terça-feira, fevereiro 16, 2016

Mulheres e cachorros - JOÃO PEREIRA COUTINHO

Folha de SP - 16/02

Dúvidas sobre o casamento, todos temos. Mas Charles Darwin enfrentou o dilema com o racionalismo característico do século 19. Em 1838, perante o dilema de casar ou não casar com a prima Emma Wedgwood, o eminente cientista resolveu fazer uma lista com os prós e contras do matrimônio.

Conhecia a história, mas confesso que nunca tinha lido a lista com atenção. Um jornal inglês, no aniversário do nascimento de Darwin (12 de fevereiro) e antes do dia de São Valentim, publicou essa preciosidade.

Então encontramos duas colunas, nas quais razões para não casar suplantam incentivos para dar o nó.

Entre as primeiras, Darwin elenca o fim da liberdade para ir onde quiser; a necessidade de socializar com os parentes da mulher; a diminuição do dinheiro disponível para livros (e do tempo correspondente para lê-los); e a hipótese de haver discussões conjugais que são sempre uma perda de tempo (grande verdade, Charles).

Nas razões para casar, Darwin é mais lacônico: é bom ter companhia (sobretudo na velhice); é bom ter alguém para tomar conta da casa; e, bem vistas as coisas, "uma mulher sempre é melhor que um cachorro".

Apesar da escassez de motivos, Darwin acabou por casar. Podemos fazer listas e listas e listas. Mas o amor que sentimos por uma mulher acaba com qualquer lista.

Passaram quase dois séculos. E esse amor que Darwin sentia por Emma -visível nos seus escritos mais pessoais- talvez não se ajuste aos tempos modernos. Hoje, as manifestações de afeto do sexo masculino podem ser formas sutis de degradação do feminino. Estranho?

Longe disso. Ainda sobre o dia de São Valentim, a jornalista Jessica Abrahams escreveu na revista "Prospect" um ataque a esse dia apaixonado.

Para Abrahams, a data de São Valentim só expressa o "sexismo benevolente" que os homens ainda cultivam em relação às mulheres. Esse "sexismo", apesar de "benevolente", é apenas outra forma de subjugar o sexo feminino, atribuindo às mulheres um papel "démodé" e francamente inferior.

Oferecer flores, chocolates ou simplesmente "fazer a corte" é reduzir a mulher a um sujeito passivo e, quem sabe, sexualmente disponível. Exatamente como ocorre quando um cavalheiro abre a porta a uma dama ou paga a conta do jantar.

As palavras de Abrahams são corajosas e certeiras. Experiência pessoal. Durante anos, perdido em clichês conservadores, também eu abria portas a senhoras ou torrava o cartão de crédito em refeições elaboradas. Mas um dia, em Lisboa, um exemplar da espécie rosnou qualquer coisa contra o meu "sexismo benevolente".

Acordei do meu sono embestado e, sem exagero, renasci para a masculinidade. Para começar, os jantares eram pagos rigorosamente a meias -bebida a bebida, azeitona a azeitona-, e a poupança permitiu-me investir o pecúlio em livros, viagens e farras privadas.

E, em matéria de portas abertas, devo ter quebrado várias dentaduras a senhoras emancipadas. No início, ainda pensei em avisar: "Cuidado com a porta, madame!". Mas isso seria mais um gesto de "sexismo benevolente", especialmente quando a libertação das mulheres permite que elas paguem do próprio bolso uma reconstituição dentária.

Claro que, na relação entre sexos, ainda conservei por uns tempos noções arcaicas de afeto e galanteio. Flores, chocolates, mensagens privadas. Agora, graças a Jessica Abrahams, compreendo que reduzi as mulheres a um papel submisso e indigno. Mil perdões a todas elas.

E mil avisos a todos eles: rapazes, não sejam selvagens. Tratar uma mulher como mulher é, segundo Jessica Abrahams, agir de acordo com "pressupostos baseados em papéis de gênero". Melhor não agir. Melhor não ter pressupostos. Se isso significar uma separação permanente entre eles e elas, paciência: melhor a extinção da espécie do que o "sexismo benevolente".

E para quem pensa no casamento, nada melhor que reler a lista de Darwin e riscar os argumentos a favor do "sim". Até porque Darwin estava errado. "Uma mulher sempre é melhor que um cachorro?"

