ZERO HORA - 16/02
Nem uma, nem duas, mas oito pessoas me enviaram e-mails exigindo que eu me posicionasse sobre a acusação de que Woody Allen abusou sexualmente de uma filha adotiva quando esta tinha sete anos. Isso mesmo, eu, que não sou irmã, prima, esposa, advogada, terapeuta, amante ou vizinha do Woody Allen, senti como se me jogassem tomates em plena rua. E agora, o que você nos diz sobre seu ídolo, hein, hein?. Me chamaram para a briga.
Não deixo de admirar os filmes do Polanski mesmo ele tendo sido acusado de abuso sexual, nem deixo de me emocionar com a obra de Picasso mesmo sabendo que ele tinha um caráter peçonhento, e não vou deixar de reverenciar a filmografia do Woody Allen mesmo que um dia se comprove sua depravação – da qual sigo duvidando. Mia Farrow, sim, é que não me parece de confiança.
Estou sendo tendenciosa? Ora, estou sendo hiper, super, megatendenciosa, pois é incômodo acreditar que um sujeito com capacidade de transformar neuroses em tiradas geniais, um homem que extrai o melhor de seu elenco, que é fiel à sua equipe técnica, que ama o jazz, que não se deixa bajular por tapetes vermelhos, que deu ao mundo filmes como Manhattan, Hannah e Suas Irmãs, Crimes e Pecados, Match Point e tantas outras obras-primas, vá ferrar com a vida de uma garotinha. É a palavra de um contra o outro, então me dou o direito de escolher de que lado ficar.
A questão é pessoal, familiar e intricada. Allen leva sobre os ombros as acusações de ter seduzido a jovem Soon-Yi, adotada por Mia Farrow e o ex-marido dela, André Previn. Segundo Allen, ele e Soon-Yi nunca tiveram relação de pai e filha nem mesmo moravam sob o mesmo teto (ele e Mia moravam em casas separadas e a moça morava com a mãe). O romance vingou e estão casados até hoje, e lá se vão uns 20 anos – não era um capricho, como se vê. Mas foi suficiente para deixar a ex-esposa ferida em seu orgulho e a opinião pública disposta a julgar o diretor sem atenuar nada.
Será Woody Allen um tarado, um pedófilo, um cara que deveria estar atrás das grades? Não acredito, mas tudo pode nesse mundo maluco. Ainda assim, devemos deixar de admirar o trabalho daqueles que não vivem com retidão? Se um presidiário escrever uma emocionante peça de teatro ou esculpir magistralmente, não merecerá reconhecimento pelo que faz pela arte, a despeito do que fez contra a sociedade? Deixo aqui essas perguntas porque não tenho resposta conclusiva para a questão. Mas vale lembrar aquela máxima de Nelson Rodrigues: se soubéssemos o que cada um faz na intimidade, ninguém cumprimentaria ninguém.
Tomara que nenhuma agressão tenha acontecido de fato, mas se aconteceu, sinto muito, não conseguirei gostar menos dos filmes de Woody Allen. Apenas deixarei de cogitar ter um filho com ele – vá saber.
domingo, fevereiro 16, 2014
Tragédia desnecessária - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 16/02
Hoje, muitas clínicas psiquiátricas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos
A morte de Eduardo Coutinho chocou o país e particularmente os seus amigos. Morrer assassinado era a última coisa que alguém poderia prever que ocorresse com ele. Por isso mesmo, ao chegar em casa e ver seu rosto na televisão, me detive pensando que se tratava de alguma notícia relacionada com sua atividade de cineasta. Não era, logo ouvi o locutor dizer que ele havia morrido, e fiquei surpreso. E logo acrescentou que havia sido morto por seu filho Daniel, de 41 anos.
Não dava para acreditar naquilo, era absurdo demais. Não obstante, aos poucos, aquele quadro trágico ia se completando e ganhando realidade. O filho era doente mental e consumia drogas. Matara o pai a facadas e tentara fazer o mesmo com a mãe; em seguida, esfaqueou-se a si mesmo, mas não morreu.
Teria declarado a um vizinho que fizera aquilo para libertar os pais e a si mesmo. Sem dúvida, é preciso estar louco e surtado para pensar e agir dessa maneira. Depois de saber essas coisas, não restava dúvida: Daniel agira tomado por um surto esquizofrênico.
Não sabia que Eduardo Coutinho tinha um filho com esse problema. Segundo ouvir dizer, parece que ele não admitia que o filho fosse doente mental e, se isso for verdade, certamente evitava tratá-lo com tal. Pode não ser verdade mas, se for, não seria o único caso de uma família não admitir que algum de seus membros seja louco. Conheci uma família que manteve trancado num quarto, por mais de uma década, um filho com problemas psíquicos.
Esse tipo de comportamento decorre quase sempre de uma visão preconceituosa da doença mental, como se sua incidência na família fosse uma espécie de maldição. Era assim no passado. Hoje, no entanto, são pessoas avançadas que negam a existência da doença mental. Segundo elas, trata-se apenas de um relacionamento diferente com o mundo real. Admitir que alguém é louco seria nada mais nada menos que um preconceito.
Certamente, quem pensa assim nunca viveu de fato o problema. Como pega bem mostrar-se avançado, aberto, antirrepressivo, muita gente não apenas nega que a loucura seja doença como, coerentemente, se opõe à internação nos chamados "manicômios". Criaram até um movimento que se intitula "antimanicomial", que visa, de fato, acabar com as clínicas psiquiátricas, uma vez que o que se chama de manicômio não existe mais.
É verdade que, no passado, a internação nesses hospitais implicava em agressão física e choques elétricos, mas não por simples crueldade e, sim, pelo desconhecimento das causas da doença e de medicamentos apropriados.
Com a descoberta dos remédios neuroléticos, os hospitais psiquiátricos mudaram radicalmente. Hoje, muitas dessas clínicas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos. Já não lembram em nada os hospícios de antigamente, que mais pareciam prisões.
Os adeptos da nova psiquiatria fazem por ignorar essa mudança para justificar sua tese contra a internação. Essa tese surgiu em Bolonha, onde foi implantada com resultados desastrosos: os doentes pobres terminavam nas ruas como mendigos.
Isso já começa a acontecer no Brasil que, tendo adotado a tal nova psiquiatria, levou à extinção de mais de 30 mil leitos em hospitais públicos. Quem tem recursos interna seus doentes em clínicas particulares, enquanto os doentes pobres morrem na rua. E isso é obra de um governo que diz trabalhar em favor dos necessitados.
Tive oportunidade de conversar com pessoas que se opõem à internação de doentes mentais e me dei conta de que nada sabem da doença e aceitam a nova psiquiatria por acreditarem que favorece aos doentes. Na verdade, a internação só tem cabimento quando o doente entra em surto e consequentemente torna-se um perigo para si mesmo e para os outros. Foi o que aconteceu no caso de Eduardo Coutinho.
Desconheço a situação por que passava sua família naquele momento, mas não resta dúvida de que o filho Daniel, que é esquizofrênico, entrou em surto. Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que, se o tivessem feito, aquela tragédia dificilmente teria ocorrido.
Espero que esse exemplo terrível leve as pessoas refletirem melhor sobre essa questão.
Hoje, muitas clínicas psiquiátricas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos
A morte de Eduardo Coutinho chocou o país e particularmente os seus amigos. Morrer assassinado era a última coisa que alguém poderia prever que ocorresse com ele. Por isso mesmo, ao chegar em casa e ver seu rosto na televisão, me detive pensando que se tratava de alguma notícia relacionada com sua atividade de cineasta. Não era, logo ouvi o locutor dizer que ele havia morrido, e fiquei surpreso. E logo acrescentou que havia sido morto por seu filho Daniel, de 41 anos.
Não dava para acreditar naquilo, era absurdo demais. Não obstante, aos poucos, aquele quadro trágico ia se completando e ganhando realidade. O filho era doente mental e consumia drogas. Matara o pai a facadas e tentara fazer o mesmo com a mãe; em seguida, esfaqueou-se a si mesmo, mas não morreu.
Teria declarado a um vizinho que fizera aquilo para libertar os pais e a si mesmo. Sem dúvida, é preciso estar louco e surtado para pensar e agir dessa maneira. Depois de saber essas coisas, não restava dúvida: Daniel agira tomado por um surto esquizofrênico.
Não sabia que Eduardo Coutinho tinha um filho com esse problema. Segundo ouvir dizer, parece que ele não admitia que o filho fosse doente mental e, se isso for verdade, certamente evitava tratá-lo com tal. Pode não ser verdade mas, se for, não seria o único caso de uma família não admitir que algum de seus membros seja louco. Conheci uma família que manteve trancado num quarto, por mais de uma década, um filho com problemas psíquicos.
Esse tipo de comportamento decorre quase sempre de uma visão preconceituosa da doença mental, como se sua incidência na família fosse uma espécie de maldição. Era assim no passado. Hoje, no entanto, são pessoas avançadas que negam a existência da doença mental. Segundo elas, trata-se apenas de um relacionamento diferente com o mundo real. Admitir que alguém é louco seria nada mais nada menos que um preconceito.
Certamente, quem pensa assim nunca viveu de fato o problema. Como pega bem mostrar-se avançado, aberto, antirrepressivo, muita gente não apenas nega que a loucura seja doença como, coerentemente, se opõe à internação nos chamados "manicômios". Criaram até um movimento que se intitula "antimanicomial", que visa, de fato, acabar com as clínicas psiquiátricas, uma vez que o que se chama de manicômio não existe mais.
É verdade que, no passado, a internação nesses hospitais implicava em agressão física e choques elétricos, mas não por simples crueldade e, sim, pelo desconhecimento das causas da doença e de medicamentos apropriados.
Com a descoberta dos remédios neuroléticos, os hospitais psiquiátricos mudaram radicalmente. Hoje, muitas dessas clínicas possuem campos de esporte e salas de leitura e de jogos. Já não lembram em nada os hospícios de antigamente, que mais pareciam prisões.
Os adeptos da nova psiquiatria fazem por ignorar essa mudança para justificar sua tese contra a internação. Essa tese surgiu em Bolonha, onde foi implantada com resultados desastrosos: os doentes pobres terminavam nas ruas como mendigos.
Isso já começa a acontecer no Brasil que, tendo adotado a tal nova psiquiatria, levou à extinção de mais de 30 mil leitos em hospitais públicos. Quem tem recursos interna seus doentes em clínicas particulares, enquanto os doentes pobres morrem na rua. E isso é obra de um governo que diz trabalhar em favor dos necessitados.
Tive oportunidade de conversar com pessoas que se opõem à internação de doentes mentais e me dei conta de que nada sabem da doença e aceitam a nova psiquiatria por acreditarem que favorece aos doentes. Na verdade, a internação só tem cabimento quando o doente entra em surto e consequentemente torna-se um perigo para si mesmo e para os outros. Foi o que aconteceu no caso de Eduardo Coutinho.
Desconheço a situação por que passava sua família naquele momento, mas não resta dúvida de que o filho Daniel, que é esquizofrênico, entrou em surto. Não sei por que os pais não solicitaram atendimento médico para interná-lo, mas não tenho dúvida de que, se o tivessem feito, aquela tragédia dificilmente teria ocorrido.
Espero que esse exemplo terrível leve as pessoas refletirem melhor sobre essa questão.
Chave do carro - FABRÍCIO CARPINEJAR
ZERO HORA - 16/02
Ao perguntar para o homem se ele quer dirigir seu carro, a mulher se mostra apaixonada. Perdidamente interessada.
É um pedido implícito de namoro.
Ninguém está bêbado, estão se conhecendo, sóbrios das palavras e sussurros, e ela concretiza esta prova de amor.
Entrega a chave sorrindo, como se fosse um prêmio de loteria federal.
Não é uma artimanha da sedução, um teste para ver se ele dirige bem ou não, para classificar ou desclassificar o sujeito.
O pretendente talvez seja um péssimo motorista, um barbeiro, com mais de 20 pontos na carteira, nada mudará a natureza da declaração.
Ela não se preocupa com o que vai acontecer, porque dentro dela já aconteceu. Não há acidente que interrompa a escolha de seu coração.
Quando uma mulher oferece seu carro — e só a mulher —, é que ela se entregou para a história.
É quando duplica sua alma. É quando se confessa vulnerável. É quando se anuncia disposta a construir uma vida a dois.
É mais do que um “eu te amo”, é um “não tenho mais reservas com você, não tenho mais segredos, não tenho mais medo”.
Ela vem a dizer que aquilo que é dela é também dele. Ela vem a dizer que ele pode guiá-la, que pode cuidá-la, que pode levá-la para o mau caminho, tanto faz o fim, pois chegaram ao destino no momento em que se encontraram.
A chave do carro é mais importante do que a cópia da chave do apartamento.
Porque o carro não é o mundo para a mulher, como é para o homem. Não é aventura para a mulher, como é para o homem. Não é ostentação para a mulher, como é para o homem. Não é um investimento e senha bancária para a mulher, como é para homem.
Na perspectiva feminina, o carro é extensão de sua personalidade, conquista afetiva, intimidade. É seu quarto, seu guarda-roupa, seu salão de beleza móvel.
Ela não tomará a atitude intempestivamente. Foi um gesto pensado, ponderado, maduro.
