagar a multa e ter muitos de seus líderes dia e noite falando da Ação Penal 470 como um julgamento político. Ou seja, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Mas essa é outra história.

Desoneração da construção - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 10/12


Um setor da economia que admitiu liquidamente 272,1 mil trabalhadores nos dez primeiros meses do ano e, de acordo com o IBGE, tem um índice de desemprego equivalente a menos da metade do índice de todo o País precisa de estímulos tributários para contratar mais trabalhadores?

Os dados indicam que, se algum problema esse setor enfrenta com mão de obra, certamente não está ligado à sua capacidade de contratação, mas, muito provavelmente, à escassez cada vez maior no mercado de trabalho de profissionais preparados para preencher as vagas que surgem. No entanto, o governo parece acreditar que a construção civil precisa de benefícios fiscais para contratar mais, apesar do aumento do número de postos de trabalho, que reduziu o desemprego entre os trabalhadores do setor para apenas 2,4%, de acordo com o IBGE (o índice nacional de desemprego é de 5,3%).

Ao anunciar medidas fiscais para as empresas de construção que custarão R$ 3,4 bilhões ao governo, além da oferta de R$ 2 bilhões de financiamento mais barato para o setor, a presidente Dilma Rousseff disse que, com elas, as empresas poderão reduzir custos e contratar mão de obra. Acrescentou que o objetivo das medidas é também tornar essa indústria mais competitiva.

Em seus discursos recentes - sobretudo depois de conhecido o frustrante resultado do terceiro trimestre do ano, quando o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu apenas 0,6% e os investimentos diminuíram -, as principais autoridades do País, como a presidente da República e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, têm citado com frequência expressões como produtividade, competitividade e investimentos.

De fato, o setor produtivo precisa disso, para crescer com mais robustez e regularidade. Em resposta a essas necessidades, no entanto, o governo tem anunciado medidas pontuais em grande quantidade, beneficiando setores escolhidos por ele próprio e com resultados até agora decepcionantes, como mostram os dados do PIB. A construção é o 41.º setor da produção a receber alguma forma de estímulo do governo, que, desde o ano passado, tem procurado impulsionar a atividade econômica, mas de maneira desarticulada.

A construção civil (não estão incluídas as empresas de construção pesada) passará a recolher a contribuição previdenciária não mais sobre a folha de pagamentos, com a alíquota de 20%, como fazem outras empresas, mas sobre o faturamento, com alíquota de 2%. O governo calcula que, com a mudança, as empresas do setor, que recolhem hoje R$ 6,2 bilhões por ano, passarão a recolher R$ 3,35 bilhões, com o ganho de R$ 2,85 bilhões. Outras medidas, entre as quais mudanças nas regras do Regime Especial de Tributação para o setor, acrescentarão pouco mais de R$ 500 milhões aos benefícios tributários para a construção. A linha de financiamento de R$ 2 bilhões se destina a empresas com faturamento anual de até R$ 50 milhões.

Outros setores que, no início do ano, receberam estímulos do governo, na forma de desoneração da folha de pagamentos para dinamizar a produção e contratar trabalhadores, ainda não apresentam resultados dessas medidas. É possível que, em alguns casos, os resultados ainda demorem. Em outros, os benefícios podem ter evitado a deterioração da situação das empresas.

A construção é um setor importante, com receita bruta anual estimada em R$ 171 bilhões, emprega 7,7 milhões de trabalhadores, aos quais paga salários de R$ 31 bilhões, e responde por quase metade dos investimentos do País. Mas o comportamento recente do mercado imobiliário mostra que, ao contrário de alguns outros setores que foram beneficiados por medidas semelhantes - como os de vestuários e artigos do couro -, a construção civil está muito longe da crise.

O ritmo de atividade que levou o setor à euforia em 2010 reduziu-se de 2011 para cá. Mas os preços pedidos pelos imóveis continuam a subir, segundo o Índice FipeZAP que avalia o mercado de sete regiões metropolitanas (0,8% em outubro, 0,9% em novembro e 12,5% em 12 meses).

Mas, porém, contudo... - MELCHIADES FILHO

FOLHA DE SP - 10/12


BRASÍLIA - O governo derrubou os juros ao menor patamar da história, enfrentando o tabu da remuneração da poupança, mas a economia não reagiu como o esperado e crescerá apenas 1% neste ano -se tanto.

