segunda-feira, julho 22, 2019

Canalhas sem ética - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 22/07

A privacidade é um manto que protege o vício da própria degeneração


Homens adoram ver duas gatas em ação. Muita gente já tentou explicar a razão disso. Muitas mulheres falam horrores quando esse assunto vem à baila. Usam aquelas palavras que, como "energia", você usa quando não sabe o que mais dizer, tipo "machismo", "sexismo". Mas, devemos reconhecer, a favor da palavra "energia", que ela não carrega a energia ruim de "machismo" e "sexismo".

Talvez a razão óbvia para que os homens gostem de ver duas gatas em ação seja o fato de que ali são duas gatas em ação. Simples assim. De qualquer forma, esse é um dos mistérios que os homens levarão para o túmulo, intocado pelo ressentimento de muitos.

Outro é: afinal, por que mesmo homens inteligentes se encantam primeiro pelo corpo da mulher e depois pela sua alma? Mais xingamentos. Mas nada muda: eis outro mistério que os homens levarão para seu túmulo. Intocado. Outro: por que mesmo homens experientes não conseguem resistir a um sorriso de uma jovem linda? Mais um segredo que os homens levarão para o túmulo. Intocado.

A verdade é que enquanto as mulheres erotizam o intelecto masculino, os homens erotizam as pernas cruzadas das mulheres dentro de uma saia curta.

Mas mesmo os canalhas devem ter ética. Já dizia o grande Nelson Rodrigues, "um dia teremos saudade do canalha honesto", aquele que confessa: quando elogio o intelecto de uma mulher, tenho, antes de tudo, as pernas cruzadas dela devorando o meu intelecto.

Há, também, o canalha deselegante. E a elegância desaparecerá antes dos golfinhos na escala ambiental. Vou contar uma cena a que assisti num hotel numa importante capital do país.

Café da manhã tipo 6h30. Um hotel de gente que vai à cidade trabalhar, logo, acorda cedo. Mesas ocupadas com pessoas diferentes, mulheres e homens. Eis que duas meninas, de uns 20 anos, acompanhadas pelo "investidor", adentram o ambiente. Elas, claramente bêbadas, vestidas com vestidos muito acima dos joelhos, se acariciando. Ele, abraçando as duas, "se achando".

Pecado capital. Toda virtude é tímida, mesmo aquela que faz de você capaz de comer duas mulheres ao mesmo tempo num hotel caro. Aí reside o núcleo da deselegância.

Mas há um outro fenômeno relacionado a essa deselegância. O ressentimento masculino para com a emancipação feminina vem se somar aos históricos ressentimentos que toda relação afetiva e sexual carrega desde o alto paleolítico.

Adentrar o café da manhã do hotel deixando claro que pagara e (supostamente) comera as duas gatas, com tantas mulheres ali, é um ato de profunda grosseria.

A verdade é que muitos homens esqueceram como tratar uma mulher, "mesmo" que ela seja uma médica, uma advogada, uma juíza, uma executiva. O sutil fato que a emancipação feminina não elimina o imperativo de que uma mulher deve ser tratada com elegância e cuidado escapa às almas mais grosseiras e ressentidas entre os homens. Suspeito que essa perda de percepção seja uma das catástrofes afetivas do mundo contemporâneo.

Duas gatas em ação é um sonho de consumo de qualquer homem mortal (dos deuses também). Não era isso que se via naquela cena. O desejo ali parecia falso.

Não se trata de uma condenação moral da prostituição --profissão que só cresce em demanda com o desgaste das relações entre homem e mulher--, mas, sim, como a leveza sensual de uma mulher que bebeu "um pouco demais" pode se transformar num espetáculo macabro, antes de tudo por ter perdido a proteção da privacidade. O vínculo entre vício e privacidade é como um manto que protege o vício da própria degeneração. Mesmo no vício há uma ética.

Qualquer pessoa com um mínimo de experiência, e não corroída pelas mentiras corretas de uma época idiota como a nossa, sabe que a distância entre o vício e a virtude, principalmente numa mulher, depende do número de taças de vinho que ela bebeu. Mas essa máxima, até para o Marquês de Sade, pertence à alcova (quarto secreto da vida sexual das mulheres durante séculos). Sade escreveu um famoso libelo a favor dos vícios de alcova chamado "Filosofia da Alcova", em que ele descreve a iniciação da jovem Eugénie na vida libertina.

Se um dia a graça das deusas pousar sobre você e você ficar com duas gatas ao mesmo tempo, não as exponha a essa humilhação, nem as mulheres que estejam no recinto. No final das contas, o modo como um homem trata uma mulher em qualquer que seja a situação fala muito mais do seu caráter do que as ideias que ele vomita por aí.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

O fim dos likes no Instagram? - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 22/07

O modelo de likes ficou obsoleto; há outras formas de medir popularidade


Levantou poeira na semana passada o experimento do Instagram de ocultar os likes que um conteúdo recebe.

O Brasil está entre os países em que o teste está sendo realizado. Parece coisa pequena, mas o impacto de uma mudança como essa pode ser gigantesco.

A justificativa seria "tornar o Instagram um lugar onde as pessoas sintam-se confortáveis para se expressar", além de "remover a pressão sobre o sucesso de cada post". Esses pontos fazem sentido. Mas a questão é mais profunda.

A organização da internet em likes tem levado a um estado geral de inflamação da rede, que, por sua vez, resvala na sociedade.

Na busca por likes, vale tudo. Por exemplo, surgiu toda uma indústria para vender curtidas artificiais em qualquer rede social. No Instagram, mil likes em uma foto custam hoje por volta de R$ 35. No atacado, 50 mil likes custam cerca de R$ 900.

Em outras palavras, quem tem dinheiro pode artificialmente ser "famoso" na rede. Mesmo celebridades recorrem a esse tipo de recurso, tendo em vista a concorrência acirrada (e a ideia de que "todo o mundo está fazendo, então vou fazer também").

Mais do que isso, grupos políticos que querem dar aparência de "popularidade" a uma determinada ideia também fazem o mesmo: compram likes para artificialmente dar a impressão de que o "povo" está apoiando sua mensagem, criando uma forma perversa de propaganda oculta, que se tornou comum.

A compra de likes não é o único problema. Há estudos científicos que mostram que conteúdos apelativos e mesmo mentirosos geram mais "engajamento" e se espalham mais rápido e amplamente na rede.

Em outras palavras, na busca por likes, acabamos todos incentivados a produzir conteúdo cada vez mais extremo, reforçando um círculo vicioso inflamatório.

É nesse contexto que a medida do Instagram é um bom passo inicial. Mas há também razões comerciais.