Alcançará o posto como um convite psicológico para que ele assuma o ponto de vista dela.
É o equivalente a “ponha-se no meu lugar” e “olhe por mim e através de mim”.
Não tem machismo envolvido, não é fraqueza educada. Trata-se de um sinal de confiança.
É um ato de muita coragem, um mergulho consciente nas inconsequências da paixão.
Talvez conte com seguro do veículo, mas dificilmente terá seguro para cobrir o relacionamento. E ela não se importa.
Ao perguntar para o homem se ele quer dirigir seu carro, a mulher se mostra apaixonada. Perdidamente interessada.
É um pedido implícito de namoro.
Ninguém está bêbado, estão se conhecendo, sóbrios das palavras e sussurros, e ela concretiza esta prova de amor.
Entrega a chave sorrindo, como se fosse um prêmio de loteria federal.
Não é uma artimanha da sedução, um teste para ver se ele dirige bem ou não, para classificar ou desclassificar o sujeito.
O pretendente talvez seja um péssimo motorista, um barbeiro, com mais de 20 pontos na carteira, nada mudará a natureza da declaração.
Ela não se preocupa com o que vai acontecer, porque dentro dela já aconteceu. Não há acidente que interrompa a escolha de seu coração.
Quando uma mulher oferece seu carro — e só a mulher —, é que ela se entregou para a história.
É quando duplica sua alma. É quando se confessa vulnerável. É quando se anuncia disposta a construir uma vida a dois.
É mais do que um “eu te amo”, é um “não tenho mais reservas com você, não tenho mais segredos, não tenho mais medo”.
Ela vem a dizer que aquilo que é dela é também dele. Ela vem a dizer que ele pode guiá-la, que pode cuidá-la, que pode levá-la para o mau caminho, tanto faz o fim, pois chegaram ao destino no momento em que se encontraram.
A chave do carro é mais importante do que a cópia da chave do apartamento.
Porque o carro não é o mundo para a mulher, como é para o homem. Não é aventura para a mulher, como é para o homem. Não é ostentação para a mulher, como é para o homem. Não é um investimento e senha bancária para a mulher, como é para homem.
Na perspectiva feminina, o carro é extensão de sua personalidade, conquista afetiva, intimidade. É seu quarto, seu guarda-roupa, seu salão de beleza móvel.
Ela não tomará a atitude intempestivamente. Foi um gesto pensado, ponderado, maduro.
Alcançará o posto como um convite psicológico para que ele assuma o ponto de vista dela.
É o equivalente a “ponha-se no meu lugar” e “olhe por mim e através de mim”.
Não tem machismo envolvido, não é fraqueza educada. Trata-se de um sinal de confiança.
É um ato de muita coragem, um mergulho consciente nas inconsequências da paixão.
Talvez conte com seguro do veículo, mas dificilmente terá seguro para cobrir o relacionamento. E ela não se importa.
Crônicas de hotel - TONY BELLOTTO
O GLOBO - 16/02
Histórias passadas em hotéis, do Rio de Janeiro a Nova Orleans
Hotel Perpignan, Paris
Pela janela eu via os edifícios ocres do bairro em que vivíamos. Eu tentava desenhar um toureiro no momento em que ele crava a espada na carne suada do touro. Minha mãe entrou chorando no quarto do hotel: “Mataram o Martin Luther King!”, disse, brandindo um jornal enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Hotel Prins Hendrik, Amsterdã
Não saberemos jamais no que pensava Chet Baker quando despencou da janela do hotel para a morte. Podemos supor que se lembrava do céu azul na primavera em Yale, Oklahoma, onde nasceu, muito longe dali. Testemunhas declararam que havia gaivotas sobrevoando o local e que seus guinchos remetiam ao som de um trompete.
Hotel Intercontinental, Bora-Bora
Acordamos de madrugada com o vento rugindo. Uma arraia gigante deslizava sob o chão de vidro da palafita como se fugisse de alguma coisa. Ligamos para a recepção: “É o tufão?”. “Não”, respondeu o recepcionista. “É só o vento.” Quando amanheceu ainda não tínhamos pegado no sono. Ventou forte durante três dias.
Hotel Saint Peter House, Nova Orleans
O investigador González não acreditou no que viu. “Como esse cara conseguiu morrer assim?”, pensou. O cadáver se enrolava como um pretzel debaixo da mesa do quarto número 37. A polícia nunca concluiu se foi homicídio, overdose ou algum tipo de bruxaria. González ficou indiferente quando soube que o morto era Johnny Thunders, ex-guitarrista dos New York Dolls.
Hotel Novo Mundo, Rio de Janeiro
De madrugada, ao voltar para o hotel, reparei mais uma vez na placa comemorativa do milésimo gol de Pelé, que se hospedara ali no dia do jogo histórico. Eu ainda não conseguira dormir quando o sol nasceu sobre o aterro, iluminando os jardins de Burle Marx. Desci para o café. Peninha estava sentado sozinho numa mesa. Ovelha servia-se de ovo mexido.
Hotel Royal, Porto Alegre
“O quarto é muito pequeno, chê”, disse a mulher para o poeta Mário Quintana. “Não me conformo que tenham te despejado do Majestic. O quarto lá era muito melhor!”. “Eu moro em mim mesmo”, confortou-a o poeta. “Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder minhas coisas.”
Hotel Chelsea, Nova York
Quem entra no quarto número 100 do hotel não consegue deixar de olhar fixamente para a porta do banheiro. Se a porta estiver fechada, a morbidez e a curiosidade se aguçam. Algumas pessoas não se contêm e correm para abrir a porta. E então imaginam Nancy Spungen morta com a faca de Sid Vicious enterrada no ventre.
Hotel Rio Poty, Teresina
As portas dos quartos estavam abertas quando o sujeito irrompeu pelo corredor gritando: “Cadê o segurança?”. O que dava consistência à indagação é que ele carregava um revólver. Alguns fecharam as portas, eu corri para a varanda. O segurança tinha agredido o sujeito quando este se aproximara da van, depois do show, atrás de autógrafos.
Beat Hotel, Paris
Quando o gato de madame Rachou caiu de uma janela do quarto andar, os hóspedes pensaram que ele encontrara a morte na calçada da rua Git-le-Coeur. William Burroughs, que morava no hotel, levou o gato para seu quarto. O felino estava vivo e tinha apenas quebrado uma perna. Na companhia do escritor, logo se recuperou. Burroughs preferia gatos a humanos.
Hotel Nikkey, São Paulo
Sozinho no quarto do hotel, eu não conseguia pregar o olho. Não podia voltar para casa, sob o risco de ser encontrado por um oficial de Justiça e ter de cancelar minha viagem para Montreux, onde gravaríamos um disco. A programação da TV já tinha acabado. Olhei o bairro da Liberdade, vazio àquela hora da madrugada, e liguei o rádio. Tocava “Sonífera ilha”.
Hotel Marriot, Atlanta
“Onde é que você meteu o cinto do papai, garoto?”. Meu filho me olhou com aquela carinha de que não fazia a menor ideia. Já tínhamos revirado o quarto do hotel umas cinco vezes. O quarto não era grande. Meu filho vivia fazendo as coisas sumirem. Eu achava que ele era um mágico em potencial. O cinto nunca foi encontrado.
Hotel Ambos Mundos, Havana
Mais cedo, quando visitamos a casa, lembramos das palavras de García Márquez sobre os sapatos do escritor que a habitara. Lá se podem ver igualmente os chinelos no chão do banheiro. À tarde, no quarto 511 do hotel, onde Hemingway também viveu, nada nos impressionou tanto quanto a visão de seus sapatos pela manhã, nem mesmo a luminosidade de Havana entrando pela janela.
Hotel Seventeen, Nova York
De manhã, na fila para o banheiro, vi um junkie desdentado com uma bandana vermelha na cabeça, três garotas punks japonesas — uma delas carregava um estojo de guitarra —, um garoto moreno latino com uma jaqueta de couro e Dorothy, uma senhora alcoólatra que nunca se separava de sua garrafa de gim. “Hi”, eu disse, mas Dorothy tinha o olhar perdido em algum lugar muito longe dali.
Histórias passadas em hotéis, do Rio de Janeiro a Nova Orleans
Hotel Perpignan, Paris
Pela janela eu via os edifícios ocres do bairro em que vivíamos. Eu tentava desenhar um toureiro no momento em que ele crava a espada na carne suada do touro. Minha mãe entrou chorando no quarto do hotel: “Mataram o Martin Luther King!”, disse, brandindo um jornal enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Hotel Prins Hendrik, Amsterdã
Não saberemos jamais no que pensava Chet Baker quando despencou da janela do hotel para a morte. Podemos supor que se lembrava do céu azul na primavera em Yale, Oklahoma, onde nasceu, muito longe dali. Testemunhas declararam que havia gaivotas sobrevoando o local e que seus guinchos remetiam ao som de um trompete.
Hotel Intercontinental, Bora-Bora
Acordamos de madrugada com o vento rugindo. Uma arraia gigante deslizava sob o chão de vidro da palafita como se fugisse de alguma coisa. Ligamos para a recepção: “É o tufão?”. “Não”, respondeu o recepcionista. “É só o vento.” Quando amanheceu ainda não tínhamos pegado no sono. Ventou forte durante três dias.
Hotel Saint Peter House, Nova Orleans
O investigador González não acreditou no que viu. “Como esse cara conseguiu morrer assim?”, pensou. O cadáver se enrolava como um pretzel debaixo da mesa do quarto número 37. A polícia nunca concluiu se foi homicídio, overdose ou algum tipo de bruxaria. González ficou indiferente quando soube que o morto era Johnny Thunders, ex-guitarrista dos New York Dolls.
Hotel Novo Mundo, Rio de Janeiro
De madrugada, ao voltar para o hotel, reparei mais uma vez na placa comemorativa do milésimo gol de Pelé, que se hospedara ali no dia do jogo histórico. Eu ainda não conseguira dormir quando o sol nasceu sobre o aterro, iluminando os jardins de Burle Marx. Desci para o café. Peninha estava sentado sozinho numa mesa. Ovelha servia-se de ovo mexido.
Hotel Royal, Porto Alegre
“O quarto é muito pequeno, chê”, disse a mulher para o poeta Mário Quintana. “Não me conformo que tenham te despejado do Majestic. O quarto lá era muito melhor!”. “Eu moro em mim mesmo”, confortou-a o poeta. “Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder minhas coisas.”
Hotel Chelsea, Nova York
Quem entra no quarto número 100 do hotel não consegue deixar de olhar fixamente para a porta do banheiro. Se a porta estiver fechada, a morbidez e a curiosidade se aguçam. Algumas pessoas não se contêm e correm para abrir a porta. E então imaginam Nancy Spungen morta com a faca de Sid Vicious enterrada no ventre.
Hotel Rio Poty, Teresina
As portas dos quartos estavam abertas quando o sujeito irrompeu pelo corredor gritando: “Cadê o segurança?”. O que dava consistência à indagação é que ele carregava um revólver. Alguns fecharam as portas, eu corri para a varanda. O segurança tinha agredido o sujeito quando este se aproximara da van, depois do show, atrás de autógrafos.
Beat Hotel, Paris
Quando o gato de madame Rachou caiu de uma janela do quarto andar, os hóspedes pensaram que ele encontrara a morte na calçada da rua Git-le-Coeur. William Burroughs, que morava no hotel, levou o gato para seu quarto. O felino estava vivo e tinha apenas quebrado uma perna. Na companhia do escritor, logo se recuperou. Burroughs preferia gatos a humanos.
Hotel Nikkey, São Paulo
Sozinho no quarto do hotel, eu não conseguia pregar o olho. Não podia voltar para casa, sob o risco de ser encontrado por um oficial de Justiça e ter de cancelar minha viagem para Montreux, onde gravaríamos um disco. A programação da TV já tinha acabado. Olhei o bairro da Liberdade, vazio àquela hora da madrugada, e liguei o rádio. Tocava “Sonífera ilha”.
Hotel Marriot, Atlanta
“Onde é que você meteu o cinto do papai, garoto?”. Meu filho me olhou com aquela carinha de que não fazia a menor ideia. Já tínhamos revirado o quarto do hotel umas cinco vezes. O quarto não era grande. Meu filho vivia fazendo as coisas sumirem. Eu achava que ele era um mágico em potencial. O cinto nunca foi encontrado.
Hotel Ambos Mundos, Havana
Mais cedo, quando visitamos a casa, lembramos das palavras de García Márquez sobre os sapatos do escritor que a habitara. Lá se podem ver igualmente os chinelos no chão do banheiro. À tarde, no quarto 511 do hotel, onde Hemingway também viveu, nada nos impressionou tanto quanto a visão de seus sapatos pela manhã, nem mesmo a luminosidade de Havana entrando pela janela.
Hotel Seventeen, Nova York
De manhã, na fila para o banheiro, vi um junkie desdentado com uma bandana vermelha na cabeça, três garotas punks japonesas — uma delas carregava um estojo de guitarra —, um garoto moreno latino com uma jaqueta de couro e Dorothy, uma senhora alcoólatra que nunca se separava de sua garrafa de gim. “Hi”, eu disse, mas Dorothy tinha o olhar perdido em algum lugar muito longe dali.