Dilma enquadrou os bancos públicos e forçou a queda do spread e tarifas em geral, mas viu o setor financeiro encolher e a inadimplência do consumidor bater recordes.

Lançou linhas de financiamento e desonerou a folha de pagamentos, mas não tirou a iniciativa privada da letargia -os investimentos caíram pelo quinto trimestre seguido.

O Planalto concluiu que o Estado não dará conta das reformas e ampliações e optou pela privatização dos principais aeroportos, mas cometeu equívocos nos editais que levaram a atrasos e à escolha de operadores sem a expertise desejada.

Abriu o setor portuário, desburocratizando a movimentação de cargas, mas alterou tantas regras que a judicialização hoje parece inevitável.

Constatou a alta margem de lucratividade dos concessionários e determinou a redução de 20% na tarifa de energia, mas errou nos cálculos e subestimou o impacto no orçamento dos governos estaduais.

A presidente anunciou novo regime automotivo, com estímulos tributários para o uso de tecnologia nacional, mas as montadoras vivem a primeira retração desde 2002.

Dilma levou a gestão ao centro do debate público, mas os tropeços consecutivos colocam em xeque sua reputação de boa gestora.

Agora releia cada parágrafo acima invertendo o lugar das orações separadas pela conjunção adversativa. "A economia não reagiu como o esperado, mas o governo derrubou os juros ao menor patamar..." e assim por diante. Neste caso, a ordem dos fatores altera o produto.

Por um prisma, vê-se que o governo federal, de modo contínuo e consistente, assenta terreno para a retomada da economia e abre janelas para novos negócios.

Barbas de molho na OMC - MARCELO DE PAIVA ABREU


O Estado de S.Paulo - 10/12


As regras para a escolha do sucessor de Pascal Lamy como diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) estabelecem que as candidaturas para sua sucessão devem ser apresentadas este mês. Ainda não está claro se o Brasil lançará candidato próprio ou se apenas tentará influir na eleição. Por muitas razões, seria recomendável que não lançasse candidato próprio.

Para recordar: Lamy foi escolhido em 2005 e reconduzido em 2009. Beneficiou-se da fragmentação dos votos dos países em desenvolvimento. No início do processo, apresentaram-se como candidatos Jaya Cuttaree, das Ilhas Maurício; Carlos Pérez del Castillo, do Uruguai; Pascal Lamy, da França; e Luiz Felipe de Seixas Corrêa, do Brasil. O Brasil não poderia apoiar Pérez del Castillo, em vista dos atritos na reunião ministerial de Cancún, em 2003, em torno da minuta de declaração ministerial preparada pelo diplomata uruguaio, então presidente do Conselho-Geral da OMC. O documento teria deixado de refletir adequadamente os interesses das economias em desenvolvimento e, em particular, dos membros do que seria no futuro o G-20 da OMC, com o Brasil, a Índia e a China em posição proeminente. Além da óbvia simpatia dos EUA e da União Europeia, Pérez contou com o apoio dos anfitriões mexicanos, que apoiavam os países desenvolvidos.

Pérez iniciou a campanha com grande antecipação e Seixas Corrêa acabou sendo excluído da lista de candidatos na primeira rodada. O Brasil foi colocado na posição penosa de ter de escolher, na rodada final, entre Lamy e Pérez, acabando por apoiar o candidato latino-americano. Pérez perdeu, apesar do favoritismo inicial, inclusive nas cotações da tradicional casa de apostas londrina Ladbrokes. Se o Itamaraty tivesse acompanhado as cotações da Ladbrokes, teria moderado suas ilusões quanto ao candidato brasileiro ser a segunda escolha de quase todos.

Embora o rodízio regional não seja tradição da OMC e do Gatt - desde 1947 coube a um representante de país em desenvolvimento apenas o meio mandato do tailandês Supachai Panitchpakdi (2002-2005) -, talvez agora seja, afinal, a vez de um candidato africano ou latino-americano. A vacância da Secretaria-Geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) pode ter relevância na sucessão da OMC.

Para lançar candidato brasileiro, o governo deveria levar em conta esse retrospecto desfavorável e avaliar se as arestas do passado estariam superadas. Não se acredita que as memórias uruguaias ou mexicanas sejam particularmente curtas, embora, por razões distintas, não sejam prováveis candidaturas exitosas dos dois países. No caso do México, por Angel Gurria ocupar a Secretaria-Geral da OCDE, e no do Uruguai, pela peculiaridade da situação que ensejou a postulação de Pérez. O Brasil, por sua vez, ocupa a Secretaria-Geral da FAO desde o início de 2012. Devem ser também lembradas novas arestas latino-americanas criadas na esteira dos atritos no FMI, que levaram à transferência da Colômbia da cadeira brasileira para a cadeira do México.

