O problema do pensamento utilitarista é que ele é assaz flexível
Quando os recursos são escassos, quem deve receber tratamento intensivo durante a Covid-19? A pergunta, que habitava os livros de filosofia moral, passou a ocupar os cálculos médicos em todo o mundo.
Devemos salvar os jovens e sacrificar os velhos?
Devemos salvar os saudáveis e abandonar os doentes?
Nada é assim tão fácil. Mas, quando o desespero aperta, o cálculo utilitarista é a primeira arma.
Na Itália, no meio de uma inimaginável catástrofe, doentes com mais de 60 anos não foram, digamos, “prioritários”.
Existem outros critérios. No Reino Unido, o National Institute for Health and Care Excellence publicou um guia em que distribui as potenciais vítimas em nove níveis.
No primeiro nível estão os “very fit”, gente atlética. No último estão os doentes terminais, o que permite imaginar que, em caso de necessidade, eles serão os primeiros a cumprir o seu dever para com a sociedade.
Quando olhei para a tabela, tentei me situar na cadeia alimentar. Honestidade? Quando a pandemia começou, era um caso típico de nível dois (“well”, sem doenças crônicas, excetuando as mentais).
Hoje, com mais uns quilos e uma sensação de atrofia geral, estou no três (“managing well”), já a espreitar o quatro (“vulnerable”).
Cuidado, Coutinho. A partir do nível cinco (“moderately frail”), entram os cálculos utilitaristas em jogo.
Longe de mim criticar esses cálculos. Pelo contrário: agradeço a todos os santos não estar na linha de frente, a calcular a vida dos outros. Embora, aqui do meu canto, a pergunta seja inevitável: será possível calcular a vida dos outros?
Entendo a lógica utilitarista: garantir a maior felicidade para o maior número significa que gente jovem e saudável terá mais anos de vida do que um velho rezinga com coração preguiçoso. Como dizem os lusos, não vamos desperdiçar cera com tão ruim defunto.
O problema do pensamento utilitarista é que ele é assaz flexível. Serve para medir jovens contra velhos. Mas também pode ser aplicado a pobres e ricos.
Se a ideia luminosa é maximizar a felicidade do maior número, por que não escolher salvar um cidadão rico, que contribui para a comunidade gerando empregos e pagando impostos, sacrificando um cidadão pobre, que é apenas um encargo para todos?
Mas o problema do pensamento utilitarista não está apenas na possibilidade de gerar situações moralmente repulsivas como essa. O utilitarismo tende a ser cego para questões intangíveis, que não são facilmente mensuráveis.
Retorno ao hospital. Retorno ao jovem e ao velho. Por que motivo devo salvar um jovem com um historial de delinquência e abandonar um velho com uma conduta exemplar?
E se o velho em questão tiver família que depende dele, ao contrário do jovem? E se o velho for médico, artigo raro em situação de pandemia? E se for um grande artista?
A idade não encerra o debate. O valor moral ou intelectual de uma pessoa pode ser mais importante do que o ano em que ela nasceu.
Já sei, já sei: existe uma forma aparentemente neutra de fazer escolhas trágicas. Familiares médicos, confrontados com as minhas divagações, usaram a bomba atômica: devemos dar prioridade a quem tem mais hipótese de sobrevivência. Ponto final.
Não interessa se é jovem ou velho, criminoso ou santo, analfabeto ou sábio. É o corpo que manda.
Esmagado com tanta sapiência, desisti: como negar esse determinismo do corpo?
Bom, talvez lembrando que, no mundo real, a escolha não é entre corpos saudáveis e corpos putrefatos.
Exemplo: dias atrás, informava o Guardian que, no Reino Unido, ventiladores que estavam sendo usados por pacientes estáveis e até com ligeiras melhorias foram removidos para socorrerem outros doentes com probabilidades de sobrevivência maiores.
Eis um caso em que os médicos trocaram provas tangíveis de progresso por uma probabilidade teórica de sucesso.
Repito: agradeço a todos os santos não estar na linha de frente para fazer essas escolhas. Porque elas são agônicas, trágicas e, ao contrário do que afirmam os utilitaristas, incomensuráveis. Os valores em confronto podem ser tão radicalmente distintos que não há uma solução mágica para o dilema.
Da minha parte, tudo o que posso fazer é começar uma dieta, experimentar a esteira elétrica e tentar voltar ao nível dois. Meu objetivo é tornar mais difícil a escolha difícil dos médicos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.