sexta-feira, julho 26, 2019

República de hackeados - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 26/07

Vale tudo: com Brasília em polvorosa, vem aí uma guerra de acusações e versões

É uma grosseria ultrapassada tentar ainda hoje atingir o Brasil com o carimbo de “Republiqueta de Bananas”, mas parece bem atual considerar o País uma “República de Hackeados”. Nem o presidente da República foi respeitado, imagine-se o resto. E, assim, Brasília está em verdadeira polvorosa.

A referência mais direta a algo parecido foi quando se descobriu que a NSA, uma agência norte-americana, tinha a audácia de grampear a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e os telefones da principal empresa nacional, a Petrobrás.

Naquela época, a motivação parecia econômica, comercial, diplomática. Hoje, os “grampos” evoluíram para “hackeamentos” e a invasão de celulares até do presidente Jair Bolsonaro tem um outro viés. A motivação pode ser pura ganância, mas o uso não tem nada a ver com negócios. Logo, pode ter sido político. Ou não.

É como a gente diz, a cada surpresa, a cada espanto: a realidade supera a ficção. Estamos vivendo numa sessão ininterrupta de cinema, intercalando filmes policiais, dramas e comédias pastelão, enquanto milhões de desempregados estão na rua da amargura e há uma guerrinha ideológica insana, quase infantil, entre uma esquerda acuada, deslocada da realidade, e uma direita simplória, mas ousada, cheia de si.

Quando hackers têm a audácia de violar os celulares e as conversas do presidente da República, dos presidentes da Câmara e do Senado, da procuradora-geral da República, de ministros do Supremo e do STJ, dos ministros da Justiça e da Fazenda, da líder do governo no Congresso... A gente começa a pensar que tudo é possível. No início das investigações, a PF tinha certeza de que o alvo era a força-tarefa da Lava Jato. Como se vê, vai muito além.

A biografia dos quatro criminosos presos não é animadora. Não se trata de gênios da informática que atuam no ambiente internacional, nem de uma quadrilha sofisticada a serviço de governos ou grandes corporações. Ao contrário, os chefes de Poderes, as instituições, talvez as posições estratégicas e até questões sigilosas de Estado, podem, em tese, ter ficado à mercê de uma gangue cibernética de fundo de quintal. Vulnerabilidade inadmissível.

Walter Delgatti, o “Vermelho”, que parece ser o chefe e mentor das operações criminosas, é um bandidinho com ficha policial manjada: roubo, estelionato, falsidade de documentos. Os demais movimentam volumes de dinheiro incompatíveis com suas rendas oficiais. Todos são uns simplórios, mas capazes de atacar o centro do poder federal e deixar muitas dúvidas.

Que uso Delgatti e seus comparsas poderiam fazer desse material, que era colhido e em seguida publicado em parte? Nem econômico, nem comercial, nem diplomático. O único objetivo, portanto, era vender o material todo a quem interessar pudesse. Quem?

É exatamente nesse ponto que se misturam e se confundem perigosamente as versões, inclusive tentando aproveitar a confusão e o medo para adicionar o ingrediente político-partidário e jogar o PT no meio da fogueira. Cuidado com isso! É cedo para conclusões.

É fato que os quatro presos são peixes muito miúdos para serem os únicos ou mesmo os maiores responsáveis por um ataque com esse grau de gravidade, atingindo os três Poderes. Mas, por enquanto, não dá para concluir se agiram por conta própria para depois vender ou repassar para interessados, ou se, muito diferentemente, receberam uma encomenda de grupos dispostos a botar fogo no circo, implodir as instituições, gerar uma crise.

Meus caros e caras, Brasília está de pernas para o ar e, até a conclusão das investigações, preparem-se para um festival de versões e acusações mútuas. Estamos em plena República dos hackeados. Vale tudo.

Quando a democracia não presta - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 26/07

As propostas de David Runciman podem levar ao triunfo das 'ditaduras da maioria'


O que fazer quando o povo vota como não deve? Imagino que o leitor, nos seus momentos de frustração, já fez essa pergunta. Chega o dia da eleição. Os resultados são conhecidos. E o leitor, pessoa com estudos, pergunta: “Como é possível tanta imbecilidade?”

Em fúria, o leitor civilizado pensa em mudar de país, na impossibilidade de mudar de povo. Ou, seguindo uma moda cada vez mais crescente, procura alternativas à democracia —uma epistocracia, talvez, em que só os mais sábios podem governar.

Em situações normais, a febre desce e, alguns dias depois, a vida segue como sempre. E o leitor conclui, melancolicamente, que a democracia pode ser um mal sistema, mas é melhor que todos os outros (Churchill “dixit”). Ou não é?

David Runciman, o conhecido politólogo britânico e autor de “Como a Democracia Chega ao Fim” (Ed. Todavia, 272 págs., R$ 64,90) acha que não é. E escreve na “Foreign Policy” um artigo que merece pasmo (primeiro) e resposta (depois).

O assunto é o aquecimento global. Até 2030, dizem os especialistas, é preciso mudar radicalmente de vida. Caso contrário, não haverá futuro para ninguém.

Não vou discutir os méritos ou deméritos do assunto. Muito menos fundamentar as minhas ideias sobre o aquecimento global com as proclamações de uma garota de 16 anos, Greta Thunberg, que David Runciman cita como fonte de toda a sapiência e autoridade.

Fico pelo argumento central de Runciman: os mais jovens preocupam-se com o aquecimento global; os mais velhos não se preocupam tanto. No Reino Unido, quase metade dos eleitores entre os 18 e os 24 anos sentem que o aquecimento global é um problema; entre os maiores de 65 anos, só 20% têm a mesma opinião.

Nos Estados Unidos, a mesma coisa: só 10% dos eleitores entre os 18 e os 29 anos não são sensíveis aos apelos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Para os maiores de 65 anos, a insensibilidade cresce para os 40%.

A pergunta é inevitável: como são os mais velhos que votam e decidem eleições, parece que a democracia é o maior inimigo do planeta. Para resolver o assunto, Runciman não escolha as opções óbvias: acabar com a democracia —ou, então, acabar com o direito de voto dos mais velhos.

Também não defende que os mais novos possam votar cada vez mais cedo: isso não é suficiente para desequilibrar a balança demográfica. David Runciman sugere dois caminhos.

O primeiro, com a devida vênia ao filósofo alemão Jürgen Habermas, é promover formas de “democracia deliberativa” em que é a sociedade civil a discutir e a deliberar sobre certos assuntos, cabendo aos políticos a aplicação das medidas aprovadas.