Há outros obstáculos a considerar. O Brasil disporia, em tese, de bom candidato, o embaixador Roberto Azevedo, seu representante na OMC, com ampla experiência em diversos episódios relacionados à solução de controvérsias na própria OMC, em particular os emblemáticos panels sobre açúcar e algodão com resultados adversos para a União Europeia e os EUA. Também contribuiu para a construção da boa imagem do Brasil como país comprometido com o sistema comercial multilateral a participação muito positiva na malograda reunião ministerial da OMC de julho de 2008, quando, a despeito das posições obstrucionistas da China e da Índia, houve séria tentativa de romper o impasse e salvar a Rodada Doha.

Desde então, essa imagem positiva do Brasil na OMC tem sido erodida espetacularmente. Em parte, pelo aumento de tarifas, a reboque da Argentina, em mais um episódio que demonstra que, no Mercosul, é o rabo que abana o cachorro. Não se discute a legalidade de tais aumentos no âmbito da OMC, pois resultam em tarifas dentro dos limites consolidados na Rodada Uruguai. Mas não há dúvida de que tais aumentos violam compromissos - que talvez não devessem ter sido assumidos - de congelamento da proteção acordados no âmbito do G-20 financeiro.

Muito mais sérias para comprometer a imagem multilateral do Brasil são as medidas ilegais que, de forma muito rudimentar, aumentam significativamente a proteção ao setor automotivo, por meio de tratamento discriminatório das importações na imposição do IPI, baseado em critérios de conteúdo local.

No plano das ideias, a reputação brasileira também tem sofrido, e poderá sofrer bem mais, com a insistência na proposta de incorporar às tradicionais medidas de defesa comercial provisões relativas a flutuações cambiais. Contas sumárias indicam que tarifas compensatórias de flutuações cambiais desde 1998 teriam oscilado entre 2% ad valorem em 2001 e 233% em 2011!

O governo brasileiro deveria botar as barbas de molho, abrir mão de candidatos nacionais e tentar influir nas escolhas seja na OMC, seja na Unctad. Mas, com base no retrospecto recente, talvez seja irrealista esperar bom senso do governo.

Justiça prolixa - ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA

O ESTADÃO - 10/12


"Escrever é cortar palavras"

Carlos Drummond de Andrade


No discurso de sua posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Joaquim Barbosa defendeu um Poder Judiciário "sem firulas, sem floreios, sem rapapés" e apontou o juiz como produto do seu meio e do seu tempo: "Nada mais ultrapassado e indesejável que aquele modelo de juiz isolado, fechado, como se estivesse encerrado numa torre de marfim". A oportuna alocução pode também ser relacionada ao que denomino "cultura da prolixidade", resistente obstáculo à prestação jurisdicional ágil em nosso país.

Prolixo é "muito longo ou difuso, superabundante, excessivo, demasiado" (Dicionário Aurélio, 2.ª edição, página 1.400). Na oratória ou na escrita, atribui-se tal adjetivação a quem fala ou escreve em demasia e, muitas vezes, sem nexo.

A "cultura da prolixidade" apresenta-se com maior proeminência nos meios jurídicos do que em outras atividades. Criou-se entre os operadores do Direito o mito de que escrever bem é escrever exaustivamente.

A decisão judicial sintética e objetiva poderá ser objeto de recurso à instância superior, sob alegação de nulidade por "falta de fundamentação". Felizmente, os tribunais brasileiros entendem que boa sentença não é necessariamente sentença longa ou difusamente redigida. Boa sentença é sentença justa: "A fundamentação sucinta, que exponha os motivos que ensejaram a conclusão alcançada, não inquina a decisão de nulidade, ao contrário do que sucede com a decisão desmotivada" (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n.º 316.490-RJ, ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diário de Justiça 26/9/2005).

Sobretudo após os progressos da informática, os textos processuais tornaram-se abundantes. Com as facilidades tecnológicas, são transcritas exuberantes citações de doutrina e jurisprudência. A leitura de volumosas peças processuais torna-se uma maçada contraproducente para juízes, promotores e advogados das partes em litígio.

