quinta-feira, abril 30, 2020

O decano encara cabo, soldado e capitão - MARIA CRISTINA FERNANDES

Valor Econômico - 30/04

Celso de Mello não deixará outra alternativa ao procurador senão denunciar o presidente



O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a pinguela despencou antes de estabelecida.

Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da manifestação do dia do Exército.

Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça, ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.

A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.

Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início à queda da ex-presidente. Não foi a última.

Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o mandato presidencial.

Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos do presidente da República.

Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações “emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.

Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.

O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno, que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da Corte.

O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e repugnante”.

Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.

Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.

Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.

Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu transpor sua indignação para os autos.

Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma semana.

Conservador nos ritos e na interpretação da norma constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de impeachment.

O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.

Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.


"E daí?" veio para substituir cinismo do "Eu não sabia" - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 30/04
Assim como a expressão "Eu não sabia" passou à história como uma espécie de frase-lema do Brasil de Lula, a interjeição "E daí?" tem potencial para descer ao verbete da enciclopédia como símbolo da era Bolsonaro. O cinismo é o mesmo. A diferença é que Bolsonaro, em vez de fingir que não sabia, deixa claro que não quer nem saber.

A crise do coronavírus confirma as mais sombrias expectativas. A pilha de cadáveres se aproxima da marca macabra de 6 mil almas. O ministro Nelson Teich, da Saúde, admitiu em videoconferência com senadores estar "navegando às cegas." E o presidente aperta a tecla do "E daí?"

Bolsonaro evoluiu da negação para a avacalhação. Pregava o fim do isolamento. Agora, insinua que a estratégia de trancar as ruas em casa é inútil. "A imprensa tem que perguntar para o (João) Doria por que mais gente está perdendo a vida em São Paulo. Tomou todas as medidas restritivas que ele achava que devia tomar. (...) Vocês não vão colocar no meu colo essa conta."

É como se Bolsonaro desejasse obter uma espécie de "E daí?" preventivo, capaz de isentá-lo de todas as culpas pelo que ainda está por vir. Capitão das aglomerações, pregoeiro da "volta à normalidade", ele pede aos brasileiros que façam como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.

Numa semana em que virão à luz novas estatísticas sobre desemprego, Bolsonaro convida todo mundo a viver num país alternativo —um Brasil presidido por alguém que finge desconhecer o óbvio: não fosse o risco assumido pelos governadores de promover algum tipo de isolamento, a pilha de corpos seria ainda maior.

O ministro Teich, um oncologista "totalmente alinhado" com Bolsonaro, foi espremido pelos senadores a dizer o que pensa sobre o dilema shakespeariano que o atormenta desde que assumiu a pasta da Saúde —ficar ou não ficar em casa, eis a questão.

O doutor soou de forma clara como a gema: "...Você simplesmente perguntar se fica em casa o se não fica em casa é simples demais. É uma resposta simplista para um problema que é extremamente heterogêneo. (...) Não posso responder superficialmente perguntas complexas. Ficar em casa é genérico demais. Ficar em casa vai ser a melhor solução para algumas pessoas, não para todas. Vamos trabalhar isso de forma mais específica."

O estilo escorregadio irritou a plateia. Recordou-se a Teich que a adesão das pessoas à tática do isolamento vem caindo. Não é hora, portanto, para dubiedades. Imprensado, Teich viu-se compelido a reconhecer que nada mudou na orientação do Ministério da Saúde desde a saída do antecessor Henrique Mandetta.

Na contramão de Bolsonaro, que acusa os governadores de exagerar no isolamento, o doutor atribuiu aos Estados a volta gradativa das pessoas às ruas. "Essa orientação (de manter distanciamento social) vem sendo mantida (pela pasta da Saúde). E onde a gente está vendo uma alteração em relação a isso, é uma decisão dos governadores. Isso não é uma decisão nossa. Nossa orientação desde o começo é o distanciamento."

Na era do "E daí?", o presidente ignora recomendações do seu próprio governo. Se um ministro questiona o contrassenso, Bolsonaro troca de subordinado, não de discurso. "Não vou discutir aqui o comportamento (do presidente)", declarou aos senadores o sucessor de Henrique Mandetta. "Mas eu posso dizer que ele está preocupado com as pessoas e com a sociedade."

Um presidente que olha para os cadáveres fazendo cálculos eleitorais —"Vocês não vão colocar no meu colo essa conta"— está preocupado com sua candidatura à reeleição, não com as pessoas. Um médico que permite que seu prestígio técnico seja utilizado para envernizar uma pantomima eleitoreira corre o risco de ser infectado pelo vírus da desmoralização.

Depois, não adianta dizer "E dai?" ou "eu não sabia". Quem aceita ornamentar ministério confundindo certo presidente com presidente certo autoriza a plateia a a se perguntar se o país está diante de um ministro incapaz de todo ou capaz de tudo.

Decisão não é de um ministro, mas sim de um Poder - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 30/04

Em relação a Bolsonaro, a disposição no Supremo é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes


A suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem na Polícia Federal, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, surpreendeu o mundo político, mas não é um fato isolado. Faz parte de um pacote de resistência do Supremo Tribunal Federal a um governo que acha que pode tudo, mesmo ultrapassando a linha do razoável. Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, a disposição é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes.

A nomeação de ministros e do próprio diretor-geral da PF é atribuição exclusiva de presidentes da República, mas Alexandre de Moraes - que foi secretário de Segurança Pública em São Paulo e conhece bem as polícias - recorreu a um princípio constitucional que vem se popularizando: o da impessoalidade e da moralidade pública.