Por outro lado, Runciman aplaude formas mais radicais de democracia direta. Por exemplo, atos de desobediência civil, tipo Extinction Rebellion, e que obriguem os políticos a parar para pensar (de preferência, com um milkshake no rosto).

Infelizmente, as propostas de Runciman apontam para o mesmo caminho: a erosão da democracia representativa e o triunfo das “ditaduras da maioria”. Na peculiar proposta de Runciman, o aquecimento global merece esse flerte com formas mais radicais de participação democrática. Mas o que teria o sábio filósofo para nos dizer se as coisas corressem barbaramente mal?

O que teria ele para dizer se, nessas formas radicais de democracia, as maiorias decidissem abandonar o combate às alterações climáticas pela promoção de formas mais poluentes de desenvolvimento econômico?

Sem falar de outros assuntos, que poderiam ser igualmente deliberados. O que fazer se a sociedade civil decidisse discriminar minorias? Se apoiasse a pena de morte para delitos graves (ou menos graves)? Se exigisse o fim da liberdade de imprensa e, mais vastamente, o fim da liberdade de expressão?

A democracia representativa existe por um motivo: para temperar as insondáveis paixões das massas com o julgamento mais moderado dos representantes.

Runciman pode desesperar com a lentidão do processo. Mas é essa lentidão, a que se junta o providencial sistema de freios e contrapesos, que impede o dilúvio populista. O exato dilúvio que só parece assustar David Runciman quando o tema é Donald Trump.

Se o aquecimento global é um fenômeno apocalíptico, é pela informação científica e pela persuasão de eleitores e eleitos que uma sociedade civilizada funciona. Não é por formas histéricas, anárquicas ou até terroristas de intervenção política.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Criando confusão - PEDRO LUIZ PASSOS

FOLHA DE SP - 27/07

Distração demais tira o impacto de eventos favoráveis como há muito não havia


O governo parece enfrentar uma fase crítica de paradoxos.

A atividade econômica fraca convive com a expectativa de que as reformas estruturais mais complexas, como a da Previdência, a tributária e a do comércio externo, serão endereçadas. Bolsa para cimae dólar para baixo refletem a esperança por bons resultados.

Essa corrente a favor se choca com o comportamento ora errático, ora polêmico do presidente Jair Bolsonaro e alguns ministros. Isso tira o impacto de eventos favoráveis como há muito não havia, tais como a aprovação em primeiro turno da nova Previdência na Câmara, contra o descrédito geral, e o protocolo do tratado entre Mercosul e União Europeia, que se arrastava por mais de 20 anos.

Não dá para entender. A esta altura já era para a economia estar em melhor forma. Com a oposição sem força e a maioria reformista formada na Câmara e no Senado, não se pode desperdiçar a oportunidade de solucionar problemas que estão na raiz de nosso atraso. Se Bolsonaro olhar para os projetos de seu governo, certamente achará temas mais relevantes para "causar" nas redes sociais que as polêmicas recorrentes.

Certas iniciativas devem ser ressaltadas porque vão na direção correta para modernizar e reerguer uma economia estagnada. A esperança de que elas avançarão depende do apoio político e do protagonismo revelado pelos presidentes da Câmara e do Senado. Cabe ao governo colaborar.

Há muito a ser feito para o país atualizar a regulação econômica, livrando empresas e empreendedores do cipoal burocrático. Acelerar a revisão por completo das relações da economia com o exterior é igualmente indispensável.

Os avanços são tênues na área da excessiva intervenção estatal e na facilitação dos negócios, mas se dará um grande passo com a medida provisória batizada de Liberdade Econômica, se o Congresso aperfeiçoar a proposta do governo.

A aprovação da nova Previdência será decisiva para assegurar que o endividamento público seja contido, etapa preliminar para a melhora das expectativas de mercado e da disposição empresarial em voltar a investir e abrir empregos.

Mas, por enquanto, só há expectativas sujeitas a riscos aparentemente ignorados pelo governo ou o presidente talvez pudesse ser mais cauteloso, por exemplo, ao rejeitar dados sobre desmatamento na Amazônia, difamando o Inpe, conceituado internacionalmente, e pondo em dúvida a transparência dos relatórios do Brasil.

Tais sentimentos são ampliados pela falta de diretrizes abrangentes em temas vitais como educação. O voluntarismo das decisões tem se tornado frequente, tal como os embates internos e o desgaste em questões triviais.

Na reforma tributária, há o entendimento de que se possa alcançar uma grande simplificação para os negócios com a criação do IVA, imposto sobre o valor adicionado, em substituição a vários tributos, como ICMS e PIS/Cofins. O que não pode prosperar é o vodu do tal imposto sobre pagamentos, que não passa da CPMF repaginada, com as mesmas distorções da cobrança cumulativa.

Na teoria, parecem fáceis as agendas da simplificação e da modernização. Na prática, como se diz, a teoria é outra.

É o que se verá até a conclusão do acordo com a UE. Ele envolve comércio de bens e de serviços, tecnologias e proteção de investimentos, o que ajudará a elevar a produtividade e a competitividade. Será ainda o fio condutor de outros tratados que o governo quer encaminhar.

Nada disso é simples, os procedimentos são demorados, os resultados custam a aparecer e... Sim, o país carece de soluções e consensos que já tardam e não serão construídos pelo Twitter.

Pedro Luiz Passos
Empresário, conselheiro da Natura.

Moro usa inquérito como instrumento para virar o jogo político - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 26/07

Ministro mergulha no pântano e assume protagonismo de um caso que envolve poderosos



Sergio Moro só poderia ter se antecipado para anunciar a destruição das mensagens obtidas com os hackers presos pela polícia se houvesse, de antemão, um jogo combinado entre investigadores e o juiz do caso. Como um complô dessa natureza seria absolutamente impróprio, o ministro deve ter se confundido.

Após duas décadas na magistratura, Moro conhece a lei o suficiente para saber que, mesmo que a Polícia Federal queira, só o juiz responsável pelo inquérito pode mandar apagar uma prova. Ainda assim, ele ligou para autoridades com celulares supostamente invadidos e avisou que não sobraria nenhum rastro de seus diálogos privados.

Moro foi o ponto de partida das apurações sobre o hackeamento, quando teve seu telefone atacado, mas agora tenta se tornar sujeito ativo das investigações. Como chefe da PF, o ministro abraça o caso como um instrumento particular de poder.

O ex-juiz procurou o presidente da República, o presidente da Câmara e o presidente do Senado para contar que seus telefones haviam sido alvos do grupo. Ligou também para o presidente do STF e disse que ministros tinham sido atacados.