O fato é que o modelo de likes para organizar conteúdos na rede ficou velho. Ele teve um impacto explosivo nos anos 2000 e em boa parte desta década. Mas, com o surgimento de ferramentas como inteligência artificial, o modelo do like começa a ficar obsoleto. Há muitas outras formas de medir popularidade e organizar conteúdos que não precisam mais do like.

Outra questão é a desigualdade. Likes são um tipo de capital que se distribui de forma profundamente desbalanceada nas redes sociais. Um pequeno percentual de celebridades acumula volumes gigantescos de engajamento, sobrando pouco para os usuários comuns.

Essa questão distributiva começou a se tornar ruim para o negócio e a abrir flancos para a entrada de concorrentes.

Um exemplo é o aplicativo de vídeos Kwai, surgido na China e que começa a se popularizar em outros países, incluindo o Brasil. Sua promessa é justamente acabar com o desnível entre celebridades e usuários comuns. Essa fórmula tem funcionado tão bem que começa a ser copiada por outras redes sociais.

A obsolescência dos likes é só um sintoma de uma temporada de mudanças mais profundas que irão sacudir o território das redes sociais. Obviamente, com efeitos para toda a sociedade.

READER

Já era Hackear só computadores

Já é Hackear usinas nucleares

Já vem Hackear satélites (dica do The Hack, tks)

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Juro baixo, mas ainda real - MARCIA DESSEN

FOLHA DE SP - 22/07

Você financiaria o déficit público em troca de taxa de juros zero ou juro negativo?


O investidor brasileiro ficou mal-acostumado, viciado em taxa de juros elevada. Longo período de inflação alta, cultivada com juros nominais elevadíssimos, patrocinou algumas distorções nas expectativas de retorno do investidor.

Ganhos reais de 6% ao ano, em média, acima da inflação, ajudam a justificar a preferência pela renda fixa, instrumentos de dívida, do setor público ou privado, que remuneravam regiamente investidores dispostos a emprestar dinheiro em troca dos generosos juros praticados no passado.

Investir no mercado de capitais, abrir mão de juros tão altos para se tornar acionista de empresas, sem nenhuma garantia de retorno, parecia uma alternativa pouco atraente. E, convenhamos, não é fácil bater o retorno histórico proporcionado pelo mercado de renda fixa no Brasil.

O cenário macroeconômico mudou, e muito. Precisamos aprender a investir com juros menores e também em mercados de maior risco, se o perfil de risco aceitar. E, adicionalmente, reduzir os custos para investir.

A Selic repousa no patamar de 6,50% ao ano, desde abril de 2018. São 15 meses de estabilidade, com tendência de queda, que obrigam o investidor a repensar a alocação de seus ativos.

Muitos reclamam de barriga cheia. Embora o juro nominal esteja na mínima histórica, ainda oferece juro real de cerca de 2,5% ao ano, no curto prazo, e um pouco maior, nos prazos mais longos.

Creio que o investidor brasileiro só sentirá falta desse juro, baixo, porém real, quando perder esse prêmio, como vem acontecendo no Japão há alguns anos e, mais recentemente, em alguns países europeus.

Sabe quanto ganha o investidor que compra um título de dez anos do governo alemão, por exemplo? Juro negativo de 0,4% ao ano! Sim, juro negativo, o investidor alemão paga para o governo guardar o dinheiro dele. Eu disse guardar porque, em não havendo rendimentos, parece inadequado falar investir.

Considerando inflação de 1,6% ao ano, a perda do investidor alemão é de 2% ao ano. Não deixa de ser uma transferência de renda dos mais ricos (dos rentistas, investidores) para os menos favorecidos, já que o governo, ao reduzir o custo da dívida, pode destinar recursos para implementar políticas públicas. Será que algum dia a gente chega lá?

Por aqui, o mercado ainda oferece oportunidades nada desprezíveis. O Tesouro Nacional paga juro real de 2,5% ao ano nos recursos de curtíssimo prazo, com liquidez diária (Letra Financeira do Tesouro).

Nas dívidas mais longas, com vencimento em 2035 e 2045, o juro real sobe para 3,6% ano, remuneração prefixada dos investidores que compram as Notas do Tesouro Nacional, série B, corrigidas pela variação do IPCA.

Sim, já foi melhor, muito melhor. Mas esse é o mercado que temos no momento. Não fique paralisado esperando o mercado voltar. Talvez não volte, talvez caia um pouco mais, aproveite enquanto é tempo.

Juros menores abrem espaço e apetite para o mercado de capitais. Os que tiverem tolerância ao risco podem diversificar suas aplicações investindo em ações, se ainda não o fazem, ou aumentar suas posições em ações, até o percentual aceitável, e desde que o horizonte seja de longo prazo.

Ou não, se o mercado de capitais não for a sua praia, permaneça na renda fixa, ainda generosa. E lembre-se de que esse mercado é constituído por instrumentos de dívida, pública ou privados.

Para ganhar mais, o investidor corre, necessariamente, mais risco de crédito. Avalie se o prêmio compensa o risco e diversifique, sempre.

Marcia Dessen
Planejadora financeira CFP (“Certified Financial Planner”), autora de “Finanças Pessoais: O Que Fazer com Meu Dinheiro”.

Liberdade pela metade é hipocrisia por inteiro - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR - 22/07

Em 12 de julho, o jornalista Glenn Greenwald era um dos convidados da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), parte da programação paralela à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um dos principais eventos do gênero no Brasil. Mas, no horário marcado para o início de sua palestra, manifestantes tentaram impedi-lo de falar. Para isso, usaram um carro de som, lasers e rojões, que incendiaram uma árvore. Só a intervenção da polícia conseguiu garantir que Greenwald falasse. O site que o jornalista comanda, o The Intercept Brasil, vem publicando supostos diálogos atribuídos ao então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça; ao procurador Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal; e a outros membros da força-tarefa da Operação Lava Jato.

Poucos dias depois, a Feira do Livro de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, cancelou a participação da jornalista Miriam Leitão e seu marido, o sociólogo Sérgio Abranches, no evento, previsto para agosto. A decisão ocorreu em reação a um abaixo-assinado on-line em que, referindo-se à jornalista, crítica do governo de Jair Bolsonaro, os signatários afirmam que, “por seu [de Miriam] viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim, que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”. Além do abaixo-assinado, a organização do evento recebeu até mesmo ameaças de agressão física contra o casal.