Carta ao pai - FÁBIO PORCHAT
O Estado de S.Paulo - 16/02
Prezada Rosely Sayão, meu nome é Fábio Porchat e eu preciso da sua ajuda. Sei que você é de outro jornal, mas não sei a quem mais recorrer quando o assunto é família. Não é nada comigo, é um amigo meu que está passando por uma situação bem delicada. Ele fez um vídeo de humor e recebeu uma ameaça de morte de um blog na internet. Ele estava tranquilo, pois sabia que aquilo era a reação de uma pessoa só e que não ia dar em nada.
Passada uma semana, o tal blog já estava fora do ar, o assunto já estava esquecido, mas o pai desse meu amigo, assustado, resolveu pedir ajuda para um amigo senador dele que leu uma carta desse pai no Senado, pediu ajuda ao Ministro da Justiça e o estardalhaço trouxe o assunto de volta à tona só que muito pior. Esse meu amigo tinha pedido pro pai não fazer barulho, não expor a sua vida porque ele já estava resolvendo tudo da forma mais discreta possível, falou que não queria que nada fosse parar em Senado nenhum, mas não adiantou. O pai fez do jeito que ele queria e agora a notícia se potencializou quinhentos por cento.
Eu entendo que o meu pai, digo, o pai desse meu amigo só tenha feito isso querendo ajudar, preocupado com o seu filho e que só tinha boas intenções, mas a vida é minha, quer dizer, do meu amigo, e eu tenho que poder resolvê-la do jeito que eu quiser. Afinal de contas, eu já tenho trinta anos, ele também, e sabemos cuidar muito bem das nossas vidas.
Se eu faço uma piada, eu tenho que aguentar sozinho as consequências dela, não preciso da ajuda de ninguém, e, se precisar, eu peço. Ele pede. Enfim. Parece aquela história do moleque que apanha na escola e o pai vai tirar satisfação envergonhando o filho, como se dissesse, "ele não pode se defender, então eu estou aqui para ajuda-lo". Como lidar com uma situação onde a pessoa não é mais criança, e o pai é imparável e faz aquilo que bem lhe der na telha, nem que isso vá contra a vontade do seu filho?
O diálogo não foi possível, e depois de tudo isso, ele ainda não entende que o filho não gostou de como tudo se sucedeu. Ele acha que está certo. E, com certeza, tomará decisões futuras sem a aprovação do filho. Esse meu amigo ama meu pai, mas esse pai precisa saber respeitar as vontades alheias. E saber que nem sempre as coisas acontecem da forma que ele quer.
Se ele está preocupado com a vida do filho, não seria melhor conversar com o filho antes de tomar atitudes precipitadas? Eu entendo a atitude de um pai que ama seu filho e só quer o seu melhor. Mas o melhor quem tem que saber não é a própria pessoa? Me ajude, Rosely. O quê que esse meu amigo deve fazer? * fabio.porchat@estadao.com
Prezada Rosely Sayão, meu nome é Fábio Porchat e eu preciso da sua ajuda. Sei que você é de outro jornal, mas não sei a quem mais recorrer quando o assunto é família. Não é nada comigo, é um amigo meu que está passando por uma situação bem delicada. Ele fez um vídeo de humor e recebeu uma ameaça de morte de um blog na internet. Ele estava tranquilo, pois sabia que aquilo era a reação de uma pessoa só e que não ia dar em nada.
Passada uma semana, o tal blog já estava fora do ar, o assunto já estava esquecido, mas o pai desse meu amigo, assustado, resolveu pedir ajuda para um amigo senador dele que leu uma carta desse pai no Senado, pediu ajuda ao Ministro da Justiça e o estardalhaço trouxe o assunto de volta à tona só que muito pior. Esse meu amigo tinha pedido pro pai não fazer barulho, não expor a sua vida porque ele já estava resolvendo tudo da forma mais discreta possível, falou que não queria que nada fosse parar em Senado nenhum, mas não adiantou. O pai fez do jeito que ele queria e agora a notícia se potencializou quinhentos por cento.
Eu entendo que o meu pai, digo, o pai desse meu amigo só tenha feito isso querendo ajudar, preocupado com o seu filho e que só tinha boas intenções, mas a vida é minha, quer dizer, do meu amigo, e eu tenho que poder resolvê-la do jeito que eu quiser. Afinal de contas, eu já tenho trinta anos, ele também, e sabemos cuidar muito bem das nossas vidas.
Se eu faço uma piada, eu tenho que aguentar sozinho as consequências dela, não preciso da ajuda de ninguém, e, se precisar, eu peço. Ele pede. Enfim. Parece aquela história do moleque que apanha na escola e o pai vai tirar satisfação envergonhando o filho, como se dissesse, "ele não pode se defender, então eu estou aqui para ajuda-lo". Como lidar com uma situação onde a pessoa não é mais criança, e o pai é imparável e faz aquilo que bem lhe der na telha, nem que isso vá contra a vontade do seu filho?
O diálogo não foi possível, e depois de tudo isso, ele ainda não entende que o filho não gostou de como tudo se sucedeu. Ele acha que está certo. E, com certeza, tomará decisões futuras sem a aprovação do filho. Esse meu amigo ama meu pai, mas esse pai precisa saber respeitar as vontades alheias. E saber que nem sempre as coisas acontecem da forma que ele quer.
Se ele está preocupado com a vida do filho, não seria melhor conversar com o filho antes de tomar atitudes precipitadas? Eu entendo a atitude de um pai que ama seu filho e só quer o seu melhor. Mas o melhor quem tem que saber não é a própria pessoa? Me ajude, Rosely. O quê que esse meu amigo deve fazer? * fabio.porchat@estadao.com
A ditadura contagia - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 16/02
Ao cancelar o registro para exercício da medicina pela cubana Ramona Matos Rodríguez, que veio ao Brasil no programa Mais Médicos do governo federal, o Ministério da Saúde exibiu mais uma violação dos direitos individuais dos profissionais da saúde "importados" da ilha caribenha para clinicar no País. Esta portaria do Ministério da Saúde institucionaliza uma situação de "dois pesos e duas medidas", que contraria a igualdade dos cidadãos perante a lei, essencial na democracia.
Há dois anos, o governo brasileiro vinha negociando com a ditadura dos irmãos Castro a vinda de médicos de Cuba para suprir deficiências de pessoal para a saúde pública em nossos grotões. Sob desconfiança generalizada, a equipe de Dilma Rousseff tentou manter tais tratativas sob sigilo. Mas, enfim, seguindo a prioridade do marketing da administração petista, anunciou o programa Mais Médicos para preencher vagas em postos de saúde dos ermos do interior com profissionais estrangeiros, a grande maioria deles cubanos. Empreendido na gestão do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, candidato do PT, partido da presidente, ao governo do maior Estado da Federação, São Paulo, o plano já mostrou ser uma eficiente forma de conquistar votos nas eleições de outubro, seja para a reeleição de Dilma, seja para a pretensão de fazer de Padilha sucessor do governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, também candidato à reeleição. A população, antes desassistida, do interior mais remoto do Brasil recebeu esses estrangeiros de braços abertos, a ponto de suprir as carências causadas pela baixa remuneração do corpo médico (só no caso dos cubanos) com alimentos e outros mimos. Isso, contudo, não tem sido suficiente para prover uma qualidade de vida compatível com a expectativa destes médicos. A presença de outros estrangeiros, em muito menor número e gozando de condições mais dignas de trabalho, bastou para chamar a atenção dos ilhéus para a cruel discriminação por eles sofrida aqui. Dos 6.658 participantes, 5.378 vieram da ilha caribenha. Os 1.280 de outros países são minoria.
Primeira médica a pedir para se desligar desse programa, Ramona, que trabalhava em Pacajá (PA), deixou o trabalho em 3 de fevereiro, alegando haver desistido do projeto após ter tomado conhecimento de que ganha muito menos do que colegas de outras nacionalidades, embora, por convênio firmado entre Cuba, o Brasil e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), seu salário seja de R$ 10 mil mensais. Conforme informou ao líder do DEM na Câmara dos Deputados, Ronaldo Caiado (GO), a quem pediu abrigo para ficar no País, ela, na verdade, recebia o equivalente a R$ 400 por mês, menos que o salário mínimo, de R$ 724.
O Ministério da Saúde reconheceu que, além de Ramona e de Ortelio Guerra, que fugiu do Recife para os Estados Unidos, as prefeituras para cujos postos foram enviados comunicaram o desaparecimento de mais três cubanos. E é provável que a onda de deserções esteja apenas começando. Segundo a organização Solidariedade Sem Fronteiras, que, em Miami, ajuda médicos cubanos que querem desertar, de sete a oito cubanos a serviço na Bolívia, na Nicarágua e principalmente na Venezuela lhe telefonam por semana. Pelos cálculos da entidade, já fugiram pelo menos 5 mil médicos, enfermeiros e terapeutas cubanos numa década.
A situação dos cubanos no Brasil não é menos degradante do que nos países citados. Além da indignidade de pagar à ditadura dos Castros a parte do leão, ficando os trabalhadores com praticamente um troco como remuneração pelo serviço prestado, o governo brasileiro se submete a exigências da ditadura cubana, como a proibição de médicos cubanos saírem das cidades onde trabalham sem autorização. É também o caso do cancelamento do registro de Ramona, que clinicava aqui para contribuir para as divisas de Cuba e o marketing eleitoral dos companheiros brasileiros. Agora, por ordem do Ministério da Saúde, sempre que um médico cubano faltar ao trabalho, sua ausência deve ser comunicada à polícia. Pelo visto, a ditadura cubana é contagiosa.
Ao cancelar o registro para exercício da medicina pela cubana Ramona Matos Rodríguez, que veio ao Brasil no programa Mais Médicos do governo federal, o Ministério da Saúde exibiu mais uma violação dos direitos individuais dos profissionais da saúde "importados" da ilha caribenha para clinicar no País. Esta portaria do Ministério da Saúde institucionaliza uma situação de "dois pesos e duas medidas", que contraria a igualdade dos cidadãos perante a lei, essencial na democracia.
Há dois anos, o governo brasileiro vinha negociando com a ditadura dos irmãos Castro a vinda de médicos de Cuba para suprir deficiências de pessoal para a saúde pública em nossos grotões. Sob desconfiança generalizada, a equipe de Dilma Rousseff tentou manter tais tratativas sob sigilo. Mas, enfim, seguindo a prioridade do marketing da administração petista, anunciou o programa Mais Médicos para preencher vagas em postos de saúde dos ermos do interior com profissionais estrangeiros, a grande maioria deles cubanos. Empreendido na gestão do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, candidato do PT, partido da presidente, ao governo do maior Estado da Federação, São Paulo, o plano já mostrou ser uma eficiente forma de conquistar votos nas eleições de outubro, seja para a reeleição de Dilma, seja para a pretensão de fazer de Padilha sucessor do governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin, também candidato à reeleição. A população, antes desassistida, do interior mais remoto do Brasil recebeu esses estrangeiros de braços abertos, a ponto de suprir as carências causadas pela baixa remuneração do corpo médico (só no caso dos cubanos) com alimentos e outros mimos. Isso, contudo, não tem sido suficiente para prover uma qualidade de vida compatível com a expectativa destes médicos. A presença de outros estrangeiros, em muito menor número e gozando de condições mais dignas de trabalho, bastou para chamar a atenção dos ilhéus para a cruel discriminação por eles sofrida aqui. Dos 6.658 participantes, 5.378 vieram da ilha caribenha. Os 1.280 de outros países são minoria.
Primeira médica a pedir para se desligar desse programa, Ramona, que trabalhava em Pacajá (PA), deixou o trabalho em 3 de fevereiro, alegando haver desistido do projeto após ter tomado conhecimento de que ganha muito menos do que colegas de outras nacionalidades, embora, por convênio firmado entre Cuba, o Brasil e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), seu salário seja de R$ 10 mil mensais. Conforme informou ao líder do DEM na Câmara dos Deputados, Ronaldo Caiado (GO), a quem pediu abrigo para ficar no País, ela, na verdade, recebia o equivalente a R$ 400 por mês, menos que o salário mínimo, de R$ 724.
O Ministério da Saúde reconheceu que, além de Ramona e de Ortelio Guerra, que fugiu do Recife para os Estados Unidos, as prefeituras para cujos postos foram enviados comunicaram o desaparecimento de mais três cubanos. E é provável que a onda de deserções esteja apenas começando. Segundo a organização Solidariedade Sem Fronteiras, que, em Miami, ajuda médicos cubanos que querem desertar, de sete a oito cubanos a serviço na Bolívia, na Nicarágua e principalmente na Venezuela lhe telefonam por semana. Pelos cálculos da entidade, já fugiram pelo menos 5 mil médicos, enfermeiros e terapeutas cubanos numa década.
A situação dos cubanos no Brasil não é menos degradante do que nos países citados. Além da indignidade de pagar à ditadura dos Castros a parte do leão, ficando os trabalhadores com praticamente um troco como remuneração pelo serviço prestado, o governo brasileiro se submete a exigências da ditadura cubana, como a proibição de médicos cubanos saírem das cidades onde trabalham sem autorização. É também o caso do cancelamento do registro de Ramona, que clinicava aqui para contribuir para as divisas de Cuba e o marketing eleitoral dos companheiros brasileiros. Agora, por ordem do Ministério da Saúde, sempre que um médico cubano faltar ao trabalho, sua ausência deve ser comunicada à polícia. Pelo visto, a ditadura cubana é contagiosa.
