ESTADÃO - 10/02
Apesar de todos os pesares e dissabores desabonadores vividos ultimamente, o ex-presidente Luiz Inácio da Silva ainda não perdeu o posto de personagem central da política brasileira. De longe é a figura que desperta maior interesse e recebe mais destaque por parte dos meios de comunicação. Basta acontecer com Lula para que qualquer fato, fala e/ou ato virem notícia.
Câmeras, luzes e microfones estão permanentemente à disposição dele. A recíproca, contudo, não é sempre nem necessariamente verdadeira. Em situações adversas, por exemplo, prefere fazer de conta que não dispõe desse acesso pleno, cala e foge de contato com pessoas ou ambientes passíveis de questionamentos.
Nessas ocasiões entra em cena o “Lula fraquinho”, esculpido pela imaginação publicitária de João Santana. É o perseguido, vítima das elites revoltadas com seu sucesso e absolutamente inconformadas com a redução da miséria no País. Trata-se de um contraponto ao “Lula fortão” (criado pelo mesmo autor) que por enfrentar tudo com o destemor de um legítimo sertanejo, tornou-se todo poderoso.
A este é dado o direito de desfrutar de todo o tipo de favores concedidos por áulicos oriundos das elites, claro – e beneficiamentos a título de compensação pelos serviços prestados ao País, ainda que ao arrepio da legalidade e da moralidade. A “coisa mais natural do mundo”, nas palavras do companheiro Gilberto Carvalho.
Àquele, o fraco, é concedida a prerrogativa do silêncio conveniente. Faz o papel do ofendido, enquanto os porta-vozes escalados para sua defesa rebatem as “calúnias” com muitos adjetivos e nenhum argumento substantivo.
Lula é alvo de quatro investigações: no Ministério Público do Distrito Federal, por suspeita de tráfico de influência em favor de empreiteiras que o contrataram para palestras; na Operação Lava Jato por suposta ocultação de patrimônio do sítio Santa Bárbara, em Atibaia; na Zelotes, em decorrência de medidas provisórias que beneficiaram o setor automobilístico; e no MP de São Paulo, por força de inquérito que apura a compra de um apartamento no Guarujá e a muito mal explicada reforma feita pela construtora (OAS) na unidade 164-A.Obra supervisionada por Marisa Letícia até o momento em que a existência da empreitada veio a público.
Diante disso, Lula silencia e o PT põe em marcha uma estratégia de defesa em duas frentes: uma para pedir “respeito” à história e à trajetória do comandante – isso sem o menor pudor em distribuir ofensas e acusações a torto e a direito em relação aos ditos perseguidores – vítima de “linchamento político e moral”, e outra para convidar o País a mudar de assunto. “Vamos deixar de lado o pessimismo e construir vitórias”, apela a mais recente propaganda do partido.
Esse esforço seria apenas inútil não fosse antes de tudo contraproducente. Além de não corresponder à verdade, a alusão ao linchamento não responde às questões objetivas em jogo, apenas tergiversa. A ideia de mudar de assunto equivale à confissão de que o PT não compartilha do interesse público pelo combate à corrupção.
A única maneira decente e eficaz de reduzir ou mesmo eliminar os danos tão temidos pelo partido ao seu último bastião, seria Lula se valer do monumental espaço permanentemente franqueado a ele nos meios de comunicação e rebater com lógica, moderação, franqueza, consistência e, se possível, farta documentação, cada uma das acusações desmontando, com fatos, as versões que lhe mancham a reputação.
O silêncio, ao contrário, confere ares de consentimento às suspeitas e serve como terreno fértil às alegadas difamações.
Folha de SP - 10/02
Imagine emprestar dinheiro ao governo sabendo que vai receber menos do que emprestou. Não se trata de calote, mas de taxas de juros negativas: de pagar para emprestar ao governo.
É o que ocorre em parte do mundo rico desde 2014. Desde o fim de 2015, cresce rápido o total de dinheiro emprestado a taxa negativa.
Esse parece ser um motivo maior do atual tumulto nos mercados. A perspectiva de juros ainda mais baixos rebaixa as estimativas de lucros dos bancos, já degradadas pelo risco aumentado de calote de setores como petróleo, mineração, indústria, entre outros problemas.
Vendem-se então ações de bancos, que perdem valor; compram-se mais seguros contra calotes de bancos. O resto é contágio ou salve-se quem puder, medo, pois está difícil entender tanta encrenca na economia mundial.
Há juros negativos em países da Europa desde 2014. O Banco Central Europeu pode rebaixar suas taxas, em março. No final de janeiro, o banco central do Japão passou a cobrar para receber certos depósitos dos bancos, o que acabou por derrubar também os juros de longo prazo, nesta semana.
Nos termos mais simples, o retorno de um título (de um empréstimo ao governo, no caso) é a diferença entre o que se pagou por ele (investimento inicial) e o que se vai receber, no vencimento. Essa diferença é a "taxa de juros". No caso de retorno negativo, paga-se mais pelo título do que se vai receber, no vencimento.
Por que alguém faria tal negócio? Porque as opções parecem piores. Bancos, seguradoras ou fundos de pensão não podem guardar bilhões no cofre. Bancos podem considerar que não vale a pena emprestar a clientes ou fazer outra aplicação mais rentável, mas perigosa, dado o alto risco de calote numa economia deprimida. Ou consumidores e empresas podem estar meio falidos ou avessos a dívidas. Ou pode ser que se acredite em taxas ainda mais negativas (vende-se o título antes do vencimento e ganha-se com a sua valorização, pois).
