O governo pretende criar um órgão para supervisionar as atividades das agências reguladoras e demais órgãos reguladores como a CVM e o Ibama. O governo pode criar um órgão para supervisionar as atividades das agências reguladoras e também dos demais órgãos do poder Executivo que exerçam função reguladora, tais como a Comissão de Valores Mobiliários e o Ibama, noticiou o Valor na semana passada. A criação do Organismo de Supervisão Regulatória (OSR), segundo fonte do governo ouvida pelo jornal, "seria um instrumento de suporte analítico (...) para avaliar os custos e benefícios das normas e seus impactos sociais, para evitar decisões exageradas", ação que não implicaria em os atuais órgãos reguladores, sobretudo a agências, "perderem poder". Há uma evidente contradição na fórmula enunciada, pois não há supervisão sem supervisionado, e essa função pressupõe, necessariamente, uma relação de subordinação, no caso entre a OSR e os órgãos postos sob sua jurisdição. E, se o objetivo é evitar decisões "exageradas", como atuará a OSR se ela não puder prevenir ou rever tais decisões? O ponto a examinar não é, porém, a questão formal, mas o contexto em que a OSR atuará, se vier a ser criada. O atual governo sempre se manifestou contrário à existência de órgãos reguladores dotados de independência hierárquica e decisória em relação ao Executivo, podendo as suas "decisões e medidas" serem revistas apenas pelo Judiciário. Esse regime regulatório, criado nos Estados Unidos no século XIX, foi proposto para ser adotado no Brasil na década de 20 do século passado, o que, todavia só viria ocorrer 70 anos depois, em um quadro mundial de abertura política, com a derrocada das economias autoritárias. A regulação técnica independente é uma forma eficiente de descentralização administrativa e, executada com estrita obediência à Lei e de forma transparente, possibilita um maior controle da atividade econômica por parte da sociedade e confere aos consumidores e investidores maior segurança jurídica. Esse regime, contudo, reduz a influência direta do Executivo na economia; sem poder ditar às agências as decisões e medidas que devam tomar, a intervenção do governo no processo regulatório só pode ocorrer legitimamente quando da indicação dos titulares desses órgãos, ou mediante alteração da lei que a eles cabe aplicar. Nenhum desses meios permite a ação imediata, que este governo supõe deva ser sua prerrogativa ordinária. Essa posição baseia-se no entendimento de que é o Executivo o intérprete maior do interesse público, e assim superiormente habilitado, sobre o Congresso e o Judiciário, a "avaliar os custos e benefícios sociais" da ação regulatória. O atual governo vem tentando inscrever esse entendimento no regime regulatório vigente, e a discussão sobre a criação da OSR soma-se a um projeto de lei em curso no Congresso, de reforma nessa linha das agências reguladoras. Dois fatores, ditados pela experiência histórica, contrapõem-se a esse propósito do governo: 1) a centralização administrativa a subordinar ao governo órgãos de intervenção do Estado na economia mostrou-se possível apenas em regimes fechados; e 2) a provada ineficiência desse regime buscado pelo atual governo. Órgãos reguladores são, devem ser, eminentemente técnicos; suas decisões baseadas apenas na lei que aplicam, e essa deve traduzir, em sua forma, o interesse público a ser preservado. Por visarem esse objetivo, a atuação desses órgãos não pode ser influenciada por interesses político-partidários - que são naturais na ação governamental. Ou seja, todos os órgãos de intervenção do Estado na economia devem agir de forma transparente, abertas ao público as reuniões de seus conselhos diretores, pública a agenda de seus titulares, seus números divulgados etc. Como atrelar o exercício dessa função de Estado à supervisão de um superórgão subordinado ao governo, que deteria a chave analítica para avaliar os "benefícios sociais" dela resultante? Impraticável no regime democrático vigente. No governo Vargas o modelo centralizado de intervenção foi implementado, mas a partir de um contexto político oposto ao atual. O mesmo ocorreu no regime militar em 1964, quando esse modelo foi extremado e associado a uma ampla estatização, à criação de reservas de mercado e de "campeões nacionais" etc. Os resultados líquidos dessa forma de intervenção do governo na economia, por meio de órgãos a eles inteiramente subordinados, são hoje registros históricos e uma importante fonte a ser consultada quando da elaboração de novas normas a disciplinar a regulação da atividade econômica. O debate em torno da criação da OSR é, contudo, positivo. A atual crise econômica deve-se em boa medida a uma renúncia regulatória jamais vista. Ainda que desatualizados, houvessem os órgãos reguladores das maiores economias agido como devido, os efeitos da crise econômica teriam sido muito menores. Com razão, critica-se a omissão do Estado ao deixar frouxos os controles da economia, e esse fato é incontestável. Não há, portanto, melhor momento para se discutir a regulação de mercados. Mas esse debate não pode ignorar a experiência histórica, seus acertos e fracassos, nem subordinar seus aspectos técnicos a postulados ideológicos. E menos ainda, ignorar a necessidade de o Brasil atrair capitais privados, nacionais e estrangeiros, para obras de infraestrutura. Uma superagência, subordinada ao governo, que reveja as decisões técnicas de agências independentes não nos parece ser o caminho indicado a seguir. Pedro Dutra é advogado e conselheiro do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC). |