A polêmica que atrasa - JOÃO BOSCO RABELLO
O Estado de S.Paulo - 16/02
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, investe contra dois pontos essenciais da proposta do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, ao avaliá-la no contexto de projeto que o governo elabora para conter a violência em protestos de rua. A principal, a proibição do uso de máscaras pelos manifestantes.
O outro senão de Cardozo se refere à obrigatoriedade de aviso prévio para manifestações. No primeiro caso, o ministro considera mais fácil que o policial peça a identidade do manifestante em meio a uma ação predatória, do que ter o seu rosto descoberto para facilitar a identificação posterior.
É uma curiosa tese sobre facilidade operacional. Imagine-se o policial, interrompendo um cidadão que está quebrando um banco: "Por favor, sua identidade". Não menos ruim é o argumento para invalidar o aviso antecipado: o de que tira a espontaneidade do protesto. São objeções que priorizam o manifestante, colocando em segundo plano o interesse público.
Ele se identifica se quiser e continua beneficiário do fator surpresa, promovendo manifestações em pontos diferentes da cidade, dificultando a ação policial. Considerando que sentou em cima da proposta de Beltrame por meses, Cardozo continua sem a pressa que o problema impõe.
O ministro parece desconsiderar que as primeiras prisões com elementos claros de culpa direta na morte de um cidadão só foram possíveis porque um deles se apresentou à polícia quando concluiu que seria identificado em imagens de veículos de comunicação.
O que torna esse fator - da identificação - fundamental para que, através da punição, se desestimule a violência. Dificultá-la com objeção à proibição de máscara, sob argumento inconsistente, parece mais gosto pela polêmica do que por resultado.
A combinação de legislação objetiva, simples, como a proposta pelo secretário de Segurança do Rio, Mariano Beltrame, com uma investigação competente é a melhor resposta e a reafirmação de compromisso democrático da classe dirigente ao País.
Na linha dispersiva do ministro, o Congresso também dá sinais de comportamento errático ao se enredar com propostas polêmicas, como a de uma lei antiterror que não se aplica ao caso. Se a devemos, não só em função da Copa do Mundo próxima, mas também pelos tempos planetários, ela não se impõe como prioridade agora.
Com menos pretensão se pode dar às autoridades policiais condições objetivas de enfrentar a violência dentro de regras democráticas que não comprometam os resultados das investigações pela falta de legislação que impeça seus efeitos.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, investe contra dois pontos essenciais da proposta do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, ao avaliá-la no contexto de projeto que o governo elabora para conter a violência em protestos de rua. A principal, a proibição do uso de máscaras pelos manifestantes.
O outro senão de Cardozo se refere à obrigatoriedade de aviso prévio para manifestações. No primeiro caso, o ministro considera mais fácil que o policial peça a identidade do manifestante em meio a uma ação predatória, do que ter o seu rosto descoberto para facilitar a identificação posterior.
É uma curiosa tese sobre facilidade operacional. Imagine-se o policial, interrompendo um cidadão que está quebrando um banco: "Por favor, sua identidade". Não menos ruim é o argumento para invalidar o aviso antecipado: o de que tira a espontaneidade do protesto. São objeções que priorizam o manifestante, colocando em segundo plano o interesse público.
Ele se identifica se quiser e continua beneficiário do fator surpresa, promovendo manifestações em pontos diferentes da cidade, dificultando a ação policial. Considerando que sentou em cima da proposta de Beltrame por meses, Cardozo continua sem a pressa que o problema impõe.
O ministro parece desconsiderar que as primeiras prisões com elementos claros de culpa direta na morte de um cidadão só foram possíveis porque um deles se apresentou à polícia quando concluiu que seria identificado em imagens de veículos de comunicação.
O que torna esse fator - da identificação - fundamental para que, através da punição, se desestimule a violência. Dificultá-la com objeção à proibição de máscara, sob argumento inconsistente, parece mais gosto pela polêmica do que por resultado.
A combinação de legislação objetiva, simples, como a proposta pelo secretário de Segurança do Rio, Mariano Beltrame, com uma investigação competente é a melhor resposta e a reafirmação de compromisso democrático da classe dirigente ao País.
Na linha dispersiva do ministro, o Congresso também dá sinais de comportamento errático ao se enredar com propostas polêmicas, como a de uma lei antiterror que não se aplica ao caso. Se a devemos, não só em função da Copa do Mundo próxima, mas também pelos tempos planetários, ela não se impõe como prioridade agora.
Com menos pretensão se pode dar às autoridades policiais condições objetivas de enfrentar a violência dentro de regras democráticas que não comprometam os resultados das investigações pela falta de legislação que impeça seus efeitos.
Shirley Temple faz falta a Obama - DORRIT HARAZIM
O GLOBO - 16/02
Existe uma fórmula certeira para presidentes zerarem dívidas políticas com determinado tipo de doador de campanha: nomeá-lo embaixador. A prática de recompensar amigos e contribuintes com o cargo mais alto da carreira diplomática é tão antiga quanto a política das nações.
Nos Estados Unidos, Abraham Lincoln se deu bem ao recorrer a esse expediente para conquistar votos a favor do término da Guerra Civil. Já de Barack Obama não se pode dizer o mesmo se analisarmos as ecléticas nomeações anunciadas pela Casa Branca neste início de 2014.
Talvez nem ele ainda se lembre da intenção que anunciou em janeiro de 2009 de fazer apenas “algumas” indicações fora das fileiras do State Department. Somando apenas as escolhas feitas somente neste segundo mandato presidencial, o pronome indefinido pode ser descartado: mais da metade (48) dos 85 nomes já encaminhados pela Casa Branca para a sabatina de confirmação não são diplomatas de carreira.
E segundo levantamento do Center for Public Integrity, um instituto de jornalismo investigativo de Washington, 23 desses indicados são contribuintes que arrecadaram mais de US$ 16,1 milhões para a campanha democrata desde 2007.
Semanas atrás, quatro futuros embaixadores dessa safra se apresentaram perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado. A leitura de seus depoimentos é um espanto.
O empresário e consultor político Noah Bryson Mamet, doador de mais de US$ 1,3 milhão de dólares, fora indicado para Buenos Aires. Trata-se de um posto de considerável sensibilidade politico-diplomática regional, turbinada pela crise financeira atual e pelo latente confronto com a Grã-Bretanha envolvendo as Malvinas.
Sem falar nas tensas relações de Cristina Kirchner com a imprensa e no alinhamento de seu governo com países do continente cujas políticas a Casa Branca considera indigestas. Ou seja, um posto que deveria ser ocupado por alguém com interesse e conhecimento sólido do que o espera. E que navegasse, nem que fosse superficialmente, pelo idioma local.
Só que o californiano Mamet, parceiro de golfe do presidente, não fala espanhol. Tampouco pisou uma só vez em solo argentino em seus 44 anos de vida. “Mas já viajei bastante pelo mundo inteiro, apenas ainda não tive a oportunidade de ir até lá (a Argentina), esclareceu. Dá para imaginar como essa declaração foi bem recebida pelos portenhos.
O veterano senador democrata Max Baucus, de 72 anos e seis mandatos parlamentares, foi inquirido com mais simpatia por seus pares. Ainda assim, houve desconforto com sua resposta à pergunta sobre o que teria levado a China a mexer no mapeamento da zona de defesa aérea do país. “Não sou exatamente um especialista em China”, admitiu, “mas estou convencido do que o povo chinês é tão orgulhoso quanto nós americanos somos”.
Pelo menos Baucus já fizera oito viagens à China e tem farta experiência em complexas negociações de comércio exterior. Foi confirmado na hora.
A produtora de televisão Colleen Bell, do seriado “The bold and the beautiful” (audiência estimada em 26,2 milhões de telespectadores e 31 prêmios Daytime Emmy, diz seu perfil na internet), precisará de algum tempo para se enfronhar nas profundezas da cultura magiar. Ela foi indicada para a embaixada na Hungria.
Patronesse da várias entidades culturais e doadora de US$ 800 mil para a primeira campanha de Obama, Bell teve a infelicidade de ser inquirida pelo senador republicado John McCain, que, no dia da sabatina, estava mais cruel do que seus captores do Vietnam do Norte. O senador quis saber da loura de 47 anos quais eram os interesses estratégicos dos Estados Unidos na Hungria.
“Bem, temos interesses estratégicos, no sentido de interesses-chave na Hungria”, começou Bell, enfileirando palavras como blocos de lego. “Acredito que nossas prioridades-chaves consistem em melhorar a relação de segurança e também a implementação da ordem e a promoção de oportunidade de negócios, o aumento de comércio ...”
McCain a interrompeu, impiedoso: “Gostaria de perguntar novamente quais nossos interesses estratégicos na Hungria”.
A enfileirada de palavras também prosseguiu, no piloto automático: “Trabalhar em colaboração, como aliados da Otan, trabalhar para promover e proteger a segurança para ambos os países e para o mundo e prosseguir no trabalho comum em prol da causa dos direitos humanos em todo o mundo, reforçar este lado de nossa relação e, ao mesmo tempo, manter e prosseguir com difíceis negociações que venham a se tornar necessárias.”
“Resposta definitiva”, concluiu McCain, sádico.
A tortura só não se prolongou porque na mesma tarde tinha outro nomeado para ser ouvido.
George Tsunis, fundador e presidente da cadeia de hotéis Chartwell, de Nova Jersey, contribuíra com mais de US$ 1,3 milhão para a eleição democrata e fora brindado com a Embaixada da Noruega. Talvez pela surpresa, sequer teve tempo de recapitular o curso básico de História Universal e passou a falar no que fará o “presidente” da nação nórdica. A Noruega, como se sabe, é uma monarquia constitucional de regime parlamentarista.
Diante de um elenco desses para representá-los mundo afora, os americanos tiveram um motivo a mais para chorar a morte de sua menina prodígio esta semana. A republicana Shirley Temple Black, gordota assumida e livre dos cachos infantis que a imortalizaram no cinema, foi pinçada para embaixadora dos Estados Unidos em dois países sem jamais ter pensado em ser diplomata de carreira.
Mas era séria, aplicada e soube usar seu status de celebridade adorada para movimentar programas assistenciais de grande vulto na África. Primeiro, como membro da delegação americana junto à ONU. Depois como embaixadora em Gana. Por fim, na Tchecoslováquia dos últimos e decisivos anos da Guerra Fria. Não se conhece uma só gafe cometida por ela em seus postos diplomáticos.
Recebeu de Henry Kissinger três qualificativos: “Muito inteligente, muito dura, muito disciplinada”. Ou seja, não precisa ser de carreira. Basta saber o que faz.
Isso também vale para quem faz a escolha.
Existe uma fórmula certeira para presidentes zerarem dívidas políticas com determinado tipo de doador de campanha: nomeá-lo embaixador. A prática de recompensar amigos e contribuintes com o cargo mais alto da carreira diplomática é tão antiga quanto a política das nações.
Nos Estados Unidos, Abraham Lincoln se deu bem ao recorrer a esse expediente para conquistar votos a favor do término da Guerra Civil. Já de Barack Obama não se pode dizer o mesmo se analisarmos as ecléticas nomeações anunciadas pela Casa Branca neste início de 2014.
Talvez nem ele ainda se lembre da intenção que anunciou em janeiro de 2009 de fazer apenas “algumas” indicações fora das fileiras do State Department. Somando apenas as escolhas feitas somente neste segundo mandato presidencial, o pronome indefinido pode ser descartado: mais da metade (48) dos 85 nomes já encaminhados pela Casa Branca para a sabatina de confirmação não são diplomatas de carreira.
E segundo levantamento do Center for Public Integrity, um instituto de jornalismo investigativo de Washington, 23 desses indicados são contribuintes que arrecadaram mais de US$ 16,1 milhões para a campanha democrata desde 2007.
Semanas atrás, quatro futuros embaixadores dessa safra se apresentaram perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado. A leitura de seus depoimentos é um espanto.
O empresário e consultor político Noah Bryson Mamet, doador de mais de US$ 1,3 milhão de dólares, fora indicado para Buenos Aires. Trata-se de um posto de considerável sensibilidade politico-diplomática regional, turbinada pela crise financeira atual e pelo latente confronto com a Grã-Bretanha envolvendo as Malvinas.
Sem falar nas tensas relações de Cristina Kirchner com a imprensa e no alinhamento de seu governo com países do continente cujas políticas a Casa Branca considera indigestas. Ou seja, um posto que deveria ser ocupado por alguém com interesse e conhecimento sólido do que o espera. E que navegasse, nem que fosse superficialmente, pelo idioma local.
Só que o californiano Mamet, parceiro de golfe do presidente, não fala espanhol. Tampouco pisou uma só vez em solo argentino em seus 44 anos de vida. “Mas já viajei bastante pelo mundo inteiro, apenas ainda não tive a oportunidade de ir até lá (a Argentina), esclareceu. Dá para imaginar como essa declaração foi bem recebida pelos portenhos.