Desde a crise de 2008, BCs do mundo rico tentam baixar juros a fim de estimular empréstimos e, assim, a economia. Ou a fim de fazer com que grandes investidores mandem dinheiro para fora de seus países, à procura de retorno maior. Se o dinheiro sai, a moeda do país se desvaloriza, os produtos da indústria nacional ficam mais baratos, pode se vender mais no exterior, estimular a economia.
Como os BCs forçam a baixa de juros? Compram títulos. Quando compram, o preço dos títulos sobe, fica mais próximo do seu valor no vencimento: quanto menor a diferença, menor o retorno. Mais recentemente, os BCs passaram ainda a cobrar para receber depósitos dos bancos.
Muito banco tirou dinheiro dos BCs. Mas não emprestou nem mandou o dinheiro para fora (há medo da crise mundial, China, emergentes etc.). Comprou títulos de prazo mais longo. Quando se compram títulos, seu preço sobe, o retorno cai, repita-se. Foi o que aconteceu agora no Japão.
Apesar dos juros negativos, se faz pouco negócio na Europa e no Japão. Há deflação ou risco disso: queda de preços, em suma queda de salários, medo de mais crise. Os salários caem no Japão desde 2012. Trata-se de uma forma amena de doenças graves vistas na Grande Depressão dos anos 1930.
ESTADÃO - 10/02
O governo busca formas de atenuar o atual quadro recessivo. Para muitos, a preocupação com o ambiente político pode levar o governo a ceder ainda mais às demandas dos grupos de interesse por proteções e benefícios, bem como a buscar atalhos para estimular a retomada da atividade. Não se persegue a necessária agenda de ajuste fiscal estrutural, ainda que a discussão sobre reforma da previdência esteja de volta, mas sim de um retorno à desgastada agenda de medidas utilizadas nos últimos anos. A intenção seria flexibilizar o ajuste fiscal, já tão comprometido e frágil, aumentar o crédito direcionado (política para-fiscal) e criar novos estímulos a setores selecionados. O risco, porém, é de se comprometer ainda mais as contas públicas e, assim, a possibilidade de saída da crise e a retomada do crescimento econômico.
Do lado fiscal, algumas intenções já foram anunciadas, como a negociação da dívida de Estados, o ajuste do salário mínimo maior do que o embutido no Orçamento, o ajuste mais robusto do funcionalismo e a incorporação das gratificações no cálculo das aposentadorias no setor público. Do lado para-fiscal, o destaque fica para o uso de recursos das chamadas “pedaladas”, que foram saldadas com mecanismos que merecem maiores explicações, para concessão de crédito direcionado. Como há restrições prudenciais para aumento do crédito de bancos públicos, o governo busca meios de viabilizar o uso desses recursos.
O risco fiscal aumenta, seja pelo impacto direto nos indicadores fiscais, seja pelo risco de longo prazo associado à saúde dos bancos públicos e de fundos como o FGTS. Assim, sanciona-se o já elevado risco país, embutido nos preços de ativos brasileiros, que podem não ter atingido o teto. O risco Brasil (CDS de 5 anos próximo de 500 bps) está próximo do risco de países com desordem social e conflito, como Paquistão e Egito, e bem acima do risco de Rússia (em torno de 330 ante 600 bp há um ano), que enfrenta risco geopolítico e as consequências da queda do preço de petróleo.
Ocorre que há grande possibilidade de a política do governo se provar contraproducente, mesmo no curto prazo, em função da piora da percepção de risco, que afeta a confiança dos agentes econômicos, bem como os preços de ativos, com contágio sobre o lado real da economia.
No Brasil, é bastante difundida a crença de que a expansão fiscal sempre resulta em maior crescimento, o que tem sido particularmente difundido nos últimos anos. Tratam as políticas monetária e fiscal isoladamente, como se fossem instrumentos independentes. Não se avaliam as consequências da política fiscal sobre a inflação, a solvência da dívida e a confiança dos agentes, e portanto a sua efetiva capacidade de gerar estímulos ao setor produtivo.
Desconsidera-se a possibilidade de uma política fiscal disfuncional. Mas o fato é que o efeito do impulso fiscal sobre a demanda agregada não é algo garantido. Depende da percepção dos investidores quanto à solvência da dívida pública. Em algum momento, os investidores podem duvidar da vontade ou da capacidade do governo de honrar o serviço da dívida, obrigando-o a pagar juros mais elevados para financiar o déficit público, o que acaba drenando o investimento privado. Outra manifestação é a inflação elevada, uma forma indireta de financiamento do governo, mas que também tem efeito negativo sobre os investimentos. Em outras palavras, política fiscal se torna pouco efetiva caso resulte em desajuste macroeconômico e contração da demanda privada (investimentos e consumo). No limite, perde-se a política fiscal como instrumento anticíclico. Sua eficácia também é afetada pela dinâmica da taxa de câmbio, que tende a se valorizar em termos reais com a expansão fiscal, prejudicando o desempenho das exportações líquidas.