Isso é sexismo benevolente. Porque há mulheres e mulheres. E há cachorros e cachorros.


A velha revolução jovem - KIM KATAGUIRI

Folha de SP - 16/02

Vez ou outra, um esquerdista, geralmente mais velho do que eu, pergunta-me algo assim: "Como você pode ser tão jovem e defender ideias tão retrógradas?".

Ou: "Que mudança você quer ao defender as instituições? Por que não uma revolução?". Ou ainda: "Que rebeldia é essa que propõe 'o império da lei'?".

É fato que a juventude costuma ser protagonista de mudanças relevantes ao se rebelar contra os pais, contra o sistema, contra os costumes... É estranho ouvir um jovem falar em "fortalecimento das instituições" ou "império da lei"? Soa conformista? Para definir o que é conformismo ou a defesa do status quo, primeiro precisamos entender a forma que o establishment assumiu no Brasil.

Há mais de 13 anos, somos governados por um partido que não respeita as instituições. A natureza do mensalão e do petrolão mostra que, para o PT, a corrupção é uma norma e uma forma de governo. Grandes obras ou mudanças legais não foram levadas a efeito em razão de um bom diálogo com o Congresso ou de uma relação republicana com a iniciativa privada. Tanto a engrenagem da aprovação de leis como a da construção de obras foram lubrificadas pela propina.

Os sindicatos e os "movimentos sociais", como a CUT, o MST e o MTST, dizem criticar o governo, mas tudo o que fazem é falar mal do "ajuste fiscal", que, na prática, nem o PT defende. Nas ruas, adotam a narrativa oficial. Utilizam manifestações "em favor da democracia" para defender Dilma Rousseff e espernear contra uma tal "oposição golpista".

A União Nacional do Estudantes, aquela entidade que, ao lado da CBF, é adepta de eleições indiretas, vive fazendo manifestos em favor de "mais verbas para a educação". O governo Dilma cortou R$ 10,5 bilhões do orçamento da área em 2015, o correspondente a 10%. Essa falsa rebeldia da UNE em defesa do poder não é assim tão incondicional: desde 2006, a entidade já recebeu mais de R$ 55 milhões dos governos petistas. Na economia de mercado, que eu defendo, não existe almoço grátis. No socialismo da UNE, só a dignidade tem preço.

O Movimento Passe Livre (MPL), que, como já escrevi nesta coluna, organiza protestos que apelam a práticas terroristas, preserva de forma sistemática o governo federal, maior responsável pelo reajuste das passagens. Suas manifestações são chamadas pela presidente Dilma Rousseff –a mesma que considera "golpismo" os protestos em favor do impeachment– de "questões da democracia". Em que democracia o terrorismo e o quebra-quebra são liberados?

Corrupção institucionalizada, Congresso comprado, empresários vendidos, movimentos sociais que são instrumentos de um partido, sindicatos cooptados que fornecem quadros para a gestão do Estado, atentados contra a tripartição do Poder, terrorismo tratado como questão democrática e "estudantes rebeldes" que protestam a favor... Não será este o rosto cuspido e escarrado do pior establishment?

Não há nada de retrógrado em defender o fortalecimento da República e o empoderamento da sociedade. Nosso país já experimentou ditaduras e democracias populistas e nacional-desenvolvimentistas. Hoje, estamos submetidos à cleptocracia petista. Os valores republicanos já foram violados pelos tanques e pelas canetas. Chegou a hora de defendermos o fortalecimento das instituições e o aumento do poder da sociedade diante do Estado.

Na verdade, já passou da hora de nos rebelarmos contra esse establishment. Não é preciso ser jovem para isso. É preciso ter uma dignidade que não se vende nem se compra.

Num país em que a esculhambação é a regra, defender as instituições e o império da lei é que é revolucionário.


Na rota do Atlântico - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 16/02

Em ofensiva com Suíça e França, Portugal prende diretor e devassa negócios suspeitos da brasileira Asperbras com a cleptocracia do Congo, país cuja dívida Dilma perdoou



Quinta-feira passada houve um pequeno alvoroço na sede do Banco Carregosa, na cidade do Porto (Portugal), quando policiais exibiram um mandado de busca. A casa bancária mais antiga da Península Ibérica entrou no mapa das investigações de corrupção e lavagem de dinheiro conduzidas de forma coordenada em Portugal, Suíça e França.