Em outras atividades, concisão e clareza já são dogmas. Aos jornalistas, exemplificativamente, prescreve-se: "Seja claro, preciso, direto, objetivo e conciso. Use frases curtas e evite intercalações excessivas ou ordens inversas desnecessárias. Não é justo exigir que o leitor faça complicados exercícios mentais para compreender a matéria" (Manual de Redação e Estilo, jornal O Estado de S. Paulo, 1990, página 16).

Para o ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça, devem os julgadores decidir de maneira justa, sem preocupações com ornamentos literários. O juiz não é profissional incumbido de tecer brilhantes considerações literárias, doutrinárias ou eruditas: "Pode ele ter também conhecimento que o alce à condição de doutrinador, mas, para isso, em princípio, deverá procurar outros campos de atividade, que não o jurisdicional. Fará concursos, defenderá teses, exercerá atividade docente permitida. No processo, entretanto, não haverá lugar para esse lado da atividade" (O juiz e o serviço judiciário, 1988).

Portanto, a cultura da prolixidade é mais um fator de morosidade na marcha processual. Ao economizar palavras, os operadores do Direito propiciam um processo mais sintético e célere.

Mauro Cappelletti e Bryanth Garth (Acesso à Justiça, ed. brasileira, 1988, páginas 22 a 24) identificaram barreiras a ser superadas para os indivíduos, sobretudo os mais carentes, terem efetivo acesso à justiça:

Necessidade de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível;

aquisição de conhecimentos a respeito da maneira de ajuizar uma demanda;

e disposição psicológica das pessoas para recorrer a processos judiciais.

As pessoas, especialmente nas classes menos favorecidas, receiam litigar: "Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho. (...) Nosso Direito é frequentemente complicado. (...) Se a lei é mais compreensível, ela se torna mais acessível às pessoas comuns. No contexto do movimento de acesso à justiça, a simplificação também diz respeito à tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam as exigências para a utilização de determinado remédio jurídico".

Jürgen Habermas, filósofo alemão, elaborou teoria sobre a sociedade democrática contemporânea, a qual se deve pautar pela "ação discursiva". Em outras palavras, o Estado, por seus órgãos de poder, deve dialogar de forma compreensível e transparente com a sociedade civil: "A comunicação pública perde vitalidade discursiva quando lhe falta informação fundamentada ou discussão vivaz. (...) Vivemos em sociedades pluralistas. O processo de decisão democrático só pode ultrapassar as cisões profundas entre visões de mundo opostas se houver algum vínculo legitimador aos olhos de todos os cidadãos. O processo de decisão deve conjugar inclusão (isto é, a participação universal em pé de igualdade) e condução discursiva do conflito de opiniões" (O valor da notícia, versão traduzida, 2007).

Deveras oportuna, pois, a reflexão do ministro Joaquim Barbosa em sua investidura na presidência da Suprema Corte. Os magistrados brasileiros devem estar imbuídos da urgência de lhe conferir realidade. Já assinalei no livro Aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Editora RT, 2003): "A magistratura deverá apressar-se, porque o Brasil clama por mudanças. Não podemos mais viver com velhas estruturas. Não podemos mais estar presos a soluções que nada têm a ver com o povo. Como na canção de Milton Nascimento, a Justiça tem de ir aonde o povo está".

Democracias de exceção - RENATO JANINE RIBEIRO


Valor Econômico - 10/12


Nem o pior inimigo de Israel deveria negar que esse país é uma democracia, por longo tempo a única no Oriente Médio, e ainda hoje a mais antiga na região. Nem o melhor amigo de Israel deveria negar que seus governos têm enorme responsabilidade pela infindável crise da região, ainda hoje a maior ameaça à paz mundial, além de fonte de sofrimento para milhões de pessoas.

Esse é o paradoxo: como uma democracia, o melhor regime que existe (ou o pior, tirando todos os outros, como disse Churchill), pode gerar problemas dessa monta? É que Israel é uma democracia de exceção, como por sinal os Estados Unidos, entendendo por esse termo um regime democrático diferente de praticamente todos os outros.

