ZERO HORA - 23/02
Através do artigo de Antônio Goulart, Literatura Enganosa?, publicado na Zero Hora de 08/02, fiquei sabendo de uma opinião que o escritor norte-americano Ben Greenman tem alardeado: a de que a literatura de ficção não deveria se basear em fatos reais, sob pena de estar enganando o leitor. Segundo ele, ficção é uma prosa que trata sobre eventos e pessoas imaginárias, e fim de papo. Greenman resolveu processar escritores e editoras que não cumprem essa definição básica.
Só pode ser brincadeira. Em tudo – e em todos – há uma porcentagem de invenção. Inventamos não só o nosso amor, mas inclusive a nossa dor. Somos seres perplexos tentando encontrar nosso lugar no universo e procurando viver de um jeito civilizado e sensato, o que exige alguma elaboração intelectual. Usar apenas o instinto nos conduziria à selvageria. Temos que nos narrar – para os outros e para nós mesmos – a fim de sermos compreendidos. Quando eu conto algo que aconteceu comigo para uma amiga, estou criando uma história, é a minha versão daquele fato, é a maneira que encontrei de expressar o que vivi. Tivesse acontecido a mesmíssima coisa com outra pessoa, seria contada de forma e intensidade diferentes.
Somos todos escritores, só que uns escrevem e outros não, já dizia José Saramago.
Assim como pessoas reais podem experimentar emoções fantasiosas, o inverso se dá na literatura: tudo o que parece inventado flerta com a verdade. É ingenuidade acreditar que um personagem de romance possa ser totalmente fictício, sem considerar a bagagem psicológica de quem o criou, sem levar em conta a pulsão interna que estimulou o escritor a dedicar-se dias, meses ou até anos àquele projeto. Ele não está escrevendo sobre ele mesmo em sentido literal, seus personagens não são autobiográficos por definição, mas é claro que quem escreve se revela de alguma forma, velada ou nem tanto.
“Madame Bovary sou eu”, dizia Flaubert. Então não era ficção? Ora.
Em defesa de Ben Greenman, reconheço que os livros andam bastante umbilicais, reflexo de um mundo voltado para o próprio ego. Nenhum crime nisso. Dramas intimistas possuem o mesmo valor artístico das aventuras de suspense, das sagas épicas, das ficções científicas, independentemente de serem inspirados por algo que aconteceu. O leitor não deve se preocupar com essa ligação, e sim entregar-se ao livro sem dar a mínima para o escritor.
O que interessa é se o livro é bom ou ruim. O conteúdo fala por si. O escritor é apenas um ser obscuro que dá entrevistas para divulgar seu ofício, mas sua vida privada não importa nada. O que importa é o resultado de suas fantasias, sejam elas totalmente inventadas ou inventadas mais ou menos ou descaradamente inspiradas no que ele pensa que foi real.
domingo, fevereiro 23, 2014
Me engana que eu gosto - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 23/02
Como explicar, num ano de eleições, que altas figuras do partido tenham sido condenadas pelo Supremo?
A tentativa de desmoralizar a decisão do Supremo Tribunal Federal, que condenou os responsáveis pelo mensalão, começou com uma falsa indignação e está se tornando molecagem. Não pode ser qualificada de outro modo a atitude do vice-presidente da Câmara, que na sessão solene de abertura do ano legislativo fazia ostensivamente gestos de provocação contra o presidente da suprema corte de Justiça do país.
Sentado ao lado do ministro Joaquim Barbosa, repetia o gesto de José Dirceu e Genoino, quando, ao serem presos, fizeram-se de vítimas de uma discriminação política. Se tais gestos, naquele momento, eram apenas uma descarada farsa, repetidos agora não passam de um desrespeito ao Supremo e ao próprio Congresso Nacional.
Esse desespero dos petistas é compreensível, ainda que inaceitável. É compreensível porque o mensalão pôs a nu o que efetivamente é agora o PT, partido criado para supostamente restaurar a ética na política brasileira. A verdade é que esse partido nunca foi isso. Fingiu ser, e desse modo ganhou a adesão de algumas personalidades destacadas da vida intelectual brasileira.
Essas personalidades deram respaldo à jovem agremiação, cujo principal líder era um operário. Ninguém imaginaria que esse mesmo líder viria, mais tarde, chegado ao poder, aliar-se ao que há de pior na política nacional. Em consequência disso, aquelas personalidades, decepcionadas, deixaram o partido, sendo que algumas delas chegaram a denunciar o logro de que foram vítimas. Mas Lula e sua turma seguiram em frente, porque seu objetivo, após chegar ao poder, é nunca mais sair dele. E daí, entre falcatruas, o mensalão.
Como já disse aqui, o mensalão foi o modo encontrado por Lula de conseguir o apoio dos pequenos partidos sem lhes dar ministérios e empresas estatais, que reservou, na quase totalidade, para o próprio PT, onde empregou seus partidários aos milhares e usou das verbas como quis. Nesse projeto, estava implícito o uso do dinheiro público em função dos interesses do governo.
Logo ficou evidente que partido era aquele e quais seus reais objetivos. Já a vitória de Lula à Presidência da República deveu-se à mudança drástica em sua pregação de candidato. No governo, abriu os cofres do BNDES a grandes empresas privadas, ao mesmo tempo que se apropriava dos programas sociais, criados por Fernando Henrique.
Conforme afirmou recentemente um economista, o dinheiro dado aos empresários foi muitas vezes superior ao destinado ao Bolsa Família, isso sem contar que os empréstimos eram feitos a juros abaixo do mercado, o que permitiu aos empresários aplicar o capital que não investiram em suas empresas e assim ampliá-lo, graças aos altos juros do mercado financeiro.
Tudo isso mostra que do PT surgido em 1980 não restou quase nada. O mensalão não foi inventado por ninguém e, sim, atestado e comprovado por documentos, depoimentos e investigações, levados a cabo pelos órgãos policiais e judiciais. O julgamento desse processo foi feito publicamente, transmitido pela televisão. Cada ministro manifestou sua opinião, suas concordâncias e discordâncias, do que resultou a condenação da maioria dos acusados.
Entende-se que, para um partido, que está no poder há 11 anos e nele pretende se perpetuar, tais condenações pegam muito mal, já que os condenados são gente de sua cúpula. Como explicar, num ano de eleições, que altas figuras do partido tenham sido condenadas pelo Supremo Tribunal Federal?
Como explicar que Henrique Pizzolato, nomeado por Lula diretor do Banco do Brasil, tenha falsificado o passaporte do irmão morto para fugir do país? Ele era membro destacado do PT, tendo sido até candidato do partido ao governo do Paraná.
Impossível explicar aos eleitores tanto vexame e tantas falcatruas. E, sobretudo, impossível negá-las se foram comprovadas e punidas pela mais alta corte de Justiça do país.
Não há outra saída para os petistas senão afirmar que se trata de uma farsa, montada pelos ministros do Supremo. Mas como admitir isso se, dos 11 ministros, oito foram nomeados por Lula e Dilma? O PT só engana mesmo quem quer ser enganado.
E o valerioduto mineiro? É esperar para ver.
Como explicar, num ano de eleições, que altas figuras do partido tenham sido condenadas pelo Supremo?
A tentativa de desmoralizar a decisão do Supremo Tribunal Federal, que condenou os responsáveis pelo mensalão, começou com uma falsa indignação e está se tornando molecagem. Não pode ser qualificada de outro modo a atitude do vice-presidente da Câmara, que na sessão solene de abertura do ano legislativo fazia ostensivamente gestos de provocação contra o presidente da suprema corte de Justiça do país.
Sentado ao lado do ministro Joaquim Barbosa, repetia o gesto de José Dirceu e Genoino, quando, ao serem presos, fizeram-se de vítimas de uma discriminação política. Se tais gestos, naquele momento, eram apenas uma descarada farsa, repetidos agora não passam de um desrespeito ao Supremo e ao próprio Congresso Nacional.
Esse desespero dos petistas é compreensível, ainda que inaceitável. É compreensível porque o mensalão pôs a nu o que efetivamente é agora o PT, partido criado para supostamente restaurar a ética na política brasileira. A verdade é que esse partido nunca foi isso. Fingiu ser, e desse modo ganhou a adesão de algumas personalidades destacadas da vida intelectual brasileira.
Essas personalidades deram respaldo à jovem agremiação, cujo principal líder era um operário. Ninguém imaginaria que esse mesmo líder viria, mais tarde, chegado ao poder, aliar-se ao que há de pior na política nacional. Em consequência disso, aquelas personalidades, decepcionadas, deixaram o partido, sendo que algumas delas chegaram a denunciar o logro de que foram vítimas. Mas Lula e sua turma seguiram em frente, porque seu objetivo, após chegar ao poder, é nunca mais sair dele. E daí, entre falcatruas, o mensalão.
Como já disse aqui, o mensalão foi o modo encontrado por Lula de conseguir o apoio dos pequenos partidos sem lhes dar ministérios e empresas estatais, que reservou, na quase totalidade, para o próprio PT, onde empregou seus partidários aos milhares e usou das verbas como quis. Nesse projeto, estava implícito o uso do dinheiro público em função dos interesses do governo.
Logo ficou evidente que partido era aquele e quais seus reais objetivos. Já a vitória de Lula à Presidência da República deveu-se à mudança drástica em sua pregação de candidato. No governo, abriu os cofres do BNDES a grandes empresas privadas, ao mesmo tempo que se apropriava dos programas sociais, criados por Fernando Henrique.
Conforme afirmou recentemente um economista, o dinheiro dado aos empresários foi muitas vezes superior ao destinado ao Bolsa Família, isso sem contar que os empréstimos eram feitos a juros abaixo do mercado, o que permitiu aos empresários aplicar o capital que não investiram em suas empresas e assim ampliá-lo, graças aos altos juros do mercado financeiro.
Tudo isso mostra que do PT surgido em 1980 não restou quase nada. O mensalão não foi inventado por ninguém e, sim, atestado e comprovado por documentos, depoimentos e investigações, levados a cabo pelos órgãos policiais e judiciais. O julgamento desse processo foi feito publicamente, transmitido pela televisão. Cada ministro manifestou sua opinião, suas concordâncias e discordâncias, do que resultou a condenação da maioria dos acusados.
Entende-se que, para um partido, que está no poder há 11 anos e nele pretende se perpetuar, tais condenações pegam muito mal, já que os condenados são gente de sua cúpula. Como explicar, num ano de eleições, que altas figuras do partido tenham sido condenadas pelo Supremo Tribunal Federal?
Como explicar que Henrique Pizzolato, nomeado por Lula diretor do Banco do Brasil, tenha falsificado o passaporte do irmão morto para fugir do país? Ele era membro destacado do PT, tendo sido até candidato do partido ao governo do Paraná.
Impossível explicar aos eleitores tanto vexame e tantas falcatruas. E, sobretudo, impossível negá-las se foram comprovadas e punidas pela mais alta corte de Justiça do país.
Não há outra saída para os petistas senão afirmar que se trata de uma farsa, montada pelos ministros do Supremo. Mas como admitir isso se, dos 11 ministros, oito foram nomeados por Lula e Dilma? O PT só engana mesmo quem quer ser enganado.
E o valerioduto mineiro? É esperar para ver.
De urubu a pombo-correio - FABRÍCIO CARPINEJAR
ZERO HORA - 23/02
Fofoqueiro não tem cura.
Fofoqueiro não tem conversão.
Fofoqueiro não tem saída.
Se um amigo cria uma fofoca, é perda de tempo tentar convencê-lo de que é errado, que prejudica a confiança, que estraga a convivência, que ele não desfruta do direito de sair revelando indiscriminadamente aquilo que é absolutamente confidencial.
Não desperdice sua lábia. Não gaste seu sotaque.
Ao dar um sermão ao fofoqueiro, é bem capaz dele inventar fofoca do sermão. E ainda propagar aos colegas e familiares que você cometeu uma grande injustiça e quebrou a lealdade.
Todo fofoqueiro se faz de vítima, não assume seu problema e joga a culpa no colo dos outros.
Seu tipinho é facilmente reconhecível. Usa expressões como “nunca”, “jamais”, “imagina”. Jura por Deus e pela sua mãe sem nenhum pudor, sem nenhum receio das consequências. Responde uma pergunta com nova pergunta. Costuma se mostrar surpreso e fingir desconcerto quando questionado: “Eu?”.
Aviso aos persistentes e esperançosos: o fofoqueiro não tem conserto.
É pedir segredo que o fofoqueiro abre o bico. Parece gostar de viver perigosamente. Confia apenas em sua impunidade, desprezas as evidências e pistas.
Mesmo calado, espalhará confidências de algum jeito: por indiretas, código morse, telepatia. Arrumará um jeito de contar. Sua incontinência verbal é criativa. Sofre de incompetência para manter a palavra quieta, debaixo das pedras. Pois acredita no tráfico de informações. Atua como um lobista amador, um falso conselheiro. Cria sua importância por aquilo que ficou sabendo.
Eu desisti da salvação de fofoqueiros. É uma igreja infernal.
O que faço é me aproveitar deles. Eu direciono o fofoqueiro para meus objetivos. Profissionalizo o fofoqueiro. Treino o fofoqueiro. Faço do urubu um pombo-correio.
Como não posso dissuadi-lo a abandonar sua natureza, repasso o que desejo que seja conhecido. Ofereço um alvo. Exponho algo com minha clara intenção que vire fofoca, suplicando por reserva e para que não fale para ninguém. Ele não resiste a um cochicho, a uma conversa no pé do ouvido, e logo dissemina a história.
Em vez de trabalhar de graça para a fama do fofoqueiro, o fofoqueiro passa a trabalhar para mim.
Fofoqueiro não tem cura.
Fofoqueiro não tem conversão.
Fofoqueiro não tem saída.
Se um amigo cria uma fofoca, é perda de tempo tentar convencê-lo de que é errado, que prejudica a confiança, que estraga a convivência, que ele não desfruta do direito de sair revelando indiscriminadamente aquilo que é absolutamente confidencial.
Não desperdice sua lábia. Não gaste seu sotaque.
Ao dar um sermão ao fofoqueiro, é bem capaz dele inventar fofoca do sermão. E ainda propagar aos colegas e familiares que você cometeu uma grande injustiça e quebrou a lealdade.
Todo fofoqueiro se faz de vítima, não assume seu problema e joga a culpa no colo dos outros.
Seu tipinho é facilmente reconhecível. Usa expressões como “nunca”, “jamais”, “imagina”. Jura por Deus e pela sua mãe sem nenhum pudor, sem nenhum receio das consequências. Responde uma pergunta com nova pergunta. Costuma se mostrar surpreso e fingir desconcerto quando questionado: “Eu?”.
Aviso aos persistentes e esperançosos: o fofoqueiro não tem conserto.
É pedir segredo que o fofoqueiro abre o bico. Parece gostar de viver perigosamente. Confia apenas em sua impunidade, desprezas as evidências e pistas.
Mesmo calado, espalhará confidências de algum jeito: por indiretas, código morse, telepatia. Arrumará um jeito de contar. Sua incontinência verbal é criativa. Sofre de incompetência para manter a palavra quieta, debaixo das pedras. Pois acredita no tráfico de informações. Atua como um lobista amador, um falso conselheiro. Cria sua importância por aquilo que ficou sabendo.
Eu desisti da salvação de fofoqueiros. É uma igreja infernal.
O que faço é me aproveitar deles. Eu direciono o fofoqueiro para meus objetivos. Profissionalizo o fofoqueiro. Treino o fofoqueiro. Faço do urubu um pombo-correio.
Como não posso dissuadi-lo a abandonar sua natureza, repasso o que desejo que seja conhecido. Ofereço um alvo. Exponho algo com minha clara intenção que vire fofoca, suplicando por reserva e para que não fale para ninguém. Ele não resiste a um cochicho, a uma conversa no pé do ouvido, e logo dissemina a história.
Em vez de trabalhar de graça para a fama do fofoqueiro, o fofoqueiro passa a trabalhar para mim.
Almoço com celular - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 23/02
—Alô! Me chama o Jefferson aí. Oi, Jefferson, tudo bem? Teu celular só vive ocupado, você gasta tempo demais com ele. Tu tá lembrado da reunião que eu marquei com todo o pessoal de vendas, às quatro horas, não tá? É, eu sei que te falei antes de sair, mas tu sabe que meus negócios são sempre tipo cinto e suspensório; se um não segurar, o outro garante, isso já ensinava o velho desde que eu me entendo. Eu... Segura aí um instante, agora vou ter de interromper, o Gustavo acaba de chegar para o nosso almoço. Gustavão, parece uma eternidade, mas você está ótimo, que prazer! Desculpa que eu não te vi chegar, estou atendendo a um chamado urgente lá do escritório.
— Eu percebi, não se preocupe, comigo é a mesma coisa. Aliás, eu prefiro até que você conclua sua chamada, porque eu aproveito e também faço uma ligação que estou precisando, para uns caras de São Paulo, viajo amanhã.
— Ah, então vamos em frente. Assim a área fica logo limpa, para a gente colocar em dia os atrasados, tem mesmo muito tempo que não nos vemos. É rápido. Alô! Jefferson? Tudo bem, Jefferson? Eu estava ligando para perguntar se tu tava lembrado da reunião que eu marquei com o pessoal de vendas para as quatro horas. É, tu me disse que tava lembrado, então é isso. A Dulce está aí? A Dulce...
— Alô, é o Nicola? Tudo bem, contigo, Nicola, como vai a Pauliceia? É isso mesmo, todo mundo tem de correr atrás, aqui no Rio é a mesma coisa. Escuta, tudo certo, então, não é? Isso mesmo, é no hotel de sempre, tudo como sempre, eu só queria confirmar, odeio imprevistos. E, como sempre, eu vou direto de Congonhas para teu escritório, tudo como sempre, a não ser que alterem o voo e aí eu te ligo na hora. E o Parmeira, hein?
— Dulce? O Jefferson te falou que hoje eu marquei reunião para as quatro da tarde, com todo o pessoal de vendas? Falou duas vezes? É isso mesmo, está certo, quem mandou avisar duas vezes fui eu, eu faço questão de checar tudo, é por isso que cheguei onde cheguei.
— Então certo, Nicola, amanhã no teu escritório e uma tremenda massa na cantina depois! Viva o Parmeira, ho-ho!
— Agora vou desligar, Dulce, o Gustavo também desligou, nós não nos vemos há muito tempo, temos muita coisa para botar em dia. Gustavo, cheguei a pensar que não ia dar para marcar este almoço. Outro dia eu tentei ligar para teu celular e não consegui, só dava aviso de fora da área de cobertura. O teu fixo eu perdi e tentei o celular dias seguidos. Cheguei a pensar em desistir.
— É, essa operadora é o fim, todo mundo reclama. Eu caí nela por causa do aparelho, o aparelho é fantástico e tem a melhor câmera que eu já vi. Eu tenho um filmezinho aqui, do churrasco na casa de meu cunhado, que parece coisa de cinema, nunca vi definição igual, me deu a ideia de pegar esse celular nos fins de semana e fazer um documentário do bairro. Olha aqui essa imagem, vê se não é fantástica.
— É, é uma beleza mesmo, mas a do meu é praticamente a mesma coisa, esses aparelhos estão ficando cada vez mais parecidos. O problema é esse negócio de você não receber ligações.
— Mas será que é tanto assim? Tenta aí de novo.
— Pronto. Exatamente, parece combinado: fora da área de cobertura.
— Como “fora da área de cobertura”, se eu estou aqui, sentado na tua frente?
— Escuta você mesmo.
— É. É verdade. Só no Brasil acontecem essas coisas, é impressionante. Se eu fosse americano, tomava um zorrilhão de dólares dessa operadora, como indenização. Lá eles botam pra quebrar, é por isso que tudo funciona, não é como esta esculhambação aqui. Eu vou reclamar agora!
— Não é melhor reclamar mais tarde?
— Não, tem de reclamar agora, com o sangue quente mesmo, isso é um absurdo!
— Eu falo porque você vai cair numa gravação e vai ficar digitando os números que eles mandarem e depois ouvindo musiquinhas e mensagens sobre como a tua ligação é importante para eles.
— Eu não vou reclamar direto, vou mandar dona Gilka reclamar. Eles não sabem quem eu vou soltar em cima deles, a dona Gilka é uma miúra, ela vai jogar o Procon na cabeça deles e vai exigir sangue. Me dá uma licencinha aqui, que eu vou ligar para o escritório, é rápido. Alô, sim, é o dr. Gustavo. Me passa aí para a dona Gilka, por favor.
— Alô! Não, desta vez não é com o Jefferson, talvez mais tarde. Me passa para o Reginaldo. Reginaldo, boa tarde. Eu queria saber uma coisa de você. O Jefferson te passou hoje o lembrete de que eu marquei uma reunião às quatro da tarde, com todo o pessoal de vendas? Só passou ontem? Hoje ele não passou? Não interessa que não precisava, o que interessa é que eu determinei a ele que avisasse hoje também. Eu já estava achando tudo certinho demais, não estava tão certinho assim, é preciso manter uma supervisão constante, o celular é um grande instrumento para isso. Mas eu falo mais tarde. O Gustavo já desligou e nós temos muito papo pela frente, muita coisa pra botar em dia. Gustavo, não fica preocupado com esse negócio do teu celular deixar de atender chamadas. Eu mudo a tua operadora agora, tenho um grande pistolão na minha, ele manda fazer tudo por você. Eu tenho o número dele aqui, agora é só me dar aí o teu CPF, que eu faço uma ligação para ele e acabaram teus problemas para conversar. É rápido, eu tenho o número direto dele. Alô!
—Alô! Me chama o Jefferson aí. Oi, Jefferson, tudo bem? Teu celular só vive ocupado, você gasta tempo demais com ele. Tu tá lembrado da reunião que eu marquei com todo o pessoal de vendas, às quatro horas, não tá? É, eu sei que te falei antes de sair, mas tu sabe que meus negócios são sempre tipo cinto e suspensório; se um não segurar, o outro garante, isso já ensinava o velho desde que eu me entendo. Eu... Segura aí um instante, agora vou ter de interromper, o Gustavo acaba de chegar para o nosso almoço. Gustavão, parece uma eternidade, mas você está ótimo, que prazer! Desculpa que eu não te vi chegar, estou atendendo a um chamado urgente lá do escritório.
— Eu percebi, não se preocupe, comigo é a mesma coisa. Aliás, eu prefiro até que você conclua sua chamada, porque eu aproveito e também faço uma ligação que estou precisando, para uns caras de São Paulo, viajo amanhã.
— Ah, então vamos em frente. Assim a área fica logo limpa, para a gente colocar em dia os atrasados, tem mesmo muito tempo que não nos vemos. É rápido. Alô! Jefferson? Tudo bem, Jefferson? Eu estava ligando para perguntar se tu tava lembrado da reunião que eu marquei com o pessoal de vendas para as quatro horas. É, tu me disse que tava lembrado, então é isso. A Dulce está aí? A Dulce...
— Alô, é o Nicola? Tudo bem, contigo, Nicola, como vai a Pauliceia? É isso mesmo, todo mundo tem de correr atrás, aqui no Rio é a mesma coisa. Escuta, tudo certo, então, não é? Isso mesmo, é no hotel de sempre, tudo como sempre, eu só queria confirmar, odeio imprevistos. E, como sempre, eu vou direto de Congonhas para teu escritório, tudo como sempre, a não ser que alterem o voo e aí eu te ligo na hora. E o Parmeira, hein?