No alvo está o português Antonio José da Silva Veiga, diretor da Asperbras, empresa paulista percebida na Europa e na África como um dos braços financeiros da cleptocracia comandada por Denis Sassou Nguesso, que há 47 anos domina o poder na República do Congo. Veiga foi preso na semana do carnaval, em Lisboa, junto com o sócio Paulo Santana Lopes, horas depois de oferecer 11 milhões de euros (R$ 48,9 milhões) pelo controle do Banco Internacional de Cabo Verde, espólio do falido Grupo Espírito Santo.

O diretor da empresa brasileira não declara bens em Portugal, onde enfrenta atribulações fiscais desde a época em que intermediava contratos de jogadores de futebol como Luis Figo e Jardel, entre outros. No entanto, foram apreendidos oito milhões de euros (R$ 35,5 milhões) em espécie, mais quatro Porsches, Mercedes e um Bentley, além de congelados saldos bancários de dez milhões de euros (R$ 44,4 milhões).

Veiga atuava como agente plenipotenciário de José Roberto e Francisco Carlos Jorge Colnaghi, de Penápolis (SP) — sócios mais visíveis do grupo Asperbras. Sua intimidade com o clã Nguesso, em especial com Claudia, filha do ditador, assegurou aos Colnaghi um bilhão de dólares (R$ 4 bilhões) em contratos públicos no Congo. A devassa interrompeu novos projetos, para uma rede bancária e hospitalar.

A Asperbras foi grande beneficiária do perdão concedido dois anos atrás por Dilma Rousseff para uma dívida de US$ 280 milhões que o Congo mantinha com o Brasil. Nessa anistia, chancelada em tempo recorde e sem debate no Senado, ficou perceptível a influência de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma. Palocci tem relações fluidas com os Colnaghi. Chefe das campanhas de Lula (2002) e Dilma (2010), Palocci era usuário dos aviões da Asperbras. Um dos Colnaghi, José Roberto, foi personagem do inquérito do mensalão sobre pagamentos realizados (via Angola) ao publicitário Duda Mendonça, na campanha de Lula em 2002. Ano passado, em outra investigação, a Justiça identificou remessas da Asperbras, no Congo, para a agência Pepper, que atende ao PT desde a campanha de Dilma em 2010.

Alto risco é um derivativo natural dos laços com a cleptocracia Nguesso, hegemônica no país produtor de petróleo e de diamantes sem origem certificada — “de sangue", moeda corrente na lavagem de lucros do tráfico.

No poder, os Nguesso construíram uma das maiores fortunas da África. Suas propriedades incluem 66 imóveis de luxo no eixo Paris-Provence-Riviera, segundo o Tribunal de Paris. A família cultua ostentação: Antoinette, primeira-dama, gastou um milhão de euros na celebração dos seus 70 anos em Saint-Tropez. Carla Bruni Sarkozy foi o destaque.

A ação europeia que levou à prisão do diretor do grupo brasileiro Asperbras, sob suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro, desenvolve-se sob um sugestivo codinome policial: “Rota do Atlântico”.

Depois do carnaval - RODRIGO CONSTANTINO

O GLOBO - 16/02

Uma quadrilha tomou de assalto o Estado enquanto o gigante dormia — ou caía no samba



Muita gente ficou espantada com o Brasil: mesmo em meio à maior recessão de nossa história, mergulhados no caos social e vendo a zika proliferar, os foliões tomaram as ruas para sambar como se não houvesse amanhã. A revista “The Economist” chegou a traçar um paralelo com alguém que festeja diante de um precipício.

Confesso ao leitor: também fico surpreso. Alguns tentaram justificar a farra com base no argumento de que é uma fuga necessária da dura realidade, uma forma à brasileira de protestar, zombar do trágico destino. A mim parecem racionalizações de um povo que gosta mesmo é de festa.

Um americano que viveu no país nos últimos quatro anos escreveu uma carta aberta que teve grande repercussão. Nela, ele culpa o brasileiro por nossos problemas, nossa cultura, nosso “jeitinho”, essa mania de não levar nada a sério. Claro que gerou revolta, pois poucos gostam de críticas, ainda mais de um gringo. Mas ele está errado?