Vizinhos. Para que a política fiscal possa cumprir sua função anticíclica ou seu papel estabilizador é necessário que ela seja sustentável, e isso só é possível quando há confiança dos agentes quanto à dinâmica da dívida. Importante que se diga que, nos modelos keynesianos, a política fiscal deve ser anticíclica, mas não a ponto de promover o aumento insustentável da dívida como proporção do PIB. Essa lição poderia ser aprendida com os nossos vizinhos com dívida pública em torno de 30% do PIB, como Chile, Peru e Colômbia, que têm adotado política fiscal anticíclica bem sucedida.
A política fiscal pode até ser contraproducente quando produz um tal grau de instabilidade macroeconômica que o impulso fiscal acaba sendo mais do que compensado por queda dos gastos privados. Nossa suspeita é que o Brasil já pode estar nessa situação.
Seria melhor nem tentar fazer as políticas de estímulo, que poderão ser inócuas ou perversas, mesmo no curto prazo, não trazendo o desejado alívio para os próximos meses potencialmente tumultuados na política e, pior, comprometendo ainda mais o restante do mandato de Dilma.
É difícil analisar de forma ampla e precisa o efeito da política fiscal e para-fiscal na economia. São muitos instrumentos do lado das despesas e das receitas com diferentes impactos na economia, sendo que entre o anúncio e a implementação da medida pode haver reações dos agentes econômicos que afetam a eficácia da mesma. Além disso, diferentemente da política monetária, que afeta o curto prazo, a política fiscal tem efeitos distribuídos ao longo do tempo, nem sempre na mesma direção, enquanto estabilizadores automáticos do PIB (como a queda da arrecadação de impostos durante recessões) dificultam a estimação dos seus efeitos.
Efeitos do impulso fiscal. Neste artigo, apresento um modelo simplificado desenvolvido por Tatiana Pinheiro que busca estimar o efeito do impulso fiscal do governo federal sobre a demanda privada. Ficam de fora, portanto, o impulso de entes subnacionais e a política para-fiscal, por falta de dados suficientes. Trata-se de um modelo econométrico (VAR) que associada a variação da demanda privada ao impulso fiscal (superávit primário estrutural), taxa real de juros (ex-ante), taxa real efetiva de câmbio e atividade econômica global.
O modelo foi estimado para vários intervalos temporais, estendendo-se o final da amostra a cada etapa, com o intuito de observar a evolução do coeficiente que mede o poder do impulso fiscal para estimular a demanda. O período compreendido foi de 2000 a 2015 (3º trimestre).
O exercício revelou que a política fiscal afeta a demanda privada num intervalo de 3 a 6 trimestres, o que significa que o grosso da política fiscal em um determinado ano afeta a economia apenas no ano seguinte. O principal resultado é que a política fiscal perdeu a eficácia a cada ano (coeficiente em queda), com maior redução a partir de 2014, sendo nula para o período 2000-15. Os resultados indicam que a política fiscal pode ter se tornado contraproducente a partir de 2014. Assim, os excessos fiscais de 2013 e 2014 ajudam a explicar o quadro recessivo iniciado em 2014 e seriamente agravado em 2015.
Essa estimativa corrobora a avaliação do ex-ministro Joaquim Levy de que o ajuste fiscal em 2015 seria positivo para o crescimento econômico, e não contracionista como se imagina. A “arrumação” da macroeconomia seria positiva para o crescimento, em decorrência de uma trajetória de sustentabilidade da dívida pública e pela sua contribuição no combate à inflação.
A experiência de 2014 deveria ter deixado lições. Naquele ano, o governo já reconhecia a necessidade de resgatar a disciplina fiscal após anos de excessos. No entanto, a política fiscal manteve-se claramente expansionista em 2014, na contramão do rumo da política fiscal prometida pelo ministro Mantega. A promessa de um superávit primário de 1,9% do PIB se revelou em déficit de 0,6% (sem contar as “pedaladas”), o primeiro déficit desde 1997. A esperança era evitar a recessão naquele ano. Pelos resultados, não funcionou e deixou terrível herança para 2015.
Inconsistência temporal. O País se beneficiaria de um ajuste fiscal estrutural que interrompesse o aumento de gastos. Fazer rápido resgataria a reputação e o risco percebido de que as metas fiscais futuras não sejam críveis. O ajuste gradual sofre com o problema de baixa credibilidade do compromisso (inconsistência temporal, no jargão dos economistas). No entanto, fazer um rápido ajuste na atual conjuntura parece virtualmente impossível.
Neste contexto de dificuldades políticas, seria muito importante retomar a agenda de aprimoramento institucional da gestão da política fiscal para fortalecer a credibilidade da política pública e torná-la menos vulnerável a pressão de grupos de interesse. Diversos pontos importantes da Lei de Responsabilidade Fiscal ainda não foram implementados e a criatividade dos últimos anos indicam a necessidade de novas medidas.
A União Europeia, por exemplo, passou por ciclo de expansão e austeridade fiscal, e agora discute avanços institucionais para evitar a repetição de erros. Cada país membro deverá criar um conselho fiscal com mandato para funcionar como assessor independente, com produção de trabalho empírico e subsídios para a formulação da política fiscal.
A política fiscal tornou-se elemento desestabilizador da economia brasileira, comprometendo a eficácia da política econômica. Responsabilidade na política econômica requer cautela no uso de instrumentos em momentos de grave incerteza.