Um grande teste para as convicções democráticas de cada um de nós é justamente a defesa dos direitos daqueles que discordam das nossas posições
Esse tipo de intimidação, vinda de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, merece todo o repúdio, sendo típica de aprendizes de ditadores que não suportam o pluralismo de ideias, marca de qualquer sociedade democrática saudável. Especificamente no caso de Greenwald, é preciso ressaltar que, ainda que os supostos diálogos tenham sido obtidos de forma flagrantemente ilegal, e ainda que haja dúvidas fundadas sobre a própria autenticidade do material, sua divulgação continua a ser um direito do Intercept, sempre que se trate de assunto de interesse público. Se já não há crime na publicação dos supostos diálogos por Greenwald, menos ainda há no caso de Miriam Leitão. Que a liberdade de expressão de ambos seja atacada desta forma é uma vergonha para o país, que a muito custo recuperou este direito após anos de censura e autoritarismo.

Mas, dito isto, também é preciso relembrar que, em muitos casos, especialmente na esquerda, a indignação contra o tratamento dado a Greenwald e Miriam tem um quê de seletivo. Afinal, esse tipo de agressão não tem nada de novo. Em fevereiro de 2013, a blogueira cubana Yoani Sánchez foi hostilizada por manifestantes de esquerda no Nordeste, também levando ao cancelamento de um evento do qual ela participaria. Em outubro daquele mesmo ano, na Festa Literária Internacional de Cachoeira (BA), a ação de militantes conseguiu suspender uma mesa-redonda da qual participavam o filósofo Luiz Felipe Pondé e o sociólogo Demétrio Magnoli, forçando, ainda, o cancelamento de outro debate dentro do mesmo evento. Em junho de 2017, a mesma Miriam Leitão que hoje é alvo de bolsonaristas foi agredida verbalmente antes, durante e depois de um voo de Brasília ao Rio de Janeiro, por petistas que retornavam do congresso nacional do partido, realizado na capital nacional. Em outubro do mesmo ano, a exibição de um documentário sobre o filósofo Olavo de Carvalho na Universidade Federal de Pernambuco terminou em pancadaria promovida por militantes de esquerda – meses antes, cineastas tentaram (mas não conseguiram) inviabilizar um festival de cinema, retirando seus filmes do evento em protesto contra a inclusão deste mesmo documentário.

Não há a menor diferença entre estes casos de 2013 e 2017 e os episódios de dias atrás. São todos manifestações de ódio à liberdade de expressão, tentativas de calar quem pensa de forma diferente. Mas haverá quem silencie sobre uns e critique outros. Pior ainda: haverá quem repudie uns enquanto aplaude e justifica outros – no caso da cubana Yoani, por exemplo, o editor de um site de esquerda chegou ao cúmulo de afirmar que, como não houve violência física propriamente dita, o protesto seria legítimo.

Defender a liberdade de expressão apenas para quem concorda conosco não é democracia, mas hipocrisia. Não é possível repudiar os ataques contra Yoani, Magnoli, Pondé, O Jardim das Aflições e a agressão petista contra Miriam Leitão, e ao mesmo tempo defender ou aceitar que se impeça Greenwald e a mesma Miriam de falar – e vice-versa. Excetuados os casos óbvios, como a apologia ao crime ou a promoção de ideias que violam claramente a dignidade humana, caso do racismo, o livre fluxo de ideias é uma conquista civilizatória que precisamos preservar com todo o esforço; e um grande teste para as convicções democráticas de cada um de nós, independentemente de posição político-partidária, é justamente a defesa dos direitos daqueles que discordam das nossas posições.

FGTS é mais uma tentação para gastar - SAMY DANA

O Globo - 22/07

A liberação das contas seria boa. Mas receber uma quantia inesperada costuma ser a senha para muitos gastarem mais do que deviam


A liberação das contas do FGTS, planejada pelo governo, é uma boa notícia. Se o dinheiro pertence aos trabalhadores, o mais lógico é que possam dispor ou investir os valores como quiserem. Os recursos nas contas vinculadas, que ficam presos na Caixa Econômica Federal, rendem só 3% mais TR ao ano, menos até do que a poupança e pior que a inflação, ou seja, o dinheiro é corroído pelo tempo...

Mas quem recebe uma quantia inesperada, como a liberação do Fundo, também precisa ficar alerta. Um dinheiro nessas condições é um convite aos gastos, seja um celular, aquela jaqueta desejada ou fazer uma viagem, explicam Greg Kaplan, Andreas Fuster e Basit Zafar, três economistas, em artigo publicado pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Considere que você ganhou inesperadamente R$ 2 mil. Ou R$ 20 mil. O que faria com o dinheiro? Aplicando essas perguntas a 2.856 consumidores americanos como parte da pesquisa mensal do Fed sobre renda e trabalho, os três autores verificaram como cada um lidaria com essa situação. Foram quatro rodadas de entrevistas, de março de 2016 a março de 2017.

Há décadas os economistas tentam entender as situações que nos levam a consumir mais. A grande maioria dos estudos usa como base o momento da compra, em uma loja, um site ou outra situação. Mas, explica o artigo, também importa como ganhamos o dinheiro gasto. Muitos consumidores tratam de maneira diferente uma quantia que faz parte da renda mensal e um valor recebido de outra fonte, como um prêmio da loteria ou o dinheiro do FGTS.

A boa notícia é que nem uma em cada cinco pessoas (19%) pesquisadas pretendia gastar se o valor fosse de US$ 500, mas a média vai subindo conforme aumentam os valores. Se o ganho era de US$ 2.500, os gastadores somavam 27%. E, quando o valor passou para US$ 5 mil, 39%, ou seja, quase quatro a cada dez pessoas, se dispunham a gastar parte do dinheiro.

E quanto? Para quem iria receber US$ 500, era aceitável gastar até US$ 250 em um jantar fora, um celular ou outro mimo. Já quem ganharia US$ 2.500 considerou tudo bem gastar até US$ 1 mil. Os maiores gastadores foram os possíveis ganhadores de US$ 5 mil. Ainda que, proporcionalmente, o gasto fosse menor (30%), eles não viam qualquer problema em torrar até US$ 1.500.

As respostas mudaram quando os entrevistadores perguntaram a dois grupos como gastariam o dinheiro sabendo que só seria pago dali a três meses. Desta vez havia apenas duas opções, ganhar US$ 500 ou US$ 5 mil.

A proporção de gastos se mantém, mas é bem menor o percentual de pessoas dispostas a gastar. Foi perguntado ainda o que as pessoas fariam se, em vez de ganhar US$ 500 ou US$ 5 mil, pedissem o dinheiro emprestado. Só 8% disseram pretender gastar algum valor.

Os resultados completam alguns estudos recentes. Depois da crise de 2007-2008, por exemplo, o governo dos Estados Unidos pagou um bônus aos americanos para estimular o consumo. Parte das pessoas guardou o dinheiro, mas quem se dispôs a consumir gastou em média 75% do bônus, segundo pesquisa do Departamento do Trabalho.