O veterano senador democrata Max Baucus, de 72 anos e seis mandatos parlamentares, foi inquirido com mais simpatia por seus pares. Ainda assim, houve desconforto com sua resposta à pergunta sobre o que teria levado a China a mexer no mapeamento da zona de defesa aérea do país. “Não sou exatamente um especialista em China”, admitiu, “mas estou convencido do que o povo chinês é tão orgulhoso quanto nós americanos somos”.
Pelo menos Baucus já fizera oito viagens à China e tem farta experiência em complexas negociações de comércio exterior. Foi confirmado na hora.
A produtora de televisão Colleen Bell, do seriado “The bold and the beautiful” (audiência estimada em 26,2 milhões de telespectadores e 31 prêmios Daytime Emmy, diz seu perfil na internet), precisará de algum tempo para se enfronhar nas profundezas da cultura magiar. Ela foi indicada para a embaixada na Hungria.
Patronesse da várias entidades culturais e doadora de US$ 800 mil para a primeira campanha de Obama, Bell teve a infelicidade de ser inquirida pelo senador republicado John McCain, que, no dia da sabatina, estava mais cruel do que seus captores do Vietnam do Norte. O senador quis saber da loura de 47 anos quais eram os interesses estratégicos dos Estados Unidos na Hungria.
“Bem, temos interesses estratégicos, no sentido de interesses-chave na Hungria”, começou Bell, enfileirando palavras como blocos de lego. “Acredito que nossas prioridades-chaves consistem em melhorar a relação de segurança e também a implementação da ordem e a promoção de oportunidade de negócios, o aumento de comércio ...”
McCain a interrompeu, impiedoso: “Gostaria de perguntar novamente quais nossos interesses estratégicos na Hungria”.
A enfileirada de palavras também prosseguiu, no piloto automático: “Trabalhar em colaboração, como aliados da Otan, trabalhar para promover e proteger a segurança para ambos os países e para o mundo e prosseguir no trabalho comum em prol da causa dos direitos humanos em todo o mundo, reforçar este lado de nossa relação e, ao mesmo tempo, manter e prosseguir com difíceis negociações que venham a se tornar necessárias.”
“Resposta definitiva”, concluiu McCain, sádico.
A tortura só não se prolongou porque na mesma tarde tinha outro nomeado para ser ouvido.
George Tsunis, fundador e presidente da cadeia de hotéis Chartwell, de Nova Jersey, contribuíra com mais de US$ 1,3 milhão para a eleição democrata e fora brindado com a Embaixada da Noruega. Talvez pela surpresa, sequer teve tempo de recapitular o curso básico de História Universal e passou a falar no que fará o “presidente” da nação nórdica. A Noruega, como se sabe, é uma monarquia constitucional de regime parlamentarista.
Diante de um elenco desses para representá-los mundo afora, os americanos tiveram um motivo a mais para chorar a morte de sua menina prodígio esta semana. A republicana Shirley Temple Black, gordota assumida e livre dos cachos infantis que a imortalizaram no cinema, foi pinçada para embaixadora dos Estados Unidos em dois países sem jamais ter pensado em ser diplomata de carreira.
Mas era séria, aplicada e soube usar seu status de celebridade adorada para movimentar programas assistenciais de grande vulto na África. Primeiro, como membro da delegação americana junto à ONU. Depois como embaixadora em Gana. Por fim, na Tchecoslováquia dos últimos e decisivos anos da Guerra Fria. Não se conhece uma só gafe cometida por ela em seus postos diplomáticos.
Recebeu de Henry Kissinger três qualificativos: “Muito inteligente, muito dura, muito disciplinada”. Ou seja, não precisa ser de carreira. Basta saber o que faz.
Isso também vale para quem faz a escolha.
Pensamento mágico - TOSTÃO
FOLHA DE SP - 16/02
A certeza de Felipão de que o Brasil será campeão é uma sabedoria técnica ou uma tática psicológica?
Com o evidente crescimento individual e coletivo da seleção, que vai além da conquista da Copa das Confederações, a avaliação do time, que era excessivamente negativa, como se o Brasil estivesse mil anos atrasado na parte tática e tivesse apenas um grande jogador, Neymar, passou a ser exageradamente positiva, como se a seleção fosse a única favorita no Mundial e possuísse inúmeros foras de série. Nem uma coisa nem outra.
Fred é um excelente centroavante. Porém, mesmo irregular e sem nunca ter sido destaque mundial --era reserva no Lyon--, desperta em Felipão, e na maioria das pessoas, o sentimento de que, na hora de a onça beber água, ele brilha, mesmo sem boas condições físicas. Isso ocorre por causa das boas atuações na Copa das Confederações e em alguns clubes. Outro motivo é o pensamento mágico, de achar que o desejo é maior que a realidade.
Ocorre com Júlio César, que não joga, algo parecido. Sua escalação na Copa, antecipada pelo técnico, ultrapassa a realidade, como se suas excelentes atuações na Copa das Confederações fossem o único parâmetro. Ou seria também uma desconfiança em relação aos outros goleiros?
Felipão já disse que vai convocar um típico centroavante para a reserva de Fred. Nenhum convence. Poderia ser um meia ofensivo, como Kaká ou Robinho, mas os dois não merecem, por suas atuações no Milan. Nem o lobby de Galvão Bueno por seu amigo Kaká convenceu Felipão. O técnico não gosta também de chamar um jogador muito famoso para ficar na reserva. Bastaria um mau momento do time para a torcida pedir Kaká, como se ele fosse o craque de antes. Este foi um dos motivos de não levar Romário ao Mundial de 2002. Felipão entende da alma humana.
Um dos méritos de Felipão foi fazer com que a seleção tenha sistema tático e estratégia muito parecidas com as das melhores equipes do mundo. Isso só é possível porque quase todos atuam na Europa, ao lado de muitos craques e sob o comando de ótimos técnicos, como Mourinho, do Chelsea, clube com quatro brasileiros na seleção.
Existem muitas incertezas em relação à Copa do Mundo. O grande número de pessoas indiferentes ou revoltadas com os absurdos gastos públicos vão vestir a amarelinha, quando a bola rolar? Muitos destes falam hoje que vão torcer pela Argentina. As manifestações serão maiores, menores ou tão intensas quanto às do ano passado?
O Brasil vai ganhar a Copa?
São inúmeras análises e possibilidades, muitas lógicas e convincentes. Quando o Mundial acabar, só uma será aceita, de acordo com o resultado. As outras serão ignoradas e criticadas. O mais interessante de tudo isso é que muitas das partidas equilibradas serão decididas nos detalhes, por causa de uma dor de cotovelo ou por uma bola que bateu na trave e entrou, em vez de sair.
A certeza de Felipão de que o Brasil será campeão é uma sabedoria técnica ou uma tática psicológica?
Com o evidente crescimento individual e coletivo da seleção, que vai além da conquista da Copa das Confederações, a avaliação do time, que era excessivamente negativa, como se o Brasil estivesse mil anos atrasado na parte tática e tivesse apenas um grande jogador, Neymar, passou a ser exageradamente positiva, como se a seleção fosse a única favorita no Mundial e possuísse inúmeros foras de série. Nem uma coisa nem outra.
Fred é um excelente centroavante. Porém, mesmo irregular e sem nunca ter sido destaque mundial --era reserva no Lyon--, desperta em Felipão, e na maioria das pessoas, o sentimento de que, na hora de a onça beber água, ele brilha, mesmo sem boas condições físicas. Isso ocorre por causa das boas atuações na Copa das Confederações e em alguns clubes. Outro motivo é o pensamento mágico, de achar que o desejo é maior que a realidade.
Ocorre com Júlio César, que não joga, algo parecido. Sua escalação na Copa, antecipada pelo técnico, ultrapassa a realidade, como se suas excelentes atuações na Copa das Confederações fossem o único parâmetro. Ou seria também uma desconfiança em relação aos outros goleiros?
Felipão já disse que vai convocar um típico centroavante para a reserva de Fred. Nenhum convence. Poderia ser um meia ofensivo, como Kaká ou Robinho, mas os dois não merecem, por suas atuações no Milan. Nem o lobby de Galvão Bueno por seu amigo Kaká convenceu Felipão. O técnico não gosta também de chamar um jogador muito famoso para ficar na reserva. Bastaria um mau momento do time para a torcida pedir Kaká, como se ele fosse o craque de antes. Este foi um dos motivos de não levar Romário ao Mundial de 2002. Felipão entende da alma humana.
Um dos méritos de Felipão foi fazer com que a seleção tenha sistema tático e estratégia muito parecidas com as das melhores equipes do mundo. Isso só é possível porque quase todos atuam na Europa, ao lado de muitos craques e sob o comando de ótimos técnicos, como Mourinho, do Chelsea, clube com quatro brasileiros na seleção.
Existem muitas incertezas em relação à Copa do Mundo. O grande número de pessoas indiferentes ou revoltadas com os absurdos gastos públicos vão vestir a amarelinha, quando a bola rolar? Muitos destes falam hoje que vão torcer pela Argentina. As manifestações serão maiores, menores ou tão intensas quanto às do ano passado?
O Brasil vai ganhar a Copa?
São inúmeras análises e possibilidades, muitas lógicas e convincentes. Quando o Mundial acabar, só uma será aceita, de acordo com o resultado. As outras serão ignoradas e criticadas. O mais interessante de tudo isso é que muitas das partidas equilibradas serão decididas nos detalhes, por causa de uma dor de cotovelo ou por uma bola que bateu na trave e entrou, em vez de sair.
Shirleys - LUIS FERNANDO VERISSIMO
O GLOBO - 16/02
A própria Shirley do cinema só foi a Shirley dos sonhos por um instante fugidio. Depois cresceu, ficou adulta, foi infeliz no amor, virou política e, pior, republicana
Houve uma época em que os pais davam o nome de Shirley às filhas na esperança de que fossem adoráveis como a Shirley do cinema. E o mundo se encheu de Shirleys. Poucas corresponderam ao que, implicitamente, se esperava delas. As outras só foram Shirleys no nome. Mas durante um breve instante de suas infâncias todas foram Shirleys autênticas em potencial, projetos de Shirley que só porque a vida é injusta não deram certo. O que restou da desilusão foi uma geração inteira de Shirleys desperdiçada, como uma plantação frustrada em que nada floresceu. A própria Shirley do cinema só foi a Shirley dos sonhos por um instante fugidio. Depois cresceu, ficou adulta, foi infeliz no amor, virou política e, pior, republicana, e só o que ficou do seu instante de Shirley foram as covinhas.
‘TONIGHT’
Só falo no assunto porque mexeu com meu vespeiro particular de memórias, pois não tem nenhuma relação com nossa realidade, com o beijo gay ou com os destinos da Nação. Nós estávamos nos Estados Unidos quando começou na TV o programa “Tonight”, o protótipo de todos os talk-shows de fim de noite que existem hoje. Isso há, meu Deus, 60 anos! O show era feito em Nova York e o Jô Soares deles, na época, era o Steve Allen, que tocava piano, gostava de jazz, era um bom entrevistador e, com o seu “cool”, como dizem os franceses, e seu humor inteligente personificava, pra mim, tudo o que Nova York tinha de mais nova-iorquino. Os cantores do programa eram o Steve Lawrence e a Eydie Gorme, casados, o Andy Williams e outra cantora cujo nome que não encontro no vespeiro. A segunda fase do “Tonight” foi com o Jack Paar, que provocou uma grande crise quando, em protesto por uma censura que sofreu, abandonou o programa em plena transmissão — mas depois voltou. Em seguida veio o Johnny Carson, que ficou anos, quando o programa já era feito na Califórnia. E agora chegou a notícia de que Jay Leno, que substituiu Carson, também vai se aposentar. E, mais importante, que o “Tonight” vai voltar para sua origem, Nova York. Infelizmente, não posso voltar para os meus 17 anos. E a gente nunca volta para a mesma Nova York.
PAPO VOVÔ
O pai da nossa neta Lucinda, de 5 anos, é de Yorkshire, e ela só fala inglês com ele. E desenvolveu um vocabulário em inglês surpreendente, que muitas vezes não sabemos de onde vem. No outro dia a mãe dela a viu sentada na privada, pensativa, e perguntou se era xixi ou cocô. E ela: “I’m evaluating.” Ainda não tinha avaliado o que iria fazer.
A própria Shirley do cinema só foi a Shirley dos sonhos por um instante fugidio. Depois cresceu, ficou adulta, foi infeliz no amor, virou política e, pior, republicana
Houve uma época em que os pais davam o nome de Shirley às filhas na esperança de que fossem adoráveis como a Shirley do cinema. E o mundo se encheu de Shirleys. Poucas corresponderam ao que, implicitamente, se esperava delas. As outras só foram Shirleys no nome. Mas durante um breve instante de suas infâncias todas foram Shirleys autênticas em potencial, projetos de Shirley que só porque a vida é injusta não deram certo. O que restou da desilusão foi uma geração inteira de Shirleys desperdiçada, como uma plantação frustrada em que nada floresceu. A própria Shirley do cinema só foi a Shirley dos sonhos por um instante fugidio. Depois cresceu, ficou adulta, foi infeliz no amor, virou política e, pior, republicana, e só o que ficou do seu instante de Shirley foram as covinhas.
