segunda-feira, março 26, 2018

Juventude interrompida - CARLOS ALBERTO DI FRANCO

ESTADÃO - 26/03

Ativo precioso, ela não pode ser sequestrada. Dos jovens depende o futuro do Brasil


O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo transmito uma experiência recorrente: família, ética, empreendedorismo e valores aumentam o índice de leitura. Dão ibope. Num de meus últimos artigos tratei da crise da família. Recebi muitos e-mails, sem dúvida uma bela amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.

Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Falar com a sociedade real. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática.

Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito do descaso com os jovens, da perversa interrupção da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. O título deste artigo está inspirado em recente reportagem especial do jornal O Estado de S. Paulo: Juventude interrompida.

Juliana Diógenes, enviada especial do jornal a Codó e Timbiras (Maranhão), conta algumas histórias dramaticamente rotineiras. Raquel (nome fictício) observa a massinha de modelar entre as mãos e brinca de criar formas enquanto fala sobre o dia em que foi estuprada, aos 10 anos, em Cajazeiras, distrito onde mora na zonal rural de Codó. O rapaz, então com 19 anos, fugiu. Aos 13, foi morar com Raimundo, um pedreiro de 35 anos que conheceu na casa vizinha. E engravidou novamente. E a vida segue.

Pobreza, desorientação e gravidez precoce interrompem a infância e sequestram a juventude. A gravidez precoce é hoje no Brasil a maior causa da evasão escolar de garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez precoce afeta até quem mal saiu da infância.

O senador José Serra, quando ministro da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, foi curto e grosso ao analisar as principais causas da gravidez precoce: “É um absurdo acreditar que a criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser careta, mas responsável”. O então ministro responsabilizou a programação das TVs, considerando absurdas as cenas de sexo. “Já morei em dez países e em nenhum deles vi tanta exploração de sexo”, concluiu Serra. A preocupação do então ministro, cuja trajetória pessoal e política não combina com histerias conservadoras, era compreensível e lógica. Apoiava-se, afinal, no bom senso e na força dos fatos. De lá para cá, infelizmente, as coisas não melhoraram.

A culpa, no entanto, não é só da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País seja definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.

O governo, assustado com o aumento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.

Atualmente, graças ao impacto da televisão e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Com o apoio das próprias mães, fascinadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida “adulta” e sórdida. Promovidas a modelos, e privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultas. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.

As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com inúmeras novelas e com programas de auditório que fazem da exaltação do sexo bizarro uma alavanca de audiência. A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento e de investir em programação de qualidade.

A juventude é um ativo precioso. Não pode ser interrompida e sequestrada. Dela depende o futuro do Brasil.

* Jornalista.

Algoritmos e idiotas corretos - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 26/03

O politicamente correto destruiu nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual


Tive o prazer de rever alguns episódios da primeira temporada da série "House", realizada em 2004 —portanto, 14 anos trás.

Também tive a oportunidade de participar de uma reunião numa grande produtora de audiovisual, em que analisávamos roteiros de um programa realizado em 2011. Portanto, sete anos atrás.

Em ambos os casos, uma constatação terrível: de lá pra cá, a censura do politicamente correto destruiu em muito nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual. Tanto a primeira temporada de "House" quanto os roteiros discutidos na produtora seriam, hoje, pesadamente censurados ou cairiam na condição de objetos de linchamento público nas mídias sociais e nos espaços institucionais.

Os movimentos sociais, sempre de natureza totalitária, desde sua raiz, destruiriam esses conteúdos e seus criadores.

Fala-se pouco disso porque os agentes dessa destruição foram, em sua maioria, os próprios produtores de conteúdo e suas agências.

Não foi necessário nenhum fascista de fora, bastaram os de dentro mesmo. E um fascista é sempre um bem-intencionado.

Não há espaço mais totalitário do que os equipamentos culturais e seus agentes. E a história falhou feio em trazer à tona um aspecto essencial de todos os projetos totalitários desde a Revolução Francesa de 1789 até hoje.

Que aspecto é esse?

A característica essencial —e escondida— de se achar uma instância produtora do bem.

Toda mente totalitária parte do pressuposto de que ela é um agente do bem de todos.

É impressionante o fato de que ainda hoje seríamos capazes de produzir esquemas de tortura e destruição da liberdade de agir e de pensar da mesma forma que "irmãos" como Lênin, Hitler, Trotsky ou Stálin fizeram.