Para nos convencer a gastar, é como se nosso cérebro tentasse nos convencer também de que o dinheiro fará menos falta. Pode parecer a solução para aquele gasto que você vinha adiando, mas que tal, então, como FGTS ou suas economias, esperar três meses antes de usar? Verá que muita coisa não era tão importante assim.

Refúgio na galera - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 22/07

Estratégia de Bolsonaro é falar o que quer e correr para as ruas

De surpresa, Jair Bolsonaro apareceu em uma tradicional galeteria em Brasília para almoçar no domingo (21). “O calor do povo não tem preço”, disse em rede social.

Pouco antes, o presidente esteve em um culto evangélico e discursou aos presentes. Ele afirmou que não sofre a solidão do poder porque tem lealdade com o povo. No sábado (20), deu uma passada em um encontro de motociclistas no DF. Divulgou as imagens da visita logo em seguida.

Nenhum desses eventos estava previsto na agenda de fim de semana do presidente. Episódios semelhantes, com escapadas sem aviso prévio, ocorreram em sábados e domingos recentes. E a imprensa, logicamente, precisa correr atrás dele.

Assim como também virou rotina o presidente terminar a semana sob artilharia após declarações polêmicas, muitas descabidas, desconexas da realidade e até da verdade.

O que faz Bolsonaro? Tem usado o fim de semana para tentar prevalecer sua narrativa dos fatos da véspera, culpando a imprensa por, segundo ele, deturpar o que dissera.

Ao mesmo tempo, produz e difunde imagens com simpatizantes. Noves meses depois de ser eleito presidente, Bolsonaro mantém a tática de campanha eleitoral pendurada em seguidores fora e dentro das redes.

Parece ser a aposta dele diante de ausência de um apoio fidelizado no Congresso, da escassez de estratégia política e de comunicação no Planalto e da intolerância que não esconde ter a críticas da imprensa.

Há três dias, Bolsonaro surpreendeu até quem já desistiu de se surpreender com ele. Foi uma sexta-feira (19) maluca e sem fim. Declarou que não há fome no país, agrediu governadores do Nordeste e admitiu que criticou um filme (o da Bruna Surfistinha) ao qual não assistiu.

Questionado sobre o fim dos 40% de multa sobre o FGTS, deu resposta confusa. E colocou em xeque dados do governo sobre desmatamento.

Está posta a estratégia do presidente de falar o que quer e correr para a galera. A dúvida é o preço que o país pagará por isso no longo prazo.

Leandro Colon
Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.

Moro e Deltan, os valentões, fogem do “caso Flávio”. E ainda: Globo e STF - REINALDO AZEVEDO

UOL - 22/07





Os folguedos de Flávio Bolsonaro (centro) desarrumaram o discurso oficial dos paladinos Deltan Dallagnol (esq.) e Sério Moro (dir.): sobrou a empulhação
A valentia loquaz de Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato, tem um limite: não desagradar ao governo Bolsonaro. E nisso ele encontra um parceiro e tanto: Sérgio Moro. Novos diálogos revelados pelo site "The Intercept Brasil" demonstram a administração política que Dallagnol dá até às suas declarações. Um episódio ilustra a politicagem na força-tarefa de maneira constrangedora.

Dallagnol recebe um convite da reportagem do "Fantástico", da TV Globo, para dar uma entrevista sobre o fim do foro especial para deputados e senadores, uma das militâncias a que se dedicou a direção de jornalismo da emissora. A personagem principal da notícia, que receberia tratamento necessariamente negativo, dadas as circunstâncias, era o deputado Paulo Pimenta (RS), do PT. Processo de que é réu sairia do Supremo e iria para a primeira instância porque relativo a caso anterior ao mandato e sem relação com este. Mas o "Fantástico" deixa claro que se vai falar também sobre Flávio Bolsonaro.

No dia 21 de janeiro deste ano, Dallagnol envia a seguinte mensagem a seus pares no grupo "Filhos de Januário 3" (conforme o original):
DALLAGNOL – 16:44:44 – Pessoal, temos um pedido de entrevsita do fantástico sobre foro privilegiado. O caso central é bom, envolvendo o Paulo Pimenta, se isso for verdade rs. O risco é eles decidirem no fim focar no Flávio Bolsonaro e usarem nossas falas nesse outro contexto. De um modo ou de outro, o que temos pra falar é a mesma coisa. Além disso, algumas informações que buscam não temos (são da PGR). A questão é se é conveniente darmos entrevista para essa reportagem ou não. Eu não vejo que tenhamos nada a ganhar porque a questão do foro já tá definida. Diferente de uma matéria sobre prisão em segunda instância…
Que coisa fabulosa!

Notem que, segundo o coordenador da força-tarefa, "o caso central é bom, envolvendo o Paulo Pimenta". Ou por outra: bater num petista era uma vantagem e estava adequado à metafísica influente na turma. E, de fato, a mensagem enviada pela Globo, repassada por Dallagnol, deixa claro: "suspeita contra o Pimenta será nosso principal case numa reportagem sobre os casos em que políticos perderam o foro, devido ao entendimento do Supremo de que a prerrogativa só existe para crimes cometidos durante o mandato e que dizem respeito ao mandato." Mas aí acrescenta o jornalista (no caso, da RBS, filiada no Rio Grande do Sul): "Citaremos também o caso F. Bolsonaro, que surgiu após o início da nossa apuração".

E aí Dallagnol treme nas bases: "O risco é eles decidirem no fim focar no Flávio Bolsonaro e usarem nossas falas nesse outro contexto." A desconfiança do procurador não faz jus à fidelidade da emissora à Lava Jato, de quem é a mais vistosa e poderosa porta-voz — e não apenas da força-tarefa de Curitiba.

Dallagnol não vê nada de útil em conceder a entrevista porque eles já ganharam a batalha do fim do foro especial. E falar sobre Flávio não lhe pareceu conveniente… Se fosse só para malhar o petista Pimenta, aí seria bom… Mas Flávio???

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZNão era a primeira vez que Dallagnol evidenciava que melhor seria não mexer muito com o Zero Um. No mesmo grupo, no dia 8 de dezembro do ano passado, escreveu:
DALLAGNOL – 09:04:38 – Em entrevistas, certamente vão me perguntar sobre isso [Flávio]. Não vejo como desviar da pergunta, mas posso ir até diferentes graus de profundidade. 1) é algo que precisa ser investigado; 2) tem toda a cara de esquema de devolução de parte dos salários como o da Aline Correa que denunciamos ou, pior até, de fantasmas.