Enquanto isso, a polarização do debate político torna mais difícil obter consensos sobre a agenda econômica de longo prazo. Os problemas devem ser enfrentados. Já temos custos em demasia pela escolha de atalhos oportunistas e insustentáveis.
ESTADÃO - 10/02
A família Silva, antes de o apelido do chefe, Lula, ter sido adicionado à própria denominação, morou numa modesta casa de vila operária no Jardim Assunção, em São Bernardo do Campo, há 40 anos. O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, hoje intitulado do ABC, não tinha mais de dar expediente no torno mecânico, para o qual fora habilitado pelo Serviço Nacional da Indústria (Senai), e liderava greves operárias que desafiaram a legislação trabalhista da ditadura, abalando com isso as estruturas do regime tecnocrático-militar de exceção. Ele simbolizava então a nova classe operária brasileira e, assim, deu-se ao luxo de adquirir um sítio, que denominou Los Fubangos, às margens da Represa Billings, perto de casa, e atualmente está abandonado.
Agora, 40 anos depois, Luiz Inácio e Marisa Lula da Silva, que moram num apartamento dúplex em bairro nobre da mesma cidade do ABC, protagonizam um dos casos mais estapafúrdios, ridículos e bisonhos da história do sempre conflagrado direito fundiário no Brasil. A Polícia Federal (PF), o Ministério Público de São Paulo (MPSP) e o Ministério Público Federal (MPF) investigam a hipótese de o casal ter usado um tríplex no edifício Solaris, da construtora OAS, na praia das Astúrias de um balneário que já teve seus dias de glória, o Guarujá, e um luxuoso sítio na Serra da Mantiqueira, em Atibaia, no interior de São Paulo, para ocultar patrimônio, uma forma de lavar dinheiro ilícito.
A história do imóvel à beira-mar é absurda, de tão suspeita. A cooperativa dos bancários (Bancoop) fundada por Ricardo Berzoini, da casta dirigente do sindicato da categoria em São Paulo, sob a égide do amado companheiro Luís Gushiken, construiu-o e denominou-o Residencial Mar Cantábrico. Sob a presidência de outro famigerado sindicalista, João Vaccari Neto, a cooperativa é acusada há dez anos de haver ludibriado cerca de 3 mil famílias, cobrando delas penosas prestações mensais e não lhes entregando, como devia, moradias prontas para usar.
Os compradores das unidades do edifício no Guarujá não têm de que se queixar. A empreiteira OAS encarregou-se de acabar as unidades não concluídas, mudou o nome para Solaris e beneficiou graduados militantes do Partido dos Trabalhadores (PT), do qual Lula é o principal líder. Mesmo com a Bancoop sob suspeita do MPSP há dez anos, esses beneficiários da generosidade possibilitada pela má gestão de Vaccari nunca arredaram pé de seus domínios com vista para o Atlântico. Figuram entre eles Simone, mulher de Freud Godoy, que foi segurança de Lula e “aloprado” acusado de ter falsificado dossiê contra José Serra, Vaccari, sua cunhada Marice Corrêa de Lima e, suspeita-se, o casal Marisa e Lula.
Não consta da saga do torneiro mecânico que ocupou o cargo mais poderoso da República que tenha dado expediente em agência bancária na vida. Nem que Marisa tenha tido uma banca de jornal ou qualquer bem que se possa aproximar semanticamente da palavra bancário, que orna a denominação da Bancoop. O líder dos oprimidos jamais emitiu um protesto ou uma palavra de agradecimento pelo sacrifício de milhares de bancários que acusam, até hoje em vão, na Justiça, o PT, que ele lidera, de ter malbaratado a poupança deles. Sempre atento ao rabo de palha alheio, ele também nunca protestou contra o uso do dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para financiar a pilhagem de que Vaccari é acusado.
A enxurrada de explicações que tem sido dada pelo casal também passa ao largo das suspeições dos agentes da lei em torno do empreendimento. A Operação Triplo X – assim batizada em referência ao tríplex pelo qual o casal pagou originalmente R$ 47.695,38, conforme o próprio ex informou ao Imposto de Renda na declaração feita para a campanha de 2006 – investiga a hipótese de a OAS ter usado os apartamentos para lavar propinas do petrolão.
Segundo o delegado Igor de Paula, “há indícios de que alguns desses imóveis foram utilizados para repasse de recursos de propina, a partir de contratos com a Petrobrás”. A PF e o MPF buscam, então, a razão lógica, no meio dessa barafunda de versões, para a OAS ter assumido o empreendimento a ponto de seu então presidente, Léo Pinheiro, ter acompanhado o casal Lula na visita ao único tríplex do prédio, em cuja reforma a empresa investiu R$ 1 milhão e que eles não tinham comprado. Hoje os dois estão juntos e misturados com a empresa panamenha Mossack Fonseca, acusada de possuir unidades no edifício e de estar ligada a firmas abertas no exterior por réus da Lava Jato.
Já era confusão de bom tamanho para o ex, mas ele ainda terá de explicar, na condição de investigado, por que um consórcio formado por empreiteiras acusadas de roubo do erário, a OAS e a Odebrecht, e o pecuarista falido José Carlos Bumlai, que usava no Palácio do Planalto um passe livre assinado por ele, comprou para um sítio em Atibaia pertencente a dois sócios de seu filho Fábio Luiz uma cozinha chique igualzinha à que a OAS encomendou para o tal apartamento.