Intelectuais e agentes políticos pregam, ainda que com certa reserva (manipulando o vocabulário), projetos de "violência criadora", fingindo que não estão propondo um massacre dos "contrarrevolucionários".

Mas voltemos ao fenômeno descrito na abertura desta coluna.

Num espaço de 7 a 14 anos, toda uma gama de temas e formulações argumentativas foi, simplesmente, expulsa do debate público.

Você gostaria que eu reproduzisse alguns deles aqui?

Estamos em 2018, e a censura do politicamente correto caça todo mundo o tempo todo.

A coisa piorou muito nos últimos sete anos. Mesmo agentes do Poder Judiciário se juntaram ao esquema destrutivo da liberdade de pensamento no país. Nos EUA, ainda é pior —basta ver a histeria coletiva em Hollywood. Mas —vamos chegar lá— basta observar o comportamento dos ditos "progressistas" nos espaços institucionais.

Não vou reproduzir as formulações argumentativas malditas.

Quando se atua hoje no debate público, sabe-se muito bem que a malta de censores se traveste de ovelhas por toda parte, sonhando em beber seu sangue.

O mundo sempre foi povoado por canalhas. Mas, hoje, esses canalhas conseguiram fingir que não existem.

O processo de destruição do pensamento e dos gestos pelo politicamente correto avança em direção à pura e simples criminalização destes mesmos pensamentos e gestos.

Eu disse que não iria reproduzir essas formulações argumentativas, mas posso adiantar um dos temas em que regredimos à mais pura e total censura e estupidez —estupidez essa que deixaria os inquisidores medievais impressionados com a decisão contemporânea de mentir sobre a realidade a fim de sustentar uma "doutrina" falsa sobre esta mesma realidade.

Um dos temas que mais sofre ataques dos fascistas de dentro é o universo dos vínculos afetivos entre homens e mulheres.

As mentiras politicamente corretas nessa área são tantas, que os mais jovens crescem num ambiente crescente de desarticulação dos afetos, desarticulação essa patrocinada pela mídia, pela arte, pela publicidade, pela universidade e por muitos praticantes da própria psicologia.

O que pensará alguém do século 22 que venha analisar nossos roteiros de 2018? O futuro pertencerá aos idiotas corretos e aos algoritmos? Serão estes a única esperança de inteligência na face da Terra?

Encontro anual com o leão - MARCIA DESSEN

FOLHA DE SP - 26/03

Aproveite a tarefa da declaração para fazer uma DR consigo mesmo


Ir ao dentista todo ano não é a única coisa chata que precisamos fazer. O encontro forçado com a Receita Federal é outro bom exemplo. O leão, mascote escolhido para representar o trabalho de fiscalização da Receita, sinaliza que o assunto é coisa séria. O respeitado rei dos animais é agressivo, mas não ataca sem avisar.

Conheço muita gente que entrega essa tarefa para um contador e, ao fazer isso, perde a chance de uma excelente reflexão acerca das suas finanças, analisar o que fez com todo o dinheiro que ganhou e
refletir se poderia ter feito melhor.

A declaração anual do Imposto de Renda fotografa nossa situação financeira no dia 31 de dezembro de cada ano e compara com a fotografia tirada na mesma data do ano anterior, apontando se e quanto
cresceu o nosso patrimônio.

Se olharmos além dos números, teremos a chance de analisar o que eles revelam, já que retratam as decisões que tomamos em relação aos rendimentos que ganhamos naquele ano. Se não houve crescimento patrimonial em relação ao ano anterior, é forte o indício de que estamos transferindo para terceiros a riqueza que poderia ser nossa.

Se o patrimônio cresceu, cenário que deixa o leão mais alerta, é preciso explicar de onde vieram os recursos financeiros que patrocinaram o aumento de riqueza e se os impostos, quando devidos, foram pagos.

Omitir informações nunca é boa estratégia quando o interlocutor é a Receita. A rede de “informantes” dela é impressionante! Recebe informação de tudo (quase tudo) o que acontece com cada CPF ou CNPJ, nos âmbitos municipal, estadual e federal.

Conexão com cartórios permite checar as transações de compra e venda de bens imóveis; nos Detrans fica sabendo do registro de veículos, motos, barcos e até jet skis; os bancos, uma das principais fontes de informação da Receita, revelam as transações financeiras em conta-corrente, cartões de débito e crédito, além das aplicações e empréstimos.