Como delegado de carreira, não há reparo a Ramagem nem dentro nem fora da PF, muito menos no STF. O problema está nas circunstâncias: todas as credenciais dele se resumem à grande proximidade com Bolsonaro e seus filhos desde a campanha eleitoral de 2018, quando chefiou o esquema de segurança do então candidato do PSL. Ou seja: a suspeita é que Ramagem tenha sido escolhido não para trabalhar pela PF, mas para a família Bolsonaro.

Para reforçar a percepção, a nomeação veio no rastro da acusação do então ministro Sérgio Moro de que o presidente queria acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. Para, em tese, como muitos temem, poder manipular as informações a favor de aliados e filhos e contra adversários.

Nada contra o próprio Ramagem, mas, como Ernesto Araujo era “embaixador júnior” ao assumir o Ministério das Relações Exteriores sem jamais ter ocupado uma embaixada, ele foi nomeado para a direção geral da PF sem ter sido superintendente do órgão em nenhum Estado. A comparação de seu currículo com o do antecessor Mauricio Valeixo, demitido por Bolsonaro, é constrangedora.

O fundamental, porém, é que a decisão de Alexandre de Moraes tem respaldo dos seus pares de toga, atentos desde a inesquecível fase do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo” - e perplexos com o apoio explícito do já presidente Jair Bolsonaro a atos que pedem intervenção militar, com fechamento do Congresso e do STF.

Há na alta corte do País dois movimentos na mesma direção: a autopreservação e a garantia da democracia.

As sucessivas demonstrações do Judiciário têm a adesão da cúpula do Legislativo. A diferença é que o Supremo tem torpedos, mas o botão da bomba atômica - autorizar ou não um pedido de impeachment - está com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A ele, sobra uma nova alternativa: jogar parado. E, de preferência, calado. Afinal, batalhas têm sido inevitáveis, mas a ninguém interessa uma guerra. Resta esperar, agora, o contra-ataque de Bolsonaro.

Reação à crise - ZEINA LATIF

ESTADÃO - 30/04

Seria equívoco buscar atalhos e ceder a pressões que atrapalhem o crescimento


Os novos capítulos da política demandam capacidade de reação de Jair Bolsonaro. E o melhor antídoto para evitar uma crise de governabilidade é a economia arrumada.

Foi assim com Temer. A queda da inflação e a retomada, ainda que lenta, da economia foram suficientes para manter as ruas calmas, a despeito da baixa aprovação do governo.

É verdade que o ex-presidente precisou garantir apoio do Congresso nas votações das denúncias contra ele, com consequências na gestão orçamentária. No entanto, seu governo não perdeu de vista a necessidade de manter a política econômica nos trilhos e de dar continuidade à agenda de reformas, ainda que inviabilizada a da Previdência. Temer soube ouvir.

O mau desempenho da economia é algo esperado por conta da epidemia, o que contribui para conter a crítica ao presidente. No entanto, uma crise prolongada, causada por políticas públicas equivocadas, poderá testar a paciência da sociedade. Não basta colocar a culpa no isolamento social dos governadores, até porque parece clara a saturação do sistema de saúde.

As crises econômica e política tiram Bolsonaro de sua zona de conforto. O presidente deu sinal de que sabe que não pode descuidar da economia. Foi simbólico reafirmar a confiança em Paulo Guedes, cujo cargo parecia ameaçado.

Gestos não bastam, no entanto. Sua convicção sobre a importância de disciplina fiscal e medidas estruturantes – em contraponto a estímulos que beneficiam a poucos, mas prejudicam o crescimento sustentado de longo prazo – será testada, tendo em vista as pressões crescentes por socorro governamental.

Bolsonaro precisa arbitrar as divergências internas do governo, posto que cresce a defesa de políticas de estímulo econômico que lembram as do governo Dilma. As discussões sobre a agenda pós-pandemia iniciada pelo plano Pró-Brasil precisam estar conectadas à dura realidade fiscal e às novas prioridades que emergem com a crise: há diferentes cenários de demanda por cada tipo de infraestrutura; será preciso preparar o País para um mundo mais digital; e maior esforço será necessário para atrair o investimento privado.

O presidente precisa se comprometer com a combalida agenda de reformas. É nítida sua baixa disposição para enfrentar temas espinhosos.

Guedes também precisa arrumar a casa, com um plano de ação estruturado para enfrentar a crise e entregar oportunamente as reformas mais urgentes. Oportunidades foram desperdiçadas em 2019, em meio a promessas em demasia.

Do lado fiscal, aumentou a urgência de medidas que reduzam a rigidez orçamentária – principalmente os gastos com a folha –, pois a elevação adicional da dívida pública recomenda o reforço da perspectiva de ajuste fiscal futuro.

Será necessário redefinir prioridades da agenda de crescimento. Se, por um lado, será difícil avançar na reforma tributária e nas privatizações, diante das dificuldades do setor produtivo e de tantas incertezas, por outro há espaço para remover obstáculos ao crescimento sustentado.

Guedes precisa aumentar a interlocução com os demais ministérios e com o Congresso. Um exemplo de dificuldade é o lento avanço do projeto de lei de licitações.

A mudança no Ministério da Justiça poderá ser uma oportunidade para se discutir a redução da insegurança jurídica, que inibe o investimento. Como ensina Carlos Ari Sundfeld, há excessos da ação estatal assentados no direito público brasileiro, o que requer o diálogo com o sistema judiciário e a revisão de normas legais e exigências nas licitações e a redução da ingerência de órgãos de controle.

Na área tributária, Bernard Appy aponta a necessidade de maior qualidade das normas tributárias, uniformização e consolidação da jurisprudência entre os tribunais e maior transparência por parte dos órgãos fiscalizadores na interpretação e aplicação das leis.