Leandro Narloch chegou a escrever um texto inocentando o brasileiro e culpando nossas instituições. Sim, os incentivos importam, e nossas instituições são mesmo terríveis, concentram muito poder no Estado e na burocracia. Mas por acaso elas surgiram do além, num vácuo de valores, impostas por alienígenas? Nossas instituições “avançam” de acordo com a cultura predominante no povo. Ou seja, a cultura importa, e muito.

É essa cultura da malandragem, por exemplo, que explica um “herói” como Macunaíma, que acaba retratando uma realidade: o sujeito que só quer se dar bem e passa por cima de tudo e todos não é alvo das mais profundas revoltas, e sim compreendido ou mesmo enaltecido por muitos. Vide Lula, o amoral, o milionário do tríplex de frente para a praia e do sítio nababesco. O “pai do Brasil”.

As colunas de Guilherme Fiuza têm retratado com perfeição a cegueira, a negligência, a falta de foco e de prioridade de boa parte da população brasileira que simplesmente tem permitido a “marcha dos oprimidos”. Uma quadrilha tomou de assalto o Estado enquanto o gigante dormia — ou caía no samba. Não é apenas ignorância; é um problema cultural, de postura, de passividade.

Dito isso, o mal em si não está na semana do carnaval. É como se diz para quem reclama que as festas de fim de ano engordam muito: o problema não é o que se come entre o Natal e o Réveillon, e sim entre o réveillon e o Natal. Da mesma forma, o problema não está na semana de fuga da realidade, e sim nas outras 51 semanas do ano. É o que fazemos nesse período que determina nosso destino.

O brasileiro, portanto, ainda tem como se redimir, como provar que a revista britânica e o gringo se precipitaram, que não vai ficar apenas observando de camarote ou sambando enquanto a quadrilha destrói o que sobrou do nosso país. É verdade que o povo já dormiu demais, que deixou a situação chegar a esse patamar assustador. Mas ainda dá tempo de evitar o pior, de impedir um final tenebroso como o da Venezuela.

Mas isso depende totalmente de cada um de nós, dos brasileiros que, juntos, compõem o que se chama “povo”. Acreditar que “alguém” fará isso por nós, virá nos salvar, isso é ingenuidade. O próprio juiz Sérgio Moro, que tem sido alvo de ataques pérfidos dos corruptos que temem a Justiça, já disse que para prender os figurões políticos poderosos será fundamental a ajuda da opinião pública e da sociedade civil organizada. Uma andorinha só não faz verão.

O PT enganou muita gente por tempo demais, mas a ficha caiu para a imensa maioria. O discurso de “justiça social” e de defesa dos mais pobres era somente um instrumento de chegada ao poder, como costuma acontecer com toda esquerda populista. Uma vez lá, os “companheiros” enriqueceram, os amigos empreiteiros e banqueiros ganharam rios de dinheiro, e o povo pagou o pato, com uma inflação galopante e fora de controle, desemprego em alta e atividade econômica despencando.

Isso precisa parar com urgência, antes que seja tarde demais. E só há uma forma de reverter o curso: tirar o PT do poder, o grande responsável por essa desgraça toda. Alguns já estão fazendo sua parte, tentando mobilizar os indivíduos, mesmo sem os recursos que os “movimentos sociais” ligados ao governo possuem. São movimentos sociais espontâneos, que não contam com “pixulecos” ou “mortadelas” para atrair gente. Só com o patriotismo mesmo.

No dia 13 de março eles esperam todos vocês nas ruas, para mostrar aos safados no poder que não seremos a próxima Venezuela. O que vale é agora, depois do carnaval. Você vai continuar sambando ou vai tentar salvar o Brasil?

Rodrigo Constantino é economista e presidente do Instituto Liberal

Leniência com a corrupção - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 16/02

A Medida Provisória (MP) 703 foi um duro golpe contra todos os brasileiros que anseiam pela diminuição da impunidade. Com o ato presidencial, abriu-se uma ampla porta para deixar impune a corrupção de empresas. E com a revelação da versão inicial do texto da MP – muito diferente do texto mandado publicar pela presidente Dilma Rousseff –, evidencia-se mais uma vez a precisa intenção do governo de não punir as empreiteiras.

Conforme reportagem do jornal O Globo, a versão inicial da MP 703 propunha que a reparação integral do dano fosse condição necessária para a celebração do acordo de leniência. Essa parte simplesmente desapareceu do texto assinado por Dilma. Também sumiu a possibilidade de afastamento por até cinco anos dos administradores das empresas.