Nas empresas em geral rastreia a renda que recebemos (folha de pagamentos, FGTS, INSS, IR retido na fonte) e cruza com transações de compra e venda de mercadorias e serviços em geral, mediante emissão de nota fiscal eletrônica ou digital.

Em resumo, a Receita quer saber se nossos rendimentos assalariados e outras fontes de renda são suficientes para explicar os inúmeros pagamentos feitos ao longo do ano, além de justificar o
crescimento patrimonial declarado.

Para tirar proveito da tarefa obrigatória de juntar toda a papelada e informações necessárias, dedique algum tempo para entender osnúmeros e o que eles revelam.

Os rendimentos auferidos relacionam tudo o que recebemos no exercício fiscal em análise: trabalho assalariado, rendimentos de aplicações financeiras, renda de aluguéis de imóveis, doações recebidas. O número final totaliza a renda auferida num ano inteiro, advindo das diversas fontes de renda. Surpreenda-se com o número, todo esse dinheiro passou por suas mãos! O que foi feito dele? Consumo puro ou aproveitou para engordar seu patrimônio?

A ficha dos bens e direitos revela nosso patrimônio: imóvel residencial, imóveis alugados, veículos, ativos financeiros, planos de previdência. Aproveite para analisar se a rentabilidade dos investimentos foi adequada. A taxa Selic bruta, acumulada em 2017, foi 10,11%, esse foi o custo de oportunidade, parâmetro que deve ser usado para avaliar o retorno dos seus investimentos.

Qual foi o retorno da sua carteira de investimento? Se foi muito abaixo desse parâmetro, mexa-se, avalie o que precisa mudar para melhor a rentabilidade. Das duas uma: ou a rentabilidade está baixa ou o custo está alto. Faça algo para melhorar esse resultado. É o seu patrimônio! Se você não cuidar dele, quem vai? O contador? Acho que não...

Quanto o seu patrimônio cresceu em razão de recursos poupados? Suponha que sua renda anual tenha sido de R$ 100 mil e que R$ 20 mil foram destinados a novos investimentos. Essa foi sua capacidade de poupança (20%) e sinaliza que você se esforçou para ampliar seu patrimônio. Bom trabalho!

Aproveite o encontro com o leão, encontre benefício nessa tarefa mesmo que seja feita com a ajuda de um contador. Reflita sobre o significado do dinheiro na sua vida e avalie se está sendo usado de forma coerente, alinhada aos seus propósitos e valores.

O DPVAT nos dias de hoje - ANTONIO PENTEADO MENDONÇA

O Estado de S. Paulo - 26/03


O DPVAT, o seguro obrigatório de veículos, mudou de cara. Está, pelo segundo ano consecutivo, mais barato. Quer dizer então que havia coisa errada? Não necessariamente dentro da Seguradora Líder, mas que havia, havia, tanto que no último ano foram identificadas e bloqueadas 17.550 tentativas de fraude.

O grande problema do DPVAT não é baixar o preço, é aumentar a indenização. Seria mais racional, mais útil e socialmente mais eficiente. Mas para isso acontecer é necessário se votar uma lei no Congresso Nacional e é aí que mora o perigo. Com os deputados e senadores que temos não se sabe o que pode sair e por isso ninguém quer correr o risco de encaminhar o projeto de lei indispensável para a grande mudança que o seguro realmente precisa.

O capital segurado do DPVAT, já faz alguns anos, está ancorado R$ 13,5 mil para morte e para invalidez permanente. Poderia ser mais alto. Se, em vez de abaixar o preço do seguro, fosse possível aumentar o valor das indenizações por meio de medida administrativa da Superintendência de Seguros Privados (Susep), as indenizações poderiam estar próximas de R$ 20 mil.

O DPVAT é consequência do fracasso e da bandalheira que correu solta num seguro de responsabilidade civil obrigatório para veículos, o Recovat. Em 1974, o governo decidiu agir e acabou o Recovat, colocando no seu lugar o DPVAT. Ao longo destes anos o DPVAT atravessou diferentes momentos, tanto no funcionamento, como na forma de comercialização.

No desenho atual, uma seguradora criada para isso administra um consórcio do qual fazem parte várias outras seguradoras, com a finalidade específica de gerenciar o seguro obrigatório de veículos.

Com a criação da Seguradora Líder, o DPVAT passou a ter uma gestão 100% focada nele, o que melhorou muito todos os seus indicadores e, principalmente, a sua transparência.