Há muito a ser feito para reduzir disfuncionalidades da ação estatal. Seria um equívoco buscar atalhos e ceder a pressões que atrapalham o crescimento sustentado.

Ainda há tempo para corrigir rumos.

CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

Guedes reassume trono da economia, mas pode não governar - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 30/04

Ministro está agora ameaçado

A campanha para que Paulo Guedes reassumisse o controle da política econômica parece ter chegado ao fim e ao cúmulo nesta quarta-feira. O ministro-general Braga Netto (Casa Civil) fez juras de amizade, Jair Bolsonaro disse repetidas vezes que o ministro da Economia está prestigiado no cargo, os ministros que supostamente sabotavam o reformismo desapareceram ou foram a cerimônias em que precisavam ouvir que Guedes é quem manda.

Na verdade, era uma campanha contra um espantalho agigantado pela ideia histericamente caricata de que estava em curso um “resgate do Estado”, um avanço do “desenvolvimentismo da ala militar”, um novo PAC ou um plano “Dilma 3”. Mas campanha houve para colocar Guedes de volta no trono ou para garantir a continuidade do programa de reformas, que andava mal das pernas antes da epidemia e vai ficar sem uma delas depois do colapso econômico e fiscal provocado pela doença.

Decerto havia política nessa disputa, uma tentativa de ocupar espaço, dado o exílio temporário do ministro e o barata-voa dos gastos extras em tempos de epidemia, de pegar carona na crise. Havia política e haverá mais: uma tentativa de dar um nome-fantasia qualquer, “Pró-Brasil Verde Amarelo”, aos gastos necessários para conquistar e apaziguar aliados no Congresso em tempos de risco de impeachment.

O vago, vazio e nebuloso programa anunciado na semana passada não tinha nem fumaça de virada desenvolvimentista, como se dizia nas reações liberalóides estereotipadas, até por se tratar de muito pouco dinheiro. Embora fumaça, havia algum fogo ali. Mais importante, pode haver mais chamas.

Jair Bolsonaro terá de desfazer promessas de acabar com a velha política e com “o sistema”, gastando prestígio com suas bases eleitorais por voltar a ter mensaleiros como confrades. Terá de gastar dinheiro a fim de fazer amigos no centrão. Não deve parar por aí.

Mais adiante, Bolsonaro vai ter de lidar com o problema de manter o teto de gastos tendo de fazer agrados ao Congresso e outras freguesias, a fim de afastar o risco de impeachment.

A julgar pela trajetória provável das contas públicas, vai ser um problema muito difícil de resolver. Guedes sabe do risco de que o teto pode desabar se não forem tomadas medidas como, pelo menos, uma contenção radical dos gastos com servidores federais, pelo que já tem se batido.

Deve ser insuficiente. O crescimento da despesa obrigatória e o aumento mínimo da despesa permitida pelo teto (a inflação vai ser baixa) vão asfixiar o resto da despesa ainda “livre”. O investimento público “em obras” será ainda mais achatado, se sobrar algum, justamente aquela despesa que alguns ministros quereriam aumentar em uma dezena de bilhões por ano —troco, na atual situação.

Como conciliar a manutenção do teto de gastos com as necessidades de sobrevivência operacional do governo (gastos essenciais de funcionamento da máquina), com alguma despesa inevitável em infraestrutura, com a satisfação de necessidades dos novos aliados e com socorros econômicos que ainda serão necessários em 2021?

Talvez com reformas profundas da despesa pública (talhos enormes), o que é muito improvável. Não há apoio político e o Congresso está dedicado a outros assuntos urgentes, haverá eleição municipal e a baderna política causada por Bolsonaro é imensa, para citar os motivos mais nobres.

Com o risco de o teto cair e de as reformas escorrerem pelo ralo, Guedes pode até ficar no trono. Mas governa?​

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Os homens do presidente - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 30/04

Suas ligações com criminosos profissionais sempre foram conhecidas


Um gabinete do ódio foi instalado no governo para dar vazão ao maior de todos os sentimentos de um presidente movido pelo desejo permanente de retaliação. Ele se disse perseguido e sempre odiou todos aqueles que identificava como inimigos ou que imaginava um dia poderem se transformar em inimigos. Por isso, destilou sua ira contra políticos de oposição, aliados que não mostravam firmeza, ex-aliados, juízes, desembargadores, ministros da Suprema Corte, jornalistas ou qualquer outro tipo de gente que não pensasse como ele ou que se interpusesse entre ele e seu projeto político.

O gabinete usou todos os instrumentos que conseguiu dispor para construir constrangimentos aos inimigos do chefe. Espionou, divulgou notícias falsas, impediu acesso a documentos oficiais, criou barreiras entre o presidente e a imprensa, proibiu veículos de informação de entrar na sede do governo, mentiu para o Congresso, privilegiou amigos. Suas ligações com criminosos profissionais, milicianos que trabalhavam por dinheiro, sempre foram conhecidas. Recursos do fundo partidário eram usados para pagar por serviços prestados por esses indivíduos, de resto tão inescrupulosos quanto os membros do gabinete do ódio e o próprio presidente da República.

Acossado pelo Congresso que ameaçava instalar um processo de impeachment, o presidente demitiu sumariamente o chefe das investigações sobre crimes cometidos por pessoas do seu círculo mais próximo, inclusive os assessores que dentro do governo davam substância à ira presidencial. A demissão foi o último passo de sua corrida vertiginosa em direção ao abismo. Sabe-se que ele também cometeu crimes de responsabilidade e que não conseguiria escapar do julgamento do Congresso. O presidente deveria renunciar, ou então seria impedido pela vontade da maioria absoluta de deputados e senadores.