Na condição de hackeado, Moro ofereceu aos poderosos a segurança de que todo o material apreendido seria destruído. Horas depois, a própria PF precisou corrigi-lo. Afirmou que as mensagens seriam preservadas e que só a Justiça poderia "definir o destino do material, sendo a destruição uma das opções".

Moro poderia ter se afastado das investigações da PF, já que era uma das vítimas do grupo. Com os últimos gestos, porém, assumiu protagonismo no caso e acionou, de uma única vez, os principais personagens da República. É bom lembrar que o ministro disputa espaços de poder com algumas dessas figuras.

O ministro mergulhou no pântano da política ao longo do processo que começou com o vazamento das conversas da Lava Jato. Acuado, primeiro ampliou sua dependência de Jair Bolsonaro e buscou proteção no Congresso. Agora, quer virar o jogo.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Vivendo na era dos vazamentos - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 26/07

Inconfidências de autoridades se revestem de inegável interesse público


Não posso dizer que esteja 100% seguro, mas o fato de não possuir um celular reduz o risco de eu ser flagrado num comentário comprometedor. Minhas comunicações são essencialmente por email e me policio para não escrever nada que não possa ser publicado.

Como a maioria dos humanos não é tão tecnologicamente frugal e ainda se deixa levar pela falsa sensação de segurança proporcionada por um objeto tão íntimo quanto o próprio celular, passamos a viver num mundo assombrado por vazamentos de conversas concebidas para permanecer privadas, com efeitos potencialmente devastadores.

E não me refiro só ao noticiário sobre os suspeitos de ter invadido os celulares da turma da Lava Jato e de outras autoridades brasileiras, incluindo Bolsonaro. Milhares de quilômetros ao norte, o governador de Porto Rico acaba de renunciar porque o teor politicamente incorreto de mensagens que trocou com auxiliares veio a público.

Poucos seres humanos resistiriam a mais do que algumas horas de transparência total. Atire a primeira pedra quem nunca fez uma piada inconveniente ou revelou sentimentos que deveria ter reprimido? Só sobrevivemos porque, ao menos até há pouco, a maior parte dessas situações não deixava registro permanente. Celulares, redes sociais e hackers estão mudando isso.

Devemos, então, tentar recuperar a privacidade perdida e passar a ignorar vazamentos de conversas particulares? Até sou simpático a uma atitude dessas para deslizes de cidadãos comuns, mas tendo a ser mais rigoroso no caso de autoridades. Por vezes, suas inconfidências se revestem de inegável interesse público.

Cito dois exemplos: a conversa entre Dilma e Lula, na qual ela diz que o nomearia ministro, e a troca de mensagens entre Moro e Dallagnol. Nos dois casos, temos informações obtidas de modo ilegal, mas cuja divulgação tornou a sociedade mais consciente a respeito de questões importantes.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…"

Imagina se fossem os russos - PEDRO DORIA

O GLOBO/ESTADÃO - 26/07

Um estelionatário de terceira toma de assalto a comunicação da República. Imagina se fossem russos. Vamos mal.

O ministro Sergio Moro foi ontem ao Twitter para afirmar que ninguém sofreu um hack por falta de cautela. “Não havia sistema de proteção hábil”, ele escreveu. Havia, sim. Autenticação em duas etapas, ou, na sigla em inglês, 2FA.
É chatinho, mas não é difícil. O episódio da prisão dos quatro suspeitos de Araraquara traz à luz duas questões fundamentais que põem em risco a democracia brasileira. Uma é a inacreditável ingenuidade digital das autoridades públicas. A outra é que a paranoia, a mentira, a desinformação se impuseram de vez no debate público.

Se o Twitter é a rede de escolha para fluxo de informação do atual governo, é por ele que devemos fluir. No momento em que o site The Intercept Brasil começou a publicar as conversas vazadas da Lava Jato, esquerda e direita construíram cada qual o seu mito de origem. Ambos falsos no âmago.

A versão da esquerda, amplamente estimulada pelos jornalistas do Intercept, é de que quem levantasse a hipótese de um hacker estaria fazendo o jogo dos vilões — compreenda-se, no caso, procuradores e o então juiz Moro. Naquela cegueira coletiva que as redes constroem, na qual um convence o outro da mesma história que nenhum fato sustenta, decidiu-se que a fonte deveria ser o que os americanos chamam de whistleblower. Um funcionário, talvez do MP de Curitiba, que angustiado perante malfeitos fez-se herói, copiou os dados, e os encaminhou para os jornalistas.

Os fatos sugeriam o contrário. Um mês antes da primeira reportagem, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot já havia falado publicamente de ter sido vítima de um hacker, e daí vários outros casos pipocaram. Mais de um jornalista encontrou, tanto na Polícia Federal quanto no MP, histórias várias de violação por hackers. A convicção na esquerda de que não há hacker se tornou tão forte que, mesmo com a confissão de um deles, ainda assim tudo é uma trama de Moro e de sua PF. Uma conspiração, pois. Aquilo que a gente chama teoria conspiratória.

A versão da direita é ainda mais rocambolesca. Envolve pagamentos em bitcoins, poderosos hackers russos, o intermédio do americano Edward Snowden, e a compra do mandato de um deputado federal. São tantas as partes extraordinárias nesta história que surpreende alguém acreditar. No Twitter, massas acreditam.

Tanto a Polícia Federal quanto os técnicos que indiretamente se envolveram na investigação chegaram a cogitar a possibilidade de o hacker ser russo no início da investigação. A Rússia tem feito ataques cibernéticos por toda parte do mundo e as constantes ligações recebidas de madrugada pelas vítimas poderiam sugerir seu fuso horário. Mas faz mais de um mês que a investigação já havia detectado que o método tinha sido mais simples — este de caller ID spoofing. É mais simples do que clonagem, o celular apenas finge ter o número do hackeado. Não é um equipamento barato o que permite este mascaramento — mas, ora, mais de uma empresa no Brasil oferece este serviço por preços módicos.

Se no início pareceram hackers sofisticados, conforme foi-se avançando percebeu-se que, ora, eram hackers de Araraquara. Tiveram acesso ao Telegram do ministro da Justiça, dos presidentes da Câmara e do Senado, de ministros do Supremo, de pelo menos um ex-procurador-geral da República, delegados da Polícia Federal.

Enquanto aquela parte da população interessada em discutir política cria para si duas realidades paralelas que nunca se encontram, um estelionatário de terceira do interior paulista toma de assalto a comunicação da República. Vamos mal.