É assim que, ao longo dos últimos anos, foram aperfeiçoados os sistemas de controle e identificadas irregularidades que, sanadas, permitiram a Susep reduzir o preço do seguro por dois anos seguidos.

O que ninguém levou em conta é que essa redução, indiferente para o proprietário de veículo, causou uma perda de bilhões de reais para milhões de brasileiros que dependem do governo para não morrerem. 45% do faturamento do DPVAT é destinado ao SUS. Com as duas reduções do preço do seguro, em 2017 e 2018, a saúde pública brasileira, que mal e mal se mantém nas pernas, está deixando de faturar mais de R$ 5 bilhões, mas isso não comove os burocratas que tratam do assunto porque eles têm planos de saúde privados abrangentes que os retiram das filas dos hospitais públicos.

Em função da significativa perda de receita, a Seguradora Líder aperfeiçoou suas ferramentas de gestão e, por conta delas, identificou 17.550 tentativas de fraude, economizando R$ 222 milhões, que deixaram de ser indevidamente pagos a quem não tinha direito a recebê-los.

Indenizações. Em 2017, foram pagas 383 mil indenizações, totalizando R$ 1,7 mil para as vítimas de acidentes de trânsito e seus beneficiários. O dado apavorante é que deste total 290 mil indenizações foram pagas em função de acidentes com motocicletas. A maioria aconteceu no Nordeste e o maior número de vítimas foi de jovens do sexo masculino.

Basta ver na televisão a forma como as motocicletas são usadas no Nordeste para se entender a razão dos números acima. Motos transportando três ou quatro pessoas, além de um cachorro, são cenas comuns.

Enquanto essa realidade não for combatida com seriedade é pouco provável que os números da tragédia das ruas brasileiras melhorem. Mas não é só aí que o governo falha. Enquanto as estradas federais forem pistas de prova para veículos fora de estrada, com buracos e crateras se sucedendo por milhares de quilômetros, não há o que fazer, o brasileiro vai continuar morrendo em acidentes de trânsito. E seu único amparo será o DPVAT.

Removendo entulhos - PAULO GUEDES

O Globo - 26/03

O excesso de burocracia, as restrições das práticas trabalhistas e as barreiras impostas por grupos de interesses corporativos são poderosos obstáculos à melhoria das condições de vida da população. “As diferenças de produtividade, de níveis de salário e de padrões de vida entre os países são enormes. Resultam essencialmente de políticas específicas aplicadas por seus governantes que dificultam os negócios, restringem a criação de empregos e o uso mais eficiente dos recursos produtivos pelas empresas. Essas políticas são como barreiras ao enriquecimento, derrubando a produtividade dos fatores de produção e o nível de renda do país”, explica o Prêmio Nobel em Economia Edward Prescott, em “Barriers to riches” (2000).

O milagre do crescimento acelerado do Japão e dos Tigres Asiáticos no passado, bem como o milagre atual de retardatários como a China, a Índia e alguns países do Leste Europeu, revelam essa persistente remoção de obstáculos em busca de um melhor funcionamento dos mercados. “É sempre mais fácil copiar e adaptar técnicas já existentes do que inovar e ampliar as fronteiras do conhecimento, das tecnologias e dos métodos de gestão”, revela Prescott. A excelente notícia para o Brasil é que, quanto mais impeditivas tenham sido as barreiras das regulamentações e por quanto mais tempo tenham prevalecido esses obstáculos burocráticos, mais formidável o milagre econômico possível. Esse foi um lubrificante dos históricos episódios asiáticos de crescimento exuberante.

O Brasil pode dar fôlego extra ao atual fenômeno de recuperação cíclica e acelerar sua retomada de crescimento com reformas de desburocratização, desregulamentação e remoção do lixo legislativo que protege privilégios de grupos corporativos contra os interesses do país. A desestatização do mercado de crédito, as privatizações e as concessões vão aumentar a eficiência na alocação de recursos e contribuir para a aceleração do crescimento. A sinalização de reformas melhorando o ambiente de negócios já colocaria o país em ritmo de crescimento antes mesmo de acelerarmos o ritmo de acumulação de capital físico (máquinas e equipamentos, infraestrutura, instalações industriais) e dos investimentos em capital humano (educação) e pesquisa (inovações tecnológicas).