As colônias inglesas da América do Norte nascem, no século XVII, com duas grandes características: são democráticas, exercem o autogoverno mais até do que a Inglaterra, de onde seus pioneiros vêm - e escravizam negros. Essa contradição entre liberdade e anti-liberdade marcará os Estados Unidos desde o início. Levará à guerra civil de 1861 e, um século depois, à quase-guerra civil da década de 1960, que resulta no reconhecimento de direitos humanos aos negros. Mas tal situação é única no mundo moderno. Em todos os outros países que se tornaram democráticos depois deles, a democracia veio junto com os direitos humanos. À medida que uma nação se democratizava, ela abolia a escravatura. Assim foi na América do Sul. A Revolução Francesa constitui o caso mais emblemático, porque a escravidão é abolida em 1794, restabelecida quando Napoleão institui o regime autoritário, para ser finalmente extinta graças à Revolução de 1848. Com frequência, a abolição era um prelúdio à democratização. Democracia com escravidão é um absurdo. Só nos Estados Unidos um sistema pujante - e o mais pujante do mundo, à época - de autogoverno conviveu com a escravidão e, depois, com um apartheid assustador.

Democracia não convive com discriminação

Essa situação lembra a democracia antiga: nas cidades-Estado gregas que eram democráticas, bem como na Roma republicana, havia escravos - e também eram discriminados os estrangeiros e seus descendentes. Na modernidade, porém, não é assim. A escravidão e também o preconceito são hoje considerados incompatíveis com a democracia. Aliás, vejam outro paradoxo: Eleanor Roosevelt, viúva de Franklin Roosevelt, presidiu a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, como representante de seu país na ONU; mas, nas duas décadas que se seguiram, os Estados Unidos foram um dos países que mais violaram a declaração, tratando pessimamente, no Sul, os negros. Com muita luta, a situação dos afro-americanos melhorou extraordinariamente, e hoje os Estados Unidos esquecem esse passado horrível, quando defendem os direitos humanos no resto do mundo. Mas, em suma, a "instituição peculiar" do Sul americano convivia, ainda que mal, com a democracia.

O que tem Israel a ver com isso? É também um Estado que pratica, junto com uma inegável democracia, uma relação ao menos tensa, com frequência discriminatória, em face dos seus "outros". Seria um absurdo chamá-los de escravos - e não o faço - mas acabam sendo o que os americanos, numa expressão curiosa, chamam de "non-citizens". No restante do mundo, inclusive no Brasil, cidadão é o titular de direitos no país em que vive, mas isso não depende apenas da nacionalidade. Estrangeiros têm quase todos os direitos do nativo. Não usamos, para o estrangeiro, esse termo esquisito: "não cidadão". Ora, é nessa situação que vivem os árabes do quase-protetorado palestino, e também parte dos que moram em Israel propriamente dito. É lógico que haverá sutilezas. Não tenho dúvidas de que é bem melhor ser árabe em Israel do que judeu num país árabe. Mas aqui está o problema: Israel nasce como democracia, só que nasce em conflito não apenas com o inimigo externo, mas com uma forte minoria árabe.

Pode a democracia servir só para uma parte da sociedade - os brancos, nos Estados Unidos pré-década de 1960, ou os judeus, na Israel de hoje? Pode um regime que reconhece a igualdade de todos no voto e a liberdade de escolher seu destino conciliar-se com a exclusão de parte substancial da sociedade? Não acredito. A discriminação corrói a sociedade. Ela corrompe os laços sociais. Nos Estados Unidos, foram necessárias décadas de luta para eliminar o que ela tinha de pior. Na década de 1960, o país esteve à beira de uma nova guerra civil. Em Israel, vê-se a erosão política na decadência das equipes de governo, com o avanço de políticos demagogos. A cadeira de Ben Gurion hoje é ocupada por Netanyahu... Um dia, isso terá de mudar. Dependerá essencialmente dos israelenses. Outros - os palestinos, os cidadãos dos países árabes e a opinião internacional - podem e devem ajudar. A pressão internacional certamente pode contribuir. Mas a decisão está na mão dos cidadãos de Israel. É uma questão grave que entre 1956, com o ataque a Suez, e 1991, com o fim da União Soviética, colocou no horizonte a possibilidade de uma guerra mundial. Hoje esta diminuiu, mas não foi por mérito dos atores regionais e sim graças à geopolítica global.

Contudo, reitero que nada, do que digo, justifica o antissemitismo ou qualquer tentativa de destruir o Estado judeu. Ele existe, faz parte do panorama, tem que melhorar. Como os Estados árabes, por sinal, agora que a democracia desponta na Tunísia e no Egito. Aliás, se cobro aqui mais de Israel é justamente porque esse país tem quase 70 anos de democracia, o que é uma qualidade, mas que o duplo padrão de conduta coloca fortemente em xeque.