Mas mesmo protagonizando essa história implausível e no momento em que PF e MPF o investigam em Lava Jato, Zelotes e Solaris, Lula não perdeu a pose e disse a fiéis blogueiros que é “a alma viva mais honesta que há”. O jornalista Jorge Moreno deu no Globo ordem mais sensata à frase: “A alma honesta mais viva que há”. Faz sentido. Afinal, para continuar bancando o São Lula Romão Batista, o ex terá de convencer a Nação de que PF, MPSP, MPF, vítimas da Bancoop e o juiz Sérgio Moro advogam para o diabo contra a sua santidade.
Assim, Lula age como o recruta que se diz injustiçado pelo sargento que teima em fazê-lo marchar no passo do restante do pelotão, pois acha que só ele está no passo certo. O diabo é que ainda há na plateia da parada quem acredite que certo está ele, não juiz, federais e procuradores. Até quando terá o benefício da dúvida?
O GLOBO - 10/02
Enquanto o Brasil pulava o carnaval, o mundo se afundou no medo de uma crise bancária europeia que, por contágio, pode atingir outros países e ativos. O Deutsche Bank é só a ponta do iceberg. Ele perdeu 38% do seu valor desde o começo do ano e divulgou um balanço com € 7 bilhões de perda. Mas outros bancos, alemães, franceses, suíços e, claro, gregos despencaram na bolsa em dois dias de mercado fechado por aqui.
Esse temor deve se refletir na Bovespa logo na abertura. A interligação dos mercados é total nestes tempos globalizados. Tanto é assim que a Petrobras em dois dias perdeu 10% na Bolsa de Nova York. O Japão, que na segunda- feira havia subido um pouco, contrariando a tendência geral, ontem despencou 5%. Como é típico desses momentos, há fatos e declarações que revertem o movimento para em seguida os ativos voltarem a se comportar como todos os outros. Algumas bolsas que ficaram fechadas pelo Ano Novo Lunar devem hoje refletir o movimento de ontem.
Essa onda de medo em relação aos bancos é derivada direta da queda dos preços do petróleo. As instituições financeiras estão muito expostas a ativos ligados à commodity, sejam papéis, sejam empresas, e a queda dos preços foi mais intensa do que o previsto pela maioria dos analistas. E como sempre acontece nestes momentos, quem está mais frágil sente mais. Os bancos gregos tiveram quedas de 24% esta semana. Várias instituições divulgaram balanços com prejuízos. Até sexta devem sair outros demonstrativos.
O dominó é assim: a China cresce menos e por isso os preços das commodities caem, entre eles, o petróleo e isso afeta os papéis lastreados em petróleo e as empresas de energia. A sequência de eventos fragiliza os bancos que têm esses ativos em carteira. Há analistas achando que tudo isso é exagero, mas a economia mundial está com os nervos à flor da pele. O Brasil fechado para balanço para curtir o carnaval e cercado por riscos, como o Aedes aegypti e suas pragas, não viu o quanto a tensão aumentou nas últimas 48 horas.
O mercado financeiro nos últimos anos sempre puniu os países mais atingidos por crises e dúvidas elevando o CDS, o Credit Default Swap, ou seja, o custo do seguro contra o país em questão. Isso nem sempre tem a ver com a realidade. Quem tem o título de país cujo CDS sobe tem, na prática, que pagar mais caro para se proteger do risco desse país. O CDS do Brasil nos últimos tempos ficou acima do da Argentina. Em outras palavras, quem quiser comprar seguro para se proteger do risco Brasil paga mais caro do que para se proteger do risco argentino. O que é uma insensatez já que o Brasil tem US$ 370 bilhões de reserva e déficit externo em declínio, e a Argentina não tem reservas e tenta negociar uma dívida à qual deu calote. Ontem o que disparava era o custo de se proteger do risco dos bancos, principalmente os europeus. O CDS dessas instituições subiu fortemente.
Com a segunda queda consecutiva no valor das ações do Deutsche Bank, o ministro alemão Wolfgang Schäuble teve que vir a público, na terça- feira, para dizer que não estava preocupado com o banco. Curioso é que Schäuble sempre foi o carrasco dos países encrencados da Europa e ontem era ele que tinha que tentar infundir confiança no maior banco de seu país. As ações caíram 4% depois da queda de 9,5% da segunda-feira. Outros bancos europeus tiveram desvalorizações maiores na terça- feira. O Credit Suisse caiu 8%. No caso do Deutsche, o principal executivo da instituição, John Cryan, declarou ontem pelo segundo dia consecutivo que o banco está sólido.
Pelo sim, pelo não, no final do dia o Deutsche anunciou que fará um plano emergencial de recompra de bonds que lançou e que têm perdido valor no mercado. O programa de recompra pode chegar a € 50 bilhões, mas não vai atingir os papéis que mais caíram nos últimos dias, os "Contingent Convertible bonds", também conhecidos como "CoCo bonds".
Esse clima de crise está reduzindo ainda mais os juros das economias desenvolvidas e ontem o Japão passou a pagar taxas negativas em seus papéis de 10 anos. O movimento é para estimular a atividade. Neste ambiente global negativo, o Brasil abrirá os bancos e a bolsa nesta quarta- feira de cinzas.