Lipoaspiração constitucional - ALMIR PAZZIANOTTO PINTO

ESTADÃO - 26/03

Creio ser impossível vingar essa ideia de Jobim, restam-nos as emendas pontuais

O Fórum Estadão, oportuna iniciativa do Estado, cujo tema de fundo é A Reconstrução do Brasil, iniciou-se na manhã de 27/2 com instigante debate em torno da Constituição. Participaram os juristas Eros Grau, Nelson Jobim e Joaquim Falcão, os dois primeiros ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o último, professor da Fundação Getúlio Vargas.

As opiniões foram unânimes: com a Constituição de 1988 é impraticável governar. Além de críticas ao STF pelo excesso de protagonismo, despertou a atenção a proposta feita pelo ministro Nelson Jobim de se “fazer uma lipoaspiração na Constituição” e dela retirar todos os “excessos para reconstruir a harmonia dos Poderes”.

A prolixidade da Lei Fundamental, apontada pelo ministro Eros Grau, teve como uma das causas a força de corporações, associações e sindicatos empenhados em converter em garantias constitucionais todas as expectativas. O professor Joaquim Falcão destacou o tratamento dispensado aos servidores públicos, que “têm 16 vezes mais chances de levar temas para julgamento no Supremo Tribunal Federal em comparação com trabalhadores da iniciativa privada”, os quais, apesar da posição de inferioridade, gozam da proteção de 6 artigos, 42 incisos e 4 parágrafos.

Com 250 artigos, 114 disposições constitucionais transitórias e 99 emendas, a Lei Superior perde em extensão apenas para a da Índia. E me traz à lembrança a frase do jurista espanhol Pablo Lucas Verdú: “La prolijidad de uma Constitución se paga al precio de la dificultad de su interpretación. La dificultad de su interpretación com el fracaso de su aplicación” (Curso de Derecho Politico, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, 440).

Uma das razões da prolixidade reside na manobra política que viciou a eleição dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte. É impossível ignorar que 459 deputados e 72 senadores, eleitos em 15/11/1986, foram beneficiados pela sobrevida assegurada ao Plano Cruzado I, decretado em 28/2/1986, tardiamente substituído pelo Plano Cruzado II, baixado em 21/11/1986, seis dias após o pleito. Anos depois admitiu o presidente José Sarney, sobre o Cruzado II: foi o “maior erro que cometemos no governo e por ele paguei muito caro”.

Com 559 membros na maioria jejunos em técnica legislativa e despreparados em matéria constitucional, os resultados não poderiam ter sido mais desastrosos. O regimento interno teve a relatoria do senador Fernando Henrique Cardoso. Foram criadas 8 comissões temáticas, compostas por 63 membros cada uma, divididas em 3 subcomissões. A tarefa principal ficou reservada à Comissão de Sistematização, integrada por 49 constituintes e presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral, a figura “mais poderosa, com extrema influência política na condução do anteprojeto”.

Em nome da preservação das liberdades democráticas, ao invés de qualificado grupo de constitucionalistas, tivemos anárquica assembleia cujos trabalhos se desenvolveram sem anteprojeto ou projeto. O texto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, ou Comissão de Notáveis, criada pelo presidente Sarney por decreto, foi rebaixado a relatório e enviado ao arquivo do Ministério da Justiça. Quatro vetores orientaram os trabalhos da Constituinte: o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade.

Segundo os professores Yan de Souza Carreirão e Débora Josiane de Carvalho de Melo, da Universidade Federal de Santa Catarina (Representação Política na Assembleia Nacional Constituinte – 1987/1988), “durante o processo foram apresentadas 61.020 emendas e 122 emendas populares”. À Comissão de Sistematização foi enviado 1 milhão de assinaturas favoráveis à reforma agrária e 500 mil pela estabilidade no emprego.

Sendo impossível governar com ela, que destino dar à sétima Constituição republicana? A convocação de assembleia constituinte esbarraria no primeiro obstáculo: quem teria a prerrogativa de fazê-lo? As seis Constituições anteriores resultaram de golpe. A exceção é a atual, cujas raízes se encontram na eleição indireta de 1985, vencida por Tancredo Neves, comprometido com a redemocratização do País. Morto Tancredo, Sarney assume a obrigação e envia ao Congresso Nacional, em junho de 1985, a Emenda n.º 85, aprovada em 26/11, com a determinação de senadores e deputados eleitos em 1986 se reunirem em Assembleia Nacional Constituinte no dia 1.º/2/1987.