Seis passos para felicidade - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 10/12


Esperamos, com a boca escancarada e cheia de dentes, a morte chegar. Mas bem saudáveis


Recentemente soube que alguns países querem endurecer ainda mais as leis antifumo: não pode fumar no carro, para fumar tem que ter uma carteirinha, quem nasceu a partir do ano 2000 não pode comprar tabaco. Esperamos, com a boca escancarada e cheia de dentes, a morte chegar. Mas, bem saudáveis. Hoje em dia, Raul Seixas vomitaria na plateia.

A "qualidade de vida" é uma das novas formas de puritanismo, sendo o feminismo uma outra (o feminismo é a nova repressão da sexualidade).

A felicidade e o bem-estar são as chaves da vida contemporânea. Vale tudo para ser feliz.

Qualquer discussão moral é pura afetação ética. Uma época dominada pela felicidade é uma época boba. Mas não estou sozinho nesta sensação: Aldous Huxley, escritor inglês, pensava a mesma coisa.

Quando olhamos para a história da ética, vemos que o utilitarismo inglês é o modo dominante da vida contemporânea. Para mim, pessoa um tanto desconfiada de quem passa a vida querendo ser feliz, isso tudo parece "limpinho" como um hospital. Jeremy Bentham (1748-1832), pai do utilitarismo, chegou mesmo a pensar num cálculo utilitário para otimizar a felicidade.

O principio utilitário afirma que o homem foge da dor e busca o prazer (o bem-estar). Logo, devemos fazer uma sociedade que vise produzir em larga escala a felicidade, o prazer e o bem-estar. E chegamos ao nosso mundo de gente que sonha em ficar com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, mas com saúde. A vida e a sociedade dominadas pela busca do bem-estar parecem tornar o homem menos homem.

O cálculo utilitário tem seis passos: 1. Intensidade: o prazer dever ser o mais intenso possível. 2. Duração: o prazer deve durar o máximo de tempo possível. 3. Certeza: cuidado para não produzir um prazer que não é o que você deseja com aquele ato. 4. "Remoticidade" (remoteness): o prazer deve causar efeito imediato ou o mais rápido possível. 5. Fecundidade: o prazer A deve gerar o prazer A1, o A2 e assim por diante. 6. Pureza: cuidado para não gerar desprazer ao invés de prazer.

Será que você já não põe isso mais ou menos em prática do seu dia a dia? Mas, dirão alguns, Bentham era um controlador, porque ele sempre pensava em termos de um centro (expert) controlando a periferia (as pessoas comuns).

Bentham ficará conhecido como o utilitarista antidemocrático, sendo John Stuart Mill (1806-1873) o utilitarista democrático. De acordo com este, maior representante da segunda geração de utilitaristas, a sociedade (os indivíduos) deve livremente buscar esse prazer.

Mas o que percebemos é que, ainda que Mill falasse muito em liberdade e contra o abuso de poder (cara simpático para a moçada que gosta de falar coisa bonitinha, tipo Obama), não adianta acusar o "centro do poder" de controlador, porque são as próprias pessoas que querem os seis passos para a felicidade de Bentham.

Isso cria o efeito de esmagamento típico do puritanismo de massa em que vivemos: saúde e felicidade. Fizéssemos um plebiscito, quase todo mundo escolheria uma gaiola feliz.

"Comunidade, identidade, estabilidade." O bem é sempre para todos, a identidade é o que nos une, a vida deve ser estável. Slogan que venderia bem no mundo para o qual seguimos a passos largos com esse utilitarismo social em que vivemos, com um controle cada vez maior dos gestos, do pensamento e dos hábitos em nome da "comunidade, identidade, estabilidade".

Esse era o slogan do mundo perfeito que Huxley criticou em seu "Admirável Mundo Novo" (1932), mas podia ser o de qualquer um dos proponentes bonitinhos do controle político da vida em nome do bem.

Louis Pojman, professor de filosofia da Academia Militar de West Point (EUA), chama isso de "tragédia da liberdade".

Toda liberdade pressupõe riscos, e toda sociedade pautada pela felicidade social não suporta a liberdade. Estamos caminhando a passos largos para uma dessas.

Toda a cultura intelectual está infestada de amor à felicidade social e de ódio ao indivíduo. O pesadelo totalitário não passou. Agora ele vem sob o disfarce da opinião pública e da vontade coletiva.