FOLHA DE SP - 07/08
O humanismo moderno é idealismo, o antigo é realidade. Define assim Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em seu monumental "História da Literatura Ocidental" (ed.LeYa/Livraria Cultura), a diferença entre o que seria o humanismo antigo e o moderno. E qual a importância disso, para além do "mero" repertório clássico?
Antes de tudo, o fato de que, em vez de a crítica literária ficar discutindo a relação entre literatura, banheiros e gênero, ou aquela entre literatura, classe e raça, ela deveria estudar mais gente como Otto Maria Carpeaux.
Sem nunca atuar de fato na academia e mantendo-se "fiel" à mídia impressa, ele já demonstrava que, muitas vezes, é o mundo "comum" que acolhe melhor o pensamento mais relevante.
A diferença que Carpeaux estabelece pode nos ajudar a entender o lugar que ocupam uma verdadeira empatia intelectual para com o sofrimento humano e suas produções culturais (entendido, grosso modo, como humanismo). O que é ser um humanista?
Do ponto de vista recente, parecem-me existir dois tipos básicos de humanismo. Por "recente", quero dizer o "moderno" ao qual se refere Carpeaux. Seguindo a intuição do grande crítico, eu arriscaria dizer que há um primeiro, mais associado à vocação realizadora burguesa, e um segundo, mais ligado ao que costumamos classificar de "esquerda".
Ambos idealistas, ainda que aparentemente opostos -só aparentemente, em parte.
A semelhança dos dois está exatamente na natureza idealista de ambos. "Idealista" aqui significa, em primeiro lugar, crer numa ideia de humano que não existe; em segundo lugar, imaginar que esse humano tem as rédeas do destino em suas mãos, seja pela gestão técnica dos processos que caracterizam a vida (engenharia, ciência), como no humanismo burguês, seja pela crença na capacidade política e social de criar "um novo humano", como no humanismo típico da "esquerda progressista".
O idealismo de ambos é traído pela vocação mútua à crença na perfectibilidade do homem.
O humanismo moderno, assim, revela-se antes mais como um "projeto de homem" do que propriamente como um olhar sobre o modo de a realidade humana se produzir.
O humanismo moderno é idealista, o antigo é realista. Eis a diferença contemplada por Carpeaux.
E onde Carpeaux encontra esse humanismo antigo, vocacionado a contemplar a realidade do humano? Entre outros lugares, na tragédia ática, conhecida como tragédia grega ateniense, que floresceu entre os séculos 6 a.C. e 5 a.C.. Entre os dramaturgos, Ésquilo (525 a.C. - 456 a.C.), Sófocles (496 a.C. - 406 a.C.) e Eurípedes (480 a.C. - 406 a.C.).
No "diálogo" entre esses três fundadores do teatro ocidental, Carpeaux encontra a rota desse humanismo, de certa forma, superior ao moderno, na medida em que olha para a realidade a partir do ser humano tal como ele é, e não tal como achamos que ele deveria ser um dia.
A Atenas dessa época é uma Atenas "democrática", em transformação. Uma Atenas em agonia, imersa numa mudança de costumes, grosso modo, num conflito entre um mundo da tradição, dos deuses, e o mundo da pólis, ou da lei humana -agonia essa tão bem representada pela personagem Antígona de Sófocles.
Ésquilo coloca em ato o combate entre o destino esmagador traçado pelo deuses e o desejo humano de libertação desse destino ("Prometeu Acorrentado").
Sófocles desenha a beleza moral de homens e mulheres que são esmagados por esse destino, mas que tombam com dignidade ("Édipo Rei" e "Antígona").
Por fim, Eurípedes, "tragikotatos" ("o maior de todos os poetas") segundo Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), encontra diante de si o indivíduo sozinho, que enfrenta deuses, polis, família, emoções e obrigações sociais e perece no combate contra todos eles ("Medeia").
A luta contra o destino, mediante o avanço da técnica, e o desastre implícito nesse avanço, a derrota diante do que é sempre maior do que nós (a cidade, a religião, a lei, as obrigações e mentiras sociais), a infinita fúria presente na vida dos afetos, impermeáveis à razão.
Enfim, o que existe exatamente de novo embaixo do sol?
FOLHA DE SP - 07/08
Foi realizada há poucos dias a maior conferência "hacker" do planeta, a Defcon, que acontece anualmente em Las Vegas, nos EUA.