O GLOBO - 10/02
No domingo de Carnaval, os repórteres Vera Rosa e Ricardo Galhardo revelaram que, durante uma reunião com Lula, dirigentes do PT sugeriram a criação de uma rede de apoio a Nosso Guia com o slogan "Somos Todos Lula". Seria algo como o famoso "Je suis Charlie", criado depois do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Seria, mas jamais será.
Puxando-se pela memória, a ideia ecoa uma proposta feita em 1978 pela imperatriz Farah Diba, do Irã. Seu país estava conflagrado, com milhões de pessoas na ruas pedindo o fim da monarquia mequetrefe de seu marido, o xá Reza Pahlevi. Farah vivera em Paris e lembrou que, em 1968, quando os estudantes franceses pediam a renúncia do presidente Charles De Gaulle, o velho general convocou seus partidários para uma marcha pela avenida Champs Élysées. Um ministro interrompeu-a:
— Talvez consigamos fazer uma marcha como a de De Gaulle, mas só em Paris.
Era lá que estavam os iranianos endinheirados que haviam fugido do país e também lá passava a maior parte do tempo a princesa Ashraf, irmã gêmea de Reza. Semanas depois de propor a marcha, Farah e o marido saíram às pressas de Teerã. Ela não teve tempo para limpar direito sua escrivaninha.
"Somos todos Lula", quem, cara pálida? Nosso Guia queixa-se de que ninguém o defende. Nem ele, pois até agora não deu uma só explicação para seus confortos.
Some-se a isso que jamais defendeu o comissário José Dirceu. Talvez não achasse argumentos para fazê-lo.
A vida deu a Lula um sentimento de onipotência que em certos momentos soa irracional, mas é sempre compreensível. Ele e sua mulher, Marisa, saíram daquele Brasil que tem tudo para dar errado. O retirante pernambucano cresceu na pobreza de uma família desestruturada. Sua primeira mulher, grávida, morreu num hospital público. Marisa, seu segundo matrimônio, fora casada com um taxista assassinado, cujo carro passou a ser dirigido pelo pai, também assassinado.
Como dirigente sindical, Lula comandou duas greves históricas que projetaram-no nacionalmente. Ambas resultaram em perdas financeiras para os grevistas, mas isso tornou-se uma irrelevância. Candidatou-se ao governo de São Paulo em 1982 e ficou em terceiro lugar, com 1,1 milhão de votos contra 5,2 milhões de Franco Montoro. Disputou quatro vezes a Presidência da República e perdeu duas eleições no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso.
Metamorfose ambulante, superou todas as adversidades. Elegeu-se, reelegeu-se, colocou um poste na sua cadeira e ajudou a permanência de Dilma Rousseff no Planalto, dando ao PT um predomínio inédito na história do país. Conta a lenda que um áulico atribuiu-lhe a cura de um câncer de um colaborador.
Lula acredita na própria invulnerabilidade. Para quem se reelegeu depois do escândalo do mensalão, tem boas razões para isso. A ideia de multidões vestindo camisetas com a inscrição "Somos todos Lula" reflete o modo de fazer política de um comissariado intelectual e politicamente exausto. Noves fora a piada de que esse poderia ser o uniforme da bancada de Curitiba, marquetagens desse tipo exauriram-se.
É impossível especular como ele sairá das encrencas em que se meteu, mas uma coisa é certa: seus maiores aliados, como sempre, são os seus adversários.
Folha de SP - 10/02
À folia do Carnaval se segue a Quaresma, período de penitência que se inicia hoje, na Quarta-feira de Cinzas. À folia da Nova Matriz Macroeconômica se segue o que promete ser a pior recessão brasileira desde que passamos a compilar os dados de produção nacional, há quase 70 anos.
Após queda do PIB da ordem de 3,5% a 4,0% no ano passado, as projeções indicam nova contração de magnitude semelhante em 2016, sem perspectivas, porém, de uma recuperação rápida como em outros episódios.
A presidente pode ter a duvidosa honra de ser o primeiro dirigente do país a entregá-lo ao sucessor menor do que era quando assumiu o governo.
É tentador estender a analogia, ainda que isto requeira trazer a análise mais próxima do campo moral do que economistas normalmente se sentem confortáveis. A crise é punição pelos nossos pecados e a penitência uma condição necessária para a retomada à frente?
Muito embora não tenha grande apreço pela noção de "pecado", é difícil escapar da conclusão óbvia: muito (não tudo) do que enfrentamos hoje é consequência direta das escolhas equivocadas da política econômica que passou a vigorar no país a partir de 2009 e que ganhou mais força desde 2011.
Pelo lado macro, o descaso com a inflação, o aumento sem precedentes do gasto e as intervenções constantes no mercado de câmbio criaram enormes desequilíbrios: inflação elevada, apesar de controles de preços (preço do dólar incluso), dívida pública crescente e um deficit superior a US$ 100 bilhões nas contas externas. Ainda que keynesianos de quermesse insistam que tal política poderia (e deveria!) ser mantida, é mais que
claro que a persistência nessa rota nos levaria a uma crise ainda maior do que a que passamos hoje.
Do lado micro o desastre não foi menor. A intervenção desregrada -desde medidas de fechamento do país à competição internacional até a escolha de "campeões nacionais" baseada em critérios nebulosos, para dizer o mínimo- implicou redução severa do ritmo de crescimento da produtividade, a devastação de alguns setores importantes (como o sucroalcooleiro, petróleo e energia), e criou um forte estímulo à busca de favores governamentais, fenômeno extraordinariamente batizado de "sociedade de meia-entrada", cujos impactos sobre o crescimento são notoriamente negativos.