Onerar mais não é o caminho - EVERARDO MACIEL, HAMILTON D. DE SOUZA, HUMBERTO ÁVILA, IVES GANDRA MARTINS, KIYOSHI HARADA E ROQUE A. CARRAZZA

ESTADÃO - 26/07

PEC 45/19 não satisfaz os imperativos da reforma tributária de que o Brasil necessita


Recém-aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a reforma tributária objeto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 conta com respeitáveis apoios. Nada mais natural, pois a complexidade do sistema tributário causa efeitos perversos sobre a economia, muito incômodos em tempos de retração. Entretanto, se a necessidade de mudanças é inequívoca, a aprovação desse projeto deve passar pela seguinte questão: as alterações propostas são boas para o Brasil?

O foco da PEC 45/2019 é a tributação sobre o consumo. Tenta-se criar o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) em substituição ao ICMS, IPI, ISS e PIS/Cofins. Ele seria instituído e disciplinado por lei complementar da União. Estados e municípios poderiam apenas alterar suas alíquotas, porém com severas restrições. Realmente, os porcentuais deveriam ser os mesmos “para todos os bens e serviços”, respeitando-se os mínimos fixados pelo Senado para cobrir gastos com saúde e educação. Seria proibida a redução do tributo em função da essencialidade do item (cesta básica, por exemplo) ou de políticas de desenvolvimento local. Além disso, o IBS seria regulamentado, arrecadado e fiscalizado por comitê gestor vinculado à União.

Esse caráter centralizador é uma evidência inequívoca da inconstitucionalidade do projeto. De fato, segundo dados do Tesouro Nacional citados no voto do relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, 43% da atual arrecadação dos municípios e 88% das receitas tributárias dos Estados passariam a ser controlados pelo poder central. Tal remanejamento de competências e receitas tributárias não se afina com o pacto federativo. Afinal, tende a enfraquecer a autonomia financeira dos entes descentralizados, com efeitos deletérios sobre a realização de suas atribuições constitucionais, na medida em que eles não estariam autorizados a instituir e arrecadar o IBS, promover a variação de alíquotas em função do setor, do produto ou das circunstâncias econômico-sociais de cada momento.

Insista-se que dentre as cláusulas integrantes do pacto federativo em vigor está a autonomia dos entes descentralizados, o que supõe repartição de competências e receitas de tributos. Tais divisões são “pilares da autonomia dos entes políticos” (STF, RE 591.033, ministra Ellen Gracie), porque “consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito” (STF, ADI 4228, ministro Alexandre de Moraes) e permitem que Estados e municípios realizem suas incumbências constitucionais. Logo, “não pode emenda constitucional suspendê-la(s) ou afastá-la(s), porque, se o fizer, ofenderá o pacto federativo, enfraquecendo-o, pelo que é tendente a aboli-lo” (STF, ADI-MC 926-5, voto do ministro Carlos Velloso, tribunal pleno, DJ 6/5/94).

Esse vício é grave e merece ser discutido com profundidade nas instâncias próprias, mas a proposta examinada levanta questões para além do âmbito jurídico.

A primeira perplexidade é que a PEC 45/2019 implicará aumento de impostos. De fato, o IBS seria “uniforme para todos os bens e serviços” e englobaria o ICMS, IPI, ISS e PIS/Cofins. Assim, quase todos os setores sofreriam alguma elevação tributária. Produtos agrícolas que atualmente não se sujeitam ao IPI passariam a absorvê-lo parcialmente. Serviços tradicionais, como advocacia, contabilidade, etc., hoje submetidos ao ISS com alíquota média de 4,38%, teriam sua tributação acrescida de porcentuais equivalentes ao IPI e ao ICMS. Se o IBS tiver alíquota de 25%, como se noticia, estima-se que haveria majoração de mais de 300% para serviços prestados por pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido. Para os autônomos o impacto seria ainda maior, podendo chegar a quase 700%, pois seria adicionado não só o equivalente ao IPI e ao ICMS, mas também ao PIS/Cofins, que hoje não alcança tais pessoas físicas.

Mas não é só.

A PEC 45/2019 também tenta criar um Imposto Seletivo para “desestimular o consumo” de bens e serviços que gerem externalidades negativas. Todavia não há quaisquer limites a serem observados pela figura, nem critérios que definam os produtos e setores atingidos. Essa carta branca pode resultar na instituição de um imposto de amplo espectro, incidente em duplicidade sobre os mesmos itens objeto do IBS. Nesse sentido, por exemplo, veículos movidos a combustíveis fósseis poderiam ser alvo desse tributo, pois são poluidores e podem ser substituídos por carros a álcool ou elétricos. Em suma, a pretexto de suposta extrafiscalidade, o Imposto Seletivo poderia incidir sobre vasta gama de itens.

Outro problema é a complexidade. Ambiciona-se revogar 19 dispositivos e introduzir 141 outros na Constituição. Com isso, quase 40 novos conceitos seriam criados. Nos primeiros dois anos, o sistema seria adaptado na base de “tentativa e erro”. Durante a primeira década, o País conviveria com dois modelos paralelos, o novo e o atual. Os contribuintes prestariam contas aos três níveis de fiscalização existentes e àquele a ser criado para tratar do IBS. Passada a transição inicial, nada garante que o sistema seguiria sem alterações. Por isso, o próprio prazo de 50 anos para Estados e municípios serem reparados pelas perdas resultantes do novo tributo é duvidoso. Afinal, há mais de 15 anos os Estados lutam para que a União compense os prejuízos oriundos da eliminação do ICMS-Exportação, promovida pela Emenda Constitucional (EC) 42/2003. De resto, admitida a suposta neutralidade arrecadatória do modelo, em termos agregados, as perdas haveriam de ser compensadas com mais carga tributária.

Em suma, o País necessita de reforma tributária que não implique aumento de impostos e garanta segurança, transparência, simplificação e neutralidade. Tais imperativos não são satisfeitos pela PEC 45/2019.

Everardo Maciel, Hamilton D. de Souza, Humberto Ávila, Ives Gandra Martins, Kiyoshi Harada e Roque A. Carrazza,
PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS NA ÁREA DE DIREITO TRIBUTÁRIO

Imposto sobre Transações vai pagar a Previdência - CLAUDIA SAFATLE

Valor Econômico - 26/07

Tem cheiro e cor de CPMF, mas é bem maior do que ela

O governo avança na proposta de reforma tributária para enviá-la ao Congresso tão logo termine o recesso branco. A criação do Imposto sobre Transações (IT), nos moldes da velha Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), é a principal novidade do projeto. Mais ampla do que a CPMF, a concepção do Imposto sobre Transações (que incidiria sobre pagamentos e recebimentos em geral), a uma alíquota de 0,5% ou 0,6%, se justificaria pela busca de uma base tributária sólida e confiável para financiar a Previdência Social em substituição às contribuições previdenciárias cobradas sobre a folha de salários das empresas.