Em outra conversa, com o procurador Roberson Pozzombon (o "Robito", aquele com quem queria criar empresa de palestras em nome das respectivas mulheres para "lucrar"), o próprio Dallagnol pondera:
"DALLAGNOL – 10:04:00 – Não sei se convém o nível 2. Não podemos ficar quietos, mas é neste momento um pouco como com RD [Raquel Dodge]. Vamos depender dele pra reformas… Não sei se vale bater mais forte

CADÊ O VALENTÃO?Pois é… Nada disso lembra aquele procurador sempre valentão, que dava plantão nas redes sociais quando algo estava em votação no Supremo e que saía por aí tonitruando a sua moralidade impecável, posando, se necessário, de vítima; afirmando que a função que exercem os membros da força-tarefa lhes cobra quase uma dedicação de mártires — no seu caso, um mártir que anunciou à própria mulher ganhos líquidos de R$ 400 mil com palestras em 2018.

O COMPORTAMENTO DE MOROOs procuradores também falam do comportamento de Sergio Moro depois que o caso Flávio Bolsonaro veio a público. Prestem atenção a esta sequência daquele mesmo 8 de dezembro de 2018, pouco antes de Dallagnol decidir entre a coragem e covardia, ficando com a segunda.

A conversa começa com o envio de um link de reportagem do UOL sobre o depósito de R$ 24 mil que Fabrício Queiroz fizera na conta de Michelle Bolsonaro, mulher do, à época, presidente eleito:

DELTAN DALLAGNOL – 00:56:50 – https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/12/07/bolsonaro-diz-que-ex-assessor-tinha-divida-com-ele-e-pagou-a-primeira-dama.htm
DALLAGNOL – 00:58:15 – [imagem não encontrada]
DALLAGNOL – 00:58:15 – [imagem não encontrada]
DALLAGNOL – 00:58:38 – COAF com Moro
DALLAGNOL – 00:58:40 – Aiaiai
JULIO NORONHA – 00:59:34
DALLAGNOL – 01:04:40 – [imagem não encontrada]
JANUÁRIO PALUDO – 07:01:20 – Isso lembr
PALUDO – 07:01:48 – Lembra algo Deltan?
PALUDO – 07:03:08 – Aiaiai
JERUSA VIECILLI – 07:05:24 – Falo nada … Só observo
DALLAGNOL – 08:47:52 – Kkk
DALLAGNOL – 08:52:01 – É óbvio o q aconteceu… E agora, José?
DALLAGNOL – 08:53:37 – Moro deve aguardar a apuração e ver quem será implicado. Filho certamente. O problema é: o pai vai deixar? Ou pior, e se o pai estiver implicado, o que pode indicar o rolo dos empréstimos?
DALLAGNOL – 08:54:21 – Seja como for, presidente não vai afastar o filho. E se isso tudo acontecer antes de aparecer vaga no supremo?
DALLAGNOL – 08:58:11 – Agora, Bolso terá algum interesse em aparelhar a PGR, embora o Flávio tenha foro no TJRJ. Última saída seria dar um ministério e blindar ele na PGR. Pra isso, teria que achar um colega bem trampa
ATHAYDE RIBEIRO COSTA – 08:59:41 – É so copiar e colar a ultima denuncia do Geddel
ROBERSON POZZOBON – 09:02:52 – Acho que Moro já devia contar com a possibilidade de que algo do gênero acontecesse
POZZOBON – 09:03:19 – A questão é quanto ele estará disposto a ficar no cargo com isso ou se mais disso vir


Moro, como sabemos, silenciou sobre o caso Fabrício. O paladino contra a corrupção enfiou o rabo da moralidade entre as pernas e preferiu fugir do assunto. Fez o mesmo também em outro caso que chega a ser vexaminoso: o de seu colega de ministério Marcelo Álvaro Antonio (Turismo) e o laranjal que o cerca.

Os diálogos divulgados neste domingo mostram a parcialidade e o direcionamento político da "luta contra a corrupção" travada por Moro e Dallagnol, entre outros.

A VAGA NO STFE agora muito importante corre o risco de se perder em meio às conversas. Escreve Dallagnol:
DALLAGNOL – 08:54:21 – Seja como for, presidente não vai afastar o filho. E se isso tudo acontecer antes de aparecer vaga no supremo?

No dia 12 de maio, em entrevista a Milton Neves, da Band, Bolsonaro afirmou que, ao convidar Moro para o Ministério da Justiça, prometeu que o indicaria para uma vaga no Supremo. Ficou claro que tal promessa tinha feito parte do pacote de ofertas para que aceitasse a pasta. No dia seguinte, o ministro da Justiça desmentiu o chefe. E ficou o dito pelo não-dito.

Notem que, muito antes, ainda em dezembro, Dallagnol já tratava da indicação de seu amigo de fé, irmão, camarada para a vaga no tribunal. E ainda deixa claro que, se Moro resolvesse se engajar na apuração das lambanças havidas no gabinete de Flávio, a indicação não sairia.

E Moro, como sabemos, não se engajou.

Só não sei se haverá tempo para ser ministro do Supremo.

Digam: a Lava Jato não lhes parece, a cada dia, mais isenta, mais independente, mais imparcial e interessada apenas em combater os malfeitores?

Ah, sim: os valentes todos afirmam não reconhecer a autenticidade das conversas. A Globo diz não comentar conversa de seus jornalistas com fontes. Mas não nega, claro!, o envio da mensagem. Nem poderia. Ela é verdadeira, a exemplo de todas as outras.

Blog inicia recesso branco para contactar bases - JOSIAS DE SOUZA

BLOG DO JOSIAS - UOL - 22/07



O blog entrará em recesso por duas semanas. Recesso branco, como o dos parlamentares. A exemplo do Congresso, o blogpermanecerá aberto, mas sairei em férias informais, para visitar as bases. Busco resposta para uma dúvida existencial: sou membro da "mídia golpista" ou um rematado "comunista"?

Agora é Jair Bolsonaro quem acusa a imprensa de perseguição. Para o capitão, os repórteres "morrem de saudades do Lula". Por isso, "distorcem" suas declarações, tratando-o com evidente "má-fé". As palavras do presidente alimentam os escorpiões interiores dos seus seguidores.

Os apologistas mais venenosos de Bolsonaro percorrem a internet à procura de encrenca. As ferroadas me chegam por todas as caixas de entrada —nos comentários do blog, no e-mail, no WhatsApp, no Facebook, no Twitter. Mandam-me para Cuba, para a Venezuela. Ou pior: "Vai à…"

Sempre imaginei que eu fosse apenas um jornalista. Mas dizem que sou outras coisas. O sufixo é o mesmo: "ista". O que muda é a serventia. Nos últimos anos, o petismo chamava-me de "golpista". Agora, o bolsonarismo tacha-me de "comunista". Daí a dúvida existencial.