Embora se pareça muito com a história em curso de Jair Bolsonaro, esta conta a saga do presidente Richard Nixon no escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em 1972. Nixon, que foi um trambiqueiro mas não era bobo, resolveu renunciar ao cargo dois anos depois para não sofrer o impeachment. Foram condenadas e presas 49 pessoas, inclusive membros do gabinete do ódio, como H. R. Haldeman, secretário-geral da Casa Branca, John Mitchell, ministro da Justiça, e os assessores John Ehrlichman e John Dean III. Os cinco bandidos que arrombaram o escritório do partido adversário também foram presos. Dois eram ex-agentes da CIA e do FBI e os outros três eram anticastristas de Miami.

Os assessores do presidente foram presos por instrumentalizar o bando que invadiu o escritório no Watergate, por mentir sobre o episódio, e por sonegar informações. O dinheiro do fundo partidário para a eleição usado na operação agravou o caso. Nixon, que tentou obstruir a Justiça e também mentiu, só não foi condenado e preso porque, antes de se afastar, negociou com o vice-presidente Gerald Ford um perdão pelos crimes que cometeu. Ford cumpriu a promessa, e o trambiqueiro nunca foi chamado para prestar contas.

Em Watergate, Nixon mandou demitir Archibald Cox, promotor especial designado para investigar o escândalo. No Brasil, Bolsonaro mandou demitir Maurício Valeixo da PF. Nixon só obteve sucesso quando o terceiro da hierarquia da Procuradoria-Geral aceitou encaminhar a encomenda, depois que se demitiram o titular do cargo e seu substituto imediato. No Brasil, o presidente teve que fazer ele mesmo o serviço sujo, uma vez que o ministro Sergio Moro se negou a afastar Valeixo e se demitiu.

Bolsonaro também tem um gabinete do ódio no Palácio, da mesma forma ataca parlamentares, juízes e jornalistas. Mantém laços sólidos com milicianos, chegando a empregar alguns e a homenagear outros. Na campanha, recursos do fundo eleitoral foram usados para financiar a máquina de propaganda de Bolsonaro baseada na distribuição de fake news. São muitas as semelhanças, mas, apesar delas, é claro que Nixon e Bolsonaro não são iguais em tudo. Como Bolsonaro, Nixon também desprezava a democracia, mas pelo menos fingia o contrário.

Bolsonaro é o culpado - CARLOS ALBERTO SARDENBERG

O GLOBO - 30/04

Presidente trata de atacar os que considera seus inimigos, mesmo que isso prejudique o combate à epidemia


É claro que governadores e prefeitos têm enorme responsabilidade no combate ao novo coronavírus, conforme foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe a eles, por exemplo, a decisão crucial de abrir ou fechar o comércio, colocar mais ou menos ônibus nas ruas, voltar ou não às aulas.

Mas isso não os torna “culpados” pelas mortes, como atacou o presidente Bolsonaro. Culpa é diferente de responsabilidade. E esta, no caso de governadores e prefeitos, tem uma limitação importante: dinheiro.

A crise apanhou a maioria dos estados com déficits em suas contas e dívidas elevadas. A paralisação de boa parte das atividades leva a uma queda de receita, de modo que a tempestade é perfeita: menos dinheiro diante da necessidade de gastar mais.

Aqui entra uma primeira responsabilidade enorme do governo federal. Só este pode, digamos, inventar dinheiro, tomando dívida e mesmo imprimindo reais. Junto com o Congresso, cabe ao governo federal decidir quanto dinheiro vai gerar, como será distribuído e para quais finalidades.

É nesta tarefa crucial que o presidente Bolsonaro, se fosse um dirigente minimamente adequado, deveria estar empenhado. Como, aliás, fez seu ídolo Trump. Agindo em combinação com o Congresso, inclusive com a Câmara controlada pela oposição, o presidente aprovou pacotes de trilhões de dólares para socorrer pessoas, empresas e administrações públicas estaduais.

Sim, o governo brasileiro tem feito parte desse serviço. Mas aos trancos e barrancos — basta observar as filas nas agências da caixa, as queixas de empresas que não têm acesso aos recursos prometidos, as filas no pedido de auxílio-desemprego, os equipamentos que não chegam.

Neste momento, em que o mundo disputa desde máscaras até respiradores, o Itamaraty deveria estar negociando mundo afora para importar esse tipo de material. Em vez disso, o chanceler Ernesto Araújo decide combater o isolamento social com a bárbara comparação com os campos de concentração de Hitler. Como pode a ignorância e a insensibilidade chegarem a nível tão desprezível?

Não é de espantar, entretanto. Se o chefe dele sai com um “E daí?” quanto lhe perguntam sobre as 5 mil mortes...

Eis o ponto. Enquanto governadores e prefeitos tentam cumprir suas responsabilidades — uns vão bem, outros, mal —, o presidente se dedica a sabotar os esforços dos outros. Como não consegue nem um argumento para desclassificar o isolamento — nem o novo ministro da Saúde, perdidaço, topa isso —, Bolsonaro trata de atacar os que considera seus inimigos, mesmo que isso prejudique o combate à epidemia.

Há aí uma contradição que bloqueia o processo. O isolamento faz sentido se as pessoas puderem ficar em casa. Muitas podem porque têm dinheiro, conseguem manter seus empregos, trabalham de casa. Outras não podem — e estas precisam de socorro para ficar em casa. Esse socorro é a renda mínima (os 600 reais), o aumento do seguro-desemprego, o adiamento de obrigações financeiras.

O mesmo vale para empresas. Algumas aguentam paradas. Outras precisam de socorro, na forma de financiamentos ou mesmo aportes de capital.

Este socorro, para pessoas e empresas, cabe essencialmente ao governo federal. Membros deste governo sabem disso e tentam. Mas como a coisa pode fluir se o presidente não aceita o conjunto dessa política, nem se empenha para implementá-la? E, ao contrário, se empenha em desmoralizar essas ações.

Além disso, o governo federal tem o SUS, que deveria coordenar todo o programa sanitário. Coisa que o ex-ministro Mandetta estava tentando.

Ignorância e autoritarismo formam uma combinação explosiva.

Vamos falar francamente: o presidente e seus filhos já cometeram erros demais. Só não cometeram mais porque foram contidos ou pelo STF ou pelo Congresso. Mas as barbaridades que já praticaram são suficientes para que sejam apanhados nos diversos inquéritos em andamento no Supremo e, logo, logo, no Congresso.

O presidente é, pois, irresponsável. Como não se trata “apenas” de um mau administrador, torna-se também culpado. Sim, as mortes estão no “colo” dele.

Despreparo - CELSO MING

ESTADÃO - 30/04

Passada esta pandemia, risco é de que governos voltem a ignorar ameaças biológicas


Esse vírus mostra coisas graves. Mostra, por exemplo, como a construção da sociedade ocidental – e não só a brasileira – é frágil e despreparada.

Para proteção de todos, foram criadas instituições e grandes pactos de defesa mútua, fronteiras rigorosamente demarcadas e fiscalizadas, acordos comerciais para presidir o fluxo de mercadorias e serviços, regras para defesa da propriedade e dos capitais, leis sobre mobilidade de pessoas e veículos. Tudo isso parece abalado por um inimigo invisível.

O mundo se preparou durante mais de 60 anos para enfrentar ataques nucleares, criou abrigos, sistemas antimísseis e avançadas redes de radares e de satélites de rastreamento de informações. Mas nada disso serviu para conter a covid-19.

Desde há muito tempo vêm sendo discutidos os riscos de ataques de vírus e bactérias. Os sistemas de inteligência vêm perscrutando laboratórios ao redor do Planeta que estivessem criando armas biológicas, que a qualquer momento pudessem ser disponibilizadas e manipuladas por Estados ou por organizações extremistas, capazes de causar destruições milhares de vezes maiores do que a produzida por ataques de aviões sequestrados, como no 11 de Setembro. Foram estudadas defesas contra armas químicas, como de gás sarin e de antrax. E, em 2018, os Estados Unidos publicaram um programa estratégico de biodefesa.

No entanto, na hora de proteger os humanos do coronavírus, faltou não só uma estratégia racional de contra-ataque, mas faltaram até mesmo produtos essenciais, destituídos de sofisticação tecnológica, como máscaras de tecido comum, álcool em gel e kits de testes.

Grande número de governos – e não só o brasileiro – reagiu à pandemia de maneira tão caótica que, em vez de defender, vem desorganizando a economia, dizimando empregos e renda. Deve aumentar a pobreza, desestruturar as relações de poder e pode produzir consequências imprevisíveis.

A ordem mundial construída em meados do século 20, que vinha sofrendo ataques por parte de grupos populistas e totalitários, agora corre ainda mais riscos, como se a pandemia apressasse o desmonte. Até mesmo antes do alastramento do vírus, o presidente do país líder do mundo começou o processo de desvalorização das instituições criadas depois da 2.ª Grande Guerra para estabelecer a ordem do mundo a partir de então. Trump ataca a Otan, a ONU, a OMC, a OMS, como se estivesse no lado oposto, no lado do antigo Pacto de Varsóvia ou no dos inimigos da democracia. As instituições da União Europeia vêm recebendo de Trump o tratamento de força inimiga ou de quase isso. O multilateralismo que construiu as alianças do Ocidente desde os anos 40 vai sendo desarticulado por iniciativas unilaterais.


Enfermaria do hospital provisório da Escola Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, durante a gripe espanhola Foto: ACERVO: BIB. GUITA E JOSÉ MINDLIN - 2/11/1918

Alguns preferem dizer que nada será como antes, que o mundo tratará de se reorganizar sob novos paradigmas. Pode ser. Mas será que essa covid-19 é um ser tão poderoso, capaz de desmantelar o que grandes guerras não conseguiram ao longo de décadas?

A vacina, que parece próxima, se encarregará de salvar vidas. Mas o que será das instituições e da remontagem do sistema de convivência entre nações depois que se comprovou tanto despreparo, tanta desorganização e tanta incompetência dos líderes mundiais?

A tragédia maior é a de que a humanidade não aprende. O mundo já passou por pandemias até mais letais do que esta parece ser. A peste negra matou cerca de 100 milhões na Europa entre 1347 e 1742. A sífilis matou 50% das pessoas infectadas. A gripe espanhola matou 40 milhões entre 1918 e 1919. E houve o estrago causado pela febre amarela, pelo tifo, pela malária, pelo cholera morbus, pela gripe aviária, pela sars, pelo ebola. São episódios que vêm, vão embora e voltam, com suas mutações, sempre a indicar que o ser humano está mergulhado num caldo de bactérias, vírus e micróbios sempre em desenvolvimento.

Ainda existe quem acredite que essas pandemias são castigo de Deus ou obra do diabo, como certos religiosos pregaram recentemente. Essa abordagem, comum no passado, é hoje residual. Mas, apesar do avanço da ciência, a humanidade continua pouco empenhada em se preparar para ataques desse tipo. E não se trata apenas de doenças infecciosas. Os sismólogos não se cansam de advertir que grandes metrópoles, como Tóquio e São Francisco, deverão sofrer terremotos arrasadores, os big ones. Só não sabem quando. No entanto, as pessoas continuam vivendo normalmente, como se seu futuro estivesse garantido.

O risco é o de que, uma vez, passada esta pandemia, os governos voltem a ignorar ameaças desse tipo.


Dentro do alçapão - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 30/04

A crise tripla que Bolsonaro enfrenta é inédita e não permite dizer o que vai acontecer


Com a vivência de 28 anos de política em Brasília, provavelmente Jair Bolsonaro sabe ou pelo menos intui que está, agora, nas mãos de profissionais. Os do Centrão e os do STF. Na linguagem militar, trata-se de um formidável movimento de pinça, do qual o presidente tem poucos recursos para escapar.

O alçapão armou, Bolsonaro está dentro dele e ali ficará debatendo-se em limites muito estreitos, salvo o imponderável (o número de mortos da crise de saúde pública e um impeachment são hoje os imponderáveis). Mantida a situação atual de precário equilíbrio, suas opções são reduzidas.

Ele criou a armadilha para si mesmo agindo por medo e com muita pressa. Bolsonaro é um personagem político autêntico e de extraordinária transparência. Faz questão de reiterar publicamente que se sente sempre o alvo de uma grande conspiração, integrada por membros da velha política, imprensa, juízes e ministros do STF, comunistas, ministros com alta popularidade, governadores – a lista é longa.

Por algum tempo o “cerco” urdido por conspiradores era apenas uma distorcida percepção da realidade. Hoje, de fato, o presidente está cercado. Pelos profissionais do Centrão, que dispõem de tempo e de circunstâncias inesperadamente favoráveis para extrair do presidente o preço máximo em troca de apoio político.

E pelos profissionais do Judiciário, sobre os quais Bolsonaro tem pouco ou nenhum tipo de controle. A judicialização da política na era Bolsonaro assumiu contornos muito semelhantes aos da era Dilma, quando uma liminar proferida por um integrante do STF a impediu de nomear Lula como ministro. Desvio de finalidade – o mesmo tipo de figura jurídica da liminar que bloqueou a nomeação por Bolsonaro de um novo diretor-geral da Polícia Federal.

Os perigos para Bolsonaro estão hoje no STF – uma instituição contra a qual seus apoiadores foram mobilizados com a ferocidade e irresponsabilidade típicas de redes sociais nas quais o presidente acredita residir seu maior capital político. A figura do presidente já seria lateralmente atingida por investigações em curso nas quais se pretende apurar quem e como organizou e financiou campanhas contra o Judiciário, mas, agora, está no centro do inquérito que o procurador-geral da República requereu “sem apontar A ou B”. O STF apontou para o B de Bolsonaro.

Salvo imponderáveis, o Centrão não tem o apetite para tocar adiante um processo de impeachment. Os parlamentares não enxergam nenhuma vantagem prática em derrubar o presidente neste momento, e se consideram bem situados do ponto de vista político em assegurar “governabilidade” que, nestes dias de enorme crise de saúde pública, significa sobretudo abrir os cofres públicos para ver como é que fica depois. O movimento para moer Bolsonaro está vindo do STF.

A preciosa intuição que Bolsonaro exibiu na campanha eleitoral faltou-lhe agora. Sem que nenhum de seus opositores precisasse se esforçar, ele mesmo acabou solapando os pilares da sua imagem e está perdendo rapidamente o apoio em camadas de eleitores que não são tão numerosos, mas têm peso na propagação e formação de opinião. E, em vez de evitar comoções, Bolsonaro se esmera em criá-las constantemente. Seu jeito “autêntico” de ser (como ao dizer “E daí? Que quer que eu faça?” diante de um recorde de mortos pelo coronavírus) é visto com repulsa em círculos cada vez mais amplos.

Como tudo na atualidade, a situação que Bolsonaro enfrenta também é inédita. Dilma tinha de lidar com uma dupla crise, econômica e política. A situação de Bolsonaro é de uma tripla crise: a terceira é a pandemia. Mas não há parâmetros históricos para dizer o que vai acontecer.

Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 30/04

Com fracasso no coronavírus, presidente revive segurança e cartilha ideológica

Jair Bolsonaro deve ter se cansado de cometer erros na crise do coronavírus. Depois de prever só 800 mortes no país, de insistir no poder milagroso de um remédio e de atazanar governantes que tomaram medidas de isolamento, o presidente decidiu fingir que não tem mais nada a ver com isso.

A curva de mortes está em disparada, mas Bolsonaro afirma que o problema é de governadores e prefeitos. Já o ministro da Saúde admitiu que está "navegando às cegas" e que ninguém sabe quando vai ser o pico da contaminação, embora seu chefe tenha dito há pouco mais de duas semanas que estava "começando a ir embora a questão da pandemia".

Bolsonaro comprovou sua incompetência para lidar com a crise e, agora, resolveu abrir um baú de brinquedos antigos para distrair suas bases.

Como se não existisse uma doença devastadora, ele voltou a acenar a redutos conservadores com uma pauta voltada à segurança pública e sua conhecida cartilha ideológica.

Na semana passada, depois de acertar a demissão do diretor da Polícia Federal, Bolsonaro pegou carona numa manifestação de grupos evangélicos e publicou um vídeo em que crianças diziam ser contra o aborto. O tuíte teve mais de 85 mil interações entre seus seguidores.

O presidente ainda tentou reviver a ameaça fantasma da esquerda na educação. Em dois eventos sem relação com a área, Bolsonaro elogiou o ministro Abraham Weintraub e reclamou da "doutrinação de décadas" nas escolas brasileiras.

A ideia é mudar de assunto e reforçar seu vínculo com grupos que poderiam ficar perturbados com a escalada de mortes ou a saída de Sergio Moro do governo. Para isso, vale buscar também seu adormecido discurso linha-dura na segurança.

Nesta quarta (29), o novo ministro da Justiça exagerou na propaganda e disse que o presidente é "um profeta no combate à criminalidade". O deputado Bolsonaro jamais aprovou um projeto de lei sobre o tema. No Planalto, não desenvolveu nenhuma política pública relevante na área.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Caminho pedregoso - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 30/04

Há políticos que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições

Jair Bolsonaro está cumprindo uma espécie de via-Crucis a que é obrigado todo presidente que enfrenta um processo de impeachment sem que haja, no entanto, condições práticas de transformá-lo em realidade, embora todas as premissas estejam dadas.

A Covid-19, que o presidente tanto desdenhou, impede que o Congresso se reúna presencialmente para discutir o tema, e também faz com que as ruas vazias não reverberem o sentimento majoritário.

Bolsonaro deveria ser a favor do distanciamento social, que faz com que manifestações populares pedindo sua saída se transformem em panelaços quase diários. Simbólicos, porém ineficazes.

Se não houvesse esses obstáculos impostos por uma trágica pandemia, as ruas explodiriam diante do “E daí?” dito pelo presidente sobre as mais de cinco mil mortes de brasileiros, todos sem direito a velório, muitos enterrados em covas rasas.

A busca de apoio no Congresso, que todos os que sofreram impeachment fizeram e apenas Michel Temer concretizou, é uma dessas etapas, e nessa Bolsonaro tem desvantagem, pois sai de quase zero para conseguir uma maioria defensiva que evite o impeachment. Vai sair muito mais caro, e não há certeza de final feliz.

A cada bolsonarice que diz ou faz, abala a confiança que por acaso ainda exista em setores da classe média que o apoiou em 2018. Agora mesmo está fazendo mais uma de suas bravatas para agradar seu núcleo duríssimo de apoiadores quando diz que vai insistir no nome do delegado Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal.

De nada adiantaria recorrer, porque o recurso cairia para o mesmo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação por desvio de finalidade. Além disso, depois que a nomeação foi tornada sem efeito pelo próprio presidente, que devolveu Ramagem para a chefia da Abin, não haveria do que recorrer.

Se não encontrar um substituto ideal para Ramagem, Bolsonaro tem duas opções: ou deixa como interino o delegado Disney Rossetti, que Moro gostaria de ver substituindo Mauricio Valeixo, ou tenta encontrar alguém que aceite o cargo, o que está sendo difícil.

Há na corporação o temor de que qualquer delegado que seja nomeado terá pela frente um presidente ávido por informações sobre inquéritos em andamento, especialmente os que se referem a membros de sua família. Ou forçar uma nova investigação sobre o atentado que sofreu, como se uma grande conspiração estivesse protegendo os supostos mandantes do crime.

Provavelmente somente depois que o inquérito aberto a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal denunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro terminar é que poderá novamente nomear Ramagem para o cargo, caso não exista nenhuma denúncia contra o presidente da República.

O presidente Bolsonaro manteve a nomeação de Ramagem para a Polícia Federal, mesmo sabendo que havia o risco de ela ser barrada, porque quer um delegado no cargo de diretor-geral da Polícia Federal que passe informações para ele. Mas a PF não é órgão da presidência da República, precisa ter autonomia para as investigações.

Mas enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem barrá-lo, a democracia está preservada, apesar de todo o tumulto que ele provoca. É preciso ficar atento, porque há casos de políticos autoritários que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições.

Boa parte do aumento das mortes pela Covid-19 deve-se ao comportamento do presidente, que vai para a rua desmoralizar o distanciamento social, entra em disputa com o ministério da Saúde e quer impor a adoção de remédios dos quais não se sabe o efeito. Bolsonaro vive num mundo próprio, paranóico, isolado da realidade.

O que obriga seus ministros a fazerem papeis ridículos como o atual da Saúde, Nelson Teich, que só faz repetir, como disse ontem, que “estamos navegando às cegas”. Não é culpa dele, é a verdade que se repete em todos os países. O problema é que Teich fica impossibilitado de terminar sua frase, dizendo aos brasileiros: “Porque não sabemos nada, a única coisa a fazer é ficar em casa”.

Presidente desrespeita famílias dos mais de 5 mil mortos pela Covid-19 - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 30/04

Bolsonaro também tem responsabilidade no combate à pandemia do novo coronavírus


Na terça-feira, quando o Brasil registrou 474 mortes em 24 horas e ultrapassou a China em número de baixas pela Covid-19 (5.017 contra 4.643), o presidente Jair Bolsonaro não só se eximiu de responsabilidades como ainda desdenhou das mortes. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Ontem, Bolsonaro culpou governadores e prefeitos. Afirmou que, por decisão do STF, estados e prefeituras têm autonomia para determinar medidas de contenção. “Questão de mortes, a gente lamenta as mortes profundamente. Sabia que ia acontecer. Agora, quem tomou todas as medidas restritivas foram governadores e prefeitos”.

Além do inconcebível desrespeito com as famílias de mais de 5 mil brasileiros que perderam suas vidas pelo novo coronavírus — muitos deles sem sequer receber atendimento —, Bolsonaro cometeu equívocos em seus argumentos. Evidentemente, governadores e prefeitos têm responsabilidade. Mas ela é compartilhada com a União.

O que fez Bolsonaro desde que os primeiros casos de Covid-19 foram registrados no país, levando governadores e prefeitos a decretarem o isolamento? Criticou a quarentena, a que já se referiu várias vezes como exagero. Está preocupado com o impacto na economia, que pode afetar seu projeto de reeleição. Sua ação mais visível foi a imprudente troca de Luiz Henrique Mandetta por Nelson Teich, na Saúde, em plena fase de aceleração da epidemia.

O presidente se equivoca também ao culpar as medidas de restrição pelas mortes. O isolamento não é uma invenção brasileira. Foi adotado em praticamente todos os países, em alguns de forma bem mais rigorosa. Não há outra maneira de conter a doença. Se não está dando melhores resultados é devido ao discurso dúbio num país em que governadores e prefeitos falam uma coisa e o presidente diz outra, incentivando a quebra das quarentenas.

Numa fase crítica da epidemia, o ministro Nelson Teich passa a ideia de imobilidade. Precisa apresentar logo o seu plano e resultados, mesmo que prévios, inclusive de medidas em curso, como o rastreamento da doença em todo o país. A sensação de inércia que as entrevistas do Ministério — acertadamente mantidas — têm passado não ajuda a população, e nem o ministro.

Enquanto Bolsonaro prega incessantemente o fim do isolamento, em São Paulo a prefeitura faz bloqueios educativos no trânsito. Caminha-se, de forma correta, para um lockdown. Nada muito diferente de outras metrópoles.

Ainda que Bolsonaro os rejeite, os números contundentes da Covid-19 no Brasil serão inexoravelmente colocados também em sua conta. Não por governadores, prefeitos ou pela imprensa, como diz. Mas pela História.

A ética triunfa - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/04

O ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF. Nem é preciso ser jurisconsulto para desconfiar das intenções de Bolsonaro


O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a direção da Polícia Federal (PF), atendendo a pedido do PDT. Em seu despacho, o ministro escreveu que, “em tese, apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial” de nomear Alexandre Ramagem, “em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

Nem é preciso ser jurisconsulto para desconfiar das intenções do presidente Bolsonaro ao nomear Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal. Segundo o próprio presidente da República, seu objetivo era ter alguém de sua confiança na PF para obter informações – sabe-se lá quais e com que objetivos.

Ora, mesmo que o presidente Bolsonaro não tivesse alguns de seus filhos sob suspeita em casos investigados pela PF, a nomeação de um diretor da PF com a intenção explícita de ter acesso a informações já configuraria, em si, um atentado às leis e aos dispositivos constitucionais que obrigam a polícia a conduzir suas diligências de forma sigilosa – seja para impedir que os investigados destruam provas, seja para resguardar a imagem dos investigados. Ademais, o fato de que se trata da mais alta autoridade da República a requisitar informações não obriga nenhum servidor público a fornecê-las, se essa ordem for claramente ilegal, como seria o caso.

Todas essas limitações estão expressas de forma clara nos diversos códigos legais do País, e espanta que o presidente da República, que jurou respeitar a Constituição ao tomar posse, não veja nada demais em violá-las. Quando questionado a respeito da nomeação de um amigo pessoal para dirigir a PF, reagiu, com ares de indignação: “E daí?”.

Mais do que isso: Bolsonaro deixou claro, também, que quer fazer da PF sua polícia particular. Depois de anunciar a nomeação do amigo Alexandre Ramagem, o presidente exigiu que a PF reabrisse a investigação sobre a facada que sofreu durante a campanha eleitoral de 2018. O caso está encerrado há tempos – a PF concluiu, depois de exaustiva apuração, que o autor da facada, Adélio Bispo, agiu sozinho, e a Justiça Federal o considerou inimputável, em razão de graves transtornos mentais. Bolsonaro simplesmente não se conforma com esse resultado e acredita que há um mandante do crime: “Eu não tenho provas, tenho sentimento. O que for possível a Polícia Federal fazer, dentro da legalidade, para apurar quem pagou Adélio para me matar, vai fazer”.

Se o presidente está insatisfeito com o resultado das investigações, deveria, como qualquer cidadão nas mesmas circunstâncias, recorrer à Justiça para demandar novas diligências. O que não pode, como já está claro, é obrigar a PF – que, como lembrou o ministro Alexandre de Moraes, não é “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União” – a encontrar o tal “mandante”, que só existe nas delirantes teorias bolsonaristas segundo as quais o presidente foi vítima de um complô “comunista”.

Mas a menção insistente de Bolsonaro a Adélio Bispo serve somente para animar a claque bolsonarista e desviar a atenção do fato, incontornável, de que a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção da PF com o objetivo de franquear informações do órgão ao presidente fere os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público – e já é objeto de investigação, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, para apurar possíveis crimes de advocacia administrativa e prevaricação, entre outros.

Depois dos reveses no Supremo, o presidente Bolsonaro decidiu afinal anular a nomeação de Alexandre Ramagem. No entanto, a julgar por seu comportamento desde a posse, há pouco mais de um ano, não será surpresa se Bolsonaro voltar à carga, testando a disposição do Congresso e do Judiciário de fazer valer os limites constitucionais ao poder presidencial. É preciso deixar claro para o presidente que seus desejos não adquirem automaticamente o status de lei, como é nas ditaduras; em uma democracia, o presidente deve demonstrar, de forma cristalina, que suas escolhas são voltadas para a preservação do bem comum, e não movidas por inconfessáveis interesses privados.