Parece que a presidente entendeu que tudo isso era exigir demais das empreiteiras amigas, que nutrem tanta afeição pelo PT e pelo ex-presidente Lula. Diante da disparidade entre a versão inicial e o texto final, fica claro que o autor da proposta original não havia entendido a intenção presidencial. E foi preciso mudar o conteúdo.

Dilma Rousseff não assinaria nada que pudesse constranger as empresas que há tantos anos caminham de braços dados com o PT e seu projeto de poder. A presidente queria uma medida provisória que não deixasse margem para qualquer dúvida – os acordos de leniência deveriam ser um caminho seguro e nada custoso para as empresas se livrarem de complicações jurídicas decorrentes de denúncias de corrupção. Era preciso um texto no qual a impunidade ficasse firmemente assegurada, sem possibilidade de interpretações “equivocadas” por parte do Ministério Público, do Tribunal de Contas da União ou do Poder Judiciário.

E assim foi feito. Excluiu-se o que poderia constranger as empresas amigas e a presidente Dilma Rousseff pôde assinar uma medida provisória na exata medida de suas intenções – um texto bem manso, intencionalmente preciso na hora de assegurar a impunidade e intencionalmente genérico na hora de impor obrigações a quem celebra o acordo de leniência.

Com a MP 703 é possível uma empresa celebrar acordo de leniência – e assim se livrar das penalidades pelos eventuais ilícitos praticados – sem revelar às autoridades qualquer fato novo. Basta uma promessa genérica de não delinquir no futuro para obter o bloqueio das investigações e processos em curso. Assim, desvirtuou-se a finalidade do acordo de leniência, que deixou de ser instrumento para elucidar os malfeitos – ser uma recompensa à colaboração na investigação – para se transformar num mero meio de livrar as empresas das sanções pelos atos de corrupção. O ato presidencial pôs por terra um dos avanços mais notáveis da Lei Anticorrupção.

De certa forma, a MP 703/2015 não chegou a ser uma surpresa. A presidente Dilma Rousseff sempre teve uma relação atribulada com a Lei Anticorrupção. Submetido o seu projeto ao Congresso pelo então presidente Lula em cumprimento a acordo internacional, foi por Dilma Rousseff sancionado. Mas várias vezes ela criticou publicamente a responsabilização objetiva das pessoas jurídicas. Não se sente confortável com o caminho que a experiência de outros países mostrou ser o mais eficaz no combate à corrupção – punir exemplarmente quem geralmente é o principal beneficiário dos atos ilícitos e detém de fato o poder para impedir a ocorrência dos delitos. A presidente Dilma Rousseff prefere o velho sistema de perseguir apenas a pessoa física. O pior é que, depois de tantos anos de comprovada ineficácia, é difícil de sustentar que a inclinação por esse modelo seja apenas ingenuidade.

Não se descobriu até agora nenhum ato de corrupção pessoal da presidente Dilma Rousseff. Diante de casos tão variados dentro de seu partido, ela trata tal fato como um grande mérito pessoal, e não como se fosse a mais básica e comezinha condição para o exercício do cargo. De fato, não há denúncias envolvendo pessoalmente a presidente em atos de corrupção. Mas por que essa persistente licenciosidade com os malfeitos das empresas?


Libelo contra o lulopetismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 16/02


São “crimes sem precedentes na História do País” que colocam a sociedade brasileira “diante de uma grave afronta à ordem constitucional e republicana”. “Pelo até aqui apurado, o uso de apoio político deixou de ser empenhado em razão de propostas ou programas de partido. As coalizões deixaram de ocorrer em razão de afinidades políticas e passaram a ser decididas em razão de pagamento de somas desviadas da sociedade, utilizando-se, para tanto”, da Petrobrás.

Essa avaliação, que não deixa dúvidas a respeito das bases podres sobre as quais os governos petistas montaram seu chamado “presidencialismo de coalizão”, não é de responsabilidade de nenhum representante da “oposição de direita” nem da “mídia monopolizada”. Trata-se da convicção do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que não explicita, mas deixa evidente, em benefício de quem “passaram a ser decididas” com base na corrupção as “coalizões” políticas.