‘TONIGHT’
Só falo no assunto porque mexeu com meu vespeiro particular de memórias, pois não tem nenhuma relação com nossa realidade, com o beijo gay ou com os destinos da Nação. Nós estávamos nos Estados Unidos quando começou na TV o programa “Tonight”, o protótipo de todos os talk-shows de fim de noite que existem hoje. Isso há, meu Deus, 60 anos! O show era feito em Nova York e o Jô Soares deles, na época, era o Steve Allen, que tocava piano, gostava de jazz, era um bom entrevistador e, com o seu “cool”, como dizem os franceses, e seu humor inteligente personificava, pra mim, tudo o que Nova York tinha de mais nova-iorquino. Os cantores do programa eram o Steve Lawrence e a Eydie Gorme, casados, o Andy Williams e outra cantora cujo nome que não encontro no vespeiro. A segunda fase do “Tonight” foi com o Jack Paar, que provocou uma grande crise quando, em protesto por uma censura que sofreu, abandonou o programa em plena transmissão — mas depois voltou. Em seguida veio o Johnny Carson, que ficou anos, quando o programa já era feito na Califórnia. E agora chegou a notícia de que Jay Leno, que substituiu Carson, também vai se aposentar. E, mais importante, que o “Tonight” vai voltar para sua origem, Nova York. Infelizmente, não posso voltar para os meus 17 anos. E a gente nunca volta para a mesma Nova York.
PAPO VOVÔ
O pai da nossa neta Lucinda, de 5 anos, é de Yorkshire, e ela só fala inglês com ele. E desenvolveu um vocabulário em inglês surpreendente, que muitas vezes não sabemos de onde vem. No outro dia a mãe dela a viu sentada na privada, pensativa, e perguntou se era xixi ou cocô. E ela: “I’m evaluating.” Ainda não tinha avaliado o que iria fazer.
Ueba! Vaquinha na Papuda! - JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 16/02
E um amigo me perguntou: 'Já comprou sua fantasia de black bloc pro Carnaval?'. NÃO VAI TER CARNAVAL!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Novidades da semana: o Pizzolato virou Prezolato, o Azeredo virou Azarado e o Zé Dirceu tá criando um novo bichinho de estimação na Papuda: uma vaquinha. A Mimosa! E quem vai contribuir pra Mimosa ficar gordinha? Rarará!
E depois do Apagão, vem o Sujão! Falta d'água! São Paulo virou uma grande piscina vazia!
Dica para economizar água: proibido lavar calcinha no chuveiro! Dica para economizar água: você não entra no chuveiro, você PASSA pelo chuveiro.
Por isso que aquela minha amiga colocou a placa no box do chuveiro: "Favor só lavar o que for usar HOJE!". Rarará.
E o meu amigo Ciro Botelho dá mais duas dicas: 1) O Corinthians só pode levar uma LAVADA por mês. 2) A Alstom só pode MOLHAR as mãos dos secretários do Alckmin a cada 15 dias!
E essa piada pronta: "Bebedouro adota racionamento de água". Rarará!
Aliás, quem inventou o chuveiro foi um francês chamado Merry Delabost! Então devia ter inventado a privada e não o chuveiro! Rarará!
E adorei o Marco Feliciano no Twitter: "O AUTO índice de analfabetismo". Gente! Nem Jesus salva! Seria uma autoavaliação? Ele vai culpar o ALTO corretor! O auto índice de analfabetismo do Feliciano é automático e automotivo?
E adorei a charge do Zop: "Olimpíadas de Inverno: saltos de esqui, snowboard e patinação. E aqui Olimpíadas do Inferno: ônibus queimado, rojão assassino, apagão e falta d'água". Olimpíada de Inferno!
E essa expressão agora: "Fulano usa tática black bloc". E eu já disse que qualquer banda de heavy metal perto dos black blocs vira Galinha Pintadinha!
E um amigo me perguntou: "Já comprou sua fantasia de black bloc pro Carnaval?". NÃO VAI TER CARNAVAL! Rarará!
É mole? É mole, mas sobe!
O Brasil é Lúdico! Olha esse cartaz na padaria: "Pudim de Leite Condenado". Sobremesa da Papuda! Pudim de leite condenado feito com crime de leite! Rarará.
E esse cartaz num restaurante por quilo: "Devido a trabalheira pra fazer a panqueca, hoje não teremos ovo frito".
Mas eu quero! Não consigo viver sem OVO FRITO! Rarará.
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
E um amigo me perguntou: 'Já comprou sua fantasia de black bloc pro Carnaval?'. NÃO VAI TER CARNAVAL!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Novidades da semana: o Pizzolato virou Prezolato, o Azeredo virou Azarado e o Zé Dirceu tá criando um novo bichinho de estimação na Papuda: uma vaquinha. A Mimosa! E quem vai contribuir pra Mimosa ficar gordinha? Rarará!
E depois do Apagão, vem o Sujão! Falta d'água! São Paulo virou uma grande piscina vazia!
Dica para economizar água: proibido lavar calcinha no chuveiro! Dica para economizar água: você não entra no chuveiro, você PASSA pelo chuveiro.
Por isso que aquela minha amiga colocou a placa no box do chuveiro: "Favor só lavar o que for usar HOJE!". Rarará.
E o meu amigo Ciro Botelho dá mais duas dicas: 1) O Corinthians só pode levar uma LAVADA por mês. 2) A Alstom só pode MOLHAR as mãos dos secretários do Alckmin a cada 15 dias!
E essa piada pronta: "Bebedouro adota racionamento de água". Rarará!
Aliás, quem inventou o chuveiro foi um francês chamado Merry Delabost! Então devia ter inventado a privada e não o chuveiro! Rarará!
E adorei o Marco Feliciano no Twitter: "O AUTO índice de analfabetismo". Gente! Nem Jesus salva! Seria uma autoavaliação? Ele vai culpar o ALTO corretor! O auto índice de analfabetismo do Feliciano é automático e automotivo?
E adorei a charge do Zop: "Olimpíadas de Inverno: saltos de esqui, snowboard e patinação. E aqui Olimpíadas do Inferno: ônibus queimado, rojão assassino, apagão e falta d'água". Olimpíada de Inferno!
E essa expressão agora: "Fulano usa tática black bloc". E eu já disse que qualquer banda de heavy metal perto dos black blocs vira Galinha Pintadinha!
E um amigo me perguntou: "Já comprou sua fantasia de black bloc pro Carnaval?". NÃO VAI TER CARNAVAL! Rarará!
É mole? É mole, mas sobe!
O Brasil é Lúdico! Olha esse cartaz na padaria: "Pudim de Leite Condenado". Sobremesa da Papuda! Pudim de leite condenado feito com crime de leite! Rarará.
E esse cartaz num restaurante por quilo: "Devido a trabalheira pra fazer a panqueca, hoje não teremos ovo frito".
Mas eu quero! Não consigo viver sem OVO FRITO! Rarará.
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
O fim do mundo e outras novidades - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 16/02
Já tive oportunidade de denunciar aqui a aleivosia segundo a qual, quando o mundo acabar, lá na ilha nós só iremos saber uns cinco dias depois. Isto é fruto de inveja e despeito contra a pátria itaparicana. Pelo contrário, a julgar por certas circunstâncias, deveremos estar entre os primeiros a ser informados ou até convidados especiais. Em meio aos nossos inúmeros filósofos, pensadores, visionários e estudiosos de alta escatologia, muitos têm opiniões sólidas sobre o assunto e diversos conhecem datas e pormenores copiosos. O finado Americano, que nunca esteve sóbrio um só instante em toda a vida e morreu com uns noventinha, me disse uma vez que um belo dia o mar ia felver, ia felver, escaldar a ilha toda e, logo em seguida, o resto do mundo. Hélio Bríbria, que não larga a Bíblia e sabe de cor todas as profecias terríveis, fica checando tsunamis, terremotos, erupções e outras catástrofes, lê um trecho da Bíblia que julga apropriado para o evento e, os olhos brilhando, dá umas casquinadazinhas de satisfação. “Hi-hi-hi!” faz ele. “Vocês todos vão se lascar, tá tudo escrito aqui, tá tudo acontecendo!”
Mesmo entre os que não costumam ocupar-se do assunto, como no caso de Toinho Sabacu, há posições claras. A dele, expressa várias vezes no Bar de Espanha, é não estar presente aos acontecimentos. Ao sentir o fim do mundo chegando, pirulitar-se-á rapidamente, para local não revelado mesmo aos mais íntimos e só sai até segunda ordem.
— Não faço a menor questão de estar presente — explica ele. — Não entendo nada do assunto e só ia piorar o sufoco. Tou fora, vou esperar para ver como ficam as coisas.
Nos dias recentes, o fim do mundo voltou ao debate público, espicaçado pelas mudanças climáticas. Quem ligava a tevê se espantava com as notícias sobre o calor no Sudeste, enquanto, lá no Nordeste, chegou a fazer frio e choveu. Houve dois dias em que os mais friorentos saíram meio agasalhados e muita gente chegou a mudar o figurino de casual para passeio completo, que, no caso de ilha é bermuda com camisa, aparição antigamente raríssima no verão. Ao contrário da previsão de Americano, o mar não parecia que ia ferver, mas talvez congelar-se, no ver quiçá exagerado de alguns observadores.
— Meus senhores, a situação é grave! — discursou Jacob Branco. — Estão ameaçadas a atmosfera, a troposfera e a própria ionosfera!
Aplausos respeitosos, belas palavras; Jacob nunca envergonhou, numa tribuna. Prosseguiu ele com uma dissertação sobre a destruição da camada de ozônio, que vários entenderam como a “camada de Osório”, o que levou alguns presentes a acharem que o lado Osório de minha família estava sendo prejudicado, e oferecerem sua solidariedade, diante daquele absurdo. E, mais, chuva ácida, desertificação, desmatamento, poluição ambiental, um deslumbramento ecológico.
Além disso, tinha Jacob razões para crer que evidências inquietantes pululavam por toda a ilha. O caso dos tatus ferrados com anzol já praticamente oficializara a pescaria do tatu, com a futura criação, no Ministério da Pesca, da Secretaria do Tatu, a ser ocupada por indicação da base governista. Só podia ser por causa dos agrotóxicos, que enlouqueceram os tatus, levando-os a acreditar que são peixes e mordendo isca de camarão. Noca Pequeno surgira com a notícia de que fora visto um pinguim em Salinas da Margarida, mas era muito tímido e sumiu logo, aparentando estar estranhando o frio. E Nilmete veio com a história de que botou para correr uma foca que a atacou no escuro, em sua casa na Ilha dos Porcos, mas há quem suspeite que o vulto dessa dita foca era mais parecido com Julinho da Gameleira — cala-te, boca.
Concluindo seu vistoso pronunciamento, Jacob afirmou a necessidade de conscientização, porque, de fato, entre tatus virados em peixes e pinguins tropicais, o mundo podia acabar a qualquer momento, nem neve tinha mais na Rússia. Seria a perfeita chave de ouro, se uma conhecida voz roufenha não viesse da entrada — quem, senão Zecamunista, regressando de mais uma vitoriosa turnê de pôquer, todo sorridente e cercado, não por uma, nem duas, mas seis esplendorosas jovens do Sul do País.
— Jacob, nobre amigo — disse ele. — Você ainda discute se o mundo vai acabar? Claro que já está acabando e eu, modéstia à parte, me antecipei.
Aquelas encantadoras moças antes renomadas acompanhantes, haviam sido as primeiras contratadas para trabalhar no Projeto Bom Apocalipse, destinado a produzir o melhor fim de mundo possível a clientes exigentes. Como não discriminaria ninguém, homens também serão contratados, para compor importante setor de lazer e entretenimento. Infelizmente, no começo o programa ia ter que ser restrito aos de melhor poder aquisitivo, embora já estivesse considerando aceitar participantes com bolsa apocalipse. O principal, como sempre, era entrar dinheiro na ilha. E era importante ressaltar que o mercado ia ser basicamente de corruptos e ladrões sortidos, que entre nós abundam.
— Vamos manter um quadro de advogados de primeiro time. O sujeito rouba, pega julgamento em liberdade e vem para cá. Como o julgamento não acaba nunca, ele passa o resto da vida aqui, no bem-bom, podendo sair até do país, se o juiz deixar e a Interpol não pegar. “Aproveite que o mundo neste país já acabou há muito tempo e viva aqui o melhor fim do mundo do mundo! Traga as propinas, que nós damos o paraíso fiscal! Roubar, todo mundo rouba, mas roubar com elegância e segurança só com o Bom Apocalipse — onde o que você rouba continua sempre seu! É agora ou nunca, não marque bobeira, não seja o único do bairro a ficar de fora! Ladrões de todo o Brasil, uni-vos!”