O entendimento da equipe econômica do governo é que parte relevante do desemprego, que atinge mais de 13 milhões de brasileiros, é estrutural. Diante das rápidas transformações do mercado de trabalho, considera-se que a base das contribuições previdenciárias que incidem sobre a folha de salários, além dos seus defeitos, está fundada em terreno movediço.

Diante de tais argumentos, os técnicos oficiais avaliam que "são grandes as chances de esse novo tributo vingar". Inspirado na CPMF, cuja experiência nos 12 anos em que vigorou no país foi "exitosa", segundo fontes do governo, e se mostrou um tributo de "base sólida, baixíssima sonegação, baixo contencioso e custo quase nulo de administração tributária", o Imposto sobre Transações seria ideal para substituir as contribuições sobre a folha.

"Ele não é uma nova CPMF, que era o 59º imposto da nossa constelação tributária e não foi criada para substituir nada. A proposta do Imposto sobre Transações - cujo nome oficial ainda não foi escolhido - vem para desonerar a folha de salários das empresas", advogam assessores do Ministério da Economia que estão participando das discussões.

"Nosso projeto não entra em confronto com as demais alternativas de reforma, que se concentram na instituição do Imposto sobre Valor Agregado (IVA)," salientou um assessor do ministro da Economia, Paulo Guedes. "A ampla base do IT é o que nos dá confiança de que vamos arrecadar mais sem aumentar a carga tributária", completou.

O Congresso retoma os trabalhos na semana do dia 5 de agosto. Câmara e Senado já escolheram os projetos de emenda constitucional em tramitação para a construção de um novo regime
tributário.

A PEC 45, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), é patrocinada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Elaborada pelo economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, a proposta acaba com três tributos federais (IPI, PIS e Cofins), extingue o ICMS, que é estadual, e o ISS, municipal. Esses são tributos que incidem sobre o consumo e seriam substituídos pelo Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), um IVA cobrado no destino cuja receita seria compartilhada entre a União, os Estados e os municípios.

Trata-se de mais uma tentativa de acabar com a "guerra fiscal" e com a extrema complexidade do sistema tributário do país, com suas 27 legislações de ICMS, além da profusão da regulação federal.

Aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, a reforma sugerida pelo ex-deputado Luis Carlos Hauly extingue dez impostos - IPI, IOF, CSLL, PIS/Pasep, Cofins, Salário-Educação, Cide, ICMS e ISS. Todos também seriam substituídos pelo IVA, de competência estadual, chamado de Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS), e pelo Imposto Seletivo sobre bens e serviços específicos, de competência federal.

Os empresários do Instituto Brasil 200 optaram por uma proposta de reforma tributária que cria o Imposto Único (uma mega CPMF), em substituição a todos os demais impostos, inclusive IPTU e IPVA.

Preparada pelos secretários de Fazenda dos Estados, a proposta que conta com o apoio dos governadores retira da União a gestão do tributo único criado com a reforma. Além disso, prevê que, caso o governo consiga emplacar o Imposto Único Federal, os Estados encaminhem uma proposta ao Legislativo, criando o Imposto sobre Valor Agregado dual. A proposta prevê mecanismos de compensação de perdas e de redução de desequilíbrios regionais, com a criação de um fundo.

O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), anunciou que apresentará uma emenda substitutiva à PEC 45, criando o Imposto Único Federal, na linha do que defende o secretário da Receita, Marcos Cintra.

São cinco alternativas que, de certa forma, convergem com as ideias do governo, que se concentra na unificação de tributos federais, na criação do Imposto sobre Transações e na reforma do Imposto de Renda, com redução da alíquota das empresas e das pessoas físicas. Como se vê, não é por falta de alternativas que o Brasil vive em um verdadeiro "manicômio" tributário, como disse certa vez a esta coluna o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga.

Foi o aumento ininterrupto do gasto público que nos levou ao atual e indecifrável emaranhado de impostos, taxas e contribuições. Estas últimas tornaram-se o recurso do governo federal para aumentar suas receitas sem repartir com Estados e municípios. E prosperaram Simples, MEIs e brechas para aliviar a carga de alguns.

Difícil é imaginar que 27 governadores e 5,5 mil prefeitos estarão de acordo com qualquer das propostas citadas sem que haja confiáveis sistemas de compensação para quem perder receitas. O ministro da Economia pretende que a adesão dos entes da federação ao IVA no destino seja facultativa.

Há cerca de três décadas que o Brasil discute uma reforma tributária. A carga de impostos, que era de 28,5% do PIB em 1990, hoje está em torno de 33% do PIB, e esse aumento foi insuficiente para equilibrar as contas públicas.

Jovens jornalistas que começaram a acompanhar o assunto no início de suas carreiras hoje são avós de cabelos brancos e, a cada vez que o tema da reforma reaparece, eles se entreolham com total descrença na evolução para um desfecho de sucesso e pensam: "É mais fácil um boi voar!"

Jornalistas, às vezes, são seres incrédulos por força do ofício.

Duas ideias fixas - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

O GLOBO - 26/07

Encargos sobre a folha não são propriamente uma ‘arma de destruição em massa de empregos’, como diz o ministro


Não é de hoje que Paulo Guedes tem uma ideia fixa. Está convicto de que a eliminação da contribuição previdenciária patronal incidente sobre a folha de pagamentos teria um impacto extraordinário sobre o emprego. De início, não lhe parecia uma ideia de implementação fácil. Em meio à atual crise fiscal, a eliminação da contribuição teria de ser compensada. E, com a economia sobretaxada como está, não estava fácil descobrir o que poderia ser onerado para que a folha pudesse ser desonerada.

Há alguns meses, no entanto, Guedes deparou-se com o que parecia ser uma solução mágica: a velha ideia fixa de Marcos Cintra de taxar movimentações financeiras. Fascinado com a perspectiva de compensar a perda de receita que decorreria da eliminação da contribuição patronal com um imposto sobre movimentações financeiras, Guedes não relutou em alçar Cintra a secretário especial da Receita Federal.

Dizia o ex-ministro Guido Mantega que a beleza da tributação de movimentações financeiras é que “as pessoas nem sabem quanto pagam...; não pesa no bolso”. Pois bem. Em 2007, último ano em que foi cobrada, com alíquota de 0,38%, a extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) permitiu que o governo arrecadasse, sem que isso “pesasse no bolso” dos contribuintes, nada menos do que R$ 36,5 bilhões. A divisão do valor da arrecadação pela alíquota de 0,0038 revela o assombroso valor da base fiscal sobre a qual incidia a CPMF: R$ 9,6 trilhões. Cifra mais de três vezes e meia maior que o PIB de 2007!