A opinião de Janot foi manifestada ao Supremo Tribunal Federal (STF), em documento no qual pede a rejeição de agravo apresentado pela defesa do ex-ministro Antonio Palocci, por meio do qual se pretendia anular benefícios de delação premiada concedidos ao doleiro Alberto Youssef e ao lobista Fernando “Baiano”. A pretensão de Palocci já havia sido rejeitada pelo ministro Teori Zavascki. Inconformada, a defesa do ex-ministro entrou com pedido de agravo, a respeito do qual Zavascki solicitou a manifestação da Procuradoria-Geral da República.

No processo em questão, Palocci é acusado, com base na delação premiada do doleiro e do lobista, reforçada pelo depoimento do ex-diretor da Petrobrás Paulo Roberto Costa, de ter exigido, no âmbito do esquema de propinas do petrolão, uma contribuição milionária para a campanha eleitoral de Dilma Rousseff em 2010. Essas denúncias embasaram também o pedido encaminhado pelo PSDB ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a cassação dos mandatos de Dilma e de Michel Temer devido à fraude eleitoral relacionada com a captação de recursos ilegais. A propósito, em outubro último o juiz Sergio Moro, que conduz as ações da Operação Lava Jato na primeira instância, havia encaminhado ofício ao TSE apresentando documentos e sugerindo que os mencionados delatores sejam ouvidos também no processo que pede a impugnação da chapa Dilma-Temer.

Depois de quase dois anos de trabalho da Operação Lava Jato e da consequente condenação judicial de vários empresários e executivos de empreiteiras de obras federais, bem como de ex-diretores da Petrobrás e operadores financeiros, resulta perfeitamente comprovado que o propinoduto montado na maior estatal brasileira visava a beneficiar o PT e seus aliados, além, é claro, de engordar algumas contas bancárias de pessoas físicas. E o vigoroso libelo do procurador-geral da República não deixa dúvidas quanto à promiscuidade entre interesses públicos e privados que inspirou o escândalo da Petrobrás: “Os autores dos delitos utilizaram-se de complexa trama política, financeira e logística para a prática de seus crimes, resultando em bilhões de reais de prejuízos aos cofres da Petrobrás e da União, sua sócia majoritária”.

Em uma de suas mais recentes intervenções públicas em defesa de Lula e do PT diante da proliferação de evidências de que, como afirma Janot, as afinidades políticas foram substituídas pela mais deslavada corrupção nas relações do governo com seus aliados, o presidente nacional petista, Rui Falcão, acrescentou uma nova categoria na relação de seus inimigos: “setores do aparelho do Estado capturados pela direita”. Naquela oportunidade Falcão não teve coragem de nominar seus novos inimigos, que são, obviamente, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e setores do Judiciário, dos quais a figura mais notável é o juiz Sergio Moro. É muito provável que, daqui para a frente, na medida em que o desespero aumentar, Falcão se torne mais explícito. E Rodrigo Janot passe a ser alvo certo.

Mas o presidente do PT e sua turma não estarão inovando. Sempre partiram do princípio de que só existem duas correntes políticas no País: o petismo e o antipetismo. “Nós” e “eles”. E a Justiça, quando condena petistas, o faz sempre “sem provas”, como quando colocou atrás das grades os “guerreiros do povo brasileiro” que integravam a quadrilha de José Dirceu no mensalão.


O crime na política - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 16/02

O documento enviado pelo juiz Sérgio Moro no dia 6 ao Tribunal Superior Eleitoral confirmando o uso de dinheiro desviado da Petrobras em doações ao Partido dos Trabalhadores como se fossem de origem legal tem importância política não apenas porque Moro ressalta que o TSE foi usado para lavar o dinheiro da corrupção na estatal, mas sobretudo porque o fez atendendo a ofícios enviados pelo ministro João Otávio de Noronha, corregedor- geral da Justiça Eleitoral.

Disse o juiz Moro: "(...) a lavagem gerou impacto no processo político democrático, contaminando- o com recursos criminosos, o que reputo especialmente reprovável. Talvez seja essa, mais do que o enriquecimento ilícito dos agentes públicos, o elemento mais reprovável do esquema criminoso da Petrobras, a contaminação da esfera política pela influência do crime, com prejuízos ao processo político democrático".