Já tive oportunidade de denunciar aqui a aleivosia segundo a qual, quando o mundo acabar, lá na ilha nós só iremos saber uns cinco dias depois. Isto é fruto de inveja e despeito contra a pátria itaparicana. Pelo contrário, a julgar por certas circunstâncias, deveremos estar entre os primeiros a ser informados ou até convidados especiais. Em meio aos nossos inúmeros filósofos, pensadores, visionários e estudiosos de alta escatologia, muitos têm opiniões sólidas sobre o assunto e diversos conhecem datas e pormenores copiosos. O finado Americano, que nunca esteve sóbrio um só instante em toda a vida e morreu com uns noventinha, me disse uma vez que um belo dia o mar ia felver, ia felver, escaldar a ilha toda e, logo em seguida, o resto do mundo. Hélio Bríbria, que não larga a Bíblia e sabe de cor todas as profecias terríveis, fica checando tsunamis, terremotos, erupções e outras catástrofes, lê um trecho da Bíblia que julga apropriado para o evento e, os olhos brilhando, dá umas casquinadazinhas de satisfação. “Hi-hi-hi!” faz ele. “Vocês todos vão se lascar, tá tudo escrito aqui, tá tudo acontecendo!”
Mesmo entre os que não costumam ocupar-se do assunto, como no caso de Toinho Sabacu, há posições claras. A dele, expressa várias vezes no Bar de Espanha, é não estar presente aos acontecimentos. Ao sentir o fim do mundo chegando, pirulitar-se-á rapidamente, para local não revelado mesmo aos mais íntimos e só sai até segunda ordem.
— Não faço a menor questão de estar presente — explica ele. — Não entendo nada do assunto e só ia piorar o sufoco. Tou fora, vou esperar para ver como ficam as coisas.
Nos dias recentes, o fim do mundo voltou ao debate público, espicaçado pelas mudanças climáticas. Quem ligava a tevê se espantava com as notícias sobre o calor no Sudeste, enquanto, lá no Nordeste, chegou a fazer frio e choveu. Houve dois dias em que os mais friorentos saíram meio agasalhados e muita gente chegou a mudar o figurino de casual para passeio completo, que, no caso de ilha é bermuda com camisa, aparição antigamente raríssima no verão. Ao contrário da previsão de Americano, o mar não parecia que ia ferver, mas talvez congelar-se, no ver quiçá exagerado de alguns observadores.
— Meus senhores, a situação é grave! — discursou Jacob Branco. — Estão ameaçadas a atmosfera, a troposfera e a própria ionosfera!
Aplausos respeitosos, belas palavras; Jacob nunca envergonhou, numa tribuna. Prosseguiu ele com uma dissertação sobre a destruição da camada de ozônio, que vários entenderam como a “camada de Osório”, o que levou alguns presentes a acharem que o lado Osório de minha família estava sendo prejudicado, e oferecerem sua solidariedade, diante daquele absurdo. E, mais, chuva ácida, desertificação, desmatamento, poluição ambiental, um deslumbramento ecológico.
Além disso, tinha Jacob razões para crer que evidências inquietantes pululavam por toda a ilha. O caso dos tatus ferrados com anzol já praticamente oficializara a pescaria do tatu, com a futura criação, no Ministério da Pesca, da Secretaria do Tatu, a ser ocupada por indicação da base governista. Só podia ser por causa dos agrotóxicos, que enlouqueceram os tatus, levando-os a acreditar que são peixes e mordendo isca de camarão. Noca Pequeno surgira com a notícia de que fora visto um pinguim em Salinas da Margarida, mas era muito tímido e sumiu logo, aparentando estar estranhando o frio. E Nilmete veio com a história de que botou para correr uma foca que a atacou no escuro, em sua casa na Ilha dos Porcos, mas há quem suspeite que o vulto dessa dita foca era mais parecido com Julinho da Gameleira — cala-te, boca.
Concluindo seu vistoso pronunciamento, Jacob afirmou a necessidade de conscientização, porque, de fato, entre tatus virados em peixes e pinguins tropicais, o mundo podia acabar a qualquer momento, nem neve tinha mais na Rússia. Seria a perfeita chave de ouro, se uma conhecida voz roufenha não viesse da entrada — quem, senão Zecamunista, regressando de mais uma vitoriosa turnê de pôquer, todo sorridente e cercado, não por uma, nem duas, mas seis esplendorosas jovens do Sul do País.
— Jacob, nobre amigo — disse ele. — Você ainda discute se o mundo vai acabar? Claro que já está acabando e eu, modéstia à parte, me antecipei.
Aquelas encantadoras moças antes renomadas acompanhantes, haviam sido as primeiras contratadas para trabalhar no Projeto Bom Apocalipse, destinado a produzir o melhor fim de mundo possível a clientes exigentes. Como não discriminaria ninguém, homens também serão contratados, para compor importante setor de lazer e entretenimento. Infelizmente, no começo o programa ia ter que ser restrito aos de melhor poder aquisitivo, embora já estivesse considerando aceitar participantes com bolsa apocalipse. O principal, como sempre, era entrar dinheiro na ilha. E era importante ressaltar que o mercado ia ser basicamente de corruptos e ladrões sortidos, que entre nós abundam.
— Vamos manter um quadro de advogados de primeiro time. O sujeito rouba, pega julgamento em liberdade e vem para cá. Como o julgamento não acaba nunca, ele passa o resto da vida aqui, no bem-bom, podendo sair até do país, se o juiz deixar e a Interpol não pegar. “Aproveite que o mundo neste país já acabou há muito tempo e viva aqui o melhor fim do mundo do mundo! Traga as propinas, que nós damos o paraíso fiscal! Roubar, todo mundo rouba, mas roubar com elegância e segurança só com o Bom Apocalipse — onde o que você rouba continua sempre seu! É agora ou nunca, não marque bobeira, não seja o único do bairro a ficar de fora! Ladrões de todo o Brasil, uni-vos!”
Sem intimidades - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO
O Estado de S.Paulo - 16/02
A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
*
As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia persiste.
*
O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
*
O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
*
Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.
A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
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As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia persiste.
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O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
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O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
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Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.
Política externa e a eleição presidencial - CELSO LAFER
O Estado de S.Paulo - 16/02
A política externa é uma política pública. Tem como objetivo básico traduzir necessidades internas em possibilidades externas. Isso, no mundo contemporâneo, tem especial relevância porque o processo de globalização, nas suas múltiplas vertentes, contribui para diluir o que separa o "interno" de um país do que a ele é "externo". A importância crescente dos fluxos e das redes tornou as fronteiras porosas e, por isso, o mundo se "internaliza" na vida dos países, inclusive na forma de expectativas, positivas ou negativas, que guiam as condutas dos atores governamentais e não governamentais atuantes no sistema internacional. Tal "internalização" adensa o relacionamento entre política interna e externa, mas não é uniforme. Obedece à lógica das especificidades próprias e das características da inserção internacional dos países.
No Brasil, pela natureza do seu presidencialismo e pelo que estipula a Constituição, o rumo da política externa é responsabilidade do presidente da República, que a exerce de acordo com as características de sua liderança e personalidade. Foi o que fizeram Fernando Henrique Cardoso e Lula. Ambos, com grande interesse pela política externa, deram sentido de direção à diplomacia brasileira, valendo-se da qualificada competência do Itamaraty.
Independentemente das muitas críticas que tenho, expostas nesta página no correr dos anos, ao sentido de direção que Lula imprimiu à inserção internacional do Brasil, cabe registrar que, na atual administração petista, a política externa perdeu energia e centralidade. A presidente Dilma Rousseff não só não revelou maior interesse pela ação diplomática, como não deu o devido respaldo ao Itamaraty, fragmentando o processo decisório da política externa, tornando-o difuso e desconexo. Uma das consequências foi a erosão do prévio patamar da presença do Brasil no mundo, obtido, de distintos modos, nas gestões de Fernando Henrique e de Lula, e também a reiteração do inadequado. São insatisfatórias, no âmbito governamental, a identificação das necessidades internas e a avaliação das possibilidades externas num cenário internacional em movimento, de que são exemplos as mutações geopolíticas e as em andamento na ordem energética mundial, a velocidade com que se amplia o horizonte do conhecimento e o seu impacto na competitividade, o papel crescente das cadeias globais de valor no comércio internacional.
Daí a imprescindibilidade para a condução da política externa de sensibilidade estratégica como componente de governança que saiba mesclar com criatividade e sentido de direção a relação entre o "interno" e o "externo". É isso que torna relevante a discussão, na campanha presidencial deste ano, da política externa.
Para isso aponta recente documento do PSDB, com o qual me identifico, ao almejar "um país que participe ativamente da comunidade internacional, negociando com todos os continentes", tendo como ponto de partida interno "um país justo, inovador, sustentável, produtivo, integrado e moderno", que valorize, no campo dos valores, "a sua rica diversidade cultural".
O documento do PSDB, articulado e inspirado pelo senador Aécio Neves, assinala a existência de um desejo de mudança comum a muitos brasileiros e indica que uma das suas razões, que impacta a política externa, é a perda de confiança no governo. Essa degradação de confiança na administração petista tem muitos vetores arrolados no documento. Entre eles, o aumento da incerteza proveniente da erosão de um ambiente econômico adequado para o desenvolvimento do País; o desacerto de serviços públicos essenciais como saúde, educação, transportes, que tem uma das suas raízes na falta de profissionalismo na gestão pública, comprometida pelo contínuo aparelhamento político-partidário; a precariedade crescente da infraestrutura, que põe em questão a logística do País e a desatenção a válidos preceitos de sustentabilidade que vem comprometendo, inter alia, a qualidade da matriz energética e o papel do etanol; a corrupção - os malfeitos, na terminologia da presidente -, que mina as instituições democráticas; e o estilo petista de governar baseado, de um lado, na cooptação e, de outro, no constrangimento político, lastreado na prática intolerante da desqualificação dos opositores, que deteriora o ambiente político e aumenta a desconfiança dos brasileiros na atividade pública.
A voz das recentes manifestações públicas nas ruas, ainda que difusa na sua mensagem e por vezes destrutiva quando acompanhada de violência, é uma expressão de indócil desconforto com a situação presente. Não é exteriorização de ingratidão em relação aos mecanismos de inclusão social, como alegado por próceres petistas, mas, sim, a tradução de que, por si só, o que está sendo feito não dá conta dos problemas atuais do País, o que alimenta o desejo de mudança.
Toda política externa adquire o adicional do soft power na sua ação diplomática na medida em que é vista e percebida no plano internacional como a expressão de um país que, além do quantitativo dos seus recursos e de sua escala, tem dimensões qualitativas, nos campos econômico, político e no dos valores. É isso que amplia a credibilidade e gera expectativas positivas que, por obra das redes e dos fluxos, operam no mundo contemporâneo.
A credibilidade externa é uma faceta da confiança interna. A perda da confiança interna é um dos fatores que diminuem a capacidade de uma inserção internacional mais construtiva do País. É por isso que a primeira necessidade interna para a recuperação de uma presença internacional mais ativa do Brasil é a recuperação da confiança interna, e esta dificilmente se obterá com a reeleição da presidente, que tenderia, se bem-sucedida, a insistir, sem sensibilidade estratégica, em fazer mais do mesmo.
A política externa é uma política pública. Tem como objetivo básico traduzir necessidades internas em possibilidades externas. Isso, no mundo contemporâneo, tem especial relevância porque o processo de globalização, nas suas múltiplas vertentes, contribui para diluir o que separa o "interno" de um país do que a ele é "externo". A importância crescente dos fluxos e das redes tornou as fronteiras porosas e, por isso, o mundo se "internaliza" na vida dos países, inclusive na forma de expectativas, positivas ou negativas, que guiam as condutas dos atores governamentais e não governamentais atuantes no sistema internacional. Tal "internalização" adensa o relacionamento entre política interna e externa, mas não é uniforme. Obedece à lógica das especificidades próprias e das características da inserção internacional dos países.
No Brasil, pela natureza do seu presidencialismo e pelo que estipula a Constituição, o rumo da política externa é responsabilidade do presidente da República, que a exerce de acordo com as características de sua liderança e personalidade. Foi o que fizeram Fernando Henrique Cardoso e Lula. Ambos, com grande interesse pela política externa, deram sentido de direção à diplomacia brasileira, valendo-se da qualificada competência do Itamaraty.
Independentemente das muitas críticas que tenho, expostas nesta página no correr dos anos, ao sentido de direção que Lula imprimiu à inserção internacional do Brasil, cabe registrar que, na atual administração petista, a política externa perdeu energia e centralidade. A presidente Dilma Rousseff não só não revelou maior interesse pela ação diplomática, como não deu o devido respaldo ao Itamaraty, fragmentando o processo decisório da política externa, tornando-o difuso e desconexo. Uma das consequências foi a erosão do prévio patamar da presença do Brasil no mundo, obtido, de distintos modos, nas gestões de Fernando Henrique e de Lula, e também a reiteração do inadequado. São insatisfatórias, no âmbito governamental, a identificação das necessidades internas e a avaliação das possibilidades externas num cenário internacional em movimento, de que são exemplos as mutações geopolíticas e as em andamento na ordem energética mundial, a velocidade com que se amplia o horizonte do conhecimento e o seu impacto na competitividade, o papel crescente das cadeias globais de valor no comércio internacional.
Daí a imprescindibilidade para a condução da política externa de sensibilidade estratégica como componente de governança que saiba mesclar com criatividade e sentido de direção a relação entre o "interno" e o "externo". É isso que torna relevante a discussão, na campanha presidencial deste ano, da política externa.
Para isso aponta recente documento do PSDB, com o qual me identifico, ao almejar "um país que participe ativamente da comunidade internacional, negociando com todos os continentes", tendo como ponto de partida interno "um país justo, inovador, sustentável, produtivo, integrado e moderno", que valorize, no campo dos valores, "a sua rica diversidade cultural".