A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF, que dava lugar a uma base fiscal fictícia, sem contrapartida econômica real, em contraste com o que ocorre com formas mais civilizadas de tributação, que incidem sobre renda, consumo, valor adicionado, folha de pagamento e riqueza. Uma alíquota “diminuta” sobre uma base gigantesca e artificial. O sonho da tributação populista.

Constatado o despropósito da ideia fixa de Cintra, resta discutir a ideia fixa de Paulo Guedes. Que fundamento tem sua convicção de que a eliminação da contribuição patronal teria um impacto extraordinário sobre o emprego?

O ponto crucial a ter em conta é que as evidências disponíveis, para um amplo leque de países, sugerem que a oferta de trabalho tende a ser muito insensível a variações nos salários. Altamente inelástica, como se diz em economia. E a razão é simples. A maioria esmagadora das pessoas que trabalham não pode deixar de trabalhar. Trabalha aos salários vigentes, sejam eles quais forem.

É por isso que, na literatura internacional de finanças públicas e economia do trabalho, há amplo consenso sobre o padrão de incidência de encargos sobre a folha. Não importa se rotulados de contribuição patronal ou do empregado, tais encargos acabam recaindo primordialmente sobre o assalariado.

Encargos sobre a folha não são propriamente uma “arma de destruição em massa de empregos”, como vem alardeando Paulo Guedes. Melhor seria rotulá-los de um mecanismo inexorável de compressão dos salários líquidos dos trabalhadores.

É fácil entender que, pela mesma razão que uma elevação dos encargos comprime salários, sem grande impacto sobre o emprego, a eliminação de encargos sobre a folha, em condições normais, traria primordialmente uma elevação de salários, sem grande impacto sobre o emprego.

O que, sim, pode fazer diferença é um quadro de desemprego em massa, como hoje se tem no país. Há um vasto contingente de desempregados dispostos a trabalhar aos salários vigentes. Até que a maior parte desse contingente seja empregada, a oferta de trabalho poderá mostrar-se extremamente elástica. E uma redução de encargos trabalhistas poderia ter um impacto maior sobre o emprego.

A questão é se — menos de oito anos após a irresponsável pajelança de desoneração da folha perpetrada pelo governo Dilma Rousseff — faria sentido promover novo e impensado desmantelamento da cobrança de encargos trabalhistas sobre a folha para, num arroubo imediatista, tentar acelerar a recuperação cíclica do emprego.

Operação Uruguai-Tabajara revela os hackers de instituições - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 26/07

Saber se os presos de agora são ou não a fonte é de uma irrelevância danada


Qual é o resultado de uma nova Operação Uruguai executada pelas Organizações Tabajara? A prisão de quatro hackers que teriam invadido os celulares de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e de mais uma penca de autoridades e entregado o conteúdo ao site The Intercept Brasil.

Estão querendo usar hackers de celulares para proteger hackers de instituições. Não vai funcionar.

Os mais jovens devem pesquisar. A “Operação Uruguai” foi uma trapalhada em que Fernando Collor e aliados se meteram para tentar impedir o impeachment. Deu errado. As Organizações Tabajara são uma criação da turma do “Casseta & Planeta”. Vendiam o impossível com notável incompetência.

Saber se os presos de agora são ou não a fonte anônima que entregou o material ao The Intercept Brasil é de uma irrelevância danada no que concerne à Lava Jato e ao devido processo legal.

Não serei eu aqui a dizer que um ex-DJ ou um ex-motorista de Uber que faz curso de eletricista não possam montar uma terrível organização criminosa para hackear autoridades e abalar a República. A Polícia Federal está aí para investigar.

Recomendo apenas cuidado com o ridículo histórico. Depois de o tal “Pavão Misterioso” ter inventando a “Conspiração Russa”, que alimentou a imaginação de idiotas e serviu à narrativa de pilantras, cumpre que a PF não estimule as fantasias dos hackers de “Araraquarovski e Ribeirão Pretogrado”.

Quem quer que tenha acompanhado as redes sociais na quarta (24) e nesta quinta (25) pode ter ficado com a impressão de que os jornalistasdo The Intercept Brasil estavam com um pé na cadeia e de que só a glória contemplava Moro, Deltan e alguns outros da Lava Jato. E, no entanto, o desespero dos que violaram o devido processo legal sob o pretexto de caçar corruptos nunca foi tão grande.

Que a PF apure a ação de hackers nesse e em outros casos, mas é bom saber o que dizer na frente de pessoas que não perderam o senso de ridículo. Quanto tempo demora para que desmorone a tentativa de transformar os vazamentos numa tramoia política? O objetivo dos hackers seria vender as informações para... o PT! É mesmo?

Esse tipo de raciocínio é sempre encantador porque os que o adotam transformam em bandidos aqueles a quem pretendem proteger. Quer dizer que os hackers de Araraquara, sabedores de que a Lava Jato havia feito lambança, tomaram a decisão de invadir os celulares dos protagonistas da operação para vender informações à legenda?

Mas por que o PT poderia ter a intenção de comprá-las se não houvesse nelas, então, a confissão de irregularidades e de crimes que poderiam ser úteis ao partido? Ou por outra: aquilo que só teria sido descoberto depois da invasão foi a causa do que se fez antes? É lógica para convencer os asnos.

Moro e Deltan, de todo modo, sempre me comovem. Os vazamentos ilegais ao longo de cinco anos da Lava Jato eram só “liberdade de imprensa”. Os de agora, qualquer que seja a origem, são crimes em favor de corruptos.

Entendo. No mundo ideal dessa dupla, há os que vazam e são enforcados e os que vazam e enforcam. Faço plágio assumido de Padre Vieira. Eu não tenho nem crimes nem criminosos de estimação.

Qualquer que seja a origem das informações divulgadas pelo site The Intercept Brasil, em parceria com outros veículos, pergunta-se: muda o conteúdo do que transitava entre os porões, a baixa política e as contas bancárias?

A propósito: se os hackers que foram presos são mesmo a fonte anônima do The Intercept Brasil, dada a variedade e a abrangência de interesses da turma, tanto pior para a teoria conspiratória inventada por Moro. Então não se trata de um complô de alvos da Lava Jato para destruir a operação, certo?

Ainda na quarta, no Twitter, o ministro se referia a “supostas mensagens obtidas por crime”. Entendi aquilo que ele chama “crime”: é a invasão. Mas como é que se invadem “mensagens supostas”?

E aqui uma ironia da história: à diferença de Moro e Deltan, eu estou entre os que atacaram duramente quatro das “Dez Medidas Contra a Corrupção”, muito especialmente a admissão em juízo de provas ilícitas. Eu as classifiquei de fascistoides.

Porque Moro e Deltan perderam aquela batalha e porque os que pensam como eu a venceram, não há chance de a dupla responder na esfera penal por aquilo que fizeram.

Vejam que coisa: os que os combateram, o tempo dirá, acabaram por protegê-los de si mesmos. O que não quer dizer que não devamos começar a punir os hackers de instituições.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Agora, o Nordeste - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 26/07

Episódios envolvendo Bolsonaro atestam orientação funesta de investir na divisão


Faz parte do bom comportamento democrático que o governante, uma vez escolhido pelas urnas, desça do palanque eleitoral e dê lugar a uma nova etapa da vida pública.

Se deve pautar-se pelos compromissos de campanha e buscar a implementação de seu programa, não é recomendável, por outro lado, que perca de vista o respeito pela minoria e a convivência civilizada com a divergência.

No plano das relações políticas e institucionais, um presidente precisa seguir à risca a Constituição e comportar-se segundo critérios republicanos, reconhecendo a legitimidade de seus opositores eleitos, estejam eles no Legislativo ou no comando de entes federativos.

Em tempos de exagerada polarização ideológica, esses critérios basilares parecem ameaçados, como se observa em um número não desprezível de países. No Brasil, já são caudalosos os maus exemplos em apenas sete meses do governo de Jair Bolsonaro (PSL).

O presidente, um tanto à moda de seu modelo norte-americano, Donald Trump, tem se pautado por atitudes de confronto com autoridades e órgãos públicos que por algum motivo lhe desagradem. Não hesita em aprofundar cisões e contemplar, acima de todos, a fração mais ideológica do eleitorado com a qual se identifica.

Os recentes episódios envolvendo a relação do mandatário com o Nordeste e seus governadores de estado, na maioria eleitos por siglas de oposição, atestam essa orientação funesta de investir na divisão e no ressentimento —característica, aliás, comumente apontada como um erro do discurso de esquerda, baseado no “nós contra eles”.

Depois de referir-se de maneira preconceituosa aos nordestinos e a governantes da região, Bolsonaro, na tentativa de redimir-se, promoveu uma pantomima na inauguração de um aeroporto em Vitória da Conquista, na Bahia.

Na cerimônia, diante de plateia selecionada para aplaudir um orador de chapéu de vaqueiro e fraseado postiço, Bolsonaro colheu o descaso do governador Rui Costa (PT), que não compareceu ao ato.

Nada obriga o mandatário a concordar com adversários ou a mudar de ideia quanto a seus projetos. É indispensável, porém, que procure um mínimo de distensão e se comporte segundo padrões republicanos —sob pena de continuar agravando rancores que contaminam a normalidade democrática.

Descaso institucional - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 26/07


Da mesma maneira que o ministro Sérgio Moro e o coordenador dos procuradores de Curitiba Deltan Dallagnol se recusam a dar credibilidade aos diálogos que vêm sendo divulgados pelo Intercept Brasil, os controladores do site também se negam a confirmar que sejam os hackers presos a fonte original do material publicado.

Mesmo depois de Walter Delgatti Neto, um dos presos, ter admitido que deu acesso ao diretor do site, Glenn Greeenwald, ao material hackeado. Delgatti acrescentou que passou os dados sem cobrar ou receber vantagem financeira em troca. Não parece ser o perfil de uma pessoa envolvida em estelionato e falsificação de documentos.

Os três têm a mesma motivação: não querem reconhecer possíveis delitos. Todos dependem de interpretações jurídicas para validar seus atos, como já largamente analisados. Os hackers não escapam de uma condenação, mas dizer não ter vendido o material é uma tentativa de dar um ar político à atuação. O que deve ser facilmente desmontado pelas investigações.

Os crimes imputados aos hackers são de invasão de dispositivo eletrônico e interceptação de comunicação. O crime foi consumado quando eles invadiram os telefones e captaram as mensagens.

O que impressiona é a amplitude da ação criminosa, a revelar um completo descaso de nossas autoridades com a segurança institucional. Foram hackeados os chefes do Executivo, Bolsonaro e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado Davi Alcolumbre. Também ministros do Supremo, do STJ, e diversas autoridades. Além de destacar brechas no sistema de segurança das telefônicas, cujas listas de números podem ser compradas no mercado paralelo por estelionatários.

Os fatos demonstram também que nem Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário têm normas de segurança seguidas por seus líderes. O presidente Bolsonaro diz que só usa o celular pessoal para comunicações não oficiais, esquecendo-se de que qualquer mensagem ou fala do presidente tem caráter oficial.

O uso indiscriminado das redes sociais para propaganda política é tão importante quanto uma nota oficial. E já deu muito problema político por permitir que seu filho Carlos usasse sua senha para mandar recados como se fossem de seu pai.

A utilização do twitter é um hábito que Bolsonaro copia do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu grande ídolo. Nos Estados Unidos, a utilização de meios particulares para atividade oficial já deu muita dor de cabeça a Hillary Clinton que, quando Secretária de Estado no governo Obama, dispensou o e-mail oficial para usar o seu privado, mesmo para assuntos de Estado.

O caso provocou o temor de que informações sigilosas do Departamento de Estado circulassem em redes de caráter privado, ou estivessem expostas a ataques de hackers. Durante as investigações, que ocorreram na campanha presidencial, prejudicando-a como candidata, o inspetor-geral do Departamento de Estado afirmou que ela não pediu permissão para adotar um servidor privado. Hillary sofreu com o hackeamento de suas mensagens, alegadamente feito por russos para beneficiar Trump.

Voltando ao nosso caso de hackeamento, a informação de que as mensagens seriam destruídas, anunciada pelo presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, acabou desmentida pelo ministério da Justiça. Destruir provas é crime, só um juiz pode decidir sobre isso.

Mas se o juiz mandar desentranhá-la dos autos, os hackers podem ser absolvidos por falta de prova. O juiz tem que se basear no que está no processo no momento em que for dar a sentença. Por isso se diz que “o que não está nos autos, não está no mundo”. Se o juiz usar as provas na sentença ele não pode destruí-las depois, porque elas têm que ser avaliadas pelas instâncias superiores.

Interferências indevidas - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - Opinião - 26/07/2019


A suspensão da nova tabela de fretes faz parte de uma sucessão de erros. É preciso que os Poderes cumpram seu papel.


A suspensão da nova tabela de fretes faz parte de uma vergonhosa sucessão de erros. Não bastasse a evidente inconstitucionalidade da interferência no livre mercado representada pela fixação de preços mínimos do transporte rodoviário de cargas, o governo de Jair Bolsonaro conseguiu agregar ainda dois novos equívocos ao imbróglio. Aceitou ser refém das ameaças dos caminhoneiros e ainda interferiu desbragadamente na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Para agravar o quadro, a diretoria da agência reguladora, abandonando qualquer escrúpulo de autonomia institucional, curvou-se às pressões do Palácio do Planalto e determinou a suspensão da Resolução 5.849/2019. No momento, vale a atualização de valores feita em abril deste ano.

Em 16 de julho, a ANTT publicou a Resolução 5.849/2019, atualizando regras e valores relativos aos “pisos mínimos, referentes ao quilômetro rodado na realização do serviço de transporte rodoviário remunerado de cargas”. Era mais uma versão da tabela de fretes, oriunda da “Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas”, que foi instituída no ano passado pela Medida Provisória (MP) 832/2018, depois convertida na Lei 13.703/2018. Evidentemente inconstitucional, essa legislação foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), que inexplicavelmente ainda não se pronunciou.

Insatisfeitos com os valores fixados pela Resolução 5.849/2019, os caminhoneiros ameaçaram promover paralisações de estradas e rodovias. Diante da ameaça, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, expediu decisão cautelar suspendendo temporariamente a nova tabela do frete rodoviário. Era o governo federal, uma vez mais, adotando a incompreensível postura de submissão perante alguns grupos de caminhoneiros. Em vez de defender o interesse público e exigir o cumprimento da lei e da ordem, o Executivo federal rendeu-se às bravatas de alguns. Na decisão, o ministro ainda solicitou que a ANTT revisse sua posição.

Em reunião extraordinária ocorrida no mesmo dia do pedido do ministro Tarcísio Freitas, a diretoria da agência suspendeu a Resolução 5.849/2019. A explicação da ANTT sobre a suspensão da medida é uma confissão da sua falta de independência em relação às pressões políticas do Executivo. A agência reconhece que a resolução foi resultado de uma audiência pública que contou com “a participação de transportadores autônomos, empresas e cooperativas de transporte, contratantes de frete, embarcadores e diversos outros agentes da sociedade”.

Mas, após o pedido do Ministério da Infraestrutura, os diretores da ANTT optaram por suspender cautelarmente a Resolução diante das “notícias iminentes de greve de caminhoneiros” e da “insatisfação de parcela significativa” da categoria. O órgão regulador diz que levou em conta a necessidade de “evitar dano irreparável ou de difícil reparação”, como “prejuízos econômicos em paralisações” e a redução da “instabilidade no setor de cargas”.

“A Agência reitera o compromisso com todos os envolvidos de manter um diálogo constante, a fim de buscar um consenso no setor de transporte rodoviário de cargas e pretende ampliar o debate sobre a matéria”, diz a nota da ANTT. É realmente peculiar que o órgão regulador, em vez de cumprir sua missão institucional, opte por ser submisso ao governo e às ameaças de alguns caminhoneiros que não desejam nenhum tipo de diálogo. A disjuntiva desses grupos de pressão é sempre a mesma: ou o governo faz o que querem ou paralisam o País.

Na campanha eleitoral do ano passado, Jair Bolsonaro apoiou a greve dos caminhoneiros. Agora na condição de presidente da República, Jair Bolsonaro continua atuando como se fosse representante dos interesses dessa categoria profissional. É preciso que o Executivo assuma incondicionalmente a defesa do interesse público e que o Judiciário declare o quanto antes a inconstitucionalidade da Lei 13.703/2018. Quando os Poderes não cumprem o seu papel, quem impera não é a lei, mas a ameaça de alguns.

Os perigos eletrônicos que ameaçam todos - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 26/07

Esclarecer a invasão dos telefones de Moro e Dallagnol é vital para se começar a coibir este tipo de crime


Ainda faltam informações mais sólidas e conclusivas sobre se os hackers encontrados pela Polícia Federal no interior de São Paulo — Walter Delgatti Neto, o provável chefe deles — estão mesmo por trás da invasão dos aplicativos de mensagens do ex-juiz Sergio Moro, e do procurador Deltan Dallagnol, de onde retiraram conversas que poderiam comprometer a lisura da Lava-Jato.

Há vários indícios de que é possível a participação dos detidos no crime. Gustavo Henrique Elias Santos e mulher, Suelen Priscila, com rendas declaradas de menos de R$ 3 mil mensais, movimentaram R$ 627 mil nos períodos de abril a junho de 2018 e de março a maio deste ano. Aqui, um alerta ao Pleno do Supremo para que avalie com a devida atenção a proibição baixada pelo ministro Dias Toffoli a que o Ministério Público tenha um acesso mais amplo aos dados do Coaf sobre movimentações bancárias.

A ficha criminal de Gustavo e de dois outros envolvidos no caso, Walter Delgatti Neto e Danilo Cristiano Marques, é suja — estelionatos em geral, clonagem de cartões de crédito etc.

O advogado de Gustavo disse que o cliente lhe contara que sua intenção era vender o material ao PT. Deve-se aguardar as investigações, nas quais é imprescindível que se levante a origem do dinheiro encontrado com o casal.

O caso de hackeamento de incontáveis autoridades, até do presidente, se confirmado, amplia a discussão em torno da invasão de privacidade. Por inevitável, militantes e simpatizantes do lulopetismo desejam invalidar condenações no âmbito da Lava-Jato, principalmente de Lula, mesmo que o veredicto do ex-presidente tenha sido confirmado por mais duas instâncias.

O debate persistirá. Juristas nada viram de anormal nas supostas conversas entre Moro e Dallagnol, que negam a veracidade das mensagens. E elas não podem ser periciadas porque o site Intercept não dá acesso à íntegra do material, que também passou a ser divulgado pela “Folha de S.Paulo” e “Veja”. Mas não parece haver dúvidas de que os textos são editados.

Um aspecto a destacar são as amplas possibilidades que a tecnologia digital permite a invasões de privacidade. Na quarta, ao comparecer ao Congresso americano para depor, o procurador especial Robert Mueller, responsável pela equipe que investigou durante longo tempo a campanha do presidente Trump, disse que os russos continuarão a intervir na política americana. Como fizeram em 2016 pelo Facebook, em apoio à candidatura de Trump. No Brasil este tipo de interferência eletrônica já tem sido detectado.

O que não está em questão é a publicação do material, porque há garantias constitucionais à liberdade de imprensa e de expressão. A não ser que haja conivência com os hackers.

Mas é preciso saber como a privacidade foi quebrada, por quem, por quais meios e se houve interessados por trás. Só assim, não o deixando impune, será possível criar algum desestímulo a este tipo de crime.