Não foi, portanto, uma iniciativa de Moro, que poderia ser taxada como uma perseguição ao PT, mas parte de investigação do TSE, uma das quatro abertas a pedido do PSDB. Tudo indica que todas as demais serão rejeitadas, pois se baseiam em denúncias ou difíceis de provar ou que dependem da visão pessoal do juiz que analisará o caso.

O procurador- geral da República, Rodrigo Janot, por exemplo, já avisou, em um documento sobre uma Ação Judicial de Investigação Eleitoral, que não via gravidade na denúncia de compra de votos a ponto de invalidar uma vitória eleitoral ocorrida em um universo tão amplo de eleitores.

Mas na Ação de Impugnação de Mandato Eletivo por abuso de poder econômico a situação é mais grave pois, como salienta o juiz Sérgio Moro, já existe decisão da Justiça no sentido de condenar o então tesoureiro do PT João Vaccari Neto. "Destaco que na sentença prolatada na ação penal 5012331- 04.2015.404.7000 reputou-se comprovado o direcionamento de propinas acertadas no esquema criminoso da Petrobras para doações eleitorais registradas." 


Tal ação penal condenou Vaccari e mais 27 pessoas por diversos crimes, entre os quais a lavagem de dinheiro através do TSE. A força-tarefa do Ministério Público Federal identificou o uso de doações oficiais para disfarçar o recebimento de propina em pagamento lícito mas que, na verdade, tratava- se de lavagem de dinheiro. A pedido de Renato Duque, ex- diretor da Petrobras, foram feitas 24 doações ao Partido dos Trabalhadores ( PT) entre outubro de 2008 e abril de 2010, totalizando R$ 4,26 milhões.

Na sentença, Moro relaciona, entre outros, os seguintes dados que o levaram a condenar Vaccari por lavagem de dinheiro com as doações ao PT: "a) a prova material da realização das doações eleitorais pelas empresas PEM Engenharia, Projetec Projetos, Setec Tecnologia e SOG Óleo e Gás ao Partido dos Trabalhadores, da qual o acusado João Vaccari Neto era tesoureiro; 

b) a confissão de Augusto Mendonça, controlador das empresas doadoras, de que as doações eleitorais foram feitas por solicitação de Renato de Souza Duque e que faziam parte do acordo de pagamentos de propinas pelo contrato obtido pelo Consórcio Interpar com a Petrobrás, sendo abatidas da dívida; 

c) (...) a declaração de Augusto Mendonça de que tratou o assunto das doações com o próprio João Vaccari; 

d) a vinculação circunstancial entre parte dos pagamentos da Petrobras ao Consórcio Interpar e as doações eleitorais; 

f ) a confissão de Pedro Barusco do recebimento de propinas pela Diretoria de Engenharia e Serviços da Petrobras por contratos da empreiteiras com a estatal, inclusive pelo contrato do Consórcio Interpar, e a declaração de que parte da propina era dirigida ao Partido dos Trabalhadores, com a intermediação de João Vaccari Neto, que se fazia presente em reuniões entre Pedro Barusco e Renato de Souza Duque para tratar deste assunto específico; 

g) (...) a declaração de Eduardo Hermelino Leite de que foi procurado por João Vaccari Neto para realizar doações eleitorais como forma de pagamento acertado de propina em contratos da Camargo Correa com a Petrobras; 

h) as declarações de Paulo Roberto Costa e de Alberto Youssef de que parte das propinas decorrentes dos contratos da Petrobras eram dirigidas a partidos políticos e que João Vaccari Neto intermediava os repasses ao Partido dos Trabalhadores;

ei) a declaração de Alberto Youssef de pagamento de propina em contrato específico da Petrobrás para o Partido dos Trabalhadores, com intermediação de João Vaccari Neto e sua cunhada, Marice Correa Lima."

O santo do pau oco - GIL CASTELLO BRANCO

O GLOBO - 16/02

Lula já deveria, há muito tempo, pessoalmente, ter explicado todos esses rolos. Como não o faz, amplia as suspeitas


No período colonial, as imagens sacras de madeira eram talhadas e usadas para esconder o contrabando de ouro e diamantes. Daí a expressão popular “santo do pau oco”, utilizada no Brasil para designar pessoas de caráter duvidoso, dissimuladas ou hipócritas.