Nesta edição, a novidade foi que hackers investigaram pela primeira vez a segurança das urnas eletrônicas. A conclusão não é animadora. Todos os modelos testados, invariavelmente, foram facilmente invadidos em menos de duas horas.
Esse experimento acende uma luz amarela para o Brasil, grande usuário de urnas digitais, especialmente em face das eleições vindouras.
A Defcon acontece desde 1993. Neste ano, atraiu mais de 20 mil pessoas, incluindo profissionais de segurança, advogados, jornalistas, agentes governamentais e, obviamente, hackers.
A decisão de se debruçar sobre as urnas eletrônicas decorre de um contexto em que ciberataques internacionais estão se tornando cada vez mais comuns nos processos eleitorais das democracias do Ocidente. Nesse cenário, qualquer sistema digital pode ser vítima de manipulação, e as urnas não são exceção.
Mais de 30 máquinas foram testadas, de várias marcas e modelos, incluindo Winvote, Diebold (que fabrica as urnas brasileiras), Sequoia ou Accuvote.
Algumas foram hackeadas sem sequer a necessidade de contato físico, utilizando-se apenas de uma conexão wi-fi insegura. Outras foram reconfiguradas por meio de portas USB. Houve casos de aparelhos com sistema operacional desatualizado, cheio de buracos, invadidos facilmente. O fato é que todas as urnas testadas sucumbiram.
Nas palavras de Jeff Moss, especialista em segurança da internet e organizador da conferência, o objetivo do experimento foi o de "chamar a atenção e encontrar, nós mesmos, quais são os problemas das urnas. Cansei de ler informações erradas sobre a segurança dos sistemas de votação".
Um problema é que a manipulação de uma urna digital pode não deixar nenhum tipo de rastro, sendo imperceptível tanto para o eleitor quanto para funcionários da justiça eleitoral.
Uma máquina adulterada pode funcionar de forma aparentemente normal, inclusive confirmando na tela os candidatos selecionados pelo eleitor. No entanto, no pano de fundo, o voto vai para outro candidato, sem nenhum registro da alteração.
Há medidas para se evitar esse tipo de situação. Por exemplo, permitir que as urnas brasileiras possam ser amplamente testadas pela comunidade científica do país, em busca de vulnerabilidades. Quanto mais gente testar e apontar falhas em uma máquina, mais segura ela será. Outra medida é fornecer mais informações públicas sobre as urnas. No site do TSE, o único documento sobre segurança é um gráfico que não serve para qualquer tipo de análise.
Nenhuma dessas soluções está em prática hoje no Brasil. Com isso, ou acreditamos que as urnas brasileiras são máquinas singulares, muito superiores àquelas utilizadas em outros lugares do planeta, ou constatamos que elas são computadores como quaisquer outros, que se beneficiariam e muito de processos de transparência e auditabilidade.
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JÁ ERA - Tirar fotos do casamento
JÁ É - Filmar o casamento com um drone
JÁ VEM - Gravar o casamento em realidade virtual
FOLHA DE SP - 07/08
Se você ainda duvida da insaciabilidade do parasitismo estatal, avalie a proposta da reforma da Previdência em tramitação e pense novamente. Em um contexto de continuada irresponsabilidade fiscal, corrupção sistêmica e privilégios injustificáveis, o bom senso exigiria que o governo iniciasse a mudança com cortes na própria gordura, que por sinal não é pouca.
O que se nota, no entanto, é mais uma tentativa de impor o ônus ao pequeno: o cidadão comum.
Que a reforma é necessária, não há que se debater; com um deficit previdenciário total de cerca de R$ 315 bilhões em 2016 -incluindo governo federal e Estados-, a urgência é justificada. Isso não significa, no entanto, que se deva aceitar qualquer alteração.
Deve-se levar em conta, como ponto de partida, as distorções do atual regime previdenciário.
No Brasil há dois regimes de Previdência: o Regime Geral, válido para os trabalhadores do setor privado e gerido pelo INSS, e o Regime Próprio, para os funcionários públicos, gerido pelo Ministério da Fazenda.
O Geral, que abrange mais de 29 milhões de aposentados e pensionistas (com aposentadoria média mensal de R$ 1.200), acumulou deficit de R$ 150 bilhões no ano passado. Já o Próprio, feito para apenas 3 milhões de funcionários públicos civis e militares, somou um rombo maior, de R$ 164 bilhões.
Nesta classe estão os cidadãos com maior aposentadoria mensal média: R$ 7.500 para o funcionário público civil, R$ 9.500 para o militar, R$ 18.000 para servidores do Ministério Público Federal, R$ 25.700 para o Judiciário e R$ 28.500 para o Legislativo.
A existência de dois regimes revela uma realidade execrável: a existência de duas classes de brasileiros, com direitos diferentes. O cidadão ligado ao setor privado tem o "direito" de ser demitido caso não seja competente e o dever de dar parte do seu salário para sustentar a aposentadoria do cidadão ligado ao setor público.
Este, por sua vez, tem o "direito" de usufruir da renda do trabalho do cidadão de segunda classe, na forma de uma aposentadoria em média quatro vezes maior, e outros privilégios como benefício com salário integral. De um lado, há os que choram; de outro, os que riem.
Como se vê, a Previdência é um grande programa de distribuição de renda às avessas, do pobre para o rico, e seu problema fundamental está no setor público.
Você acha isso justo?
Ainda é tempo de fazer a coisa certa. A reforma deveria estabelecer, além de cortes nos privilégios ligados ao Estado, a unificação dos regimes dos setores privado e público, com o estabelecimento de um teto único. Deve buscar, ainda, proteger a renda do trabalhador, impedindo que recursos seus (como os do FAT, por exemplo) sejam direcionados aos grandes empresários via BNDES.
O Brasil deve ter compromisso com a urgência. Não seremos uma nação desenvolvida sem endurecer desde já as causas fundamentais de nossos problemas sociais e econômicos.
Um país que decrete classes diferentes de cidadãos fere a moral e herda consequências fiscais insustentáveis, como o sistema de Previdência demonstra.
A reforma como está não é nada além de uma gambiarra oportunista para manter a penitência social.
HELIO BELTRÃO, engenheiro com MBA em finanças pela Universidade Columbia (EUA), é presidente do Instituto Mises Brasil
O Globo - 07/08
Prejudica as pessoas de renda mais baixa não se fazer o devido combate à inflação
Não há ajuste indolor na situação de descalabro a que chegou a economia brasileira com o descontrole das contas públicas decorrente da política voluntarista de Dilma Rousseff de forçar o crescimento do PIB com mais gastos do Tesouro. Temeridade amplificada em 2013 e 2014, para embalar a campanha à reeleição da presidente, inclusive com a aplicação ao extremo de técnicas de contabilidade criativa para maquiar as catastróficas estatísticas das públicas.
Num primeiro momento, deu certo para Dilma, que se reelegeu, mas a bomba começou a explodir antes da posse, em 1º de janeiro de 2015, já com um aumento dos juros básicos pelo Banco Central presidido por Alexandre Tombini, subjugado pela presidente. O estelionato eleitoral cobraria um alto preço da população. Claro que mais elevado para os mais pobres e menos instruídos.
As manipulações retardaram que se pudesse constatar o tamanho dos estragos do desequilíbrio fiscal — e isso garantiu a reeleição, uma vitória de fôlego curto —, que terminariam configurando crime de “responsabilidade”, passível de ser punido com a perda de mandato. E aconteceu.
Com outra equipe econômica, empossada com o novo presidente, Michel Temer, o ajuste que era necessário começou a ser feito. É fantasioso imaginar que as mudanças são feitas contra as faixas sociais mais baixas, porque é sobre elas que recai a maior parte do peso da crise. No caso, provocada por políticas executadas em nome dos pobres — que ironia.
A inflação, incendiada pelo governo Dilma Rousseff, voltou aos dois dígitos. E quem mais padece são famílias de renda mais baixa, entre as quais é relativamente maior o peso dos alimentos no orçamento doméstico, bens de difícil substituição. Também não contam com poupança aplicada no mercado financeiro que possa compensar a corrosão do poder aquisitivo pela inflação.
Qualquer programa, portanto, de estabilização econômica é em favor das classes menos favorecidas. Basta acompanhar o mais recente noticiário econômico, em que se destacam ligeira recuperação do mercado de trabalho — mesmo que seja por empregos informais — e algum crescimento setorial. Nada que estimule previsões muito otimistas para o curto prazo, mas são os primeiros e múltiplos resultados positivos internos, pelo menos desde 2014, exceto a agricultura, já em bom momento há algum tempo.
Categorias do funcionalismo reclamam do ajuste, mas é preciso entender que no centro da crise está um enorme desequilíbrio das contas: o déficit público nominal (inclui juros da dívida) bateu nos 10% do PIB, pouco mais de três vezes o limite praticado na área do euro da União Europeia. E ainda continua elevado. O déficit primário, sem a conta de juros, ainda está pouco acima dos 2% do PIB.
É, então, por uma questão absoluta de racionalidade que gastos com salários e outros custeios da enorme máquina do Estado precisam ser contidos.
ESTADÃO - 07/08
O errático comportamento do PSDB ao longo da grave crise política, econômica e moral que atinge o País vai muito além de sua anedótica indecisão
O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) surgiu em julho de 1988 com a pretensão de representar ideologicamente os anseios da classe média, afastando-se da demagogia de partidos trabalhistas como PT e PDT e do fisiologismo explícito do PMDB, de cuja costela foi criado. Para isso, contava com nomes de peso da política nacional, capazes de oferecer compromissos firmes com a modernização do País, a começar pela novidade de um partido que se propunha a ser uma agremiação de massa a partir de um ideário homogêneo, distinguindo-se claramente do cipoal de siglas que nada representam. Isto é, o eleitor do PSDB saberia exatamente que projeto estaria elegendo quando votasse em algum candidato do partido. Isso, o eleitor já não sabe mais.
O errático comportamento do PSDB ao longo da grave crise política, econômica e moral que atinge o País vai muito além de sua anedótica indecisão. O fato de que 21 dos 47 deputados do partido votaram a favor da admissibilidade da denúncia contra o presidente Michel Temer na Câmara, embora formalmente os tucanos sejam parte do governo, indica a profundidade da confusão que reina no PSDB. E é evidente que essa balbúrdia denota falta de rumo, deixando confusos os eleitores que pensavam ser representados pelos tucanos.
Partidos surgem e desaparecem, e não será surpresa se o PSDB se desfizer, consumido por suas dúvidas e hesitações acerca de como se comportar diante da crise, ou melhor, para superar a crise. Quando duas dezenas de deputados resolvem votar contra o presidente que seu partido apoia, colocando em risco a estabilidade do governo que esse mesmo partido integra desde o primeiro momento, é o caso de perguntar se esses parlamentares estão realmente interessados na resolução da crise ou se simplesmente estão respondendo a um cálculo eleitoreiro.
Alinhando-se aos irresponsáveis que desejam implodir o governo, a pretexto de não parecerem transigentes com a corrupção no País, esses tucanos na verdade renegam o espírito fundador de seu partido, comprometido desde sempre com o reformismo, com a responsabilidade fiscal e com a estabilidade econômica – as bandeiras do atual governo.
Assim, o PSDB parece ter se desfigurado a ponto de não mais se diferenciar dos partidos que nada mais são do que um ajuntamento de interesses particulares, tendo como horizonte apenas a eleição seguinte, e não o futuro do País. Distancia-se de seu eleitor tradicional, decepcionado com sua falta de rumo, passando a disputar votos entre aqueles que se encantam com discursos demagógicos – clientela tradicional dos partidos fisiológicos. Aquele PSDB moderno de três décadas atrás é hoje, diria Drummond, apenas uma fotografia na parede.
O problema disso, para o País, é que a eleição presidencial do ano que vem, conforme se afigura hoje, será disputada por aventureiros de diversos matizes. Por essa razão, mais do que nunca, partidos fortes, com alguma ossatura programática reconhecível, são imprescindíveis, para não permitir que o governo venha a ser conduzido por um populista que, sem nenhum tipo de compromisso político responsável, descarrile o País de vez. O PSDB, pelo seu passado, deveria ser um desses partidos, mas está a cada dia mais difícil reconhecer-lhe a tal ossatura, mais parecida com uma gelatinosa cartilagem. A algaravia tucana neste momento torna impossível identificar de que lado o partido realmente está.
O Brasil que trabalha e produz gostaria que a crise se resolvesse o mais rápido possível – e isso significa, claro está, que o governo de Michel Temer precisa de apoio sólido no Congresso para conduzir as reformas de que o País tanto necessita. Além disso, urge que líderes políticos responsáveis se esforcem para acabar com o clima de apocalipse instalado no País, serenando ânimos e oferecendo uma perspectiva realista para os próximos tempos, que serão igualmente duros. Tudo o que o Brasil não precisa é de mais confusão – e o PSDB fará sua parte se se ativer ao seu manifesto de fundação, no qual o partido convoca os brasileiros a “lutar pelas mudanças com energia redobrada, através da via democrática e não do populismo personalista”.