Petistas e bolsonaristas brigam também entre si. A disputa ganha um quê de briga de pátio de colégio. A tribo do capitão diz que o PT roubou no mensalão e no petrolão. A turma do "Lula Livre" aponta para Flávio Bolsonaro. E pergunta: "Cadê o Queiroz?" Guardadas as proporções, é como se os fatos dessem razão aos dois lados.

Enquanto os fanáticos se odeiam em praça pública —ou nas redes sociais, que muitos acreditam ser a mesma coisa— cabe à imprensa cumprir o papel de imprensar, expondo a hipocrisia generalizada. Para isso, não é preciso odiar ninguém. Basta amar o país.

A desintoxicação do recesso branco servirá para potencializar a conexão do repórter com o interesse público. Quanto aos adoradores dos defeitos alheios, espera-se que abram os olhos. Sob pena de acabarem arrancando as próprias carótidas, chupando o próprio sangue, como vampiros de si mesmos.

O Brasil lava mais branco - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 22/07

Surge uma convergência entre os Bolsonaro e um ministro ligado ao PT porque os objetivos são comuns

Estou em Cananeia, que foi, ao lado de São Vicente, ali pelos anos 30 do século XVI, uma das primeiras cidades do Brasil. Seu fundador chamava-se Cosme Fernandes, mas era conhecido como Bacharel da Cananeia. Era um degredado, juntou-se com uma índia, tornou-se poderoso, não respeitava a Coroa. Um fora da lei.

Esperando a balsa em Itapitangui, soube que o ministro Toffoli proibiu investigações com dados do Coaf, sem autorização judicial. Pensei: um frêmito de alegria deve estar animando os fora da lei do Brasil. Sobretudo os que fazem lavagem de dinheiro.

Como pedir uma autorização judicial sem os dados do Coaf que a fundamentam? Lembrei-me de um poema de Vinicius: “Filhos, melhor não tê-los/ Mas se não os temos, como sabê-los?”

A propósito, a última semana foi dominada pelos filhos do Capitão. A decisão de Toffoli partiu de um pedido de Flávio Bolsonaro para deter as investigações, que, aliás, se estendem a vários deputados do Rio de Janeiro.

Isso significa, em primeiro lugar, que o caso Queiroz volta para a gaveta; o esqueleto volta para o armário. Mas revela também uma contradição no discurso de Bolsonaro.

Ele se coloca ao lado da Lavo-Jato nas investigações contra o PT, mas, no momento em que elas rondam sua família, o estado de direito precisa ser salvo. Nesse caso, surge uma convergência entre os Bolsonaro e um ministro historicamente ligado ao PT porque os objetivos são comuns.

Essa imagem de esqueleto no armário para mim é importante porque tem uma influência decisiva nos grupos partidários. Ela enfraquece as afinidades políticas e fortalece o sentido de cumplicidade. Partilham-se menos as ideias, mais os segredos.

Espantoso escrever sobre a família do presidente como se ainda estivéssemos numa monarquia. Foi esse também o impacto que me trouxe a notícia de que Eduardo Bolsonaro seria indicado para embaixador nos Estados Unidos.

Alguns entusiastas do progresso afirmam sempre que estamos muitos melhores do que nos tempos remotos da humanidade. É indiscutível. Nesse viés otimista poderia, por exemplo, consolar-me com os romanos que comentavam Calígula e seu cavalo Incitatus, nomeado senador.

Mas se o viés for saudosista, ficaria melancólico ao lembrar que o primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos foi Joaquim Nabuco, uma das figuras mais importantes de nossa história política.

O pressuposto da indicação agora é a proximidade com Trump. Acontece que uma tarefa dessas implica uma relação também com instituições, forças políticas, grupos empresariais.

Dificilmente numa república seria indicado o filho de um presidente para tal cargo. A tendência republicana é buscar um nome experiente e capaz, dada a importância da tarefa.

Nos Estados Unidos, há uma prática mais comum de indicar embaixadores sem tradição diplomática. De um modo geral, são empresários apontados pelo próprio presidente.

Trump tem utilizado muito esse recurso, que não surgiu com ele. Mas os embaixadores que apontou têm provocado polêmicas em várias partes do mundo: Alemanha, Holanda, Israel, com uma atuação política agressiva e algumas gafes.

Talvez seja inspirado em Trump e também na atuação da filha do presidente americano Ivanka que Bolsonaro pensa em dar esse passo. Ivanka acompanha o pai, sob críticas na imprensa, em alguns encontros internacionais.

Não conheço bastante o Senado de hoje para cravar uma previsão. Sei apenas que será algo difícil manter essa escolha, e ela dará margem a um grande psicodrama político.

A quantidade de memes e piadas mostra que o tema caiu no universo do humor. Dispensa grandes considerações teóricas, pois grande parte das pessoas compreende o que se passa e o expressa de uma forma muito mais criativa.

A tarefa dos senadores será considerar se esta é uma boa escolha e funcionar como um contrapeso ao poder do presidente.

Aqui no extremo meridional paulista, na histórica Cananeia, busco o consolo no passado. Estamos melhor que Roma Antiga nas nomeações e chegamos ao estágio da Suíça. Mas a Suíça do tempo em que era famosa por lavar mais branco.

Privilegiados, uni-vos! - DENIS LERRER ROSENFIELD

O Estado de S.Paulo - 22/07

A esquerda abandonou os trabalhadores por uma suposta fidelidade partidária e doutrinária


A votação da reforma da Previdência terminou, no campo da esquerda, por provocar desalinhamentos entre os seus membros, com deputados se demarcando da posição de seus respectivos partidos, sobretudo no PSB e no PDT, com PT, PSOL e PCdoB mantendo a fidelidade de seus parlamentares. Os primeiros mostraram uma salutar desavença interna, os últimos mantiveram-se firmes em suas origens leninistas, em suas várias vertentes.

Contudo, para além do problema partidário de ordem conjuntural, com ameaças de punições e expulsões, lideradas por chefões partidários fazendo o seu teatrinho, existe uma questão de monta, concernente ao que significa ser de esquerda. Ou seja, qual é o tipo de esquerda que se alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os mesmos privilégios? Será que a mensagem da esquerda brasileira – e para além dela – é uma mensagem particularista, corporativa?

A mensagem da esquerda, em sua vertente marxista, era efetivamente universal. Estava voltada para a emancipação da classe trabalhadora, naquele então denominada proletária, e, por intermédio dela, da humanidade. A defesa dos proletários se faria por sua libertação das amarras do capitalismo, instituindo um tipo de sociedade cuja característica central seria a igualdade em todos os níveis, sem nenhum tipo de particularismo, nem de interesse particular.

Para o presente propósito, não cabe a discussão sobre a exequibilidade ou não dessa proposta, mas tão somente ressaltar sua universalidade, sem a qual ela se torna claramente ininteligível. A contraposição principal se estabelecia em relação aos burgueses, que deveriam ser eliminados ou, em sua versão mais branda, tornados iguais. Não se tratava, na posição marxista, de defender os interesses corporativos de funcionários públicos em detrimento dos outros trabalhadores.

Em linguagem corrente: não tem cabimento político, nem moral, que os trabalhadores comuns, com ganhos pequenos, financiem o regime dos funcionários públicos, mediante aposentadorias precoces, integralidade de seus vencimentos e paridade, entre outros benefícios. Seria a própria mensagem da esquerda que estaria sendo traída, em proveito de um punhado de privilegiados, que se arvoram, hipocritamente, em defensores dos “direitos sociais”, como se fossem os direitos de todos os trabalhadores.

Os deputados rebeldes têm, dentre outros méritos, o de terem resgatado uma mensagem de cunho universal, abandonando o corporativismo e o particularismo de seus respectivos partidos. Os que não se rebelaram ficaram atados à usurpação ideológica. Pensaram eles na sociedade como um todo, não no caráter restritivo da conjuntura partidária. Partido, em sua definição, defende uma parte, porém devendo integrá-la ao interesse coletivo, sem o qual cai nas armadilhas do corporativismo e do fisiologismo.

A pauta previdenciária é uma pauta da sociedade e do Estado, não apenas dos partidos políticos. Não se trata de ser a favor ou contra o governo, mas de ser ou não a favor da coletividade, do bem maior. O cálculo meramente partidário é particular, restrito às suas lideranças e a seus interesses. Não tem nenhuma dimensão social.

Do ponto de vista da esquerda em geral, a mensagem dos rebeldes foi de renovação, de sacudida das carcaças partidárias. Pensaram no todo, e não na parte; no coletivo, e não no particular. Apesar das incompreensões de seu gesto, estão proclamando por um reposicionamento da esquerda e de seus respectivos programas.

Democracias contemporâneas dependem de uma esquerda moderna e plural. Dependem de uma esquerda que pense os desafios do mundo atual, acompanhando as enormes mudanças políticas, econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e científicas das últimas décadas, que transformaram a face da humanidade. Pense-se no conceito marxista e positivista de proletário, para melhor aquilatarmos a grande transformação. Perdeu seu significado, quanto mais não seja, porque o mundo mudou.

O que tinha a esquerda a propor na reforma da Previdência? Além do não dogmático, voltado para a defesa dos privilegiados e de suas corporações, tinha algo a dizer? Não poderia ter apresentado uma proposta mais universal do que aquela que, após laboriosas negociações, foi finalmente aprovada em primeira votação? Não teria sido o momento de a esquerda dizer não aos privilegiados e sim aos trabalhadores em geral?

Em vez disso, optou por abandonar os trabalhadores, refugiando-se numa suposta fidelidade partidária e doutrinária. Ora, é precisamente essa doutrina que está em questão. Ela não responde ao espírito do tempo, funciona como óculos às avessas, que só vêm para dentro, retirando-se do exterior.

O PT continua firme em suas posições esquerdizantes, à sua origem leninista, apesar de seu namoro com a social-democracia no primeiro governo Lula. O PCdoB e o PSOL seguem na mesma linha dogmática. O PSB tem também um programa partidário de cunho marxistizante, cuja leitura remete a uma peça de ficção política, própria de outro tempo. O PDT, originário do antigo PTB, por sua vez, é fruto de outra concepção, oriunda do trabalhismo inglês e, nesse sentido, já não segue a orientação leninista, algo próprio, então, dos comunistas ingleses. Historicamente, correspondem ambos os partidos a uma primeira versão da social-democracia no País, embora tampouco tenham seguido o caminho da modernização. Haveria aí uma proximidade com os tucanos, com a atual social-democracia brasileira, por terem fontes comuns.

Os debates da reforma da Previdência, extremamente pobres na perspectiva das esquerdas, mostraram os impasses de uma modernização necessária, mas claudicante e já atrasada. O seu dilema poderia ser assim traduzido: O “proletários de todo o mundo, uni-vos!” tornou-se “privilegiados, uni-vos!”. Triste destino!

Por que Jair Bolsonaro fala tanto? - JOSÉ HENRIQUE MARIANTE

FOLHA DE SP - 22/07

Arroubos de nacionalismo, grosseria e preconceito fazem barulho


Uma das tantas questões que perseguem o não eleitor de Jair Bolsonaro nos últimos meses é o que pensam neste momento os que o elegeram. De um lado, movido pela raiva de estádio que experimentamos atualmente, está pronto para perguntar se os bolsonaristas já se arrependeram. Por outro, questiona a si mesmo se há vida inteligente no pensamento do presidente ou se ele é apenas outro governante insensato a atazanar sua existência.

A biruta de Bolsonaro atende, claro, aos movimentos que o levaram ao Planalto. Dizer que o país vai falir sem a reforma da Previdência ou que terá mais emprego sem a multa de 40% do FGTS faz parte do adestramento liberal a que se submeteu desde que Paulo Guedes, abandonado por Luciano Huck, caiu em seu colo na corrida eleitoral.

Obedece à mesma lógica a defesa intransigente de uma agenda tão paroquial como variada, reflexo de quem começou pescando voto em qualquer lugar. De armas a licença para matar de policiais, de rosa e azul a transgêneros, de radares a cadeirinha, de pesca oceânica a agrotóxicos.

Bolsonaro fala o que a turma quer ouvir, como qualquer político, mas diariamente vai além. Na ânsia de mostrar que seu governo tem sentido, antecipa medidas a ponto de quase inviabilizá-las, vide o caso do saque do FGTS. Ou promete medidas tão específicas que geram desconfiança, como o filho chapeiro e, portanto, embaixador.

Sinais inequívocos de despreparo para o cargo? Tática diversionista para tirar o foco dos problemas reais? Elaborado comportamento para se manter em polêmica, realimentar a ira da matilha digital e manter aceso seu projeto de poder?

Todas as hipóteses parecem válidas e não impressiona que façam barulho arroubos de nacionalismo, grosseria e preconceito. A resposta a jornalistas estrangeiros sobre a Amazônia e a fala sobre “governadores paraíba” são só os últimos exemplos.

Bolsonaro fala o que pensa. Esse é o problema.

José Henrique Mariante
Engenheiro e jornalista, é secretário-assistente de Redação da Folha, onde trabalha desde 1992

Legislativo já debate o fim da estabilidade - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 22/07

É preciso cumprir a Constituição, que impõe parâmetros de produtividade e qualidade ao funcionalismo


É imprescindível a modernização administrativa do Estado na sequência da reforma da Previdência. Governo, Câmara e Senado se mobilizam na preparação de projetos, aparentemente convergentes, sobre reestruturação de cargos, redução do número de funções de confiança, adoção de critérios de mérito nas carreiras e, também, revisão da estabilidade no emprego público.

Na semana passada, a Comissão de Assuntos Sociais remeteu ao plenário do Senado, para decisão urgente, um projeto de lei complementar instituindo a avaliação periódica e obrigatória de desempenho para os servidores nos três Poderes.

Depois de três décadas, pretende-se regulamentar um artigo (nº 41) da Constituição. Ele estabelece como condição obrigatória a avaliação de mérito no desempenho de servidores, para admissão ou demissão.

Pelas projeções oficiais, no ano que vem o país deverá somar quase 12 milhões de funcionários nas administrações federal, estadual e municipal — essa conta não inclui os empregados de empresas públicas e autarquias. Hoje são 6,7 milhões nas prefeituras, 3,7 milhões nos governos estaduais e 1,2 milhão na União.

A expansão do emprego público nas últimas três décadas foi mais acentuada nos municípios, por efeito da concentração de serviços de educação e saúde nas prefeituras, áreas que absorvem 40% da folha salarial. No conjunto, o setor público remunera seus empregados em média 50% acima do setor privado. Não há, porém, qualquer garantia de contrapartida ao contribuinte em padrão mínimo de qualidade e eficiência nos serviços (caros) que são prestados.

A maioria dos estados e municípios está em virtual falência, com excesso de pessoal ativo em áreas intermediárias da burocracia. Os gastos com pessoal extrapolam todos os limites legais e consomem recursos que deveriam ser destinados às atividades essenciais, como saúde, educação e segurança. O lobby das corporações do funcionalismo, no entanto, construiu uma muralha jurídica que impede demissões até por inoperância no setor público.

Assim, servidores concursados, com estabilidade garantida após três anos, só perdem o cargo mediante infindável processo administrativo ou por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição prevê ainda outra possibilidade, a da avaliação de mérito, mas até hoje isso ão foi regulamentado.

A premissa corporativa de que é inequívoca a alta qualificação do serviço público simplesmente não corresponde aos fatos. Não há aferição e reconhecimento de mérito na carreira, por isso não se distingue o funcionário de desempenho sofrível, que custa em dobro ao contribuinte.

É preciso cumprir a Constituição, que impõe parâmetros de produtividade e qualidade ao funcionalismo. O Senado abriu o debate e deveria avançar, celeremente, em outros aspectos dessa modernização, fundamental ao Estado brasileiro.

Os impulsos do presidente - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 22/07


A esta altura, está mais do que evidente que Jair Bolsonaro não sabe agir com a impessoalidade que há de caracterizar o exercício da Presidência da República.


A esta altura, está mais do que evidente que o presidente Jair Bolsonaro não sabe agir com a impessoalidade que há de caracterizar o exercício da Presidência da República. Em apenas 200 dias de governo, houve exemplos em excesso do peso que os afetos e as hostilidades particulares do presidente têm sobre decisões de Estado, que, a rigor, não deveriam ser pautadas pela emoção.

Em defesa do presidente, diga-se que não transparece deliberada má fé na mixórdia que ele faz entre os assuntos de Estado e o limitado universo de suas paixões. Bolsonaro opera sob o que o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou de “ética de fundo emotivo”. Os eventuais reparos feitos a seus atos e decisões como chefe de Estado e de governo são tomados pelo presidente como ofensa pessoal, como mera incapacidade do outro de perceber os bons eflúvios de suas nobres intenções.

Desde que anunciou sua intenção de indicar um filho para o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos – o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) –, não houve um só dia em que o presidente não tenha defendido, de alguma forma, o nome do “03” para um dos postos mais críticos de nossa diplomacia. Tivesse o olhar de um estadista, seria mais fácil para o presidente compreender o quão estapafúrdia é a escolha, por qualquer ângulo que se a analise. Porém, Jair Bolsonaro não vê sua escolha com olhos de estadista, mas com olhos de pai. E é como pai que reage às críticas.

Primeiro, a fim de justificar o injustificável, não se sensibilizou com os argumentos contrários à indicação e viu nas próprias críticas a razão para manter firme sua posição. “Se (Eduardo Bolsonaro) está sendo criticado, é sinal de que é a pessoa adequada (para ser o embaixador brasileiro em Washington)”, disse o presidente na tribuna da Câmara dos Deputados na segunda-feira passada.

Na quinta-feira, abrindo mão do pudor, Jair Bolsonaro voltou a defender o filho em termos ainda mais claros. “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, mas não tem nada a ver com filé mignon essa história (da embaixada nos Estados Unidos). É aprofundar relacionamento com a maior potência do mundo”, disse. Noves fora o pitoresco da declaração, saliente-se que ela revela duplamente o peso dos afetos nas decisões de Jair Bolsonaro. Em especial no que concerne às relações entre países, que devem ser pautadas por interesses, e não por supostas relações de amizade, como a que Bolsonaro supõe haver entre sua família e a do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Dos mais relevantes temas para o País, como a indicação de um embaixador, às troças com autoridades, tudo parece ser tratado pelo presidente da República fora da dimensão da impessoalidade do cargo. Não se quer dizer com isso que o comportamento de Bolsonaro deva ser marcado pela frieza e pela sisudez. Roga-se apenas que ao tratar de assuntos de Estado o presidente faça um esforço para contrabalançar suas emoções com o interesse nacional. Ora coincidem, ora não. De Jair Bolsonaro, dado o cargo que ocupa, é esperado discernimento.

Nada parece escapar do crivo afetivo do presidente. Jair Bolsonaro é capaz de atacar ao mesmo tempo tanto prosaicas mudanças no funcionamento de aplicativos como o Instagram como o conteúdo dos filmes produzidos com recursos da Ancine. No primeiro caso, é tema do qual o presidente nem sequer deveria se ocupar. No segundo, sim, mas por razões de outra natureza, objetiva. Afinal, trata-se do emprego de recursos públicos, e não de seu gosto por esta ou aquela produção.

A preponderância dos afetos sobre a razão obnubila a visão que o presidente deve ter do papel das instituições.

Há cerca de três meses, Jair Bolsonaro afirmou que “não nasceu para ser presidente”. Se não nasceu para o cargo, é verdade que optou por exercê-lo. E foi vitorioso no intento. É justo que os brasileiros, então, esperem que a investidura na Presidência sirva de aprendizado diário, caso Jair Bolsonaro tenha a humildade de tomar as críticas pelo que elas são – críticas objetivas, e não ofensas à sua honra, à sua dignidade.