— Dulce? O Jefferson te falou que hoje eu marquei reunião para as quatro da tarde, com todo o pessoal de vendas? Falou duas vezes? É isso mesmo, está certo, quem mandou avisar duas vezes fui eu, eu faço questão de checar tudo, é por isso que cheguei onde cheguei.
— Então certo, Nicola, amanhã no teu escritório e uma tremenda massa na cantina depois! Viva o Parmeira, ho-ho!
— Agora vou desligar, Dulce, o Gustavo também desligou, nós não nos vemos há muito tempo, temos muita coisa para botar em dia. Gustavo, cheguei a pensar que não ia dar para marcar este almoço. Outro dia eu tentei ligar para teu celular e não consegui, só dava aviso de fora da área de cobertura. O teu fixo eu perdi e tentei o celular dias seguidos. Cheguei a pensar em desistir.
— É, essa operadora é o fim, todo mundo reclama. Eu caí nela por causa do aparelho, o aparelho é fantástico e tem a melhor câmera que eu já vi. Eu tenho um filmezinho aqui, do churrasco na casa de meu cunhado, que parece coisa de cinema, nunca vi definição igual, me deu a ideia de pegar esse celular nos fins de semana e fazer um documentário do bairro. Olha aqui essa imagem, vê se não é fantástica.
— É, é uma beleza mesmo, mas a do meu é praticamente a mesma coisa, esses aparelhos estão ficando cada vez mais parecidos. O problema é esse negócio de você não receber ligações.
— Mas será que é tanto assim? Tenta aí de novo.
— Pronto. Exatamente, parece combinado: fora da área de cobertura.
— Como “fora da área de cobertura”, se eu estou aqui, sentado na tua frente?
— Escuta você mesmo.
— É. É verdade. Só no Brasil acontecem essas coisas, é impressionante. Se eu fosse americano, tomava um zorrilhão de dólares dessa operadora, como indenização. Lá eles botam pra quebrar, é por isso que tudo funciona, não é como esta esculhambação aqui. Eu vou reclamar agora!
— Não é melhor reclamar mais tarde?
— Não, tem de reclamar agora, com o sangue quente mesmo, isso é um absurdo!
— Eu falo porque você vai cair numa gravação e vai ficar digitando os números que eles mandarem e depois ouvindo musiquinhas e mensagens sobre como a tua ligação é importante para eles.
— Eu não vou reclamar direto, vou mandar dona Gilka reclamar. Eles não sabem quem eu vou soltar em cima deles, a dona Gilka é uma miúra, ela vai jogar o Procon na cabeça deles e vai exigir sangue. Me dá uma licencinha aqui, que eu vou ligar para o escritório, é rápido. Alô, sim, é o dr. Gustavo. Me passa aí para a dona Gilka, por favor.
— Alô! Não, desta vez não é com o Jefferson, talvez mais tarde. Me passa para o Reginaldo. Reginaldo, boa tarde. Eu queria saber uma coisa de você. O Jefferson te passou hoje o lembrete de que eu marquei uma reunião às quatro da tarde, com todo o pessoal de vendas? Só passou ontem? Hoje ele não passou? Não interessa que não precisava, o que interessa é que eu determinei a ele que avisasse hoje também. Eu já estava achando tudo certinho demais, não estava tão certinho assim, é preciso manter uma supervisão constante, o celular é um grande instrumento para isso. Mas eu falo mais tarde. O Gustavo já desligou e nós temos muito papo pela frente, muita coisa pra botar em dia. Gustavo, não fica preocupado com esse negócio do teu celular deixar de atender chamadas. Eu mudo a tua operadora agora, tenho um grande pistolão na minha, ele manda fazer tudo por você. Eu tenho o número dele aqui, agora é só me dar aí o teu CPF, que eu faço uma ligação para ele e acabaram teus problemas para conversar. É rápido, eu tenho o número direto dele. Alô!
Vurska - LUIS FERNANDO VERISSIMO
O Estado de S.Paulo - 23/02
Bom dia! Eu sou Mirthes Sayão e este é o programa Cozinhando com Mirthes, nosso encontro gastronômico de todas as manhãs. Ao meu lado, como vocês podem ver, e como todos os dias, a Isaltina , que está comigo desde que eu nasci (praticamente, não é Isaltina?) e que é meu braço direito, minha ajudante, minha... O que é isso, Isaltina?! Você escorregou? Gente, a Isaltina escorregou e caiu no... Dá para se levantar sozinha, Isaltina? Por favor, alguém da produção pode... Isso. Obrigada. Você está bem, Isaltina? Não me assuste dessa maneira outra vez. Então vamos lá.
Gente. Nosso prato de hoje é uma especialidade russa, uma sopa fria chamada vurska. Sim, uma sopa fria. Ela é tomada na Rússia no verão, que, como se sabe, na Rússia dura só uma semana. Aliás, os russos chamam a semana de verão de "vurskaya", justamente: a semana de tomar vurska. Você sabia isso, Isaltina? Isaltina... Preste atenção. Você está bem? Então. Os ingredientes da vurska tradicional são: batata, cebola, nabo, repolho, salsa, alho e...e... Estou esquecendo uma coisa. Ah, leite de cabra azedo. Eu não estou vendo aqui o leite de cabra, Isaltina. Derramou no chão? Foi no leite de cabra que você escorregou, Isaltina? Não? Bom. Depois a gente vê o leite de cabra azedo.
Mas hoje, minhas amigas, nós não vamos fazer a vurska tradicional. Vamos acrescentar um ingrediente especial, que eu só vou revelar qual é mais tarde. Suspense! Isaltina, onde você vai? Fique aqui do meu lado. A Isaltina, hoje, não sei não, hein amigas? O que é que você tem, Isaltina? Acho que ela está namorando, gente. Mas a Isaltina já é avó, não é, Isaltina? Eu já contei que ela está com a nossa família desde que eu era pequititinha, que era como ela me chamava? Deste tamanho? E olha, se há alguém de quem se pode dizer que tem a alma branca é ela, viu? Quando ela casou, minha mãe deixou ela levar o marido para a nossa casa. Infelizmente, ele não era boa coisa. Nos roubou. Nunca ficou provado, mas estava na cara que foi ele que roubou os tacos de golfe da mamãe. Papai forçou a Isaltina a se separar dele.
Mas isso tudo é história antiga. Vamos à vurska. Eu sei que muitas de vocês devem estar se perguntado: será que a vurska não pode ser servida quente, para ser tomada durante todo o ano? Pode, mas há sempre o risco de ela explodir no fogo e queimar suas sobrancelhas. Na Rússia, quem não tem sobrancelhas é chamado de "vurskapupetien", ou, numa tradução livre, "um que brincou com a vurska". Isaltina, aproveite que você já está com a faca na mão e comece a picar a cebola e o alho enquanto eu... Isaltina, essa faca é muito grande. Pegue uma menor. E agora, minhas amigas, atenção. Vou revelar o ingrediente secreto da nossa vurska. É vodka! E aqui está a garrafa de vodka...ué, vazia. Isaltina, onde está a vodka? Você bebeu a vodka toda, Isaltina? E o que você vai fazer com essa faca? Isaltina, pare. Isaltina, nós estamos no ar. Isaltina...EU SOU SUA PEQUITITINHA!
Bom dia! Eu sou Mirthes Sayão e este é o programa Cozinhando com Mirthes, nosso encontro gastronômico de todas as manhãs. Ao meu lado, como vocês podem ver, e como todos os dias, a Isaltina , que está comigo desde que eu nasci (praticamente, não é Isaltina?) e que é meu braço direito, minha ajudante, minha... O que é isso, Isaltina?! Você escorregou? Gente, a Isaltina escorregou e caiu no... Dá para se levantar sozinha, Isaltina? Por favor, alguém da produção pode... Isso. Obrigada. Você está bem, Isaltina? Não me assuste dessa maneira outra vez. Então vamos lá.
Gente. Nosso prato de hoje é uma especialidade russa, uma sopa fria chamada vurska. Sim, uma sopa fria. Ela é tomada na Rússia no verão, que, como se sabe, na Rússia dura só uma semana. Aliás, os russos chamam a semana de verão de "vurskaya", justamente: a semana de tomar vurska. Você sabia isso, Isaltina? Isaltina... Preste atenção. Você está bem? Então. Os ingredientes da vurska tradicional são: batata, cebola, nabo, repolho, salsa, alho e...e... Estou esquecendo uma coisa. Ah, leite de cabra azedo. Eu não estou vendo aqui o leite de cabra, Isaltina. Derramou no chão? Foi no leite de cabra que você escorregou, Isaltina? Não? Bom. Depois a gente vê o leite de cabra azedo.
Mas hoje, minhas amigas, nós não vamos fazer a vurska tradicional. Vamos acrescentar um ingrediente especial, que eu só vou revelar qual é mais tarde. Suspense! Isaltina, onde você vai? Fique aqui do meu lado. A Isaltina, hoje, não sei não, hein amigas? O que é que você tem, Isaltina? Acho que ela está namorando, gente. Mas a Isaltina já é avó, não é, Isaltina? Eu já contei que ela está com a nossa família desde que eu era pequititinha, que era como ela me chamava? Deste tamanho? E olha, se há alguém de quem se pode dizer que tem a alma branca é ela, viu? Quando ela casou, minha mãe deixou ela levar o marido para a nossa casa. Infelizmente, ele não era boa coisa. Nos roubou. Nunca ficou provado, mas estava na cara que foi ele que roubou os tacos de golfe da mamãe. Papai forçou a Isaltina a se separar dele.
Mas isso tudo é história antiga. Vamos à vurska. Eu sei que muitas de vocês devem estar se perguntado: será que a vurska não pode ser servida quente, para ser tomada durante todo o ano? Pode, mas há sempre o risco de ela explodir no fogo e queimar suas sobrancelhas. Na Rússia, quem não tem sobrancelhas é chamado de "vurskapupetien", ou, numa tradução livre, "um que brincou com a vurska". Isaltina, aproveite que você já está com a faca na mão e comece a picar a cebola e o alho enquanto eu... Isaltina, essa faca é muito grande. Pegue uma menor. E agora, minhas amigas, atenção. Vou revelar o ingrediente secreto da nossa vurska. É vodka! E aqui está a garrafa de vodka...ué, vazia. Isaltina, onde está a vodka? Você bebeu a vodka toda, Isaltina? E o que você vai fazer com essa faca? Isaltina, pare. Isaltina, nós estamos no ar. Isaltina...EU SOU SUA PEQUITITINHA!
Carnaval! Só Como na Rua! - JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 23/02
O Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piadas Prontas: "Pato só vai estrear daqui a um mês em ALAGOAS". "Americana presa por não ter entregado filme que pegou há nove meses na locadora". Nome do filme? "A SOGRA". Presa por não devolver a sogra! Passar nove meses com a sogra ou é sequestro ou é muito amor! Rarará.
E o técnico da Argentina: "O pior inimigo da Argentina na Copa é....". O BRASIL? Não, ele disse que o pior inimigo da Argentina na Copa é a própria Argentina! Isso que é ego! Final da Copa: Argentina x Argentina.
Grande final da Copa 2014 no Maracanã: Argentina x Argentina! E o juiz vai ser o Maradona. E todo mundo vai gritar: "Não meta o nariz onde não é chamado". Rarará!
E argentino dorme em beliche. Ele dorme embaixo e o ego em cima!
E o chargista Rico diz que o Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda! A "cow" do Genoino é a de camisa rosa. Rarará!
E atenção! Faltam cinco dias inúteis para o Carnaval. A Grande Festa da Esculhambação Nacional! E eu vou passar o Carnaval em Curitiba. De blusa de lã! E chovendo! Rarará!
Ou então em escola de samba mineira: as passistas são de fora, o mestre-sala dança no Municipal e o mestre de bateria dá aula no conservatório. Uma explosão de desânimo! Rarará.
E recebi o e-mail de um amigo baiano: "O Carnaval tá quase acabando e você não veio!". E paulista é tão "workaholic" que tem carteiro na segunda-feira de Carnaval. Ao som de britadeira! Trio elétrico de paulista é britadeira! Rarará!
E os blocos de Carnaval! Fui convidado pra ser padrinho do bloco da Tijuca: Já Comi Pior, Pagando!. Isso não é um bloco, é uma verdade insofismável!
E do Maranhão: Chupa, mas Não Morde. Deve ser da família Sarney. Ops, me enganei! A família Sarney chupa e morde! Rarará!
E direto de Floripa: Baiacu de Alguém. Ainda bem que é de alguém! E em Búzios, uns coroas fizeram o bloco Os Tremendo. Rarará!
E direto de Olinda: Só Como na Rua. Mas pelas fotos das folionas, é melhor comer em casa mesmo! Rarará! E do Rio: "É Mole, mas é Meu!". O cúmulo da autoestima! Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
O Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piadas Prontas: "Pato só vai estrear daqui a um mês em ALAGOAS". "Americana presa por não ter entregado filme que pegou há nove meses na locadora". Nome do filme? "A SOGRA". Presa por não devolver a sogra! Passar nove meses com a sogra ou é sequestro ou é muito amor! Rarará.
E o técnico da Argentina: "O pior inimigo da Argentina na Copa é....". O BRASIL? Não, ele disse que o pior inimigo da Argentina na Copa é a própria Argentina! Isso que é ego! Final da Copa: Argentina x Argentina.
Grande final da Copa 2014 no Maracanã: Argentina x Argentina! E o juiz vai ser o Maradona. E todo mundo vai gritar: "Não meta o nariz onde não é chamado". Rarará!
E argentino dorme em beliche. Ele dorme embaixo e o ego em cima!
E o chargista Rico diz que o Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda! A "cow" do Genoino é a de camisa rosa. Rarará!
E atenção! Faltam cinco dias inúteis para o Carnaval. A Grande Festa da Esculhambação Nacional! E eu vou passar o Carnaval em Curitiba. De blusa de lã! E chovendo! Rarará!
Ou então em escola de samba mineira: as passistas são de fora, o mestre-sala dança no Municipal e o mestre de bateria dá aula no conservatório. Uma explosão de desânimo! Rarará.
E recebi o e-mail de um amigo baiano: "O Carnaval tá quase acabando e você não veio!". E paulista é tão "workaholic" que tem carteiro na segunda-feira de Carnaval. Ao som de britadeira! Trio elétrico de paulista é britadeira! Rarará!
E os blocos de Carnaval! Fui convidado pra ser padrinho do bloco da Tijuca: Já Comi Pior, Pagando!. Isso não é um bloco, é uma verdade insofismável!
E do Maranhão: Chupa, mas Não Morde. Deve ser da família Sarney. Ops, me enganei! A família Sarney chupa e morde! Rarará!
E direto de Floripa: Baiacu de Alguém. Ainda bem que é de alguém! E em Búzios, uns coroas fizeram o bloco Os Tremendo. Rarará!
E direto de Olinda: Só Como na Rua. Mas pelas fotos das folionas, é melhor comer em casa mesmo! Rarará! E do Rio: "É Mole, mas é Meu!". O cúmulo da autoestima! Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
Italianidade - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
O GLOBO - 23/02
Coppola faz uma metáfora, no cinema, para competição selvagem que tudo corrompe e no fim tudo justifica, inclusive a sangueira
Durante muito tempo, por pressão da comunidade ítalo-americana, o cinema não pôde mostrar ou sequer sugerir uma ligação explícita dos italianos com a máfia, nos Estados Unidos. Mesmo em filmes de gangster clássicos, como “Scarface”, esta identificação era evitada. Em nenhuma das suas múltiplas aparições em filmes, o Al Capone foi abertamente italiano. (Para todos os efeitos, seu sobrenome poderia ser francês). Quem acabou com estes pruridos para sempre foram diretores como o Coppola e, principalmente, o Scorcese, que nos seus filmes não apenas retrataram a máfia — ou a máfia predominante num pais em que irlandeses e judeus também recorreram ao crime para se impor no tiroteio capitalista — como coisa de italiano como compensaram todos os anos em que não se podia tocar no assunto ostentando, quando não glorificando, sua ascendência. Pode-se dizer que os dois, descendentes de italianos, afrontaram a América com sua italianidade (se é que existe a palavra), assumida. No caso de Scorcese, ele continua afrontando.
Na trilogia “O poderoso chefão”, Coppola, o mais político dos dois, conta a saga de uma família em busca da respeitabilidade que na América, como na Sicília, só vem com o poder. Nos filmes, a respeitabilidade é um fim fatalmente envenenado pelos meios para alcançá-la, mas no processo de narrar este fracasso Coppola nos dá uma metáfora para a competição selvagem que tudo corrompe e no fim tudo justifica, inclusive a sangueira. A máfia do Coppola é apenas nossa sociedade de todos os dias levada ao extremo. Scorcese não é tão político e metafórico, mas também gosta dos extremos, no seu caso extremos italianos, operáticos. Não por acaso, no seu filme “Touro indomável” a fúria do lutador Jake La Motta no ringue é acompanhada por árias de óperas, a fúria e as árias produtos do mesmo espírito arrebatado. Scorcese não se desculpa por seus excessos nem busca aprovação moral para suas óperas de crueldade. O narrador do filme “Os bons companheiros”, que faz carreira na máfia e no fim delata seus bons companheiros, termina seu relato de execuções, torturas e outras barbaridades com a frase: “A verdade é que foi tudo muito divertido.” Nos filmes amorais do Scorcese, nada mais divertido do que os excessos.
O herói de “O lobo de Wall Street” não é italiano, mas não precisa ser. O diretor é italiano pelos dois. Pode-se dizer tudo do vigarista do filme e dos seus companheiros, menos que eles não se divertem, seja esbanjando dinheiro, comendo grandes mulheres ou praticando arremesso de anões, um passatempo que pode se tornar popular depois do filme. Enfim, o filme é muito engraçado. O que que eu estou dizendo? O filme é uma afronta!
Coppola faz uma metáfora, no cinema, para competição selvagem que tudo corrompe e no fim tudo justifica, inclusive a sangueira
Durante muito tempo, por pressão da comunidade ítalo-americana, o cinema não pôde mostrar ou sequer sugerir uma ligação explícita dos italianos com a máfia, nos Estados Unidos. Mesmo em filmes de gangster clássicos, como “Scarface”, esta identificação era evitada. Em nenhuma das suas múltiplas aparições em filmes, o Al Capone foi abertamente italiano. (Para todos os efeitos, seu sobrenome poderia ser francês). Quem acabou com estes pruridos para sempre foram diretores como o Coppola e, principalmente, o Scorcese, que nos seus filmes não apenas retrataram a máfia — ou a máfia predominante num pais em que irlandeses e judeus também recorreram ao crime para se impor no tiroteio capitalista — como coisa de italiano como compensaram todos os anos em que não se podia tocar no assunto ostentando, quando não glorificando, sua ascendência. Pode-se dizer que os dois, descendentes de italianos, afrontaram a América com sua italianidade (se é que existe a palavra), assumida. No caso de Scorcese, ele continua afrontando.
Na trilogia “O poderoso chefão”, Coppola, o mais político dos dois, conta a saga de uma família em busca da respeitabilidade que na América, como na Sicília, só vem com o poder. Nos filmes, a respeitabilidade é um fim fatalmente envenenado pelos meios para alcançá-la, mas no processo de narrar este fracasso Coppola nos dá uma metáfora para a competição selvagem que tudo corrompe e no fim tudo justifica, inclusive a sangueira. A máfia do Coppola é apenas nossa sociedade de todos os dias levada ao extremo. Scorcese não é tão político e metafórico, mas também gosta dos extremos, no seu caso extremos italianos, operáticos. Não por acaso, no seu filme “Touro indomável” a fúria do lutador Jake La Motta no ringue é acompanhada por árias de óperas, a fúria e as árias produtos do mesmo espírito arrebatado. Scorcese não se desculpa por seus excessos nem busca aprovação moral para suas óperas de crueldade. O narrador do filme “Os bons companheiros”, que faz carreira na máfia e no fim delata seus bons companheiros, termina seu relato de execuções, torturas e outras barbaridades com a frase: “A verdade é que foi tudo muito divertido.” Nos filmes amorais do Scorcese, nada mais divertido do que os excessos.
O herói de “O lobo de Wall Street” não é italiano, mas não precisa ser. O diretor é italiano pelos dois. Pode-se dizer tudo do vigarista do filme e dos seus companheiros, menos que eles não se divertem, seja esbanjando dinheiro, comendo grandes mulheres ou praticando arremesso de anões, um passatempo que pode se tornar popular depois do filme. Enfim, o filme é muito engraçado. O que que eu estou dizendo? O filme é uma afronta!
Confiar desconfiando - SUELY CALDAS
O Estado de S.Paulo - 23/02
Há algumas fragilidades embutidas na nova meta fiscal do governo que levaram analistas e agentes econômicos a confiarem desconfiando. A meta em si (um superávit de R$ 99 bilhões, equivalente a 1,9% do PIB) é realista e factível. O corte de R$ 44 bilhões nos gastos também. São números que merecem ser festejados - deixaram para trás os devaneios dos últimos três anos. Por que, então, a desconfiança?
A eleição é o fator mais imponderável: a candidata-presidente vai negar dinheiro para atender a demandas de aliados políticos vindas do País inteiro? Vai recusar gastar o que for preciso para atender à voz das ruas e investir em transportes ou apressar obras para inaugurá-las e ganhar votos? A incerteza em relação ao comportamento de governantes/candidatos em períodos eleitorais é sustentada no vasto histórico dos políticos brasileiros em geral e, em particular, no inesgotável e ardente desejo do PT de ganhar eleição a qualquer custo.
Outro fator imponderável é o que fará Dilma se, ao longo do ano, as despesas crescerem mais do que o previsto, a receita tributária for insuficiente para cobri-las e ameaçar o cumprimento da meta. Ela vai recorrer a truques e malabarismos da tal contabilidade criativa dos três anos anteriores? Isso ela parece ter aprendido, sabe que triangulações financeiras forçadas, receitas falaciosas e outras pajelanças arquitetadas por assessores minaram a confiança dos empresários e subtraíram investimentos em seu governo. Pedir a Mantega uma meta fiscal realista é sinal de que não pretende recorrer a artifícios.
Só que Mantega calculou a receita tributária - essencial para o superávit primário de 1,9% do PIB - com base em estimativa otimista de uma taxa de crescimento econômico de 2,5%, enquanto os analistas (inclusive ligados ao governo, como o ex-secretário executivo da Fazenda Nelson Barbosa) não acreditam em mais de 1,5%. E 1% a menos na já minúscula previsão do PIB faz enorme diferença para o resultado final da receita tributária. Resta o recurso de remanejar verbas de uma para outra área. Mas será possível fazê-lo sem prejudicar investimentos e a área social, que Dilma quer preservar neste ano eleitoral? Difícil.
Até porque há no Orçamento outras fragilidades técnicas não equacionadas, que pressionarão o resultado fiscal ao longo do ano. Uma delas é tão clara que salta aos olhos: a previsão de déficit para a Previdência foi calculada em R$ 40 bilhões, 25% menor que os R$ 49,85 bilhões de 2013, mesmo com o reajuste de 6,78% do salário mínimo e nenhuma mudança no cenário que fundamente tal otimismo futurológico.
A segunda fragilidade é mais complexa, pois arrisca debilitar ainda mais a situação financeira das empresas do setor elétrico e comprometer a qualidade de serviços de manutenção da rede, potencializando a ocorrência de apagões País afora. É que o governo decidiu reservar no Orçamento só R$ 9 bilhões para subsidiar o consumo de energia em 2014 (em 2013 foram R$ 9,8 bilhões), mas nada destinou para cobrir os crescentes prejuízos causados pela longa estiagem do verão, que levou as empresas a comprarem energia das termoelétricas a preços mais caros do que vendem aos consumidores.
Há duas alternativas de solução para o problema: ou a candidata/presidente subtrai do Orçamento de 2014 mais R$ 9 bilhões (estimativa de técnicos do governo) para cobrir os prejuízos das empresas ou os repassa para o consumidor via aumento da tarifa. O assunto foi recorrente no encontro de Mantega com analistas internacionais na sexta-feira. O ministro não esclareceu por qual solução o governo vai optar, mas definiu o mês de abril como último prazo para decidir, depois de avaliar os estragos da seca nos reservatórios de hidrelétricas e quantificar prejuízos. A decisão mais simples seria reajustar a tarifa. Mas aí entra o dilema eleitoral: qual interesse vai prevalecer, o da presidente ou o da candidata?
Infelizmente, os fatos têm mostrado que a redução da tarifa de energia está mais para um monstrengo do que para um carro-chefe de campanha - para a presidente e para a candidata.
Há algumas fragilidades embutidas na nova meta fiscal do governo que levaram analistas e agentes econômicos a confiarem desconfiando. A meta em si (um superávit de R$ 99 bilhões, equivalente a 1,9% do PIB) é realista e factível. O corte de R$ 44 bilhões nos gastos também. São números que merecem ser festejados - deixaram para trás os devaneios dos últimos três anos. Por que, então, a desconfiança?
A eleição é o fator mais imponderável: a candidata-presidente vai negar dinheiro para atender a demandas de aliados políticos vindas do País inteiro? Vai recusar gastar o que for preciso para atender à voz das ruas e investir em transportes ou apressar obras para inaugurá-las e ganhar votos? A incerteza em relação ao comportamento de governantes/candidatos em períodos eleitorais é sustentada no vasto histórico dos políticos brasileiros em geral e, em particular, no inesgotável e ardente desejo do PT de ganhar eleição a qualquer custo.
Outro fator imponderável é o que fará Dilma se, ao longo do ano, as despesas crescerem mais do que o previsto, a receita tributária for insuficiente para cobri-las e ameaçar o cumprimento da meta. Ela vai recorrer a truques e malabarismos da tal contabilidade criativa dos três anos anteriores? Isso ela parece ter aprendido, sabe que triangulações financeiras forçadas, receitas falaciosas e outras pajelanças arquitetadas por assessores minaram a confiança dos empresários e subtraíram investimentos em seu governo. Pedir a Mantega uma meta fiscal realista é sinal de que não pretende recorrer a artifícios.
Só que Mantega calculou a receita tributária - essencial para o superávit primário de 1,9% do PIB - com base em estimativa otimista de uma taxa de crescimento econômico de 2,5%, enquanto os analistas (inclusive ligados ao governo, como o ex-secretário executivo da Fazenda Nelson Barbosa) não acreditam em mais de 1,5%. E 1% a menos na já minúscula previsão do PIB faz enorme diferença para o resultado final da receita tributária. Resta o recurso de remanejar verbas de uma para outra área. Mas será possível fazê-lo sem prejudicar investimentos e a área social, que Dilma quer preservar neste ano eleitoral? Difícil.
Até porque há no Orçamento outras fragilidades técnicas não equacionadas, que pressionarão o resultado fiscal ao longo do ano. Uma delas é tão clara que salta aos olhos: a previsão de déficit para a Previdência foi calculada em R$ 40 bilhões, 25% menor que os R$ 49,85 bilhões de 2013, mesmo com o reajuste de 6,78% do salário mínimo e nenhuma mudança no cenário que fundamente tal otimismo futurológico.
A segunda fragilidade é mais complexa, pois arrisca debilitar ainda mais a situação financeira das empresas do setor elétrico e comprometer a qualidade de serviços de manutenção da rede, potencializando a ocorrência de apagões País afora. É que o governo decidiu reservar no Orçamento só R$ 9 bilhões para subsidiar o consumo de energia em 2014 (em 2013 foram R$ 9,8 bilhões), mas nada destinou para cobrir os crescentes prejuízos causados pela longa estiagem do verão, que levou as empresas a comprarem energia das termoelétricas a preços mais caros do que vendem aos consumidores.
Há duas alternativas de solução para o problema: ou a candidata/presidente subtrai do Orçamento de 2014 mais R$ 9 bilhões (estimativa de técnicos do governo) para cobrir os prejuízos das empresas ou os repassa para o consumidor via aumento da tarifa. O assunto foi recorrente no encontro de Mantega com analistas internacionais na sexta-feira. O ministro não esclareceu por qual solução o governo vai optar, mas definiu o mês de abril como último prazo para decidir, depois de avaliar os estragos da seca nos reservatórios de hidrelétricas e quantificar prejuízos. A decisão mais simples seria reajustar a tarifa. Mas aí entra o dilema eleitoral: qual interesse vai prevalecer, o da presidente ou o da candidata?
Infelizmente, os fatos têm mostrado que a redução da tarifa de energia está mais para um monstrengo do que para um carro-chefe de campanha - para a presidente e para a candidata.
Reforma na laje ministerial - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP -23/02
Presidente troca ministros, ninguém dá a mínima, mas rodízio pode dar problema
HOUVE UM TEMPO em que se prestava alguma atenção a reformas de ministério, ainda mais se a mudança ocorresse no longo verão do recesso parlamentar, sem notícias. Na falta dessa fofoca, havia a conversa fiada sobre reforma política, que morria ali pelo Carnaval.
Dilma Rousseff faz uma reforma ministerial. Quase ninguém dá a mínima, exceto envolvidos, essa gente de PMDB etc.
Um motivo óbvio do desprezo é que quase nenhum cidadão prestante sabe quem são os ministros. Não vale mesmo a pena.
Primeiro, porque os ministros são muitos, uns 40. Já é difícil lembrar os 11 titulares da seleção brasileira.
Segundo, porque os ministros são algo irrelevantes. Não são notáveis, embora alguns sejam notórios, e, no que interessa ao país, não raro o ministro é um 2 de paus.
A presidente muita vez nomeia o indivíduo para satisfazer um partido PMDB qualquer desses. O ministro leva como dote uma cota de boquinhas. Mas tem de aceitar que a presidente nomeie um zelador ou interventor.
Quando tem interesse na área, Dilma escolhe ou adota um secretário do ministério que tenha algum espírito público e conhecimento da coisa, com o qual discute os assuntos da pasta. Jornalistas de Brasília e políticos dizem que tal pessoa tem "perfil técnico". Isto é, alguém que não foi treinado nem está imediatamente disponível para a mumunha.
Em suma, Dilma é a ministra em áreas de seu interesse. Quanto ao resto, quando não os ignora, apavora seus comandados, centraliza demais e envolve-se em minúcias, com o que torna arrastados processos de decisão. Um jornalista do "Financial Times" escreveu, sarcasticamente, que Dilma decide a cor das apresentações ministeriais em PowerPoint.
Um ou outro ministério-feudo do PT tem mais autonomia, assim como uma ou outra pasta com burocracia e missão mais azeitadas (como o do Desenvolvimento Social) ou as salvas pela inapetência de Dilma, tais como Itamaraty, Justiça ou Agricultura, para lembrar as maiores.
Quase qualquer ministério, no entanto, está sujeito a ter de inventar (ou engolir) um programa desses com nome fantasia, Brasil Bonitinho, Brasil Mimimi, coisas buriladas por ministros informais da propaganda, assessores de marketing eleitoral que prestam serviços amigos durante o governo.
Com exceção do caso de Aloizio Mercadante, ministro da Casa Civil, a reforma ministerial é uma operação tapa-buraco. Empresários não quiseram aceitar o Ministério do Desenvolvimento. Alguns temem participar de um naufrágio, de resto sem apitar nada, ou de queimar o filme com seus pares; a maioria não quis se sujeitar a ser tratorada por Dilma.
No entanto, esse rodízio deprimente pode dar problema. A presidente insiste em nomear um tipo do PMDB em vez de outro, um seis por um meia-dúzia.
Devido a essas diferenças, entre outros motivos, o PMDB ameaça Dilma e o país com a aprovação de projetos que vão arruinar ainda mais este governo. Não satisfeito, o PMDB junta sua fome com a vontade de empresários de comer o fígado do governo (ou, pelo menos, de comprar um fígado subsidiado), promovendo reuniões com capitães de empresa a fim de azucrinar e pressionar a presidente.
Que fase.
Presidente troca ministros, ninguém dá a mínima, mas rodízio pode dar problema
HOUVE UM TEMPO em que se prestava alguma atenção a reformas de ministério, ainda mais se a mudança ocorresse no longo verão do recesso parlamentar, sem notícias. Na falta dessa fofoca, havia a conversa fiada sobre reforma política, que morria ali pelo Carnaval.
Dilma Rousseff faz uma reforma ministerial. Quase ninguém dá a mínima, exceto envolvidos, essa gente de PMDB etc.
Um motivo óbvio do desprezo é que quase nenhum cidadão prestante sabe quem são os ministros. Não vale mesmo a pena.
Primeiro, porque os ministros são muitos, uns 40. Já é difícil lembrar os 11 titulares da seleção brasileira.
Segundo, porque os ministros são algo irrelevantes. Não são notáveis, embora alguns sejam notórios, e, no que interessa ao país, não raro o ministro é um 2 de paus.
A presidente muita vez nomeia o indivíduo para satisfazer um partido PMDB qualquer desses. O ministro leva como dote uma cota de boquinhas. Mas tem de aceitar que a presidente nomeie um zelador ou interventor.
Quando tem interesse na área, Dilma escolhe ou adota um secretário do ministério que tenha algum espírito público e conhecimento da coisa, com o qual discute os assuntos da pasta. Jornalistas de Brasília e políticos dizem que tal pessoa tem "perfil técnico". Isto é, alguém que não foi treinado nem está imediatamente disponível para a mumunha.
Em suma, Dilma é a ministra em áreas de seu interesse. Quanto ao resto, quando não os ignora, apavora seus comandados, centraliza demais e envolve-se em minúcias, com o que torna arrastados processos de decisão. Um jornalista do "Financial Times" escreveu, sarcasticamente, que Dilma decide a cor das apresentações ministeriais em PowerPoint.
Um ou outro ministério-feudo do PT tem mais autonomia, assim como uma ou outra pasta com burocracia e missão mais azeitadas (como o do Desenvolvimento Social) ou as salvas pela inapetência de Dilma, tais como Itamaraty, Justiça ou Agricultura, para lembrar as maiores.
Quase qualquer ministério, no entanto, está sujeito a ter de inventar (ou engolir) um programa desses com nome fantasia, Brasil Bonitinho, Brasil Mimimi, coisas buriladas por ministros informais da propaganda, assessores de marketing eleitoral que prestam serviços amigos durante o governo.
Com exceção do caso de Aloizio Mercadante, ministro da Casa Civil, a reforma ministerial é uma operação tapa-buraco. Empresários não quiseram aceitar o Ministério do Desenvolvimento. Alguns temem participar de um naufrágio, de resto sem apitar nada, ou de queimar o filme com seus pares; a maioria não quis se sujeitar a ser tratorada por Dilma.
No entanto, esse rodízio deprimente pode dar problema. A presidente insiste em nomear um tipo do PMDB em vez de outro, um seis por um meia-dúzia.
Devido a essas diferenças, entre outros motivos, o PMDB ameaça Dilma e o país com a aprovação de projetos que vão arruinar ainda mais este governo. Não satisfeito, o PMDB junta sua fome com a vontade de empresários de comer o fígado do governo (ou, pelo menos, de comprar um fígado subsidiado), promovendo reuniões com capitães de empresa a fim de azucrinar e pressionar a presidente.
Que fase.
É tempo de acertar contas com o 'curto século 20' - SERGIO FAUSTO
O Estado de S.Paulo - 23/02
Em 2014 completam-se cem anos do início da 1.ª Guerra Mundial. O conflito foi um divisor de épocas. Eric Hobsbawm, historiador inglês marxista, assinala-o como marco inaugural do "curto século 20". François Furet, historiador francês liberal, escreve que o mundo até ali existente morreu junto com os 15 milhões de pessoas vitimadas pela maior carnificina humana vista até então.
A 1.ª Guerra pôs fim ao "longo século 19", iniciado com a derrota de Napoleão, a formação da Santa Aliança, o fortalecimento da coalizão entre a burguesia industrial nascente e as aristocracias recicladas dos velhos regimes anteriores à Revolução Francesa. Na esteira da guerra, abriu-se a "Era dos Extremos", como Hobsbawm chamou o "curto século 20", marcado pela novidade histórica do aparecimento de sistemas totalitários, de signo oposto, o comunismo e o fascismo (não por acaso, o historiador inglês identifica no colapso da União Soviética o ato final do século passado).
É inegável que a Revolução Russa é filha da guerra de 1914-1918. Sem a ruína do Exército czarista e as privações provocadas pelo conflito os bolcheviques não teriam tomado o Palácio de Inverno em outubro de 1917. O filósofo e historiador francês Élie Halévy foi profético ao escrever, em meio à guerra: "Desfavorável provavelmente às formas liberais do socialismo, ela fortalece, consideravelmente, o socialismo de Estado".
Também a ascensão do nazi-fascismo é indissociável da devastação que a guerra provocou na Europa e do surgimento da "ameaça comunista", representada pela consolidação da União Soviética e pelo seu prestígio entre a esquerda europeia. Prestígio crescente nos anos 20 e 30, apesar das críticas que logo surgiram, na própria esquerda, à ditadura do partido único implantada por Lenin e levada às suas últimas consequências por Stalin.
No Brasil a guerra deu impulso ao primeiro ensaio espontâneo de industrialização por substituição de importações, devido à virtual interrupção do comércio com a Europa. Mais significativos e prolongados, porém, foram os seus efeitos políticos.
A 1.ª Guerra marcou a ascensão definitiva dos Estados Unidos à posição de maior economia, em condições de se tornar igualmente a maior potência militar do planeta, duplo status que a 2.ª Guerra viria confirmar e reforçar, com a União Soviética no polo oposto. A hegemonia americana no Hemisfério Ocidental, de Norte a Sul, tornou-se incontestável. Por outro lado, ao mesmo tempo as ideologias europeias de contestação frontal ao liberalismo encontraram receptividade no Brasil (e na América Latina). Não ganharam adeptos numerosos como em seus locais de origem (o Partido Comunista Brasileiro - PCB -, fundado em 1922, e a Ação Integralista Brasileira, criada dez anos depois, jamais chegaram a ser partidos de massa). A despeito disso, comunistas e integralistas (a versão nativista do fascismo europeu) passaram a ter presença em grupos sociais influentes: profissionais e intelectuais de classe média urbana, em sua maioria, e operários fabris sindicalizados, em menor grau.
Suas ideias antiliberais encontraram pontos de contato e afinidade com o pensamento nacionalista autoritário dominante nos anos 30. Ambos tinham no "artificialismo da democracia liberal-burguesa" um alvo comum. Por esse caminho o fascismo deixou suas marcas no Estado Novo (1937-1945) e, mais tarde, na ditadura militar (1964-1985). Mais distante do poder, o comunismo não imprimiu marcas institucionais tão claras, mas o DNA autoritário do leninismo continuou a se reproduzir ao longo do século 20 no Brasil, mesmo depois de parcialmente expurgado do seu componente totalitário puro e duro, a partir da segunda metade dos anos 50, quando os crimes de Stalin foram revelados e o stalinismo perdeu vigor. Veio então a revolução cubana a dar-lhe novo alento.
A esquerda brasileira paga até hoje um tributo caro à sua incapacidade de se livrar desse DNA antiliberal. Sobram restos mal digeridos de uma herança histórica que parte significativa da esquerda prefere não enfrentar com transparência e honestidade intelectual. Em lugar de um diálogo aberto sobre as contribuições, conflituosamente complementares, do liberalismo e do socialismo democrático às conquistas civilizatórias da humanidade, grande parte da esquerda prefere refugiar-se na pantomima dos punhos erguidos e no ataque robótico ao "neoliberalismo" - como se o liberalismo econômico fosse um só e o liberalismo político, o seu apêndice - e ao "imperialismo americano", como se ainda vivêssemos sob a guerra fria. Ao mesmo tempo, silencia diante de regimes autoritários "de esquerda" e não hesita em agir para enfraquecer processos e instituições que, pertencendo ao liberalismo político clássico em sua origem, se tornaram, pelas lutas sociais, patrimônio das democracias dignas desse nome em qualquer lugar do mundo.
Justiça seja feita a intelectuais eurocomunistas ligados ao antigo PCB que promoveram o debate sobre o liberalismo e o socialismo na primeira metade dos anos 80, ainda na etapa formativa da nova democracia brasileira. No âmbito do PT, principal partido da esquerda brasileira no pós-64, intelectuais como Francisco Weffort fizeram esforço na mesma direção. O debate, porém, foi posto à margem, substituído pelo empenho na organização da máquina partidária e pelo pragmatismo da luta pelo poder. Tampouco o PSDB colaborou para dar densidade a essa discussão, em que pese a contribuição individual de algumas de suas lideranças.
Se queremos construir um pensamento social e político à altura dos desafios deste século, que mal começa e já coloca novas exigências, precisamos retomar o debate apenas ensaiado sobre o liberalismo e o socialismo, com sensibilidade para as suas manifestações especificamente brasileiras, e acertar as nossas contas com "o curto século 20".
Em 2014 completam-se cem anos do início da 1.ª Guerra Mundial. O conflito foi um divisor de épocas. Eric Hobsbawm, historiador inglês marxista, assinala-o como marco inaugural do "curto século 20". François Furet, historiador francês liberal, escreve que o mundo até ali existente morreu junto com os 15 milhões de pessoas vitimadas pela maior carnificina humana vista até então.
A 1.ª Guerra pôs fim ao "longo século 19", iniciado com a derrota de Napoleão, a formação da Santa Aliança, o fortalecimento da coalizão entre a burguesia industrial nascente e as aristocracias recicladas dos velhos regimes anteriores à Revolução Francesa. Na esteira da guerra, abriu-se a "Era dos Extremos", como Hobsbawm chamou o "curto século 20", marcado pela novidade histórica do aparecimento de sistemas totalitários, de signo oposto, o comunismo e o fascismo (não por acaso, o historiador inglês identifica no colapso da União Soviética o ato final do século passado).
É inegável que a Revolução Russa é filha da guerra de 1914-1918. Sem a ruína do Exército czarista e as privações provocadas pelo conflito os bolcheviques não teriam tomado o Palácio de Inverno em outubro de 1917. O filósofo e historiador francês Élie Halévy foi profético ao escrever, em meio à guerra: "Desfavorável provavelmente às formas liberais do socialismo, ela fortalece, consideravelmente, o socialismo de Estado".
Também a ascensão do nazi-fascismo é indissociável da devastação que a guerra provocou na Europa e do surgimento da "ameaça comunista", representada pela consolidação da União Soviética e pelo seu prestígio entre a esquerda europeia. Prestígio crescente nos anos 20 e 30, apesar das críticas que logo surgiram, na própria esquerda, à ditadura do partido único implantada por Lenin e levada às suas últimas consequências por Stalin.
No Brasil a guerra deu impulso ao primeiro ensaio espontâneo de industrialização por substituição de importações, devido à virtual interrupção do comércio com a Europa. Mais significativos e prolongados, porém, foram os seus efeitos políticos.
A 1.ª Guerra marcou a ascensão definitiva dos Estados Unidos à posição de maior economia, em condições de se tornar igualmente a maior potência militar do planeta, duplo status que a 2.ª Guerra viria confirmar e reforçar, com a União Soviética no polo oposto. A hegemonia americana no Hemisfério Ocidental, de Norte a Sul, tornou-se incontestável. Por outro lado, ao mesmo tempo as ideologias europeias de contestação frontal ao liberalismo encontraram receptividade no Brasil (e na América Latina). Não ganharam adeptos numerosos como em seus locais de origem (o Partido Comunista Brasileiro - PCB -, fundado em 1922, e a Ação Integralista Brasileira, criada dez anos depois, jamais chegaram a ser partidos de massa). A despeito disso, comunistas e integralistas (a versão nativista do fascismo europeu) passaram a ter presença em grupos sociais influentes: profissionais e intelectuais de classe média urbana, em sua maioria, e operários fabris sindicalizados, em menor grau.
Suas ideias antiliberais encontraram pontos de contato e afinidade com o pensamento nacionalista autoritário dominante nos anos 30. Ambos tinham no "artificialismo da democracia liberal-burguesa" um alvo comum. Por esse caminho o fascismo deixou suas marcas no Estado Novo (1937-1945) e, mais tarde, na ditadura militar (1964-1985). Mais distante do poder, o comunismo não imprimiu marcas institucionais tão claras, mas o DNA autoritário do leninismo continuou a se reproduzir ao longo do século 20 no Brasil, mesmo depois de parcialmente expurgado do seu componente totalitário puro e duro, a partir da segunda metade dos anos 50, quando os crimes de Stalin foram revelados e o stalinismo perdeu vigor. Veio então a revolução cubana a dar-lhe novo alento.
A esquerda brasileira paga até hoje um tributo caro à sua incapacidade de se livrar desse DNA antiliberal. Sobram restos mal digeridos de uma herança histórica que parte significativa da esquerda prefere não enfrentar com transparência e honestidade intelectual. Em lugar de um diálogo aberto sobre as contribuições, conflituosamente complementares, do liberalismo e do socialismo democrático às conquistas civilizatórias da humanidade, grande parte da esquerda prefere refugiar-se na pantomima dos punhos erguidos e no ataque robótico ao "neoliberalismo" - como se o liberalismo econômico fosse um só e o liberalismo político, o seu apêndice - e ao "imperialismo americano", como se ainda vivêssemos sob a guerra fria. Ao mesmo tempo, silencia diante de regimes autoritários "de esquerda" e não hesita em agir para enfraquecer processos e instituições que, pertencendo ao liberalismo político clássico em sua origem, se tornaram, pelas lutas sociais, patrimônio das democracias dignas desse nome em qualquer lugar do mundo.
Justiça seja feita a intelectuais eurocomunistas ligados ao antigo PCB que promoveram o debate sobre o liberalismo e o socialismo na primeira metade dos anos 80, ainda na etapa formativa da nova democracia brasileira. No âmbito do PT, principal partido da esquerda brasileira no pós-64, intelectuais como Francisco Weffort fizeram esforço na mesma direção. O debate, porém, foi posto à margem, substituído pelo empenho na organização da máquina partidária e pelo pragmatismo da luta pelo poder. Tampouco o PSDB colaborou para dar densidade a essa discussão, em que pese a contribuição individual de algumas de suas lideranças.
Se queremos construir um pensamento social e político à altura dos desafios deste século, que mal começa e já coloca novas exigências, precisamos retomar o debate apenas ensaiado sobre o liberalismo e o socialismo, com sensibilidade para as suas manifestações especificamente brasileiras, e acertar as nossas contas com "o curto século 20".
O capim e os burros - CELSO MING
O Estado de S.Paulo - 23/02
Velha ilustração usada para ensinar as excelências da cooperação (veja ao lado) mostra o que tem ocorrido entre governo federal e Banco Central (BC). Dois burros atados por uma corda puxam em direções opostas, cada um para a sua touceira de capim.
Ou seja, a política fiscal, que cuida das receitas e despesas do governo federal, e a política monetária, que cuida do volume de dinheiro na economia e, em consequência, dos juros básicos, quase nunca se entendem. Ao deixar que as despesas cresçam bem mais do que as receitas, a política fiscal cria renda demais e demanda demais e, portanto, produz inflação. Enquanto isso, a política monetária, que restringe o volume de moeda, tenta conter a inflação. O resultado, por enquanto, é inflação alta, perda de confiança e tudo o mais que vem a reboque. Quinta-feira, o ministro Guido Mantega admitiu que mais austeridade ajuda o BC a derrubar a inflação.
Depois que Antonio Palocci foi substituído por Mantega na administração Lula, governo federal e BC viviam em conflito. Mantega pisava no acelerador das despesas e o então presidente do BC, Henrique Meirelles, tratava de pisar nos freios. Às vezes, o presidente Lula chamava ambos às falas, mas Mantega exigia que o BC se enquadrasse às suas orientações, como prevê o organograma, e Meirelles operava como se fosse autônomo. Na prática, tomava a política fiscal expansionista do governo federal como dado de realidade para definir a política de juros.
O governo Dilma iniciou novo período de convergência para puxar o consumo: Alexandre Tombini encarregou-se de derrubar os juros e Mantega se atirou à gastança. A partir de abril de 2013, embora mais disfarçado ou mesmo negado, o conflito ressurgiu. O governo federal foi perdulário na administração das despesas públicas porque entendia que precisava definir políticas contracíclicas, ou seja, precisava compensar com mais gastos os efeitos recessivos da crise externa. Em seus documentos, o BC deixou de reclamar da política expansionista do governo federal como repetia até julho de 2013, e passou a afirmar que "a política fiscal tende a convergir para a neutralidade", o que significa que, lá pelas tantas, a política fiscal deixará de produzir inflação. A atitude básica do BC é a mesma: toma os resultados da política fiscal como dado de realidade e trata de empurrar os juros para onde acha que têm de ir.
E assim ficou: a inflação não cedeu porque a política monetária não conta com a colaboração da política fiscal. Agora o governo promete mais austeridade, não porque entende que precise ajudar a derrubar a demanda, mas porque teme o rebaixamento da qualidade dos títulos do Tesouro pela agência de classificação de risco Standard & Poor's, como esta Coluna apontou quarta-feira.
O resultado desse desencontro não foi só inflação alta, distorções da política econômica e avanço raquítico do PIB, mas, também, a retração dos investimentos. Quem ganhou foram as touceiras de capim, não alcançadas pelos burros.
Velha ilustração usada para ensinar as excelências da cooperação (veja ao lado) mostra o que tem ocorrido entre governo federal e Banco Central (BC). Dois burros atados por uma corda puxam em direções opostas, cada um para a sua touceira de capim.
Ou seja, a política fiscal, que cuida das receitas e despesas do governo federal, e a política monetária, que cuida do volume de dinheiro na economia e, em consequência, dos juros básicos, quase nunca se entendem. Ao deixar que as despesas cresçam bem mais do que as receitas, a política fiscal cria renda demais e demanda demais e, portanto, produz inflação. Enquanto isso, a política monetária, que restringe o volume de moeda, tenta conter a inflação. O resultado, por enquanto, é inflação alta, perda de confiança e tudo o mais que vem a reboque. Quinta-feira, o ministro Guido Mantega admitiu que mais austeridade ajuda o BC a derrubar a inflação.
Depois que Antonio Palocci foi substituído por Mantega na administração Lula, governo federal e BC viviam em conflito. Mantega pisava no acelerador das despesas e o então presidente do BC, Henrique Meirelles, tratava de pisar nos freios. Às vezes, o presidente Lula chamava ambos às falas, mas Mantega exigia que o BC se enquadrasse às suas orientações, como prevê o organograma, e Meirelles operava como se fosse autônomo. Na prática, tomava a política fiscal expansionista do governo federal como dado de realidade para definir a política de juros.
O governo Dilma iniciou novo período de convergência para puxar o consumo: Alexandre Tombini encarregou-se de derrubar os juros e Mantega se atirou à gastança. A partir de abril de 2013, embora mais disfarçado ou mesmo negado, o conflito ressurgiu. O governo federal foi perdulário na administração das despesas públicas porque entendia que precisava definir políticas contracíclicas, ou seja, precisava compensar com mais gastos os efeitos recessivos da crise externa. Em seus documentos, o BC deixou de reclamar da política expansionista do governo federal como repetia até julho de 2013, e passou a afirmar que "a política fiscal tende a convergir para a neutralidade", o que significa que, lá pelas tantas, a política fiscal deixará de produzir inflação. A atitude básica do BC é a mesma: toma os resultados da política fiscal como dado de realidade e trata de empurrar os juros para onde acha que têm de ir.
E assim ficou: a inflação não cedeu porque a política monetária não conta com a colaboração da política fiscal. Agora o governo promete mais austeridade, não porque entende que precise ajudar a derrubar a demanda, mas porque teme o rebaixamento da qualidade dos títulos do Tesouro pela agência de classificação de risco Standard & Poor's, como esta Coluna apontou quarta-feira.
O resultado desse desencontro não foi só inflação alta, distorções da política econômica e avanço raquítico do PIB, mas, também, a retração dos investimentos. Quem ganhou foram as touceiras de capim, não alcançadas pelos burros.
20 anos do Plano Real - GUSTAVO FRANCO
O Estado de S.Paulo - 23/02
Na próxima sexta feira, dia 28 de fevereiro de 2014, quando começarem os trabalhos de carnaval, vamos festejar também os 20 anos da publicação da Medida Provisória nº 434, que introduziu a URV (Unidade Real de Valor), uma formidável inovação que assumiu a forma de segunda moeda nacional, porém apenas "virtual", ou "para servir exclusivamente como padrão de valor monetário" (art. 1).
A URV era o real, desde o início. Em seu artigo 2º, a MP 434 já determinava que, quando a URV fosse emitida em forma de cédulas - e assim passasse a servir para pagamentos -, o cruzeiro real seria extinto e a URV teria seu nome mudado para real.
A inflação beirava os 40% mensais, mas, em vista do modo como foi construída, a URV (que Saulo Ramos, com verve e má vontade chamou de "feto de moeda") era uma "moeda estável", ou uma unidade de conta protegida da inflação, portanto, superior às outras em circulação ou em uso para indexar contratos, e por isso as substituiu de modo espontâneo e surpreendentemente rápido.
Na partida, em 1º de março de 1994, a cotação da URV em cruzeiros reais, a moeda de pagamentos, era CR$ 647,50, valor que o BC usava para fixar a taxa de câmbio (e não o contrário). No dia seguinte a URV mudou para CR$ 657,50, conforme a variação da inflação corrente, e depois para CR$ 667,65 assim fomos.
Em poucas semanas a URV se alastrou de forma viral, pois era um convite irresistível: migrar espontaneamente para uma moeda de conta que andava junto com o dólar. Por que o Brasil não poderia ter uma moeda tão boa quanto a de qualquer outro país? Por que a moeda estável, a indexada, era privilégio apenas do rico que usava o "overnight"?
Em 1º de julho, quatro meses depois (e bem poderia ter sido antes!), as novas cédulas e moedas do real foram colocadas em circulação em lugar do cruzeiro real na razão de R$ 1,00 para CR$ 2.750,00. A reforma monetária estava completa e o real em plena circulação. Quem disse que o brasileiro não sabe fazer conta e não é capaz de entender e agir inteligentemente diante de questões econômicas aparentemente complexas?
Depois de 20 anos, a adoção generalizada da URV ainda está cercada de uma aura de mistério e fascinação, e entre os especialistas, é lembrada como uma das experiências de estabilização mais engenhosas e bem-sucedidas que a humanidade já conheceu. O fim da hiperinflação alemã em 1923, que fez uso de um expediente semelhante - o rentenmark - é frequentemente descrito como um "milagre", e desafia explicações, tal como a URV.
O fato é que a introdução da moeda de conta indexada deu início a uma reação química em cadeia, uma espécie de redescoberta do "valor das coisas", que estendia seus efeitos para todo o espectro de simbolismos associados ao dinheiro, sugerindo, inclusive, a identificação entre inflação e imoralidade. Havia muita coisa em jogo no plano simbólico: a moeda, como a bandeira e o hino, está entre os mais importantes símbolos nacionais, de tal sorte que sua degradação, quando levada ao extremo de uma hiperinflação, espalhava suas consequências para muito além da órbita econômica.
Elias Canetti, numa passagem famosa sobre a hiperinflação alemã, observou mais genericamente que uma inflação desse tipo "pode ser tomada como uma orgia satânica de desvalorização no qual os homens e as unidades de seu dinheiro exercem os mais estranhos efeitos sobre si mesmos. Um se projeta no outro, o homem sentindo-se tão 'ruim' quanto o seu dinheiro". Nada a estranhar, portanto, no torpor e na dissolução de valores, entendida de forma mais ampla, em vigor durante aqueles anos e que, infelizmente, deixou sequelas.
O "caminho de volta" enunciado pelo Plano Real compreendia a recomposição e reunificação das funções da moeda em sequência: primeiro a de servir como unidade de conta com a URV, substituindo outros indexadores e unidades de conta usadas em contratos e orçamentos familiares, segundo a de servir como meio de pagamento de curso legal, com a emissão de cédulas e moedas denominadas em real, e por último, e mais difícil, a de funcionar como reserva de valor, teste realizado quando a nova moeda deixou de ser indexada ao dólar e flutuou com relação à moeda norte-americana. E diante do veredicto dos mercados, quando o real apreciou com relação ao dólar, e assim se manteve, o circuito estava completo.
Era apenas o começo, é claro, e o programa prosseguiu, inclusive porque havia clareza que o Plano Real, diferentemente dos outros planos econômicos, compreendia uma extensa agenda de ações contemplando os chamados fundamentos econômicos da estabilização e do desenvolvimento. Era uma linguagem inovadora para uma época em que as pessoas ainda acreditavam em Papai Noel e inflação inercial. Essa agenda era o cerne do programa. A passagem do tempo e a alternância no poder só tornaram mais claro que estávamos adotando paradigmas já bem assentados no tocante à disciplina monetária, à responsabilidade fiscal e à sustentabilidade financeira do Estado.
A URV, depois transformada em real, trouxe a inflação no Brasil para níveis internacionais no início de 1997 sem sustos, confiscos, caneladas e recessão. No ano calendário de 1998 a inflação medida pelo IPCA foi de 1,6%, a menor da série histórica. Foi a menor inflação anual desde que o IPC da Fipe começou a ser calculado em 1940.
Pois assim, a estabilização nos retirou de um estado de torpor e depressão para outro de euforia e ansiedade; a agenda de estabilização rapidamente se converteu na discussão das reformas necessárias para o crescimento, onde estacionamos já faz alguns anos.
O problema do crescimento é semelhante ao da estabilização de muitas formas: ambos dependem de coordenação, persuasão, segurança quanto à consistência macroeconômica e, sobretudo, incentivos corretos. O sucesso da URV e do Plano Real é sempre associado ao estilo da coisa, à transparência no fazer e à ideia de um "convite a aderir" a um mecanismo que os agentes econômicos percebem como superior. Não é um "Pacto Social" negociado por sindicatos e associações patronais, nem um mecanismo compulsório e invasivo como foram os congelamentos. Essas coisas não funcionam: as pessoas, inclusive as jurídicas, preferem exercer suas próprias escolhas orientadas por suas próprias percepções sobre os seus melhores interesses. Assim funcionam as economias de mercado como a nossa. Quando o governo organiza políticas públicas que atentam para esse detalhe crucial sobre o modo com a economia funciona, as coisas costumam dar certo.
Na próxima sexta feira, dia 28 de fevereiro de 2014, quando começarem os trabalhos de carnaval, vamos festejar também os 20 anos da publicação da Medida Provisória nº 434, que introduziu a URV (Unidade Real de Valor), uma formidável inovação que assumiu a forma de segunda moeda nacional, porém apenas "virtual", ou "para servir exclusivamente como padrão de valor monetário" (art. 1).
A URV era o real, desde o início. Em seu artigo 2º, a MP 434 já determinava que, quando a URV fosse emitida em forma de cédulas - e assim passasse a servir para pagamentos -, o cruzeiro real seria extinto e a URV teria seu nome mudado para real.
A inflação beirava os 40% mensais, mas, em vista do modo como foi construída, a URV (que Saulo Ramos, com verve e má vontade chamou de "feto de moeda") era uma "moeda estável", ou uma unidade de conta protegida da inflação, portanto, superior às outras em circulação ou em uso para indexar contratos, e por isso as substituiu de modo espontâneo e surpreendentemente rápido.
Na partida, em 1º de março de 1994, a cotação da URV em cruzeiros reais, a moeda de pagamentos, era CR$ 647,50, valor que o BC usava para fixar a taxa de câmbio (e não o contrário). No dia seguinte a URV mudou para CR$ 657,50, conforme a variação da inflação corrente, e depois para CR$ 667,65 assim fomos.
Em poucas semanas a URV se alastrou de forma viral, pois era um convite irresistível: migrar espontaneamente para uma moeda de conta que andava junto com o dólar. Por que o Brasil não poderia ter uma moeda tão boa quanto a de qualquer outro país? Por que a moeda estável, a indexada, era privilégio apenas do rico que usava o "overnight"?
Em 1º de julho, quatro meses depois (e bem poderia ter sido antes!), as novas cédulas e moedas do real foram colocadas em circulação em lugar do cruzeiro real na razão de R$ 1,00 para CR$ 2.750,00. A reforma monetária estava completa e o real em plena circulação. Quem disse que o brasileiro não sabe fazer conta e não é capaz de entender e agir inteligentemente diante de questões econômicas aparentemente complexas?
Depois de 20 anos, a adoção generalizada da URV ainda está cercada de uma aura de mistério e fascinação, e entre os especialistas, é lembrada como uma das experiências de estabilização mais engenhosas e bem-sucedidas que a humanidade já conheceu. O fim da hiperinflação alemã em 1923, que fez uso de um expediente semelhante - o rentenmark - é frequentemente descrito como um "milagre", e desafia explicações, tal como a URV.
O fato é que a introdução da moeda de conta indexada deu início a uma reação química em cadeia, uma espécie de redescoberta do "valor das coisas", que estendia seus efeitos para todo o espectro de simbolismos associados ao dinheiro, sugerindo, inclusive, a identificação entre inflação e imoralidade. Havia muita coisa em jogo no plano simbólico: a moeda, como a bandeira e o hino, está entre os mais importantes símbolos nacionais, de tal sorte que sua degradação, quando levada ao extremo de uma hiperinflação, espalhava suas consequências para muito além da órbita econômica.
Elias Canetti, numa passagem famosa sobre a hiperinflação alemã, observou mais genericamente que uma inflação desse tipo "pode ser tomada como uma orgia satânica de desvalorização no qual os homens e as unidades de seu dinheiro exercem os mais estranhos efeitos sobre si mesmos. Um se projeta no outro, o homem sentindo-se tão 'ruim' quanto o seu dinheiro". Nada a estranhar, portanto, no torpor e na dissolução de valores, entendida de forma mais ampla, em vigor durante aqueles anos e que, infelizmente, deixou sequelas.
O "caminho de volta" enunciado pelo Plano Real compreendia a recomposição e reunificação das funções da moeda em sequência: primeiro a de servir como unidade de conta com a URV, substituindo outros indexadores e unidades de conta usadas em contratos e orçamentos familiares, segundo a de servir como meio de pagamento de curso legal, com a emissão de cédulas e moedas denominadas em real, e por último, e mais difícil, a de funcionar como reserva de valor, teste realizado quando a nova moeda deixou de ser indexada ao dólar e flutuou com relação à moeda norte-americana. E diante do veredicto dos mercados, quando o real apreciou com relação ao dólar, e assim se manteve, o circuito estava completo.
Era apenas o começo, é claro, e o programa prosseguiu, inclusive porque havia clareza que o Plano Real, diferentemente dos outros planos econômicos, compreendia uma extensa agenda de ações contemplando os chamados fundamentos econômicos da estabilização e do desenvolvimento. Era uma linguagem inovadora para uma época em que as pessoas ainda acreditavam em Papai Noel e inflação inercial. Essa agenda era o cerne do programa. A passagem do tempo e a alternância no poder só tornaram mais claro que estávamos adotando paradigmas já bem assentados no tocante à disciplina monetária, à responsabilidade fiscal e à sustentabilidade financeira do Estado.
A URV, depois transformada em real, trouxe a inflação no Brasil para níveis internacionais no início de 1997 sem sustos, confiscos, caneladas e recessão. No ano calendário de 1998 a inflação medida pelo IPCA foi de 1,6%, a menor da série histórica. Foi a menor inflação anual desde que o IPC da Fipe começou a ser calculado em 1940.
Pois assim, a estabilização nos retirou de um estado de torpor e depressão para outro de euforia e ansiedade; a agenda de estabilização rapidamente se converteu na discussão das reformas necessárias para o crescimento, onde estacionamos já faz alguns anos.
O problema do crescimento é semelhante ao da estabilização de muitas formas: ambos dependem de coordenação, persuasão, segurança quanto à consistência macroeconômica e, sobretudo, incentivos corretos. O sucesso da URV e do Plano Real é sempre associado ao estilo da coisa, à transparência no fazer e à ideia de um "convite a aderir" a um mecanismo que os agentes econômicos percebem como superior. Não é um "Pacto Social" negociado por sindicatos e associações patronais, nem um mecanismo compulsório e invasivo como foram os congelamentos. Essas coisas não funcionam: as pessoas, inclusive as jurídicas, preferem exercer suas próprias escolhas orientadas por suas próprias percepções sobre os seus melhores interesses. Assim funcionam as economias de mercado como a nossa. Quando o governo organiza políticas públicas que atentam para esse detalhe crucial sobre o modo com a economia funciona, as coisas costumam dar certo.
As velhas contas - MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 23/02
Números diferentes são apresentados pelos bancos sobre o custo das indenizações aos poupadores tungados em planos econômicos. A divergência espanta, mas o tamanho da conta depende das variáveis que estarão na decisão do Supremo, se ele der ganho de causa aos poupadores. Há números que vão de R$ 23 bilhões a R$ 341 bilhões. O Banco Central fala em R$ 150 bilhões.
Este é mais um capítulo de um passado que nunca parou de assombrar o Brasil. Famílias perderam; bancos dizem que cumpriram a lei. Algumas pessoas que entraram individualmente ganharam, outras estão ganhando. Mas o que os bancos realmente temem são as ações coletivas: as Ações Civis Públicas. Os números foram calculados por consultorias contratadas pelos bancos, entre elas a LCA. Difícil aferir cada número, mas é fácil entender por que há vários números. É que tudo depende da decisão do STF.
O que não é aceitável é o argumento do memorial ao Supremo em que os bancos dizem que não houve perda para os poupadores, nem no Plano Collor. Que teria havido até um ganho de 37% nesse que foi o mais lesivo dos planos.
Em um argumento, os bancos têm razão: eles tiveram que cumprir o que estava determinado pela lei da época. Murilo Portugal, presidente da Federação dos Bancos, afirma que nenhum banco pode remunerar a caderneta de poupança de maneira diferente da que o governo estabelece. Nem antes, nem agora.
“Os bancos cumpriram o que foi determinado. As cláusulas não estavam abertas aos contratantes para que eles pudessem negociar um outro índice de remuneração”, diz.
O poupador vê as mudanças dos índices de correção nos planos Verão, Bresser, Collor e Collor II e calcula que perdeu dinheiro. Quanto vai custar? Aí é que começa a confusão. Tudo vai depender da Justiça.
Houve ações individuais. Os bancos já perderam e pagaram R$ 7,2 bilhões. Para as que ainda tramitam, as instituições financeiras já provisionaram R$ 8,3 bilhões. Isso é uma parte pequena da conta. A maior parte é das Ações Civis Públicas.
“Há dúvidas assim: quando começa a contar os juros de mora? É do momento que a ação foi proposta ou do momento em que o banco foi citado, após o julgamento da ação? Há a dúvida territorial. As ações só valem nos seus Estados ou têm alcance nacional?”, questiona.
Há mil Ações Civis Públicas, mas há uma interpretação do STF de que nas ações coletivas o prazo de prescrição é de cinco anos. Se valer isso, só 37 entraram no prazo. Foi com base nessas 37 que os consultores fizeram os cenários.
Se forem apenas as ações locais e sem juros de mora, a conta é de R$ 23 bilhões. Se foram aceitas ações locais, mas com juros de mora, a conta sobe para R$ 61 bi. Se todas tiverem abrangência nacional, mas sem juros de mora, o cálculo vai para R$ 128 bilhões. Mais ou menos o número que o BC trabalha. Se houver juros de mora e além disso todas as ações tiverem alcance nacional, o número, segundo a LCA, é R$ 341 bilhões.
Muita gente não entrou na Justiça, pessoas morreram, bancos quebraram, quase ninguém guardou o extrato. O que aconteceria se o Supremo decidisse que todos têm direito ao ressarcimento?
“Os bancos serão obrigados a entregar o extrato, inclusive os que no Proer absorveram outros bancos. Em caso de morte do poupador, herdeiros podem requerer também esse ressarcimento”, diz Murilo Portugal.
Seja qual for a decisão da Justiça, o Brasil precisa virar essa página. Esses planos fracassados fizeram correções arbitrárias nas aplicações financeiras: trocaram indexadores, mudaram a forma de cálculo da inflação, e, no Collor, houve até a desapropriação temporária do dinheiro das famílias e firmas.
Se os poupadores perderam, os bancos ganharam? Eles dizem que não, porque tiveram que usar o mesmo critério para os seus devedores de crédito imobiliário.
Mais da metade da conta terá que ser paga por duas instituições públicas, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
Não é fácil essa decisão sobre um passado complicado, tortuoso, cheio de regras conflitantes e do qual nos livramos há 20 anos quando o Plano Real fez o país entrar em nova era. A origem da confusão foi a correção monetária inventada pelo governo militar. O passado inflacionário volta nas próximas semanas a ser discutido no STF em um mar de números de assombrosa complexidade
Números diferentes são apresentados pelos bancos sobre o custo das indenizações aos poupadores tungados em planos econômicos. A divergência espanta, mas o tamanho da conta depende das variáveis que estarão na decisão do Supremo, se ele der ganho de causa aos poupadores. Há números que vão de R$ 23 bilhões a R$ 341 bilhões. O Banco Central fala em R$ 150 bilhões.
Este é mais um capítulo de um passado que nunca parou de assombrar o Brasil. Famílias perderam; bancos dizem que cumpriram a lei. Algumas pessoas que entraram individualmente ganharam, outras estão ganhando. Mas o que os bancos realmente temem são as ações coletivas: as Ações Civis Públicas. Os números foram calculados por consultorias contratadas pelos bancos, entre elas a LCA. Difícil aferir cada número, mas é fácil entender por que há vários números. É que tudo depende da decisão do STF.
O que não é aceitável é o argumento do memorial ao Supremo em que os bancos dizem que não houve perda para os poupadores, nem no Plano Collor. Que teria havido até um ganho de 37% nesse que foi o mais lesivo dos planos.
Em um argumento, os bancos têm razão: eles tiveram que cumprir o que estava determinado pela lei da época. Murilo Portugal, presidente da Federação dos Bancos, afirma que nenhum banco pode remunerar a caderneta de poupança de maneira diferente da que o governo estabelece. Nem antes, nem agora.
“Os bancos cumpriram o que foi determinado. As cláusulas não estavam abertas aos contratantes para que eles pudessem negociar um outro índice de remuneração”, diz.
O poupador vê as mudanças dos índices de correção nos planos Verão, Bresser, Collor e Collor II e calcula que perdeu dinheiro. Quanto vai custar? Aí é que começa a confusão. Tudo vai depender da Justiça.
Houve ações individuais. Os bancos já perderam e pagaram R$ 7,2 bilhões. Para as que ainda tramitam, as instituições financeiras já provisionaram R$ 8,3 bilhões. Isso é uma parte pequena da conta. A maior parte é das Ações Civis Públicas.
“Há dúvidas assim: quando começa a contar os juros de mora? É do momento que a ação foi proposta ou do momento em que o banco foi citado, após o julgamento da ação? Há a dúvida territorial. As ações só valem nos seus Estados ou têm alcance nacional?”, questiona.
Há mil Ações Civis Públicas, mas há uma interpretação do STF de que nas ações coletivas o prazo de prescrição é de cinco anos. Se valer isso, só 37 entraram no prazo. Foi com base nessas 37 que os consultores fizeram os cenários.
Se forem apenas as ações locais e sem juros de mora, a conta é de R$ 23 bilhões. Se foram aceitas ações locais, mas com juros de mora, a conta sobe para R$ 61 bi. Se todas tiverem abrangência nacional, mas sem juros de mora, o cálculo vai para R$ 128 bilhões. Mais ou menos o número que o BC trabalha. Se houver juros de mora e além disso todas as ações tiverem alcance nacional, o número, segundo a LCA, é R$ 341 bilhões.
Muita gente não entrou na Justiça, pessoas morreram, bancos quebraram, quase ninguém guardou o extrato. O que aconteceria se o Supremo decidisse que todos têm direito ao ressarcimento?
“Os bancos serão obrigados a entregar o extrato, inclusive os que no Proer absorveram outros bancos. Em caso de morte do poupador, herdeiros podem requerer também esse ressarcimento”, diz Murilo Portugal.
Seja qual for a decisão da Justiça, o Brasil precisa virar essa página. Esses planos fracassados fizeram correções arbitrárias nas aplicações financeiras: trocaram indexadores, mudaram a forma de cálculo da inflação, e, no Collor, houve até a desapropriação temporária do dinheiro das famílias e firmas.
Se os poupadores perderam, os bancos ganharam? Eles dizem que não, porque tiveram que usar o mesmo critério para os seus devedores de crédito imobiliário.
Mais da metade da conta terá que ser paga por duas instituições públicas, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
Não é fácil essa decisão sobre um passado complicado, tortuoso, cheio de regras conflitantes e do qual nos livramos há 20 anos quando o Plano Real fez o país entrar em nova era. A origem da confusão foi a correção monetária inventada pelo governo militar. O passado inflacionário volta nas próximas semanas a ser discutido no STF em um mar de números de assombrosa complexidade
Desatando o nó - HENRIQUE MEIRELLES
FOLHA DE SP - 23/02
Para administrar com sucesso uma organização atualmente --no setor público ou privado--, é necessário conhecimento preciso dos ambientes interno e externo.
O Brasil precisa aumentar muito o nível de investimento na economia, particularmente em produtividade e infraestrutura. Essas deficiências de oferta são também grandes oportunidades.
A boa notícia é que existem recursos disponíveis no mundo. A má notícia é que, com a recuperação de Estados Unidos e Europa, há cada vez mais projetos atraentes competindo pelos investimentos.
Temos vantagens competitivas que, bem usadas, podem gerar boom de investimentos no Brasil nos próximos anos. Para formular políticas nesse sentido, é preciso não só entender o que viabiliza os investimentos diretos das empresas, mas também entender os fluxos de capital e seus administradores.
Esse mercado não é feito só de grandes investidores ou bancos. Lembro-me de uma manifestação furiosa na Itália, pouco depois do calote argentino, na qual um grupo grande de pessoas protestava di-ante de um banco que tinha lhes vendido papéis daquele país. Eram todos de classe média, muito diferentes da imagem de tubarões do mercado internacional.
A realidade do mercado, portanto, difere bastante da visão de alguns. Ele é formado por milhões de investidores no mundo inteiro que aplicam numa variedade de fundos geridos por profissionais com a responsabilidade fiduciária de cuidar bem dos recursos e a obrigação de analisar e escolher os investimentos com melhores riscos e retorno.
Existem grandes investidores? Sim. Mas eles operam em parâmetros muito similares aos dos pequenos. Um dos grandes investidores do mercado mundial, por exemplo, é o Banco Central do Brasil, gestor das reservas internacionais do país. Imagine se os funcionários encarregados da sua gestão resolvessem ser "bonzinhos" e ajudar nações amigas, comprando títulos de países em dificuldades. Os prejuízos seriam, em última análise, pagos pela população brasileira.
Felizmente, esse não é o caso. O Banco Central do Brasil tem critérios extremamente rigorosos na análise de crédito, com uma carteira de papéis de primeira qualidade dos governos de maior solidez e capacidade de pagamento.
A expansão impressionante do mercado de consumo brasileiro não tem sido acompanhada nos últimos anos de crescimento compatível do investimento em produtividade e infraestrutura. Esse é o nó górdio do nosso desenvolvimento. Para desatá-lo, é preciso conhecer e usar os mercados. E formular políticas que gerem risco e retorno que viabilizem investimentos.
Para administrar com sucesso uma organização atualmente --no setor público ou privado--, é necessário conhecimento preciso dos ambientes interno e externo.
O Brasil precisa aumentar muito o nível de investimento na economia, particularmente em produtividade e infraestrutura. Essas deficiências de oferta são também grandes oportunidades.
A boa notícia é que existem recursos disponíveis no mundo. A má notícia é que, com a recuperação de Estados Unidos e Europa, há cada vez mais projetos atraentes competindo pelos investimentos.
Temos vantagens competitivas que, bem usadas, podem gerar boom de investimentos no Brasil nos próximos anos. Para formular políticas nesse sentido, é preciso não só entender o que viabiliza os investimentos diretos das empresas, mas também entender os fluxos de capital e seus administradores.
Esse mercado não é feito só de grandes investidores ou bancos. Lembro-me de uma manifestação furiosa na Itália, pouco depois do calote argentino, na qual um grupo grande de pessoas protestava di-ante de um banco que tinha lhes vendido papéis daquele país. Eram todos de classe média, muito diferentes da imagem de tubarões do mercado internacional.
A realidade do mercado, portanto, difere bastante da visão de alguns. Ele é formado por milhões de investidores no mundo inteiro que aplicam numa variedade de fundos geridos por profissionais com a responsabilidade fiduciária de cuidar bem dos recursos e a obrigação de analisar e escolher os investimentos com melhores riscos e retorno.
Existem grandes investidores? Sim. Mas eles operam em parâmetros muito similares aos dos pequenos. Um dos grandes investidores do mercado mundial, por exemplo, é o Banco Central do Brasil, gestor das reservas internacionais do país. Imagine se os funcionários encarregados da sua gestão resolvessem ser "bonzinhos" e ajudar nações amigas, comprando títulos de países em dificuldades. Os prejuízos seriam, em última análise, pagos pela população brasileira.
Felizmente, esse não é o caso. O Banco Central do Brasil tem critérios extremamente rigorosos na análise de crédito, com uma carteira de papéis de primeira qualidade dos governos de maior solidez e capacidade de pagamento.
A expansão impressionante do mercado de consumo brasileiro não tem sido acompanhada nos últimos anos de crescimento compatível do investimento em produtividade e infraestrutura. Esse é o nó górdio do nosso desenvolvimento. Para desatá-lo, é preciso conhecer e usar os mercados. E formular políticas que gerem risco e retorno que viabilizem investimentos.
Os lados da História - PERCIVAL PUGGINA
ZERO HORA - 23/02
Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta
Há poucos dias, em Petrópolis/RJ, com a presença da ministra dos Direitos Humanos, realizou-se evento para assinalar a desapropriação de um prédio identificado como centro de tortura. No final da cerimônia, um coral cantou _ adivinhe o quê? nosso Hino Nacional? _ não, o hino da Internacional Comunista, peça musical de fervor revolucionário que chegou a ser hino oficial da URSS durante décadas. Cumprindo a tradição, a performance foi acompanhada e aplaudida por uma plateia de punhos cerrados e erguidos. Ninguém desafinou. Nem vaiou.
Dizer-se democrata e cantar o hino de uma ditadura comunista é desinformar. A propósito, nenhum dos três livros que acabo de importar chamou a atenção das editoras nacionais, apesar de sua cronométrica e milimétrica aproximação à atualidade brasileira, inclusive com o ocorrido em Petrópolis. São eles: Disinformation, que trata das técnicas para construir imagens e versões, e solapar as liberdades; The Killing of History, a propósito de como certas teorias sociais e críticas literárias estão matando os fatos; e The Tyranny of Clichés, sobre como as esquerdas trapaceiam no conflito das ideias. Não seria fantasioso, de modo algum, considerar que o mutismo a respeito dessas e de outras obras seja uma evidência da realidade abordada nos três livros. Pergunto: não seria, também, por desejo de desinformar, de matar a História e de vencer o debate trapaceando que não se traduzem esses livros? A hipótese explicaria muito bem, por exemplo, a ocultação pela mídia nacional de Camaradas, obra de William Waack, escrita após minuciosa pesquisa nos Arquivos de Moscou, com foco na estratégia e na influência da URSS sobre a atuação dos comunistas no Brasil durante a primeira parte do século passado. Tanto se desinforma, se vandaliza a História e se trapaceia no debate de ideias que hoje ninguém duvida da influência e da participação da CIA nos atos e fatos de 1964. Ao mesmo tempo, sequer entra em cogitação a óbvia consequência disso: que tenha havido simétrica influência e participação soviética na América e no Brasil.
Entre 1945 e 1991, a Guerra Fria, sabemos todos, campeou solta no mundo inteiro. Luta estratégica, de vida ou morte, que não poupou a Lua e o espaço sideral. Surpreendentemente, segundo a história que nos é contada, só a CIA se interessava pelo Brasil. A URSS, que estendia malhas, a ferro e fogo, no leste europeu, na África, na Ásia, na América Central, no Caribe e na América do Sul, mediante movimentos guerrilheiros e forças de ocupação, ignoraria solenemente as terrinhas descobertas por Cabral! Se já ouvira falar no Brasil, não prestara atenção. Aqui só xeretariam os gananciosos ianques, difundindo a paranoia de um tal de comunismo que nos humilhava com seu desprezo.
Nas primeiras páginas do The Tyranny of Clichés, o autor Jonah Goldberg cita uma frase que cai como roupa de bom alfaiate sobre o que está em curso no Brasil: “A História não tem lados, mas os historiadores têm”. Foi esse ensinamento que não pude deixar de associar ao fato narrado na abertura deste texto _ a reunião da Comissão Nacional da Verdade ocorrida em Petrópolis. Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta. Com membros apenas do lado esquerdo, essa Comissão não inspira confiança alguma em quem tenha apreço pela verdade. Saberiam cantar o Hino Nacional, com igual fervor e sem desafinar?
Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta
Há poucos dias, em Petrópolis/RJ, com a presença da ministra dos Direitos Humanos, realizou-se evento para assinalar a desapropriação de um prédio identificado como centro de tortura. No final da cerimônia, um coral cantou _ adivinhe o quê? nosso Hino Nacional? _ não, o hino da Internacional Comunista, peça musical de fervor revolucionário que chegou a ser hino oficial da URSS durante décadas. Cumprindo a tradição, a performance foi acompanhada e aplaudida por uma plateia de punhos cerrados e erguidos. Ninguém desafinou. Nem vaiou.
Dizer-se democrata e cantar o hino de uma ditadura comunista é desinformar. A propósito, nenhum dos três livros que acabo de importar chamou a atenção das editoras nacionais, apesar de sua cronométrica e milimétrica aproximação à atualidade brasileira, inclusive com o ocorrido em Petrópolis. São eles: Disinformation, que trata das técnicas para construir imagens e versões, e solapar as liberdades; The Killing of History, a propósito de como certas teorias sociais e críticas literárias estão matando os fatos; e The Tyranny of Clichés, sobre como as esquerdas trapaceiam no conflito das ideias. Não seria fantasioso, de modo algum, considerar que o mutismo a respeito dessas e de outras obras seja uma evidência da realidade abordada nos três livros. Pergunto: não seria, também, por desejo de desinformar, de matar a História e de vencer o debate trapaceando que não se traduzem esses livros? A hipótese explicaria muito bem, por exemplo, a ocultação pela mídia nacional de Camaradas, obra de William Waack, escrita após minuciosa pesquisa nos Arquivos de Moscou, com foco na estratégia e na influência da URSS sobre a atuação dos comunistas no Brasil durante a primeira parte do século passado. Tanto se desinforma, se vandaliza a História e se trapaceia no debate de ideias que hoje ninguém duvida da influência e da participação da CIA nos atos e fatos de 1964. Ao mesmo tempo, sequer entra em cogitação a óbvia consequência disso: que tenha havido simétrica influência e participação soviética na América e no Brasil.
Entre 1945 e 1991, a Guerra Fria, sabemos todos, campeou solta no mundo inteiro. Luta estratégica, de vida ou morte, que não poupou a Lua e o espaço sideral. Surpreendentemente, segundo a história que nos é contada, só a CIA se interessava pelo Brasil. A URSS, que estendia malhas, a ferro e fogo, no leste europeu, na África, na Ásia, na América Central, no Caribe e na América do Sul, mediante movimentos guerrilheiros e forças de ocupação, ignoraria solenemente as terrinhas descobertas por Cabral! Se já ouvira falar no Brasil, não prestara atenção. Aqui só xeretariam os gananciosos ianques, difundindo a paranoia de um tal de comunismo que nos humilhava com seu desprezo.
Nas primeiras páginas do The Tyranny of Clichés, o autor Jonah Goldberg cita uma frase que cai como roupa de bom alfaiate sobre o que está em curso no Brasil: “A História não tem lados, mas os historiadores têm”. Foi esse ensinamento que não pude deixar de associar ao fato narrado na abertura deste texto _ a reunião da Comissão Nacional da Verdade ocorrida em Petrópolis. Aí está o pecado original de uma Comissão cujo símbolo deveria ser um Saci-Pererê maneta. Com membros apenas do lado esquerdo, essa Comissão não inspira confiança alguma em quem tenha apreço pela verdade. Saberiam cantar o Hino Nacional, com igual fervor e sem desafinar?
Defesa de territórios - DORA KRAMER
O Estado de S.Paulo - 23/02
Em tempo de campanha eleitoral antecipada, os partidos de oposição resolveram se adiantar no lançamento dos respectivos candidatos à Presidência da República.
Pela lei, esses atos deveriam acontecer nas convenções que se realizam a partir de 12 de junho (dia do início da Copa do Mundo). Mas, o PSB já quer anunciar a chapa Eduardo Campos e Marina Silva em alguma data logo após o carnaval e o PSDB em princípio escolheu o dia 29 de março para lançar a candidatura de Aécio Neves.
O nome do vice ainda está em discussão, mas há por ora quase unanimidade em torno do nome do senador por São Paulo Aloysio Nunes Ferreira, também tucano.
Uma decisão está tomada: o ato de lançamento será em São Paulo, pelo mesmo motivo que a composição da chapa deixa de adotar como regra a aliança com outro partido e opta pelo critério regional.
Sendo São Paulo o maior colégio eleitoral do País (32 milhões dos 140 milhões de eleitores), a avaliação dos tucanos é que nesse caso uma chapa puro-sangue agrega mais eleitores que uma aliança partidária.
Minas Gerais, palco do lançamento da candidatura do paulista Geraldo Alckmin em 2006, é território dado como ocupado por Aécio, que precisa conquistar a Pauliceia, onde já é bem conhecido do empresariado, mas praticamente um anônimo entre o grande público.
Nos encontros com lideranças regionais do partido o mineiro tem dito uma frase (de efeito, claro) que passará a repetir com frequência: "Me deem São Paulo que eu lhes entrego a Presidência da República".
Pelo raciocínio da densidade eleitoral seria de se imaginar que Eduardo Campos faria seu ato também em terras paulistanas, mas nesse caso a equação é outra.
Leva em conta o peso de Marina Silva no Rio de Janeiro e por isso será lá o anúncio oficial. Em 2010 a então candidata a presidente pelo PV teve 31% dos votos no Rio, a segunda maior votação do País. A primeira obteve em Brasília, onde foi a campeã, com 41, 96%.
Qual a ideia do PSB? Óbvia. Começar a jornada testando o potencial de transferência de votos de Marina para Campos num Estado em que o capital eleitoral dela é forte.
Lançar a candidatura em Pernambuco ou em outro Estado do Nordeste seria chover no molhado; a mesma lógica adotada por Aécio ao não fazer em Minas. Muito embora nenhum dos dois pretenda deixar os respectivos Estados de lado, obedecendo à regra segundo a qual se começa a ganhar uma eleição "em casa".
Os "tiros" iniciais refletem apenas os alvos escolhidos como pontos de partida. E note-se que os dois continuam a atuar numa espécie de parceria não escrita. Embora ambos precisem do Rio e de São Paulo, nem Aécio nem Campos "invadiram" as arenas escolhidas por um e por outro para oficializar as candidaturas.
Até quando vai durar o pacto de não agressão é uma pergunta que no mundo político todos fazem. Mas os candidatos não parecem afobados. Sabem que a hora chegará, mas que não é para já. Por enquanto precisam conquistar terreno.
Isso quer dizer se tornar conhecidos do eleitorado. Espaço há. A presidente Dilma Rousseff, conhecida por 99,6% das pessoas consultadas nas pesquisas, tem 43,7% das intenções de votos.
Na última consulta divulgada pela CNT, na semana passada, 12,1% diziam preferir que o próximo eleito (ou eleita) continue "totalmente" a governar da forma atual. Só que 37,2% afirmaram o contrário: querem que o governo seguinte mude completamente a maneira de atuar.
De onde parece evidente que o favoritismo decorre da exposição da presidente em contraste com menor número de canais de comunicação à disposição dos oponentes.
Se realidade ou mera impressão, poderemos conferir a partir do meio do ano, quando a lei proíbe propaganda de governo e, apesar de Dilma contar com 70% do horário eleitoral, nos programas de TV - notadamente o Jornal Nacional -, todos têm espaço igual garantido. Foi o que, em 2010, fez a fama de Marina.
Em tempo de campanha eleitoral antecipada, os partidos de oposição resolveram se adiantar no lançamento dos respectivos candidatos à Presidência da República.
Pela lei, esses atos deveriam acontecer nas convenções que se realizam a partir de 12 de junho (dia do início da Copa do Mundo). Mas, o PSB já quer anunciar a chapa Eduardo Campos e Marina Silva em alguma data logo após o carnaval e o PSDB em princípio escolheu o dia 29 de março para lançar a candidatura de Aécio Neves.
O nome do vice ainda está em discussão, mas há por ora quase unanimidade em torno do nome do senador por São Paulo Aloysio Nunes Ferreira, também tucano.
Uma decisão está tomada: o ato de lançamento será em São Paulo, pelo mesmo motivo que a composição da chapa deixa de adotar como regra a aliança com outro partido e opta pelo critério regional.
Sendo São Paulo o maior colégio eleitoral do País (32 milhões dos 140 milhões de eleitores), a avaliação dos tucanos é que nesse caso uma chapa puro-sangue agrega mais eleitores que uma aliança partidária.
Minas Gerais, palco do lançamento da candidatura do paulista Geraldo Alckmin em 2006, é território dado como ocupado por Aécio, que precisa conquistar a Pauliceia, onde já é bem conhecido do empresariado, mas praticamente um anônimo entre o grande público.
Nos encontros com lideranças regionais do partido o mineiro tem dito uma frase (de efeito, claro) que passará a repetir com frequência: "Me deem São Paulo que eu lhes entrego a Presidência da República".
Pelo raciocínio da densidade eleitoral seria de se imaginar que Eduardo Campos faria seu ato também em terras paulistanas, mas nesse caso a equação é outra.
Leva em conta o peso de Marina Silva no Rio de Janeiro e por isso será lá o anúncio oficial. Em 2010 a então candidata a presidente pelo PV teve 31% dos votos no Rio, a segunda maior votação do País. A primeira obteve em Brasília, onde foi a campeã, com 41, 96%.
Qual a ideia do PSB? Óbvia. Começar a jornada testando o potencial de transferência de votos de Marina para Campos num Estado em que o capital eleitoral dela é forte.
Lançar a candidatura em Pernambuco ou em outro Estado do Nordeste seria chover no molhado; a mesma lógica adotada por Aécio ao não fazer em Minas. Muito embora nenhum dos dois pretenda deixar os respectivos Estados de lado, obedecendo à regra segundo a qual se começa a ganhar uma eleição "em casa".
Os "tiros" iniciais refletem apenas os alvos escolhidos como pontos de partida. E note-se que os dois continuam a atuar numa espécie de parceria não escrita. Embora ambos precisem do Rio e de São Paulo, nem Aécio nem Campos "invadiram" as arenas escolhidas por um e por outro para oficializar as candidaturas.
Até quando vai durar o pacto de não agressão é uma pergunta que no mundo político todos fazem. Mas os candidatos não parecem afobados. Sabem que a hora chegará, mas que não é para já. Por enquanto precisam conquistar terreno.
Isso quer dizer se tornar conhecidos do eleitorado. Espaço há. A presidente Dilma Rousseff, conhecida por 99,6% das pessoas consultadas nas pesquisas, tem 43,7% das intenções de votos.
Na última consulta divulgada pela CNT, na semana passada, 12,1% diziam preferir que o próximo eleito (ou eleita) continue "totalmente" a governar da forma atual. Só que 37,2% afirmaram o contrário: querem que o governo seguinte mude completamente a maneira de atuar.
De onde parece evidente que o favoritismo decorre da exposição da presidente em contraste com menor número de canais de comunicação à disposição dos oponentes.
Se realidade ou mera impressão, poderemos conferir a partir do meio do ano, quando a lei proíbe propaganda de governo e, apesar de Dilma contar com 70% do horário eleitoral, nos programas de TV - notadamente o Jornal Nacional -, todos têm espaço igual garantido. Foi o que, em 2010, fez a fama de Marina.
Terrorismo tupiniquim - MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 23/02
O combate à violência nas manifestações populares é o centro da discussão sobre uma nova legislação, a ser aprovada pelo Congresso, agravando as penas e, no limite, enquadrando atos de vandalismo e explosões - como a que gerou a morte do cinegrafista Santiago Andrade - na categoria de terrorismo urbano. Será necessária mesmo uma nova legislação para combater essas ações dos black blocs e afins, ou bastaria que a lei existente fosse aplicada com rigor? É correto tratar os atos de vandalismo como terrorismo, ou é preciso separar as ações para que eventos internacionais como a Copa do Mundo possam ser protegidos de possíveis atos terroristas?
Eu mesmo escrevi uma coluna classificando de terrorismo o ato de atirar um rojão em meio às manifestações. E disse, logo depois das primeiras badernas, em junho, que os vândalos deveriam ser tratados com todo o rigor e colocados na cadeia. Aceito as reações contrárias à tese do terrorismo e acho que o tema merece mais debate. Continuo, no entanto, defendendo rigor na repressão a esses atos de vandalismo, que, mesmo se não podem ser classificados como terrorismo, são antidemocráticos.
O jurista Aurélio Wander Bastos, da Unirio e do Iuperj, considera que é preciso incluir a definição de terrorismo na Constituição. Ele cita o artigo 9º da Constituição Política do Chile, de 1980, que define o terrorismo como crime contra os direitos humanos e diz que os delitos serão considerados sempre comuns e não políticos para todos os efeitos legais e não se concederá a esses casos indulto particular, salvo para comutar a pena de morte pela de prisão perpétua .
Para o professor, esse texto mostra exatamente e pioneiramente na América Latina uma forma de regulamentação dos atos de terrorismo, pressupondo que qualquer lei deve ter embasamento constitucional, o que significa que no Brasil antes de se elaborar Projeto de Lei, deve-se editar emenda constitucional .
O deputado federal do PSB Alfredo Sirkis considera erro confundir a franja violenta das manifestações, das quais o black bloc é uma das etiquetas, com o terrorismo propriamente dito. Ele compara os black blocs com torcidas violentas nos estádios, hooligans ou skinheads. Para enfrentá-los, antes que inviabilizem e desmobilizem preventivamente toda e qualquer manifestação massiva, bastam alguns ajustes na legislação comum proibindo uso de máscaras, objetos de agressão e criando a figura do delito de ação e organização coletiva aplicável da mesma forma às torcidas violentas .
Para ele, a tipificação de terrorismo no projeto em discussão no Senado é totalmente equivocada : A rigor, defesa da legalização do aborto poderia ser enquadrada como ´ofensa à vida´? Um programa de rádio como aquele famoso de Orson Wells narrando o fantasioso desembarque dos marcianos na Terra poderia ser considerado terrorismo por ´difundir o pânico generalizado´?
O consultor de assuntos internacionais Nelson Franco Jobim, embora concorde que não se pode graduar a pena de black blocs comparando-os a Al Qaeda , diz que não dá para ignorar as possíveis consequências de explodir uma bomba .
A outra questão importante para ele é o compromisso da esquerda com a democracia no mundo pós-Muro de Berlim: a democracia é um fim em si ou apenas uma etapa ou instrumento na construção do socialismo? No segundo caso, a ´democracia burguesa´ seria ilegítima para os oprimidos e explorados, que teriam o direito de combatê-la usando a força .
Sirkis considera que, com relação ao vandalismo, é preciso destacar a responsabilidade por um lado, da leniência da extrema-esquerda e, sem dúvida alguma, a manipulação por parte de políticos ´locais´ com contas a ajustar com o governo do estado .
O criminalista Cosmo Ferreira diz que terrorismo tem tanto a ver com manifestações violentas quanto Pilatos no Credo. É absurdidade tratar vândalos, black blocs, como terroristas . Para ele, são criminosos comuns; sua conduta não se enquadra nos instrumentos internacionais sobre terrorismo. Nosso arsenal jurídico é mais do que suficiente para puni-los. O que quer nosso Parlamento, criar um terrorismo tupiniquim? .
Eu mesmo escrevi uma coluna classificando de terrorismo o ato de atirar um rojão em meio às manifestações. E disse, logo depois das primeiras badernas, em junho, que os vândalos deveriam ser tratados com todo o rigor e colocados na cadeia. Aceito as reações contrárias à tese do terrorismo e acho que o tema merece mais debate. Continuo, no entanto, defendendo rigor na repressão a esses atos de vandalismo, que, mesmo se não podem ser classificados como terrorismo, são antidemocráticos.
O jurista Aurélio Wander Bastos, da Unirio e do Iuperj, considera que é preciso incluir a definição de terrorismo na Constituição. Ele cita o artigo 9º da Constituição Política do Chile, de 1980, que define o terrorismo como crime contra os direitos humanos e diz que os delitos serão considerados sempre comuns e não políticos para todos os efeitos legais e não se concederá a esses casos indulto particular, salvo para comutar a pena de morte pela de prisão perpétua .
Para o professor, esse texto mostra exatamente e pioneiramente na América Latina uma forma de regulamentação dos atos de terrorismo, pressupondo que qualquer lei deve ter embasamento constitucional, o que significa que no Brasil antes de se elaborar Projeto de Lei, deve-se editar emenda constitucional .
O deputado federal do PSB Alfredo Sirkis considera erro confundir a franja violenta das manifestações, das quais o black bloc é uma das etiquetas, com o terrorismo propriamente dito. Ele compara os black blocs com torcidas violentas nos estádios, hooligans ou skinheads. Para enfrentá-los, antes que inviabilizem e desmobilizem preventivamente toda e qualquer manifestação massiva, bastam alguns ajustes na legislação comum proibindo uso de máscaras, objetos de agressão e criando a figura do delito de ação e organização coletiva aplicável da mesma forma às torcidas violentas .
Para ele, a tipificação de terrorismo no projeto em discussão no Senado é totalmente equivocada : A rigor, defesa da legalização do aborto poderia ser enquadrada como ´ofensa à vida´? Um programa de rádio como aquele famoso de Orson Wells narrando o fantasioso desembarque dos marcianos na Terra poderia ser considerado terrorismo por ´difundir o pânico generalizado´?
O consultor de assuntos internacionais Nelson Franco Jobim, embora concorde que não se pode graduar a pena de black blocs comparando-os a Al Qaeda , diz que não dá para ignorar as possíveis consequências de explodir uma bomba .
A outra questão importante para ele é o compromisso da esquerda com a democracia no mundo pós-Muro de Berlim: a democracia é um fim em si ou apenas uma etapa ou instrumento na construção do socialismo? No segundo caso, a ´democracia burguesa´ seria ilegítima para os oprimidos e explorados, que teriam o direito de combatê-la usando a força .
Sirkis considera que, com relação ao vandalismo, é preciso destacar a responsabilidade por um lado, da leniência da extrema-esquerda e, sem dúvida alguma, a manipulação por parte de políticos ´locais´ com contas a ajustar com o governo do estado .
O criminalista Cosmo Ferreira diz que terrorismo tem tanto a ver com manifestações violentas quanto Pilatos no Credo. É absurdidade tratar vândalos, black blocs, como terroristas . Para ele, são criminosos comuns; sua conduta não se enquadra nos instrumentos internacionais sobre terrorismo. Nosso arsenal jurídico é mais do que suficiente para puni-los. O que quer nosso Parlamento, criar um terrorismo tupiniquim? .
O Planalto caiu na arapuca do PMDB - ELIO GASPARI
FOLHA DE SP - 23/02
Dilma achou que podia tudo e viu que os inimigos do seu governo estão naquilo que chamam de 'base de apoio'
A ideia era simples: um ministro cuidaria da base de apoio, e outro lidaria com os movimentos sociais. Primeiro ferveu Gilberto Carvalho, quando os protestos de rua saíram do nada, de fora do cadastro de convênios do palácio. Depois confundiu-se o que seria um desprestígio palaciano da ministra Ideli Salvatti com uma barafunda na qual as lideranças parlamentares não se entendem entre si, nem com o Planalto.
O resultado está aí. Numa reforma ministerial de quinta categoria, sem ideia nem projeto, a doutora Dilma vê-se obrigada a cortejar o PMDB indo a jantares inúteis (se não arriscados) na casa do vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP). Enquanto isso, representantes de grandes empresas (Gerdau, Ambev, Andrade Gutierrez, OAS e até a Souza Cruz) foram a outro jantar, pluripartidário, na casa do presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN).
Ano eleitoral é assim mesmo. Empresário que gosta de jantar no Planalto vai à casa de deputado para botar medo num governo assustado. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, queixa-se dos empresários que ficam "fazendo beicinho" e propõe que se discuta "a relação". Essa é a armadilha em que caiu a doutora. A infantaria do PMDB e a intendência do empresariado entram nessas discussões seguindo o conselho de Ivana, a primeira mulher do folclórico milionário americano Donald Trump. Ela ensinou: "Não fique com raiva, fique com tudo".
O PAPA E A DOUTORA
Eleito papa, Francisco pediu aos argentinos que dessem dinheiro aos pobres em vez de ir a Roma saudá-lo. Há pouco, decidiu tirar um passaporte comum argentino.
Doutora Dilma foi para Roma festejar o barrete de d. Orani Tempesta. Na comitiva, um lote de passaportes especiais.
DEUSES
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, quer federalizar a investigação dos crimes cometidos contra jornalistas. Ganha uma viagem de ida a Cuba quem souber explicar por que os jornalistas devem receber essa proteção (se proteção for) e não os padres, pipoqueiros, pintores de parede.
Madame Natasha procura uma explicação para o fato de, em português, os jornalistas se atribuírem a capacidade de produzir "matérias". Pela sua conta, esse poder só é atribuído a Deus. Em outros idiomas eles produzem histórias, artigos ou reportagens, mas matéria, ainda não. Talvez Cardozo queira dar tratamento divino aos jornalistas. Até 1964 eles eram isentos do pagamento de Imposto de Renda e tinham desconto de 50% nas passagens aéreas. Resultado: Zica, o "Rei do Contrabando", era jornalista.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e não está entendo mais nada:
Quem toca fogo em carros no Brasil é terrorista. Em Kiev é manifestante. No máximo, quando estocam armas, são "manifestantes radicais". Quando o venezuelano Leopoldo Lopez entrega-se à Justiça de punho fechado, é "líder da oposição". Para os comissários bolivarianos, ele é um terrorista ligado aos "manifestantes" que incendiaram a entrada do Ministério Público de Caracas.
SANTA RUTH
Quando surgiram os primeiros indícios do mensalão mineiro, Ruth Cardoso defendeu, numa conversa de grão-tucanos, que o partido se afastasse do ex-governador Eduardo Azeredo, que então presidia o PSDB.
À época isso poderia ter sido feito com elegância.
A DAMA DOURADA
Está chegando às livrarias "A Dama Dourada", com a linda história do retrato da milionária Adele Bloch-Bauer, pintado em 1907 por Gustav Klimt.
É um daqueles livros que acaba e recomeça. No caso, pelo menos quatro vezes. Primeiro vem o quadro em si, com uma milionária posando (e namorando?) um pintor excêntrico. Ela morre aos 34 anos, em 1925, e depois a fortuna de seu marido é confiscada pelos nazistas. A história podia acabar aí, mas o governo austríaco tentou ficar com o quadro, tungando herdeiros.
Nessa hora apareceram uma sobrinha que vivia nos Estados Unidos, um repórter e um jovem advogado. Humilharam os poderosos de Viena e hoje o quadro está na Quinta Avenida, em Nova York, na Neue Gallery, a poucos quarteirões do Metropolitan Museum. Valeu 135 milhões de dólares.
A história da "Dama Dourada" é uma viagem a um tempo de surpresas. O marido de Adele era um barão do açúcar e morreu pobre. A sobrinha cuidava de uma loja de roupas e morreu milionária. Uma tia foi para o Canadá. Num jantar, sua filha conheceu um jovem que fugira da Alemanha aos 15 anos e lavara pratos num hotel. Era um príncipe da casa de Auersperg, cuja linhagem remonta ao século 11. Apaixonaram-se e viveram felizes para sempre. Ela tornou-se uma grande cancerologista.
SETE DESTINOS MUDADOS NUM NOVO PAÍS
De técnico de futebol, vidente e sociólogo, todo mundo tem um pouco. Aqui vai um teste para quem se julga capaz de estimar o futuro de oito jovens cariocas.
Duas moram na Rocinha. O pai de uma das meninas é garagista, e a renda da família fica em R$ 1.300. O pai da outra é porteiro. Uma terceira mora com a mãe num quarto alugado de outra comunidade. Não têm ajuda do pai e vivem com R$ 630 por mês. A quarta mora em Caxias, seu pai é vendedor e leva para casa R$ 2.500.
O quinto garoto vive com a mãe, que é cozinheira ocasional. Outro jovem mora num porão de loja, com pai desempregado e mãe diarista, levando para casa R$ 1.100 mensais.
Do grupo, só uma jovem vive em apartamento próprio, em bairro de classe média.
A sabedoria convencional projetaria futuros de dificuldades e catástrofes para quase todos. Afinal, o Brasil seria um país de injustiças, com um sistema educacional elitista. Prova disso viu-se entre 1996 e 1998, quando a PUC paulista organizou uma campanha financeira junto a 120 mil ex-alunos (24 mil dos quais ex-bolsistas) e arrecadou pouco mais que a postagem de 40 mil cartas.
As coisas mudam. Desde 2010, um dos maiores empresários do país, formado em universidade pública, patrocina o curso e a manutenção básica de estudantes estudantes pobres, aprovados no vestibular de engenharia uma das melhores (e mais caras) universidades do país. Deu no seguinte:
sete tiveram bom desempenho. Seis estão a caminho da formatura como engenheiros, e um vai se diplomar em sistemas de informação. Três preparam-se para buscar intercâmbios no Canadá, Portugal ou na China. Dois estudam alemão.
A universidade e o empresário monitoram as notas e as contas dos jovens. Ele gratifica-se trocando mensagens e aconselhando a garotada. As doações custam R$ 360 mil por ano, ou US$ 150 mil. Parece muito dinheiro, mas, fazendo-se a conta, vê-se que o valor real está na alma de quem dá. As anuidades dos cursos de engenharia nas grandes universidades americanas estão cerca de US$ 50 mil. Cada bolsista brasileiro custa US$ 19 mil anuais. Se um em cada dez endinheirados nacionais que estudaram de graça seguisse o exemplo do empresário, o Brasil seria outro, mais depressa.
Dilma achou que podia tudo e viu que os inimigos do seu governo estão naquilo que chamam de 'base de apoio'
A ideia era simples: um ministro cuidaria da base de apoio, e outro lidaria com os movimentos sociais. Primeiro ferveu Gilberto Carvalho, quando os protestos de rua saíram do nada, de fora do cadastro de convênios do palácio. Depois confundiu-se o que seria um desprestígio palaciano da ministra Ideli Salvatti com uma barafunda na qual as lideranças parlamentares não se entendem entre si, nem com o Planalto.
O resultado está aí. Numa reforma ministerial de quinta categoria, sem ideia nem projeto, a doutora Dilma vê-se obrigada a cortejar o PMDB indo a jantares inúteis (se não arriscados) na casa do vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP). Enquanto isso, representantes de grandes empresas (Gerdau, Ambev, Andrade Gutierrez, OAS e até a Souza Cruz) foram a outro jantar, pluripartidário, na casa do presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN).
Ano eleitoral é assim mesmo. Empresário que gosta de jantar no Planalto vai à casa de deputado para botar medo num governo assustado. O ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, queixa-se dos empresários que ficam "fazendo beicinho" e propõe que se discuta "a relação". Essa é a armadilha em que caiu a doutora. A infantaria do PMDB e a intendência do empresariado entram nessas discussões seguindo o conselho de Ivana, a primeira mulher do folclórico milionário americano Donald Trump. Ela ensinou: "Não fique com raiva, fique com tudo".
O PAPA E A DOUTORA
Eleito papa, Francisco pediu aos argentinos que dessem dinheiro aos pobres em vez de ir a Roma saudá-lo. Há pouco, decidiu tirar um passaporte comum argentino.
Doutora Dilma foi para Roma festejar o barrete de d. Orani Tempesta. Na comitiva, um lote de passaportes especiais.
DEUSES
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, quer federalizar a investigação dos crimes cometidos contra jornalistas. Ganha uma viagem de ida a Cuba quem souber explicar por que os jornalistas devem receber essa proteção (se proteção for) e não os padres, pipoqueiros, pintores de parede.
Madame Natasha procura uma explicação para o fato de, em português, os jornalistas se atribuírem a capacidade de produzir "matérias". Pela sua conta, esse poder só é atribuído a Deus. Em outros idiomas eles produzem histórias, artigos ou reportagens, mas matéria, ainda não. Talvez Cardozo queira dar tratamento divino aos jornalistas. Até 1964 eles eram isentos do pagamento de Imposto de Renda e tinham desconto de 50% nas passagens aéreas. Resultado: Zica, o "Rei do Contrabando", era jornalista.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e não está entendo mais nada:
Quem toca fogo em carros no Brasil é terrorista. Em Kiev é manifestante. No máximo, quando estocam armas, são "manifestantes radicais". Quando o venezuelano Leopoldo Lopez entrega-se à Justiça de punho fechado, é "líder da oposição". Para os comissários bolivarianos, ele é um terrorista ligado aos "manifestantes" que incendiaram a entrada do Ministério Público de Caracas.
SANTA RUTH
Quando surgiram os primeiros indícios do mensalão mineiro, Ruth Cardoso defendeu, numa conversa de grão-tucanos, que o partido se afastasse do ex-governador Eduardo Azeredo, que então presidia o PSDB.
À época isso poderia ter sido feito com elegância.
A DAMA DOURADA
Está chegando às livrarias "A Dama Dourada", com a linda história do retrato da milionária Adele Bloch-Bauer, pintado em 1907 por Gustav Klimt.
É um daqueles livros que acaba e recomeça. No caso, pelo menos quatro vezes. Primeiro vem o quadro em si, com uma milionária posando (e namorando?) um pintor excêntrico. Ela morre aos 34 anos, em 1925, e depois a fortuna de seu marido é confiscada pelos nazistas. A história podia acabar aí, mas o governo austríaco tentou ficar com o quadro, tungando herdeiros.
Nessa hora apareceram uma sobrinha que vivia nos Estados Unidos, um repórter e um jovem advogado. Humilharam os poderosos de Viena e hoje o quadro está na Quinta Avenida, em Nova York, na Neue Gallery, a poucos quarteirões do Metropolitan Museum. Valeu 135 milhões de dólares.
A história da "Dama Dourada" é uma viagem a um tempo de surpresas. O marido de Adele era um barão do açúcar e morreu pobre. A sobrinha cuidava de uma loja de roupas e morreu milionária. Uma tia foi para o Canadá. Num jantar, sua filha conheceu um jovem que fugira da Alemanha aos 15 anos e lavara pratos num hotel. Era um príncipe da casa de Auersperg, cuja linhagem remonta ao século 11. Apaixonaram-se e viveram felizes para sempre. Ela tornou-se uma grande cancerologista.
SETE DESTINOS MUDADOS NUM NOVO PAÍS
De técnico de futebol, vidente e sociólogo, todo mundo tem um pouco. Aqui vai um teste para quem se julga capaz de estimar o futuro de oito jovens cariocas.
Duas moram na Rocinha. O pai de uma das meninas é garagista, e a renda da família fica em R$ 1.300. O pai da outra é porteiro. Uma terceira mora com a mãe num quarto alugado de outra comunidade. Não têm ajuda do pai e vivem com R$ 630 por mês. A quarta mora em Caxias, seu pai é vendedor e leva para casa R$ 2.500.
O quinto garoto vive com a mãe, que é cozinheira ocasional. Outro jovem mora num porão de loja, com pai desempregado e mãe diarista, levando para casa R$ 1.100 mensais.
Do grupo, só uma jovem vive em apartamento próprio, em bairro de classe média.
A sabedoria convencional projetaria futuros de dificuldades e catástrofes para quase todos. Afinal, o Brasil seria um país de injustiças, com um sistema educacional elitista. Prova disso viu-se entre 1996 e 1998, quando a PUC paulista organizou uma campanha financeira junto a 120 mil ex-alunos (24 mil dos quais ex-bolsistas) e arrecadou pouco mais que a postagem de 40 mil cartas.
As coisas mudam. Desde 2010, um dos maiores empresários do país, formado em universidade pública, patrocina o curso e a manutenção básica de estudantes estudantes pobres, aprovados no vestibular de engenharia uma das melhores (e mais caras) universidades do país. Deu no seguinte:
sete tiveram bom desempenho. Seis estão a caminho da formatura como engenheiros, e um vai se diplomar em sistemas de informação. Três preparam-se para buscar intercâmbios no Canadá, Portugal ou na China. Dois estudam alemão.
A universidade e o empresário monitoram as notas e as contas dos jovens. Ele gratifica-se trocando mensagens e aconselhando a garotada. As doações custam R$ 360 mil por ano, ou US$ 150 mil. Parece muito dinheiro, mas, fazendo-se a conta, vê-se que o valor real está na alma de quem dá. As anuidades dos cursos de engenharia nas grandes universidades americanas estão cerca de US$ 50 mil. Cada bolsista brasileiro custa US$ 19 mil anuais. Se um em cada dez endinheirados nacionais que estudaram de graça seguisse o exemplo do empresário, o Brasil seria outro, mais depressa.
Uma página virada - JOÃO BOSCO RABELLO
O Estado de S.Paulo - 23/02
A prisão de Roberto Jefferson, em quem começa e acaba o maior julgamento de políticos do País, faz do mensalão página virada, com um desfecho em que a decisão ainda pendente sobre a formação de quadrilha perde em importância para o que já está consumado.
O julgamento dos embargos infringentes pela exclusão do crime de formação de quadrilha para os já apenados é, hoje, o menor problema do Supremo Tribunal Federal.
Com provável desfecho na próxima quarta-feira, seu resultado passou a ter importância maior para os recorrentes, como deixou claro o ministro Joaquim Barbosa.
Presidente da Corte e relator do caso, Barbosa deu de ombros para a provável absolvição dos condenados desse crime específico, que os manterá no regime prisional semiaberto. Para ele parece bastar o reconhecimento do esquema de corrupção e a prisão de políticos de status e biografias que até recentemente lhes garantiriam impunidade.
O problema da hora do STF, centrado na figura do ministro Luís Roberto Barroso, é a análise do caso do ex-deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), cuja renúncia ao mandato tecnicamente remete seu processo para a primeira instância.
A decisão estritamente técnica devolveria a ação à instância ordinária e beneficiaria o réu com prazos processuais bem mais amplos. De outro lado, evitar esse efeito requer decisão excepcional baseada no diagnóstico de que se trata de recurso meramente protelatório.
O tribunal registra o precedente de contornar o rigor técnico para manter em seu âmbito o processo em caso de renúncia de parlamentar. É bem recente o caso do ex-deputado Natan Donadon (PMDB-RO), que usou do mesmo expediente sem sucesso. Seu caso ficou na Corte e ele já foi julgado, preso e cassado.
Mas existe uma diferença fundamental entre os dois casos, o que não assegura a previsão de decisões iguais para ambos. A renúncia de Donadon se deu na véspera de seu julgamento; a de Azeredo, antes de seu caso ser incluído na pauta de julgamentos, o que tornaria a fraude processual uma presunção - menos que evidência ou prova.
Mas não é a questão técnica que está em jogo apenas: a decisão ocorrerá sob a pressão por isonomia de tratamento com os mensaleiros condenados, para servir de contraponto tucano da corrupção.
Se no caso em fase final a Corte foi acusada de julgar afetada pelo clamor público, neste corre o risco de ser acusada de sensível ao "clamor político". Barroso já deu a linha que orientará seu voto: a analogia que iguala os casos é política. Do ponto de vista penal são questões bem diferentes.
A prisão de Roberto Jefferson, em quem começa e acaba o maior julgamento de políticos do País, faz do mensalão página virada, com um desfecho em que a decisão ainda pendente sobre a formação de quadrilha perde em importância para o que já está consumado.
O julgamento dos embargos infringentes pela exclusão do crime de formação de quadrilha para os já apenados é, hoje, o menor problema do Supremo Tribunal Federal.
Com provável desfecho na próxima quarta-feira, seu resultado passou a ter importância maior para os recorrentes, como deixou claro o ministro Joaquim Barbosa.
Presidente da Corte e relator do caso, Barbosa deu de ombros para a provável absolvição dos condenados desse crime específico, que os manterá no regime prisional semiaberto. Para ele parece bastar o reconhecimento do esquema de corrupção e a prisão de políticos de status e biografias que até recentemente lhes garantiriam impunidade.
O problema da hora do STF, centrado na figura do ministro Luís Roberto Barroso, é a análise do caso do ex-deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), cuja renúncia ao mandato tecnicamente remete seu processo para a primeira instância.
A decisão estritamente técnica devolveria a ação à instância ordinária e beneficiaria o réu com prazos processuais bem mais amplos. De outro lado, evitar esse efeito requer decisão excepcional baseada no diagnóstico de que se trata de recurso meramente protelatório.
O tribunal registra o precedente de contornar o rigor técnico para manter em seu âmbito o processo em caso de renúncia de parlamentar. É bem recente o caso do ex-deputado Natan Donadon (PMDB-RO), que usou do mesmo expediente sem sucesso. Seu caso ficou na Corte e ele já foi julgado, preso e cassado.
Mas existe uma diferença fundamental entre os dois casos, o que não assegura a previsão de decisões iguais para ambos. A renúncia de Donadon se deu na véspera de seu julgamento; a de Azeredo, antes de seu caso ser incluído na pauta de julgamentos, o que tornaria a fraude processual uma presunção - menos que evidência ou prova.
Mas não é a questão técnica que está em jogo apenas: a decisão ocorrerá sob a pressão por isonomia de tratamento com os mensaleiros condenados, para servir de contraponto tucano da corrupção.
Se no caso em fase final a Corte foi acusada de julgar afetada pelo clamor público, neste corre o risco de ser acusada de sensível ao "clamor político". Barroso já deu a linha que orientará seu voto: a analogia que iguala os casos é política. Do ponto de vista penal são questões bem diferentes.
Crime e castigo no Riocentro - JOSÉ NIEMEYER
O GLOBO - 23/02
Com a denúncia, fica mais uma vez evidente como atentado e outros eventos clandestinos organizados no fim do regime militar não eram ações oficiais
A nova movimentação do Ministério Público Federal, denunciando cinco militares reformados como autores e organizadores em 1981 do atentado a bomba no Riocentro — ação esta perpetrada de maneira clandestina e conspiratória contra a abertura política iniciada no governo do general Geisel e continuada na gestão do general Figueiredo —, traz à luz uma questão importante sobre como interpretar o período de regime militar instaurado em 1964.
Com a denúncia, fica mais uma vez evidente como o atentado do Riocentro e outros eventos também clandestinos que foram organizados no fim do regime militar decididamente não eram ações oficiais, e que estes foram colocados em prática por setores ultrarradicais ligados ao regime militar, grupos formados por civis e militares que se posicionavam contrários à volta ao regime democrático. Dentre estes, por exemplo, o Comando de Caça aos Comunistas, a Scuderie Le Cocq, o Grupo Secreto, entre outras organizações que atuavam, no limite, também em uma perspectiva paramilitar.
É interessante notar que ações radicais como as do Riocentro acabaram se configurando mesmo como um castigo àqueles que conceberam o movimento de 64 como um processo alvissareiro para a preservação da democracia no país e que em função deste projeto apoiavam uma agenda revolucionária que iria impedir a instauração do comunismo por estas bandas, principalmente em um período marcado pelo aprofundamento das chamadas fronteiras ideológicas e do acirramento da lógica da Guerra Fria nos países latino-americanos.
Em uma panorâmica de hoje, vê-se que estes idealistas anticomunistas que apoiaram a chamada “Revolução de 64” — também conhecida como “A Redentora” —, cada vez mais frustrados ficam ao perceberem que as presumíveis boas intenções alardeadas no início do regime militar desaguariam, anos depois, em violência e barbárie.
Sobre isso não custa lembrar que, no espaço de espetáculo do Riocentro, onde teria ocorrido a explosão do artefato, havia, naquele momento, mais de 20 mil pessoas aguardando pelo início de um show; em sua maioria, jovens.
O atentado serviria, então, exclusivamente, como uma estratégia de contrainformação utilizada com a intenção de confundir a opinião pública brasileira de que o atentado fora planejado por grupos ligados aos movimentos da esquerda radical armada.
Também é senhor deixar claro que episódios como o do Riocentro devem ser compreendidos como ações extraoficiais e, preocupantemente, ilegais; desta feita, devem, sim, ser considerados como crimes contra o Estado, contra a ordem republicana, contra a sociedade brasileira e, por finalmente, contra a pátria, como traz a denuncia do Ministério Público Federal.
Mais uma vez, os críticos do golpe de 1964 se assustam com o nível de violência e desmando que a própria estrutura oficial do regime criou. E, ao mesmo tempo, uma vez mais os grupos civis e militares que apoiaram diretamente o regime instaurado em 1964 se dão conta de que ajudaram a encubar o “ovo da serpente”.
Com a denúncia, fica mais uma vez evidente como atentado e outros eventos clandestinos organizados no fim do regime militar não eram ações oficiais
A nova movimentação do Ministério Público Federal, denunciando cinco militares reformados como autores e organizadores em 1981 do atentado a bomba no Riocentro — ação esta perpetrada de maneira clandestina e conspiratória contra a abertura política iniciada no governo do general Geisel e continuada na gestão do general Figueiredo —, traz à luz uma questão importante sobre como interpretar o período de regime militar instaurado em 1964.
Com a denúncia, fica mais uma vez evidente como o atentado do Riocentro e outros eventos também clandestinos que foram organizados no fim do regime militar decididamente não eram ações oficiais, e que estes foram colocados em prática por setores ultrarradicais ligados ao regime militar, grupos formados por civis e militares que se posicionavam contrários à volta ao regime democrático. Dentre estes, por exemplo, o Comando de Caça aos Comunistas, a Scuderie Le Cocq, o Grupo Secreto, entre outras organizações que atuavam, no limite, também em uma perspectiva paramilitar.
É interessante notar que ações radicais como as do Riocentro acabaram se configurando mesmo como um castigo àqueles que conceberam o movimento de 64 como um processo alvissareiro para a preservação da democracia no país e que em função deste projeto apoiavam uma agenda revolucionária que iria impedir a instauração do comunismo por estas bandas, principalmente em um período marcado pelo aprofundamento das chamadas fronteiras ideológicas e do acirramento da lógica da Guerra Fria nos países latino-americanos.
Em uma panorâmica de hoje, vê-se que estes idealistas anticomunistas que apoiaram a chamada “Revolução de 64” — também conhecida como “A Redentora” —, cada vez mais frustrados ficam ao perceberem que as presumíveis boas intenções alardeadas no início do regime militar desaguariam, anos depois, em violência e barbárie.
Sobre isso não custa lembrar que, no espaço de espetáculo do Riocentro, onde teria ocorrido a explosão do artefato, havia, naquele momento, mais de 20 mil pessoas aguardando pelo início de um show; em sua maioria, jovens.
O atentado serviria, então, exclusivamente, como uma estratégia de contrainformação utilizada com a intenção de confundir a opinião pública brasileira de que o atentado fora planejado por grupos ligados aos movimentos da esquerda radical armada.
Também é senhor deixar claro que episódios como o do Riocentro devem ser compreendidos como ações extraoficiais e, preocupantemente, ilegais; desta feita, devem, sim, ser considerados como crimes contra o Estado, contra a ordem republicana, contra a sociedade brasileira e, por finalmente, contra a pátria, como traz a denuncia do Ministério Público Federal.
Mais uma vez, os críticos do golpe de 1964 se assustam com o nível de violência e desmando que a própria estrutura oficial do regime criou. E, ao mesmo tempo, uma vez mais os grupos civis e militares que apoiaram diretamente o regime instaurado em 1964 se dão conta de que ajudaram a encubar o “ovo da serpente”.
Como dantes - ELIANE CANTANHÊDE
FOLHA DE SP - 23/02
SYDNEY - Lamento informar que o Brasil não é mais o queridinho das reuniões multilaterais. Perdeu a graça, está voltando ao velho patamar.
A economia bombando, Lula encantando plateias mundo afora e Amorim se metendo até no Oriente Médio são coisas do passado.
Hoje, a política econômica é sem brilho e errática, e a externa, pouco ambiciosa. O resultado são índices macroeconômicos medíocres e falta de presença internacional, que deságuam em desconfiança. Amorim deve estar insone com a desconstrução do seu legado. Como Lula...
Parte da culpa é das estrelas e do momento. Lula perdeu três eleições para ganhar justamente quando as condições internas e externas eram favoráveis. FHC deixou as bases, o dinheiro corria farto no mundo, e o carisma de Lula fazia o resto.
Na América do Sul, Lula à esquerda, Michele Bachelet (Chile) ao centro, Álvaro Uribe (Colômbia) à direita saíram, todos, com alta popularidade. Por quê? Entre os principais motivos, condições de tempo e temperatura muito favoráveis. Dilma não teve a mesma sorte nem a visão estratégica. Primeiro, veio a crise financeira mundial irradiada dos EUA. Agora, os EUA e a Europa se recuperam, há interrogações sobre a China, e o Brasil volta ao seu lugar secundário sem ter aproveitado o mar de oportunidades da crise dos países ricos.
Parte da culpa é da teimosia de Dilma, que --como diz um adversário-- não só acha que sabe tudo como acha que só ela sabe tudo. Teimosia gera centralização, que inibe o embate de ideias e a criatividade.
No G20 financeiro, em Sydney, fica claro que se encerrou um ciclo: só se fala de EUA e Ásia. Tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Depois de longas análises sobre o fim da crise e as perspectivas da Ásia, os conferencistas lançam alertas para os emergentes e concedem umas poucas palavras para um bloco diferente: a África e a América do Sul. É o balaio do rebaixamento.
SYDNEY - Lamento informar que o Brasil não é mais o queridinho das reuniões multilaterais. Perdeu a graça, está voltando ao velho patamar.
A economia bombando, Lula encantando plateias mundo afora e Amorim se metendo até no Oriente Médio são coisas do passado.
Hoje, a política econômica é sem brilho e errática, e a externa, pouco ambiciosa. O resultado são índices macroeconômicos medíocres e falta de presença internacional, que deságuam em desconfiança. Amorim deve estar insone com a desconstrução do seu legado. Como Lula...
Parte da culpa é das estrelas e do momento. Lula perdeu três eleições para ganhar justamente quando as condições internas e externas eram favoráveis. FHC deixou as bases, o dinheiro corria farto no mundo, e o carisma de Lula fazia o resto.
Na América do Sul, Lula à esquerda, Michele Bachelet (Chile) ao centro, Álvaro Uribe (Colômbia) à direita saíram, todos, com alta popularidade. Por quê? Entre os principais motivos, condições de tempo e temperatura muito favoráveis. Dilma não teve a mesma sorte nem a visão estratégica. Primeiro, veio a crise financeira mundial irradiada dos EUA. Agora, os EUA e a Europa se recuperam, há interrogações sobre a China, e o Brasil volta ao seu lugar secundário sem ter aproveitado o mar de oportunidades da crise dos países ricos.
Parte da culpa é da teimosia de Dilma, que --como diz um adversário-- não só acha que sabe tudo como acha que só ela sabe tudo. Teimosia gera centralização, que inibe o embate de ideias e a criatividade.
No G20 financeiro, em Sydney, fica claro que se encerrou um ciclo: só se fala de EUA e Ásia. Tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Depois de longas análises sobre o fim da crise e as perspectivas da Ásia, os conferencistas lançam alertas para os emergentes e concedem umas poucas palavras para um bloco diferente: a África e a América do Sul. É o balaio do rebaixamento.
64 + 50 - BELMIRO VALVERDE JOBIM CASTOR
GAZETA DO POVO - PR - 23/02
Estamos a um mês do cinquentenário do movimento militar de 1964 e, com isso, deve surgir um grande número de avaliações, revisões, críticas e desabafos sobre os 21 anos em que os militares tutelaram o Brasil. E o que aconteceu há 50 anos ainda aguarda um olhar desapaixonado de historiógrafos e de cientistas sociais, pois, embora Hegel tenha dito que a história é sempre escrita pelos vencedores, no Brasil foi diferente: a história do que aconteceu em 1964 e nas duas décadas seguintes tem sido escrita e reescrita invariavelmente pelos perdedores.
Eu mesmo, que por força da idade acompanhei de perto ou de longe o que aconteceu nos últimos 50 anos, me surpreendo com a maneira com que fatos que presenciei são narrados, com a eleição arbitrária de bandidos e mocinhos como se de um lado (o da oposição aos militares) se agrupassem todas as virtudes, o heroísmo e as intenções nobres e, do outro, se refugiassem todos os vícios e torpezas. Não foi assim; de um lado e de outro matou-se, torturou-se e “justiçou-se” adversários. A barbárie não escolheu lado nem suas vítimas.
À medida que o tempo passa, essa dificuldade em analisar objetivamente o papel dos militares na vida política recente se torna mais e mais difícil; afinal, a grande maioria dos comentaristas e estudiosos não era nascida quando a renúncia de Janio Quadros deflagrou o processo político-militar que resultou na deposição de João Goulart. Como o Brasil não é exatamente uma cornucópia de documentos e informações confiáveis para a pesquisa histórica, é inevitável a repetição de lugares-comuns e de simplismos que parece rondar as tentativas de entender o que aconteceu naquele período.
Este artigo é um checklist básico de fatos e personagens que não podem ficar fora de um trabalho de interpretação do movimento de 1964. Se as pessoas e os fatos citados não estiverem no radar dos candidatos a exegetas e escribas, está na hora de recorrer ao Google e às fontes confiáveis para produzir um relato realmente sério.
Primeiro, as perguntas fáceis: por que 500 mil pessoas em São Paulo e outras tantas no Rio marcharam com Deus e pela liberdade? Seriam todos conservadores? Ou mulheres mal amadas, como queria o cronista Antonio Maria? Ou demonstravam a opinião dominante de amplas áreas da sociedade sobre o governo de João Goulart?
Que eram as Ligas Camponesas? E os Grupos dos Onze? O que pretendiam Francisco Julião e Leonel Brizola quando criaram esses grupos paramilitares? Quem eram os “generais” e “almirantes do povo” e que papel tiveram na quebra da hierarquia dentro das Forças Armadas? E o que era o “dispositivo sindical” de Jango, chefiado por pelegos como Clodomith Riani e Dante Pelacani? Uma pista: os generais e almirantes do povo, como os almirantes Candido Aragão e Paulo Mário e o general Osvino Ferreira, brincavam de populismo com cabos e soldados, enquanto Pelacani e Riani “aparelharam” o Ministério do Trabalho, aliás de uma maneira muito mais tosca do que acontece nos nossos dias. Google neles!
Leituras obrigatórias? O Retrato, de Osvaldo Peralva, e Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, dois relatos insuspeitos a respeito da reação da burocracia do Partido Comunista Brasileiro ao Relatório Kruschev e à denúncia dos crimes do regime stalinista, o mesmo que até hoje, meio século depois, provoca suspiros de admiração em alguns hierarcas da esquerda brasileira. E A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari, uma fotografia sem retoques dos primeiros anos do governo de Castello Branco e do período que precedeu o embrutecimento do regime sob Médici. E, por fim, o artigo de Marco Antonio Villa no Estadão de 19 de fevereiro, “Golpe à brasileira”.
Se, apesar dessas cautelas, os eventuais escribas preferirem insistir nos clichês e nos simplismos maniqueístas, é sinal de que não lhes interessa produzir uma historiografia sine ira et studio, sem raiva nem emoção, como sugeriu Max Weber, e sim vocalizar suas opiniões pré-concebidas.
Estamos a um mês do cinquentenário do movimento militar de 1964 e, com isso, deve surgir um grande número de avaliações, revisões, críticas e desabafos sobre os 21 anos em que os militares tutelaram o Brasil. E o que aconteceu há 50 anos ainda aguarda um olhar desapaixonado de historiógrafos e de cientistas sociais, pois, embora Hegel tenha dito que a história é sempre escrita pelos vencedores, no Brasil foi diferente: a história do que aconteceu em 1964 e nas duas décadas seguintes tem sido escrita e reescrita invariavelmente pelos perdedores.
Eu mesmo, que por força da idade acompanhei de perto ou de longe o que aconteceu nos últimos 50 anos, me surpreendo com a maneira com que fatos que presenciei são narrados, com a eleição arbitrária de bandidos e mocinhos como se de um lado (o da oposição aos militares) se agrupassem todas as virtudes, o heroísmo e as intenções nobres e, do outro, se refugiassem todos os vícios e torpezas. Não foi assim; de um lado e de outro matou-se, torturou-se e “justiçou-se” adversários. A barbárie não escolheu lado nem suas vítimas.
À medida que o tempo passa, essa dificuldade em analisar objetivamente o papel dos militares na vida política recente se torna mais e mais difícil; afinal, a grande maioria dos comentaristas e estudiosos não era nascida quando a renúncia de Janio Quadros deflagrou o processo político-militar que resultou na deposição de João Goulart. Como o Brasil não é exatamente uma cornucópia de documentos e informações confiáveis para a pesquisa histórica, é inevitável a repetição de lugares-comuns e de simplismos que parece rondar as tentativas de entender o que aconteceu naquele período.
Este artigo é um checklist básico de fatos e personagens que não podem ficar fora de um trabalho de interpretação do movimento de 1964. Se as pessoas e os fatos citados não estiverem no radar dos candidatos a exegetas e escribas, está na hora de recorrer ao Google e às fontes confiáveis para produzir um relato realmente sério.
Primeiro, as perguntas fáceis: por que 500 mil pessoas em São Paulo e outras tantas no Rio marcharam com Deus e pela liberdade? Seriam todos conservadores? Ou mulheres mal amadas, como queria o cronista Antonio Maria? Ou demonstravam a opinião dominante de amplas áreas da sociedade sobre o governo de João Goulart?
Que eram as Ligas Camponesas? E os Grupos dos Onze? O que pretendiam Francisco Julião e Leonel Brizola quando criaram esses grupos paramilitares? Quem eram os “generais” e “almirantes do povo” e que papel tiveram na quebra da hierarquia dentro das Forças Armadas? E o que era o “dispositivo sindical” de Jango, chefiado por pelegos como Clodomith Riani e Dante Pelacani? Uma pista: os generais e almirantes do povo, como os almirantes Candido Aragão e Paulo Mário e o general Osvino Ferreira, brincavam de populismo com cabos e soldados, enquanto Pelacani e Riani “aparelharam” o Ministério do Trabalho, aliás de uma maneira muito mais tosca do que acontece nos nossos dias. Google neles!
Leituras obrigatórias? O Retrato, de Osvaldo Peralva, e Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, dois relatos insuspeitos a respeito da reação da burocracia do Partido Comunista Brasileiro ao Relatório Kruschev e à denúncia dos crimes do regime stalinista, o mesmo que até hoje, meio século depois, provoca suspiros de admiração em alguns hierarcas da esquerda brasileira. E A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari, uma fotografia sem retoques dos primeiros anos do governo de Castello Branco e do período que precedeu o embrutecimento do regime sob Médici. E, por fim, o artigo de Marco Antonio Villa no Estadão de 19 de fevereiro, “Golpe à brasileira”.
Se, apesar dessas cautelas, os eventuais escribas preferirem insistir nos clichês e nos simplismos maniqueístas, é sinal de que não lhes interessa produzir uma historiografia sine ira et studio, sem raiva nem emoção, como sugeriu Max Weber, e sim vocalizar suas opiniões pré-concebidas.
Contas externas vão mal - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 23/02
Mais um recorde negativo foi batido nas contas externas, em janeiro, com o déficit de US$ 11,59 bilhões em transações correntes, o cálculo mais amplo das trocas de bens e serviços do Brasil com suas dezenas de parceiros. O déficit de US$ 11,35 bilhões de janeiro do ano passado foi, em toda a série histórica, o número mais parecido com esse. Mas o resultado foi bem recebido no mercado financeiro, por ter sido ligeiramente melhor que as previsões correntes. Divulgado o número, o dólar caiu, como se o Banco Central (BC), responsável pelos cálculos do balanço de pagamentos, houvesse divulgado uma notícia positiva, justificando, portanto, algum otimismo em relação ao setor externo. Esquisitices à parte, os números principais continuam preocupantes para quem se preocupa com os fundamentos da economia e com as perspectivas de crescimento. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, evitou considerações mais comprometedoras. O Brasil, segundo ele, está em posição intermediária. Há economias com cifras piores. É verdade, mas isso de nenhum modo torna a posição brasileira mais confortável.
O déficit acumulado em 12 meses ficou em US$ 81,61 bilhões, soma equivalente a 3,67% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelos técnicos do BC. Mais uma vez o investimento estrangeiro direto - US$ 65,44 bilhões acumulados no período - foi insuficiente para cobrir o buraco. Não faltou dinheiro de fonte externa para isso, mas a qualidade da cobertura continuou insatisfatória. Aplicações em papéis são em geral menos estáveis e menos seguras que o investimento direto.
Resultado ligeiramente pior havia ocorrido em outubro, com saldo negativo de US$ 82,22 bilhões (3,68% do PIB). Com pequenas oscilações, o buraco da conta corrente permaneceu acima de US$ 80 bilhões em 12 meses desde agosto do ano passado. Para este ano o BC projeta um déficit de US$ 78 bilhões, mas isso dependerá principalmente da melhora da balança comercial, isto é, de mercadorias. Pela projeção, o superávit nessa conta passará dos US$ 2,56 bilhões do ano passado para US$ 10 bilhões em 2014.
Não há sinal, por enquanto, de avanço nessa direção. A depreciação cambial em 2013 deveria ter barateado os produtos brasileiros e tornado a indústria nacional mais competitiva, mas o efeito foi frustrante. Talvez o câmbio produza resultado mais significativo neste ano, mas isso, por enquanto, é apenas uma esperança manifestada por empresários e analistas. Todos continuam, por enquanto, à espera de outros fatores potencialmente favoráveis ao comércio exterior brasileiro.
Até agora, o câmbio parece ter produzido algum efeito positivo na conta de serviços, com a redução de um de seus principais componentes - os gastos de brasileiros no exterior. Esses gastos somaram US$ 2,12 bilhões em janeiro, pouco abaixo do valor de um ano antes, de US$ 2,30 bilhões. Neste ano, a conta de serviços teve um déficit de US$ 3,36 bilhões, pouco inferior ao de janeiro de 2013, quando chegou a US$ 3,66 bilhões. Foi um ganho muito modesto.
A presidente Dilma Rousseff e seus auxiliares normalmente se mostram pouco ou nada preocupados com o déficit em conta corrente. Quando se menciona o assunto, costumam lembrar as reservas cambiais superiores a US$ 370 bilhões, suficientes para cobrir um ano e meio de importações como as de janeiro deste ano. O volume de reservas é de fato um importante fator de segurança, mas dólares tendem a evaporar-se com espantosa rapidez quando as apostas no mercado se voltam contra um país. Além disso, a qualidade da cobertura do déficit em conta corrente tem-se deteriorado, porque o investimento estrangeiro direto tem sido insuficiente para isso.
A piora do saldo em transações correntes tem sido causada, já há alguns anos, pela redução do superávit na conta de mercadorias. Normalmente deficitário nas contas de serviços e de rendas, o Brasil precisa de um grande saldo positivo no comércio de bens para manter uma razoável segurança no setor externo. Isso depende, agora, principalmente de um melhor desempenho comercial da indústria. Não há indício, por enquanto, dessa melhora.
Mais um recorde negativo foi batido nas contas externas, em janeiro, com o déficit de US$ 11,59 bilhões em transações correntes, o cálculo mais amplo das trocas de bens e serviços do Brasil com suas dezenas de parceiros. O déficit de US$ 11,35 bilhões de janeiro do ano passado foi, em toda a série histórica, o número mais parecido com esse. Mas o resultado foi bem recebido no mercado financeiro, por ter sido ligeiramente melhor que as previsões correntes. Divulgado o número, o dólar caiu, como se o Banco Central (BC), responsável pelos cálculos do balanço de pagamentos, houvesse divulgado uma notícia positiva, justificando, portanto, algum otimismo em relação ao setor externo. Esquisitices à parte, os números principais continuam preocupantes para quem se preocupa com os fundamentos da economia e com as perspectivas de crescimento. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, evitou considerações mais comprometedoras. O Brasil, segundo ele, está em posição intermediária. Há economias com cifras piores. É verdade, mas isso de nenhum modo torna a posição brasileira mais confortável.
O déficit acumulado em 12 meses ficou em US$ 81,61 bilhões, soma equivalente a 3,67% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado pelos técnicos do BC. Mais uma vez o investimento estrangeiro direto - US$ 65,44 bilhões acumulados no período - foi insuficiente para cobrir o buraco. Não faltou dinheiro de fonte externa para isso, mas a qualidade da cobertura continuou insatisfatória. Aplicações em papéis são em geral menos estáveis e menos seguras que o investimento direto.
Resultado ligeiramente pior havia ocorrido em outubro, com saldo negativo de US$ 82,22 bilhões (3,68% do PIB). Com pequenas oscilações, o buraco da conta corrente permaneceu acima de US$ 80 bilhões em 12 meses desde agosto do ano passado. Para este ano o BC projeta um déficit de US$ 78 bilhões, mas isso dependerá principalmente da melhora da balança comercial, isto é, de mercadorias. Pela projeção, o superávit nessa conta passará dos US$ 2,56 bilhões do ano passado para US$ 10 bilhões em 2014.
Não há sinal, por enquanto, de avanço nessa direção. A depreciação cambial em 2013 deveria ter barateado os produtos brasileiros e tornado a indústria nacional mais competitiva, mas o efeito foi frustrante. Talvez o câmbio produza resultado mais significativo neste ano, mas isso, por enquanto, é apenas uma esperança manifestada por empresários e analistas. Todos continuam, por enquanto, à espera de outros fatores potencialmente favoráveis ao comércio exterior brasileiro.
Até agora, o câmbio parece ter produzido algum efeito positivo na conta de serviços, com a redução de um de seus principais componentes - os gastos de brasileiros no exterior. Esses gastos somaram US$ 2,12 bilhões em janeiro, pouco abaixo do valor de um ano antes, de US$ 2,30 bilhões. Neste ano, a conta de serviços teve um déficit de US$ 3,36 bilhões, pouco inferior ao de janeiro de 2013, quando chegou a US$ 3,66 bilhões. Foi um ganho muito modesto.
A presidente Dilma Rousseff e seus auxiliares normalmente se mostram pouco ou nada preocupados com o déficit em conta corrente. Quando se menciona o assunto, costumam lembrar as reservas cambiais superiores a US$ 370 bilhões, suficientes para cobrir um ano e meio de importações como as de janeiro deste ano. O volume de reservas é de fato um importante fator de segurança, mas dólares tendem a evaporar-se com espantosa rapidez quando as apostas no mercado se voltam contra um país. Além disso, a qualidade da cobertura do déficit em conta corrente tem-se deteriorado, porque o investimento estrangeiro direto tem sido insuficiente para isso.
A piora do saldo em transações correntes tem sido causada, já há alguns anos, pela redução do superávit na conta de mercadorias. Normalmente deficitário nas contas de serviços e de rendas, o Brasil precisa de um grande saldo positivo no comércio de bens para manter uma razoável segurança no setor externo. Isso depende, agora, principalmente de um melhor desempenho comercial da indústria. Não há indício, por enquanto, dessa melhora.
Justiça precisa de agilidade - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE
CORREIO BRAZILIENSE - 23/02
As pessoas obedecem aos mandamentos do Senhor não porque querem ir para o céu. Mas por temer o inferno. Essa é a conclusão da pesquisa sobre a motivação de alguém fazer o bem em detrimento do mal. O medo funciona como freio que leva homens e mulheres a escolher um caminho em vez de outro. O estudo se aplica para a Justiça.
É o temor da cadeia que controla o ímpeto raivoso de avançar sobre o inimigo, dar socos, pontapés, ferir e matar. É a certeza da punição que impede a mão de desferir facadas, de puxar o gatilho ou de levar avante plano para usufruir vantagens indevidas e roubar, premeditadamente, a vida de crianças e adultos.
Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) preocupam e causam justa indignação de quem chora a morte de familiares ou teme ser a próxima vítima. Segundo o levantamento da instituição, os tribunais estaduais só julgaram 10,6% dos processos de homicídios dolosos recebidos até 2009. Falta ainda a conclusão de 58,5 mil processos. São crimes em que houve intenção clara de assassinar.
Não se deve ao acaso, assim, a vexatória posição do Brasil no confronto internacional. De acordo com o Mapa da Violência de 2013, aqui acontecem 27,1 homicídios por 100 mil habitantes - índice bem superior ao aceito pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 10 mortes pelo mesmo grupo de pessoas.
A demora de chegar ao fim do processo acarreta consequências que talvez respondam por parte da desenvoltura com que bandidos agem Brasil afora. De um lado, transmite a sensação de impunidade, que estimula a violência e a crescente desobediência à lei. De outro, aumenta a sensação de insegurança, que desestimula a população a sair de casa, restringe o direito de ir e vir e condena a todos a se aprisionar atrás de altos muros.
Entidades ligadas ao setor apresentam causas que explicam, ou tentam explicar, o quadro calamitoso em que o país se encontra. A Associação dos Magistrados Brasileiros responsabiliza a escassez de juízes. O Brasil conta com 20 mil magistrados. Precisaria do triplo para fazer frente à demanda, que cresceu geometricamente com a Constituição de 1988.
Outras falhas também contribuem para o acúmulo das ações e para a demora da sentença. Entre elas, a má gestão. Sem profissionais atuantes, prazos se ignoram impunemente. Impõe-se melhorar a atuação da Justiça. O estabelecimento de metas vem em boa hora. É importante cumpri-las. O mutirão, previsto para o próximo mês, contribuirá para reduzir a longa fila de espera.
Ações de bombeiro apagam incêndios, mas não resolvem o problema. É inadiável corrigir as falhas estruturais para encerrar, de vez, o capítulo que atravanca a tramitação rápida do processo. Aumentar o quadro de magistrados e qualificar os profissionais que atuam no setor são iniciativas urgentes. Sabe-se que juízes e servidores comprometidos não se compram em supermercado. Concurso e treinamento são processos demorados. Não há tempo a perder.
É o temor da cadeia que controla o ímpeto raivoso de avançar sobre o inimigo, dar socos, pontapés, ferir e matar. É a certeza da punição que impede a mão de desferir facadas, de puxar o gatilho ou de levar avante plano para usufruir vantagens indevidas e roubar, premeditadamente, a vida de crianças e adultos.
Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) preocupam e causam justa indignação de quem chora a morte de familiares ou teme ser a próxima vítima. Segundo o levantamento da instituição, os tribunais estaduais só julgaram 10,6% dos processos de homicídios dolosos recebidos até 2009. Falta ainda a conclusão de 58,5 mil processos. São crimes em que houve intenção clara de assassinar.
Não se deve ao acaso, assim, a vexatória posição do Brasil no confronto internacional. De acordo com o Mapa da Violência de 2013, aqui acontecem 27,1 homicídios por 100 mil habitantes - índice bem superior ao aceito pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 10 mortes pelo mesmo grupo de pessoas.
A demora de chegar ao fim do processo acarreta consequências que talvez respondam por parte da desenvoltura com que bandidos agem Brasil afora. De um lado, transmite a sensação de impunidade, que estimula a violência e a crescente desobediência à lei. De outro, aumenta a sensação de insegurança, que desestimula a população a sair de casa, restringe o direito de ir e vir e condena a todos a se aprisionar atrás de altos muros.
Entidades ligadas ao setor apresentam causas que explicam, ou tentam explicar, o quadro calamitoso em que o país se encontra. A Associação dos Magistrados Brasileiros responsabiliza a escassez de juízes. O Brasil conta com 20 mil magistrados. Precisaria do triplo para fazer frente à demanda, que cresceu geometricamente com a Constituição de 1988.
Outras falhas também contribuem para o acúmulo das ações e para a demora da sentença. Entre elas, a má gestão. Sem profissionais atuantes, prazos se ignoram impunemente. Impõe-se melhorar a atuação da Justiça. O estabelecimento de metas vem em boa hora. É importante cumpri-las. O mutirão, previsto para o próximo mês, contribuirá para reduzir a longa fila de espera.
Ações de bombeiro apagam incêndios, mas não resolvem o problema. É inadiável corrigir as falhas estruturais para encerrar, de vez, o capítulo que atravanca a tramitação rápida do processo. Aumentar o quadro de magistrados e qualificar os profissionais que atuam no setor são iniciativas urgentes. Sabe-se que juízes e servidores comprometidos não se compram em supermercado. Concurso e treinamento são processos demorados. Não há tempo a perder.
Pequena diplomacia - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 23/02
Na terça-feira, a estudante brasileira Emiliane Coimbra, 21, foi detida em Puerto Ayacucho, Venezuela. Passou a noite num quartel, foi indiciada e não pode deixar o município até ser julgada. Seu crime: portar um cartaz com os dizeres "Abaixo Maduro; abaixo a escassez e abaixo a violência".
A crer no comunicado oficial do Mercosul, divulgado no domingo passado, ela e milhares de outros manifestantes naquele país realizam "ações criminais" e "querem disseminar a intolerância e o ódio".
O texto não faz mais que ecoar palavras usadas pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, contra seus opositores. Apesar disso, o governo brasileiro o subscreveu, como se fosse um abaixo-assinado, e não um documento diplomático.
Há grande contraste com declarações de outros organismos regionais, como a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Formada por 33 países, a entidade não demoniza os protestos e defende os direitos humanos, a "institucionalidade democrática, o respeito à lei e à informação fidedigna e veraz".
Logo se vê que o governo Dilma Rousseff não está interessado em se destacar como facilitador do diálogo no país vizinho, e menos ainda como freio à escalada autoritária de Maduro. Contenta-se com o apoio incondicional ao aliado.
Seria o caso de lembrar à diplomacia brasileira que vigora, no Mercosul, uma cláusula estabelecendo a plena vigência das instituições democráticas como condição para integração entre as partes.
Na Venezuela, contudo, Leopoldo López, um líder da oposição, é acusado de golpismo por fomentar atos contra Maduro; a sede de seu partido, Voluntad Popular, foi invadida pela polícia, e grupos paramilitares perseguem manifestantes e jornalistas nas ruas.
Tais abusos se desenrolam em meio a um blecaute informativo imposto pelo governo, que proibiu a transmissão de protestos e até expulsou o canal de TV CNN.
Anteontem, o International Crisis Group, que assessora entidades como ONU e União Europeia, exortou o Brasil a "ser mais ativo em insistir numa solução política".
Além da afinidade ideológica do PT com o chavismo, há um motivo pragmático para a cumplicidade do Planalto. A Venezuela tornou-se importante parceiro comercial do Brasil --o saldo com o vizinho caribenho em 2013, US$ 3,7 bilhões, foi maior do que o alcançado com a Argentina, US$ 3,2 bilhões.
Interesses dessa natureza, entretanto, não escondem as crescentes arbitrariedades de Nicolás Maduro. Ao manter alinhamento automático com a Venezuela, a diplomacia brasileira se apequena.
Na terça-feira, a estudante brasileira Emiliane Coimbra, 21, foi detida em Puerto Ayacucho, Venezuela. Passou a noite num quartel, foi indiciada e não pode deixar o município até ser julgada. Seu crime: portar um cartaz com os dizeres "Abaixo Maduro; abaixo a escassez e abaixo a violência".
A crer no comunicado oficial do Mercosul, divulgado no domingo passado, ela e milhares de outros manifestantes naquele país realizam "ações criminais" e "querem disseminar a intolerância e o ódio".
O texto não faz mais que ecoar palavras usadas pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, contra seus opositores. Apesar disso, o governo brasileiro o subscreveu, como se fosse um abaixo-assinado, e não um documento diplomático.
Há grande contraste com declarações de outros organismos regionais, como a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Formada por 33 países, a entidade não demoniza os protestos e defende os direitos humanos, a "institucionalidade democrática, o respeito à lei e à informação fidedigna e veraz".
Logo se vê que o governo Dilma Rousseff não está interessado em se destacar como facilitador do diálogo no país vizinho, e menos ainda como freio à escalada autoritária de Maduro. Contenta-se com o apoio incondicional ao aliado.
Seria o caso de lembrar à diplomacia brasileira que vigora, no Mercosul, uma cláusula estabelecendo a plena vigência das instituições democráticas como condição para integração entre as partes.
Na Venezuela, contudo, Leopoldo López, um líder da oposição, é acusado de golpismo por fomentar atos contra Maduro; a sede de seu partido, Voluntad Popular, foi invadida pela polícia, e grupos paramilitares perseguem manifestantes e jornalistas nas ruas.
Tais abusos se desenrolam em meio a um blecaute informativo imposto pelo governo, que proibiu a transmissão de protestos e até expulsou o canal de TV CNN.
Anteontem, o International Crisis Group, que assessora entidades como ONU e União Europeia, exortou o Brasil a "ser mais ativo em insistir numa solução política".
Além da afinidade ideológica do PT com o chavismo, há um motivo pragmático para a cumplicidade do Planalto. A Venezuela tornou-se importante parceiro comercial do Brasil --o saldo com o vizinho caribenho em 2013, US$ 3,7 bilhões, foi maior do que o alcançado com a Argentina, US$ 3,2 bilhões.
Interesses dessa natureza, entretanto, não escondem as crescentes arbitrariedades de Nicolás Maduro. Ao manter alinhamento automático com a Venezuela, a diplomacia brasileira se apequena.
Flerte com o totalitarismo - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR
GAZETA DOPOVO - PR - 23/02
A nota do PT em apoio a Nicolás Maduro distorce os fatos e revela um entendimento perigoso do que seja a democracia
A situação na Venezuela se agrava, com a confirmação de novas mortes de manifestantes (como a da estudante e miss Génesis Carmona) e a prisão de líderes oposicionistas. O ditador Nicolás Maduro endurece a repressão contra as grandes manifestações populares que pedem sua saída e, por piores que sejam suas atitudes, ele ainda tem defensores entusiasmados, inclusive no Brasil. É o caso do PT, que emitiu no dia 18 uma nota de apoio ao governo bolivariano.
A nota, assinada pelo presidente da legenda, Rui Falcão (cujas inclinações totalitárias já foram colocadas em evidência neste mesmo espaço), e pela secretária de Relações Internacionais do partido, Mônica Valente, só acerta em três pontos: ao tratar os acontecimentos na Venezuela como “graves”, ao mencionar “ações criminosas de grupos violentos como instrumento de luta política” e ao afirmar que houve mortes. De resto, o texto distorce não apenas os recentes episódios no país vizinho como também o próprio conceito de democracia, e por isso merece repúdio.
Segundo o petismo, a Venezuela é uma democracia porque existiria uma “ordem democrática legitimamente constituída pelo voto popular”, para usar as palavras de outra nota igualmente repugnante, a emitida pelo Mercosul no domingo passado. Deixando de lado o fato de as denúncias de fraude na última eleição venezuelana nunca terem sido completamente afastadas, é evidente que mesmo ditaduras realizam eleições. A Cuba dos Castro faz eleições parlamentares; o Iraque de Saddam Hussein organizou eleições vencidas pelo ditador com 100% dos votos; até o Brasil dos militares, embora não tivesse eleições diretas para a Presidência, realizou pleitos em 1965, 1970, 1974, 1978 e 1982. Se ninguém nega que o Brasil vivia uma ditadura, por que agora dizer que a Venezuela é democrática simplesmente por organizar processos eleitorais?
O problema venezuelano é outro: é a inexistência da separação dos poderes, com um Legislativo e um Judiciário completamente subordinados ao Executivo (isso permitiu, por exemplo, que a Justiça e o Congresso venezuelanos rasgassem a Constituição para empossar, em janeiro de 2013, um moribundo Hugo Chávez enquanto este se encontrava em Cuba); é a formação de milícias paramilitares bolivarianas, justamente aquelas que vêm sendo acusadas de disparar contra os cidadãos que protestam nas ruas (as “ações criminosas de grupos violentos” provêm dessas milícias, e não dos manifestantes); são as prisões arbitrárias de oposicionistas como Leopoldo López; é o desrespeito à propriedade privada que se reflete em desapropriações e confiscos; em resumo, é a completa implosão das instituições e das garantias que caracterizam uma verdadeira democracia.
E não podia faltar, em se tratando do PT e de Rui Falcão, um ataque à imprensa livre, já que a nota menciona “ações midiáticas que ameaçam a democracia”. Mas quem ameaça a democracia é justamente o governo bolivariano, que, já há muitos anos, vem agindo para amordaçar a imprensa livre, desde a não renovação da concessão de canais de televisão, até os acontecimentos mais recentes, como a imposição de dificuldades para a compra de papel jornal e, depois que as manifestações começaram, a censura pura e simples, com canais noticiosos estrangeiros tendo seu sinal cortado dentro da Venezuela. A imprensa subserviente, como bem sabemos, é um sonho antigo do PT, e entre os principais defensores do eufemisticamente chamado “controle social da mídia” estão o próprio Falcão e o ex-ministro das Comunicações Franklin Martins.
É muito preocupante que o partido que atualmente detém o poder no Brasil manifeste esse flerte explícito com o totalitarismo bolivariano (assim como com a ditadura cubana). Lembremos que, além de insistir no policiamento dos meios de comunicação, o PT já tentou destruir a independência entre os poderes por meio do mensalão, e dá repetidas mostras de desprezo pelo Supremo Tribunal Federal (a mais recente delas foi o punho erguido do paranaense André Vargas diante do presidente do STF, Joaquim Barbosa, na abertura dos trabalhos parlamentares de 2014). O fato de a cúpula do partido acalentar o sonho de trazer para o Brasil o modelo bolivariano que tanto apoia deve enviar um sinal de alerta não apenas para a sociedade em geral, mas especialmente para os petistas de índole genuinamente democrática. Que eles tenham a força necessária para tirar o partido do rumo antidemocrático que parece trilhar.
A nota do PT em apoio a Nicolás Maduro distorce os fatos e revela um entendimento perigoso do que seja a democracia
A situação na Venezuela se agrava, com a confirmação de novas mortes de manifestantes (como a da estudante e miss Génesis Carmona) e a prisão de líderes oposicionistas. O ditador Nicolás Maduro endurece a repressão contra as grandes manifestações populares que pedem sua saída e, por piores que sejam suas atitudes, ele ainda tem defensores entusiasmados, inclusive no Brasil. É o caso do PT, que emitiu no dia 18 uma nota de apoio ao governo bolivariano.
A nota, assinada pelo presidente da legenda, Rui Falcão (cujas inclinações totalitárias já foram colocadas em evidência neste mesmo espaço), e pela secretária de Relações Internacionais do partido, Mônica Valente, só acerta em três pontos: ao tratar os acontecimentos na Venezuela como “graves”, ao mencionar “ações criminosas de grupos violentos como instrumento de luta política” e ao afirmar que houve mortes. De resto, o texto distorce não apenas os recentes episódios no país vizinho como também o próprio conceito de democracia, e por isso merece repúdio.
Segundo o petismo, a Venezuela é uma democracia porque existiria uma “ordem democrática legitimamente constituída pelo voto popular”, para usar as palavras de outra nota igualmente repugnante, a emitida pelo Mercosul no domingo passado. Deixando de lado o fato de as denúncias de fraude na última eleição venezuelana nunca terem sido completamente afastadas, é evidente que mesmo ditaduras realizam eleições. A Cuba dos Castro faz eleições parlamentares; o Iraque de Saddam Hussein organizou eleições vencidas pelo ditador com 100% dos votos; até o Brasil dos militares, embora não tivesse eleições diretas para a Presidência, realizou pleitos em 1965, 1970, 1974, 1978 e 1982. Se ninguém nega que o Brasil vivia uma ditadura, por que agora dizer que a Venezuela é democrática simplesmente por organizar processos eleitorais?
O problema venezuelano é outro: é a inexistência da separação dos poderes, com um Legislativo e um Judiciário completamente subordinados ao Executivo (isso permitiu, por exemplo, que a Justiça e o Congresso venezuelanos rasgassem a Constituição para empossar, em janeiro de 2013, um moribundo Hugo Chávez enquanto este se encontrava em Cuba); é a formação de milícias paramilitares bolivarianas, justamente aquelas que vêm sendo acusadas de disparar contra os cidadãos que protestam nas ruas (as “ações criminosas de grupos violentos” provêm dessas milícias, e não dos manifestantes); são as prisões arbitrárias de oposicionistas como Leopoldo López; é o desrespeito à propriedade privada que se reflete em desapropriações e confiscos; em resumo, é a completa implosão das instituições e das garantias que caracterizam uma verdadeira democracia.
E não podia faltar, em se tratando do PT e de Rui Falcão, um ataque à imprensa livre, já que a nota menciona “ações midiáticas que ameaçam a democracia”. Mas quem ameaça a democracia é justamente o governo bolivariano, que, já há muitos anos, vem agindo para amordaçar a imprensa livre, desde a não renovação da concessão de canais de televisão, até os acontecimentos mais recentes, como a imposição de dificuldades para a compra de papel jornal e, depois que as manifestações começaram, a censura pura e simples, com canais noticiosos estrangeiros tendo seu sinal cortado dentro da Venezuela. A imprensa subserviente, como bem sabemos, é um sonho antigo do PT, e entre os principais defensores do eufemisticamente chamado “controle social da mídia” estão o próprio Falcão e o ex-ministro das Comunicações Franklin Martins.
É muito preocupante que o partido que atualmente detém o poder no Brasil manifeste esse flerte explícito com o totalitarismo bolivariano (assim como com a ditadura cubana). Lembremos que, além de insistir no policiamento dos meios de comunicação, o PT já tentou destruir a independência entre os poderes por meio do mensalão, e dá repetidas mostras de desprezo pelo Supremo Tribunal Federal (a mais recente delas foi o punho erguido do paranaense André Vargas diante do presidente do STF, Joaquim Barbosa, na abertura dos trabalhos parlamentares de 2014). O fato de a cúpula do partido acalentar o sonho de trazer para o Brasil o modelo bolivariano que tanto apoia deve enviar um sinal de alerta não apenas para a sociedade em geral, mas especialmente para os petistas de índole genuinamente democrática. Que eles tenham a força necessária para tirar o partido do rumo antidemocrático que parece trilhar.
Assinar:
Postagens (Atom)