Poderia o presidente Michel Temer, ou quem vier a suceder-lhe, redigir e submeter ao Congresso projeto de Constituição, como acabou de fazer no Chile a então presidente Michelle Bachelet (Estado, 7/3). O presidente Castelo Branco o fez mediante o Ato Institucional n.º 4/1966, ao ordenar que o Congresso Nacional se reunisse extraordinariamente, de 12/12/1966 a 24/1/1967, para “discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República” (artigo 1.º). Na data aprazada a Constituição foi promulgada. Os tempos são outros. Ao invés do regime militar, temos o Estado Democrático de Direito. No Congresso escasseiam juristas. Embora impraticável, a Lei Magna será mantida e quando possível e conveniente, obedecida.

Se houver como eleger nova Constituinte, presenciaremos a repetição dos problemas na elaboração da Constituição de 1988. Atores, coadjuvantes e figurantes serão outros, mas o enredo não será diferente. Creio ser impossível vingar a ideia da lipoaspiração, apresentada por Nelson Jobim. A quem competirá determinar quais dispositivos serão sacrificados?

Excluída medida de arbítrio, resta-nos prosseguir no acidentado caminho das emendas pontuais. Quem sabe venhamos a ser governados, em algumas décadas, por Constituição merecedora do nome?

*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

A economia do moto perpétuo - SAMUEL PESSÔA E MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 26/03

Para os heterodoxos, basta mais gasto público para ficarmos mais ricos; fosse assim, seria difícil entender o atraso de muitos países


Os economistas heterodoxos brasileiros frequentemente defendem que a expansão do gasto público pode ser autofinanciável.

O maior gasto público na expansão da produção amplia a oferta de bens e serviços, ao mesmo tempo que aumenta a renda das famílias e o seu consumo. O crescimento da economia aumenta a arrecadação de tributos, financiando o maior gasto público.

Descobriram o círculo virtuoso: o Tesouro emite dívida, e o resultado é o maior crescimento econômico e da receita de impostos. No fim do ciclo teríamos a redução da dívida pública como fração da economia! Economistas heterodoxos declaram sucesso onde a física fracassou: a invenção do moto perpétuo.

Como escreveram Nelson Barbosa e José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda": "Em outras palavras, o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A criatividade dos heterodoxos resolveu o problema da escassez. Basta gastar mais para ficar mais rico. Se essa dinâmica fosse possível, seria difícil entender o subdesenvolvimento de muitos países. Afinal, o aumento do gasto público aumenta a renda do país.

A realidade requer detalhes que as fantasias podem ignorar. O crescimento econômico e da arrecadação tributária deveria ser grande o suficiente para compensar o aumento do gasto público. A expansão da capacidade de produção da economia deveria ser rápida o suficiente para evitar que o resultado fosse apenas mais inflação. Por fim, o crescimento da receita de impostos deveria ser maior do que o aumento da dívida decorrente da taxa de juros pagas aos que aceitam emprestar ao governo.

Nossos economistas heterodoxos acreditam que a perda de 7% de PIB no biênio 2015-2016 foi responsabilidade da tímida e tardia contração fiscal de Joaquim Levy. Infelizmente eles são incapazes de escrever um artigo com as melhores técnicas da profissão documentando esse fato. Aproveitando, poderiam anunciar a boa nova de que descobriram o moto perpétuo e explicar por que a imensa expansão fiscal de 2014 não resultou em vigoroso crescimento.

No trabalho "Fiscal Policy in a Depressed Economy", Bradfor DeLong e Lawrence Summers mostram que a expansão fiscal pode ser eficaz no caso de economias com alto desemprego, inflação baixa e juros nominais nulos. Esse era o caso da economia americana logo em seguida à crise do subprime.

Certamente não é o caso e nunca foi o do Brasil, como já deixou de ser o dos EUA. A dívida americana deve aumentar como proporção do PIB em função da política fiscal expansionista de Trump —como, aliás, ocorreu no período Reagan.

Entende-se por que a mensagem da heterodoxia é tão bem-vinda aos políticos populistas. Afinal, nada melhor do que propor que quanto mais se gasta, mais rico se fica.

Muitos podem reagir às propostas da direita extremada. Não os heterodoxos. O caldo de cultura foi o fracasso da sua fantasia de moto perpétuo em meio à demonização da divergência.


Samuel Pessôa - É formado em física, doutor em economia e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV

Marcos Lisboa - É economista, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)