À época, governadores, escravos e clérigos participavam da tramoia. Foram os ancestrais dos mensaleiros — do PSDB mineiro, PT e aliados — do bando do petróleo e de tantos outros quadrilheiros que roubaram o Estado nas últimas décadas. Séculos depois, os problemas já não são as imagens recheadas de ouro e pedras preciosas, embarcadas em caravelas. O volume que a corrupção atingiu é tal que o montante não caberia sequer na imagem do Cristo Redentor, no Corcovado.

Os desvios, agora, seguem um “manual”. Os políticos e partidos indicam servidores para áreas estratégicas dos órgãos públicos, fundos de pensão e empresas estatais. Os “apadrinhados” providenciam a celebração de contratos superfaturados com construtoras e prestadoras de serviços, geralmente financiadoras de campanhas eleitorais. As “gorduras” dos contratos são “lavadas” por operadores financeiros e doleiros, que circulam a propina por contas bancárias de offshores e empresas fantasmas, em diversos paraísos fiscais. Os recursos já “lavados” retornam em dinheiro, bens e benfeitorias para os “laranjas” dos servidores, empreiteiros, doleiros, operadores e políticos.

No escândalo da Petrobras, apesar das delações premiadas e das evidências — recursos devolvidos, bloqueados no exterior e repatriados — os políticos e partidos continuam a negar qualquer participação no segundo maior caso de corrupção do mundo, segundo a ONG Transparência Internacional. As respostas frequentes são: “não conheço”; “não recebi”; “não tive qualquer contato”; “não indiquei” e, a mais comum, “o partido só recebeu doações oficiais, devidamente declaradas ao TSE”.

De fato, 11 meses depois da abertura dos inquéritos, a Procuradoria-Geral da República ofereceu denúncia ao STF e ao STJ contra apenas sete dos 56 políticos com foro privilegiado. Essa fila precisa andar....

A impressão que as negativas e a lentidão das denúncias transmite é que a classe política é formada por santos. O ex-presidente Lula, por exemplo, chegou a dizer há duas semanas: “Neste país, não tem uma viva alma mais honesta do que eu”. O jornalista Jorge Bastos Moreno, do GLOBO, reordenou a frase: “A alma honesta mais viva que há”.

Até o momento, porém, Lula não foi formalmente incriminado, ainda que seja alvo de quatro apurações em curso: no Ministério Público do DF, por suspeita de tráfico de influência em favor de empreiteiras que o contratavam para palestras; na Operação Lava-Jato por suposta ocultação de patrimônio do sítio em Atibaia; na Zelotes, em decorrência de medidas provisórias que beneficiaram o setor automobilístico; e no MP de São Paulo, em inquérito sobre a compra do tríplex no Guarujá e a reforma executada pela construtora OAS, supervisionada por sua mulher.

Quando Lula esteve na Presidência, já pairavam sobre a família questionamentos por fatos, até anedóticos, como a plantação de flores compondo uma estrela vermelha no jardim no Palácio da Alvorada, a excursão de amigos dos filhos a Brasília em avião da FAB, com direito a algazarra na lancha presidencial, e a concessão de passaportes diplomáticos a familiares. Os episódios fizeram lembrar a frase do Barão de Itararé: “Certos políticos brasileiros confundem a vida pública com a privada”.

Com o espaço que possui na mídia, Lula já deveria, há muito tempo, pessoalmente, ter explicado todos esses rolos. Como não o faz, amplia as suspeitas que fizeram desabar a sua reputação. Em menos de dois anos, sua rejeição passou de 17% para 47% (Datafolha). Segundo o Instituto Ipsos, 60% discordam de que Lula seja honesto. Do homem de Garanhuns ao do Guarujá há um abismo.

Amanhã, o ex-presidente irá depor no MP de São Paulo, já como investigado. No dia 14 de março, estará frente a frente com Sérgio Moro, por videoconferência, como testemunha do seu amigo Bumlai, preso no Paraná. Ao que dizem, CUT, MST, UNE e movimentos sociais chapa-branca farão manifestações com o mote “Mexeu com Lula, mexeu comigo”. A pressão sobre o MP será pífia. Com a atual indignação da sociedade em relação à corrupção, as instituições precisam comprovar independência, seja qual for o investigado.

Neste momento, tal como no período colonial, o essencial é o Ministério Público e a Justiça continuarem a investigar se as imagens de santos ainda escondem falcatruas.

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas