Assim como a expressão "Eu não sabia" passou à história como uma espécie de frase-lema do Brasil de Lula, a interjeição "E daí?" tem potencial para descer ao verbete da enciclopédia como símbolo da era Bolsonaro. O cinismo é o mesmo. A diferença é que Bolsonaro, em vez de fingir que não sabia, deixa claro que não quer nem saber.
A crise do coronavírus confirma as mais sombrias expectativas. A pilha de cadáveres se aproxima da marca macabra de 6 mil almas. O ministro Nelson Teich, da Saúde, admitiu em videoconferência com senadores estar "navegando às cegas." E o presidente aperta a tecla do "E daí?"
Bolsonaro evoluiu da negação para a avacalhação. Pregava o fim do isolamento. Agora, insinua que a estratégia de trancar as ruas em casa é inútil. "A imprensa tem que perguntar para o (João) Doria por que mais gente está perdendo a vida em São Paulo. Tomou todas as medidas restritivas que ele achava que devia tomar. (...) Vocês não vão colocar no meu colo essa conta."
É como se Bolsonaro desejasse obter uma espécie de "E daí?" preventivo, capaz de isentá-lo de todas as culpas pelo que ainda está por vir. Capitão das aglomerações, pregoeiro da "volta à normalidade", ele pede aos brasileiros que façam como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.
Numa semana em que virão à luz novas estatísticas sobre desemprego, Bolsonaro convida todo mundo a viver num país alternativo —um Brasil presidido por alguém que finge desconhecer o óbvio: não fosse o risco assumido pelos governadores de promover algum tipo de isolamento, a pilha de corpos seria ainda maior.
O ministro Teich, um oncologista "totalmente alinhado" com Bolsonaro, foi espremido pelos senadores a dizer o que pensa sobre o dilema shakespeariano que o atormenta desde que assumiu a pasta da Saúde —ficar ou não ficar em casa, eis a questão.
O doutor soou de forma clara como a gema: "...Você simplesmente perguntar se fica em casa o se não fica em casa é simples demais. É uma resposta simplista para um problema que é extremamente heterogêneo. (...) Não posso responder superficialmente perguntas complexas. Ficar em casa é genérico demais. Ficar em casa vai ser a melhor solução para algumas pessoas, não para todas. Vamos trabalhar isso de forma mais específica."
O estilo escorregadio irritou a plateia. Recordou-se a Teich que a adesão das pessoas à tática do isolamento vem caindo. Não é hora, portanto, para dubiedades. Imprensado, Teich viu-se compelido a reconhecer que nada mudou na orientação do Ministério da Saúde desde a saída do antecessor Henrique Mandetta.
Na contramão de Bolsonaro, que acusa os governadores de exagerar no isolamento, o doutor atribuiu aos Estados a volta gradativa das pessoas às ruas. "Essa orientação (de manter distanciamento social) vem sendo mantida (pela pasta da Saúde). E onde a gente está vendo uma alteração em relação a isso, é uma decisão dos governadores. Isso não é uma decisão nossa. Nossa orientação desde o começo é o distanciamento."
Na era do "E daí?", o presidente ignora recomendações do seu próprio governo. Se um ministro questiona o contrassenso, Bolsonaro troca de subordinado, não de discurso. "Não vou discutir aqui o comportamento (do presidente)", declarou aos senadores o sucessor de Henrique Mandetta. "Mas eu posso dizer que ele está preocupado com as pessoas e com a sociedade."
Um presidente que olha para os cadáveres fazendo cálculos eleitorais —"Vocês não vão colocar no meu colo essa conta"— está preocupado com sua candidatura à reeleição, não com as pessoas. Um médico que permite que seu prestígio técnico seja utilizado para envernizar uma pantomima eleitoreira corre o risco de ser infectado pelo vírus da desmoralização.
Depois, não adianta dizer "E dai?" ou "eu não sabia". Quem aceita ornamentar ministério confundindo certo presidente com presidente certo autoriza a plateia a a se perguntar se o país está diante de um ministro incapaz de todo ou capaz de tudo.
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