Nesse sentido, sim, colhemos o que foi plantado com esmero pelos keynesianos de quermesse, ainda que hoje em dia estes olhem para o lado como se nada tivessem a ver com a política que tanto apoiaram, inclusive durante a eleição de 2014. Se quiserem tirar conclusões morais, sintam-se à vontade.
Isto dito, não há por que imaginar que a penitência (a recessão) haverá de promover necessariamente a redenção.
Não se trata aqui de um problema de "destruição criativa", ou das dificuldades naturais que enfrenta uma economia em processo de adaptação às mudanças internacionais, mas sim de um país cujo futuro foi hipotecado na forma de promessas impagáveis, das regras previdenciárias aos privilégios de grupos próximos ao poder.
Sem reformas que ataquem esses problemas, a Quaresma há de se estender bem mais do que hoje se imagina. Mais que penitência, precisamos de lideranças que estejam dispostas a mudar o país, senão vai tudo se acabar na quarta-feira.
PUGGINA.ORG
A lista dos que chegaram a Brasília de ônibus e passaram aos jatinhos tem o tamanho do cordão dos puxa-sacos. Quem ainda é pobre nesse governo?
O PT seguiu, mais no instinto do que no texto, o script dos países comunistas, cujos dirigentes ocupavam os pavimentos privilegiados de um curioso edifício social em que os indigentes subsolos eram para o povão e as coberturas para a elite. Postão para a turba, Sírio Libanês para a nomenklatura. É isso que torna as revoluções sociais e o comunismo tão atraentes a certos indivíduos. Ninguém - ninguém mesmo! - milita em revolução para continuar trabalhando no chão da fábrica, se me faço entender. No mínimo, o sujeito mira a cadeira do diretor. Nesse esquema, não é o proletariado que sobe. O proletariado serve apenas para catapultar os revolucionários e sua visão generosa de mundo às cobiçadas coberturas, não é assim Lula?
Aliás, quando nosso ex-presidente diz que não tem pecado e risca o chão ao lado dos homens mais virtuosos do Brasil, está expressando o que, de fato, pensa de si mesmo. Os critérios morais segundo os quais nós o julgamos nada significam para quem se olha no espelho com incomparável orgulho do que conseguiu ser. Daí a angustiante inconformidade ante as nuvens carregadas que descem sobre seu destino. Lula sempre se sentiu credor do direito de ser patrocinado. Desde que engavetou sua Carteira do Trabalho, sempre houve alguém que lhe pagasse as contas, fosse como líder sindical, dirigente político, congressista, presidente do partido, presidente ou ex-presidente da República.
Hoje, enquanto um frio lhe corre pela espinha a cada imagem do japonês da Federal, ele deve estar lembrando de outro japonês do PT, amigo das horas certas e incertas, o compadre Okamoto, que passou parte da vida cuidando de suas despesas.
Esse hábito de não responder pelos próprios gastos deforma o caráter. Dispensa um treinamento pelo qual quase todos passamos, a partir da primeira mesada que nos toca administrar. Lula, se um dia aprendeu, a marcha para o poder o levou a desaprender. Há muitos anos instalou-se, para ficar, na rubrica dos custos de manutenção do PT.
Diante desse perfil psicológico, se entende o esforço do Instituto Lula, seus advogados e porta-vozes do petismo em afirmar que o triplex de Guarujá e o sítio de Atibaia não estão registrados em nome de Lula. E daí? Sob o ponto de vista moral, sob uma lanterna como a de Diógenes, pouca diferença há entre ser dono dos frutos ou dos usufrutos. Ser proprietário dos bens ou deles se servir como se fossem seus. Principalmente quando favores de tais proporções provêm de empresas que mantêm negócios vultosos e criminosos com o governo de seu partido. Recusar insolentemente a gravidade disso dá causa a muitos dos escândalos que chegam ao conhecimento público.
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O QUE PODERIA SER mais fácil para o ex-presidente Lula do que explicar ao público e às autoridades da Justiça Penal brasileira, acima e além de qualquer dúvida, as histórias desse apartamento triplex no Guarujá e desse sítio em Atibaia, ambos em São Paulo, que tantas dores de cabeça lhe têm dado? Se não há nada de errado com os dois negócios, ou pelo menos nada que possa ser descrito como francamente ilegal, bastariam quinze minutos para deixar tudo muito bem justificado. Qual o problema? Não se trata de álgebra avançada. São casos bem simples, que qualquer cidadão pode entender perfeitamente, sem nenhuma necessidade de chamar advogado ou ficar nervoso. Ou os imóveis são dele, ou não são; ou foram reformados com seu próprio dinheiro, ou alguém pagou o serviço em seu lugar. De um jeito ou do outro, tudo pode estar correto. Lula tem recursos de origem boa para comprar e reformar propriedades; também tem o direito de usar propriedades pertencentes a outras pessoas e beneficiar-se de melhorias que os proprietários fizeram nelas. Houve a ajuda de empreiteiras de obras públicas num e noutro caso, mas e daí? Elas já lhe pagaram 27 milhões de reais entre 2011 e 2014 para fazer palestras, e Lula diz que se orgulha disso. Então: é só dizer direitinho, afinal, o que está acontecendo. Nada mais simples para um homem que acaba de jurar que não existe nenhuma "alma viva" mais honesta do que ele entre os 200 milhões de habitantes deste país.
Mas Lula não diz nem uma palavra sobre os fatos. Se está assim tão convencido de que tudo é mentira, por que não disse nada até agora? Só começou a falar porque será oficialmente investigado — e quando falou foi para vir com esse prodigioso despropósito sobre a honestidade das almas brasileiras, uma das declarações mais infelizes que já fez em seus trinta e tantos anos de vida política. Logo numa hora dessas? É estranho: Lula parece estar perdendo contato com os talentos políticos que lhe são atribuídos. Onde andaria hoje a sua tão celebrada maestria como tático? Vai saber. O fato é que, insistindo o tempo todo na recusa a dar qualquer explicação sobre qualquer coisa que faz, Lula constrói sobre sua própria cabeça, por conta própria e sem a ajuda de ninguém, uma nuvem de suspeitas que parece o cogumelo atômico de Hiroshima. Só consegue se defender atacando os outros — "a mídia", como sempre, ou "a oposição", que foi incapaz de dizer uma única sílaba sobre essa história até agora. É um esforço inútil. Ninguém vai acreditar que foi a imprensa que construiu o Edifício Solaris ou reconstruiu o sítio de Atibaia. Lula só faz um número cada vez maior de gente perguntar: "Mas o que ele está escondendo?". Se não tem nada a esconder, é um péssimo negócio.
É verdade que, pensando um pouco melhor, seriam necessários outros quinze minutos para explicar como um dos seus filhos conseguiu vender em 2005 à empreiteira Andrade Gutierrez, por 5 milhões de reais, parte das ações de uma empresa de games que nunca foi a lugar nenhum. Desde o primeiro minuto, essa história, que jazia havia onze anos no arquivo morto e agora sai da tumba, pareceu esquisitíssima. A troco de que a segunda maior empreiteira do Brasil iria dar esse monte de dinheiro ao primeiro-filho para se tornar sócia minoritária de um fracasso? Lula, na ocasião, disse que o rapaz era "o Ronaldinho dos negócios", e que a Andrade Gutierrez estava fazendo uma compra espetacular — o que talvez tenha feito mesmo, quando se considera que acabou beneficiada depois com uma mudança de lei decretada pelo presidente. A explicação era quase um deboche, mas fazer o quê? Aqueles eram tempos dourados para a impunidade da classe AAA-plus. Mais um bloco de quinze minutos precisaria ser dedicado aos empréstimos do primeiro-amigo José Carlos Bumlai, hoje residente no xadrez da Polícia Federal de Curitiba, outro teria de esclarecer o pagamento de 2,5 milhões de reais feito ao segundo-filho por uma empresa de lobby, e por aí se vai. Mas, por maior que seja a soma final de tempo requerida para as explicações, sempre é melhor do que ficar fazendo cara de bravo e deixar que cresça à sua volta um monumento à desconfiança.
O que há de definitivamente certo nisso tudo é, em primeiro lugar, uma intimidade extraordinária entre o ex-presidente e grandes empreiteiras — todas elas metidas até o fundo da alma com a corrupção, como comprovado pelas confissões e condenações da Operação Lava-Jato. Em segundo lugar, é a evidência de que Lula não se conforma, de jeito nenhum, em ser um brasileiro como os demais.
Folha de SP - 10/02
Outro dia, um cartola do PT declarou que Lula "mora no coração do povo brasileiro". Na condição de brasileiro em dia com as obrigações e portador de um coração de dimensões regulares, vi-me tecnicamente apto a hospedar o ex-presidente. Gelei. A ideia de ter meganhas entrando e saindo do meu coração, vasculhando cômodos, armários e debaixo das camas para proteger o chefe, me apavorou.
Além disso, Lula é um hóspede folgado. Apossa-se dos apartamentos e sítios a que o convidam como se fossem dele. Promove reformas como derrubar paredes, mudar escadas de lugar e instalar elevadores internos, vide o famoso tríplex que não lhe pertence no Guarujá -imagine se pertencesse. Com seu à vontade em relação à propriedade alheia, temo que, uma vez hospedado no meu coração, logo iria querer alterar o curso de minhas veias e artérias, como tentou fazer com o rio São Francisco.
E acho que meu coração não comportaria a turma que anda com ele. Lula começaria a receber seus amigos empreiteiros, pecuaristas e doleiros, os quais iriam se meter por meus átrios e ventrículos, e sabe-se lá para onde meu sangue passaria a ser bombeado. Sem falar em sua mulher, dona Marisa -com suas prerrogativas de ex-primeira-dama, mandaria trocar meus velhos fogões por luxuosos micro-ondas e atracaria uma canoa em meu sistema vascular.
Mas isso não acontecerá. Consultei o cardiologista e ele foi taxativo ao se opor a que eu receba Lula em meu coração, mesmo que por poucos dias. Como médico, teve péssima impressão do desempenho de Lula no setor da saúde enquanto presidente. E citou o meu próprio caso.
Nos últimos anos, por certas atribulações cardíacas, quase fui duas vezes para o beleléu. Do qual só me salvei tomando dinheiro emprestado aqui e ali, por ter um plano de quinta e não poder contar com um sistema decente de saúde pública.