O documento do PSDB, articulado e inspirado pelo senador Aécio Neves, assinala a existência de um desejo de mudança comum a muitos brasileiros e indica que uma das suas razões, que impacta a política externa, é a perda de confiança no governo. Essa degradação de confiança na administração petista tem muitos vetores arrolados no documento. Entre eles, o aumento da incerteza proveniente da erosão de um ambiente econômico adequado para o desenvolvimento do País; o desacerto de serviços públicos essenciais como saúde, educação, transportes, que tem uma das suas raízes na falta de profissionalismo na gestão pública, comprometida pelo contínuo aparelhamento político-partidário; a precariedade crescente da infraestrutura, que põe em questão a logística do País e a desatenção a válidos preceitos de sustentabilidade que vem comprometendo, inter alia, a qualidade da matriz energética e o papel do etanol; a corrupção - os malfeitos, na terminologia da presidente -, que mina as instituições democráticas; e o estilo petista de governar baseado, de um lado, na cooptação e, de outro, no constrangimento político, lastreado na prática intolerante da desqualificação dos opositores, que deteriora o ambiente político e aumenta a desconfiança dos brasileiros na atividade pública.
A voz das recentes manifestações públicas nas ruas, ainda que difusa na sua mensagem e por vezes destrutiva quando acompanhada de violência, é uma expressão de indócil desconforto com a situação presente. Não é exteriorização de ingratidão em relação aos mecanismos de inclusão social, como alegado por próceres petistas, mas, sim, a tradução de que, por si só, o que está sendo feito não dá conta dos problemas atuais do País, o que alimenta o desejo de mudança.
Toda política externa adquire o adicional do soft power na sua ação diplomática na medida em que é vista e percebida no plano internacional como a expressão de um país que, além do quantitativo dos seus recursos e de sua escala, tem dimensões qualitativas, nos campos econômico, político e no dos valores. É isso que amplia a credibilidade e gera expectativas positivas que, por obra das redes e dos fluxos, operam no mundo contemporâneo.
A credibilidade externa é uma faceta da confiança interna. A perda da confiança interna é um dos fatores que diminuem a capacidade de uma inserção internacional mais construtiva do País. É por isso que a primeira necessidade interna para a recuperação de uma presença internacional mais ativa do Brasil é a recuperação da confiança interna, e esta dificilmente se obterá com a reeleição da presidente, que tenderia, se bem-sucedida, a insistir, sem sensibilidade estratégica, em fazer mais do mesmo.
MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO
FOLHA DE SP - 16/02
Empresa dona da Brastemp amplia lançamentos no país
A Whirlpool, indústria de eletrodomésticos dona das marcas Brastemp, Consul e KitchenAid, vai ampliar o número de lançamentos neste ano para 180 produtos, um incremento de 12,5% na comparação com 2013.
O aumento faz parte da estratégia da empresa para enfrentar um ano que deverá ser de estabilidade para o setor em geral, de acordo com João Carlos Costa Brega, presidente da companhia.
"A perspectiva para esse ano na indústria [de eletrodomésticos] é de crescimento zero. No nosso caso, vamos continuar crescendo por conta de inovação e do lançamento de produtos."
Para o Dia das Mães, em maio, a Consul colocará à venda um novo micro-ondas que, segundo o executivo, é capaz de fazer um sanduíche tão crocante quanto o feito em fogão convencional. O produto, que terá uma sanduicheira dentro do micro-ondas, se chamará Tostex.
Outra novidade será especialmente para a Copa: uma cervejeira -um refrigerador compacto para consumidores da bebida.
"No caso de produtos que o cliente não tem, a ideia é oferecer facilidade", diz.
Em outra frente de ação, a Whirpool apostará em inovação de eletrodomésticos que já estão mais consolidados no dia a dia dos brasileiros, como as geladeiras e os fogões, para motivar a aquisição de novos produtos.
Os refrigeradores, por exemplo, estão presentes em 98% das casas do país, segundo dados da Nielsen citados pelo executivo.
"Mesmo nesse caso, apenas 45% dos refrigeradores são 'frost free' [que não acumulam gelo]. Há muito espaço para crescer", afirma.
O grupo deve manter em 2014 uma média de investimentos no Brasil que varia de R$ 480 milhões a R$ 520 milhões, segundo o executivo.
LIQUIDAÇÃO O ANO TODO
A Outlet Lingerie, rede de lojas de roupas íntimas fora de coleção, pretende abrir 40 novas unidades no país neste ano, com foco nos Estados de Minas Gerais, Santa Catarina e Rio de Janeiro.
A expansão vai priorizar os pontos de rua, "para não agredir" outras lojas de varejo que vendem produtos das mesmas marcas, mas de coleções atuais, segundo Maurício Michelotto, presidente da rede de franquias.
Das 72 lojas que a Outlet Lingerie possui hoje, somente duas estão localizadas em em shopping centers -uma no Center 3, na avenida Paulista, em São Paulo, e outra em Petrolina (PE).
"Nossas lojas conseguem praticar preços até 70% mais baratos que no varejo comum, com uma diferença temporal [entre o lançamento das peças] que às vezes é de um mês", diz.
Para os próximos três anos, a rede pretende chegar a 300 unidades no país.
"Não temos concorrentes, somente alguns sites e os períodos de liquidação do varejo. Os grandes outlets ficam distantes do centro."
A rede trabalha com marcas voltadas para as classes A e B, como Hope, Valisère, Nu. Luxe, Loungerie e Calvin Klein Underwear.
228
é o número de lojas que a rede pretende abrir até 2017
16
é a quantidade de marcas de roupas íntimas comercializadas
COM EMPRÉSTIMO
A parcela de imóveis usados comprados com empréstimos bancários na cidade de São Paulo passou de 41% do total em 2012 para 48% no ano passado, segundo a base de dados da imobiliária Lello.
Oito anos atrás, o número era de apenas 15%.
Em 2013, o valor médio das unidades de terceiros comercializadas pela empresa nos principais bairros da capital ficou em R$ 550 mil.
A expansão do crédito e a procura por imóveis prontos para morar alavancaram esse modelo de compra.
A Aliança do Pacífico avança - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 16/02
A Aliança do Pacífico, bloco formado por México, Colômbia, Peru e Chile, reduziu a zero as tarifas de mais de 90% dos produtos comercializados entre seus membros. Os demais produtos, todos do setor agrícola e considerados sensíveis, serão zerados em até 17 anos. Está liberada também a circulação de capitais e serviços, com integração inclusive de mercados financeiros. Considerando-se que essa aliança existe formalmente há menos de dois anos, os progressos são impressionantes - ainda mais se comparados à letargia do Mercosul, cujos projetos de integração se arrastam há mais de duas décadas.
Em poucas palavras, a diferença entre um e outro está na visão de mundo: enquanto os países do Pacífico apostam no livre mercado, os parceiros do Mercosul dão cada vez mais ênfase ao estatismo - uma doença que empobrece países importantes, como Argentina e Venezuela - e à ideologia, que, em nome de um suposto resgate dos pobres e dos oprimidos, repele investidores, criminaliza o lucro e condena a região ao atraso crônico.
A intenção da Aliança do Pacífico não é modesta: pretende ser o principal polo de atração de investimentos na América Latina e quer ser a ponte para uma eventual integração com a Ásia - China, Coreia do Sul e Japão já são observadores do bloco. A aliança reúne hoje 212 milhões de habitantes, e seu Produto Interno Bruto (PIB) somado representa 36% do PIB latino-americano. Vários países da América Central, como Costa Rica e Panamá, já manifestaram interesse em aderir, para não perder a chance de integrar um projeto que tem sido visto no resto do mundo como a mais importante iniciativa de comércio internacional no continente.
O acordo recém-assinado serve também para resolver o desequilíbrio causado pelos vários tratados de livre-comércio firmados individualmente pelos países do bloco com os Estados Unidos e a União Europeia. Graças a esses tratados, diversos produtos comercializados no interior da Aliança do Pacífico eram menos competitivos do que os artigos americanos e europeus. Agora, com quase todas as tarifas eliminadas, a competição tende a se restabelecer.
Para os signatários do acordo, trata-se de mais uma prova de que a aliança está fundada em políticas que visam a flexibilizar cada vez mais as relações comerciais, que preservam a previsibilidade da política econômica, que reduzem a burocracia e que, principalmente, respeitam os contratos em vigor. Em 2012, quando recebeu a visita de empresários e políticos espanhóis interessados em investir na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos lhes disse: "Aqui não expropriamos" - poucos dias antes, o governo da Argentina havia tomado da petrolífera espanhola Repsol sua participação na YPF.
O Mercosul, por sua vez, está cada vez mais atado ao bolivarianismo, que hostiliza os investimentos estrangeiros, ergue barreiras comerciais e reluta em relacionar-se com os europeus e, principalmente, com os americanos. A presença da Venezuela na presidência do bloco diz tudo sobre a prevalência da fantasia sobre a razão no Mercosul.
Como resultado, seus membros aparecem entre os últimos colocados no ranking do Banco Mundial que analisa o ambiente de negócios na América Latina. O Uruguai é o 12.º entre os 33 países analisados, seguido do Brasil (23.º), da Argentina (26.º) e da Venezuela - a lanterninha. Os da Aliança do Pacífico ocupam quatro das cinco primeiras posições.
Mas nem tudo é contraste entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul. Um dos objetivos dos fundadores da Aliança é "promover o crescimento econômico, o desenvolvimento e a competitividade das economias dos países-membros, buscando atingir maior bem-estar, superando a desigualdade socioeconômica e promovendo uma maior inclusão social de seus habitantes". Meta idêntica à do Mercosul, como não se cansam de afirmar seus líderes populistas. No entanto, não será necessário muito tempo para constatar que o modelo da Aliança, baseado no livre-comércio e não no atraso ideológico, é o único capaz de cumprir o que promete.
A Aliança do Pacífico, bloco formado por México, Colômbia, Peru e Chile, reduziu a zero as tarifas de mais de 90% dos produtos comercializados entre seus membros. Os demais produtos, todos do setor agrícola e considerados sensíveis, serão zerados em até 17 anos. Está liberada também a circulação de capitais e serviços, com integração inclusive de mercados financeiros. Considerando-se que essa aliança existe formalmente há menos de dois anos, os progressos são impressionantes - ainda mais se comparados à letargia do Mercosul, cujos projetos de integração se arrastam há mais de duas décadas.
Em poucas palavras, a diferença entre um e outro está na visão de mundo: enquanto os países do Pacífico apostam no livre mercado, os parceiros do Mercosul dão cada vez mais ênfase ao estatismo - uma doença que empobrece países importantes, como Argentina e Venezuela - e à ideologia, que, em nome de um suposto resgate dos pobres e dos oprimidos, repele investidores, criminaliza o lucro e condena a região ao atraso crônico.
A intenção da Aliança do Pacífico não é modesta: pretende ser o principal polo de atração de investimentos na América Latina e quer ser a ponte para uma eventual integração com a Ásia - China, Coreia do Sul e Japão já são observadores do bloco. A aliança reúne hoje 212 milhões de habitantes, e seu Produto Interno Bruto (PIB) somado representa 36% do PIB latino-americano. Vários países da América Central, como Costa Rica e Panamá, já manifestaram interesse em aderir, para não perder a chance de integrar um projeto que tem sido visto no resto do mundo como a mais importante iniciativa de comércio internacional no continente.
O acordo recém-assinado serve também para resolver o desequilíbrio causado pelos vários tratados de livre-comércio firmados individualmente pelos países do bloco com os Estados Unidos e a União Europeia. Graças a esses tratados, diversos produtos comercializados no interior da Aliança do Pacífico eram menos competitivos do que os artigos americanos e europeus. Agora, com quase todas as tarifas eliminadas, a competição tende a se restabelecer.
Para os signatários do acordo, trata-se de mais uma prova de que a aliança está fundada em políticas que visam a flexibilizar cada vez mais as relações comerciais, que preservam a previsibilidade da política econômica, que reduzem a burocracia e que, principalmente, respeitam os contratos em vigor. Em 2012, quando recebeu a visita de empresários e políticos espanhóis interessados em investir na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos lhes disse: "Aqui não expropriamos" - poucos dias antes, o governo da Argentina havia tomado da petrolífera espanhola Repsol sua participação na YPF.
O Mercosul, por sua vez, está cada vez mais atado ao bolivarianismo, que hostiliza os investimentos estrangeiros, ergue barreiras comerciais e reluta em relacionar-se com os europeus e, principalmente, com os americanos. A presença da Venezuela na presidência do bloco diz tudo sobre a prevalência da fantasia sobre a razão no Mercosul.
Como resultado, seus membros aparecem entre os últimos colocados no ranking do Banco Mundial que analisa o ambiente de negócios na América Latina. O Uruguai é o 12.º entre os 33 países analisados, seguido do Brasil (23.º), da Argentina (26.º) e da Venezuela - a lanterninha. Os da Aliança do Pacífico ocupam quatro das cinco primeiras posições.
Mas nem tudo é contraste entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul. Um dos objetivos dos fundadores da Aliança é "promover o crescimento econômico, o desenvolvimento e a competitividade das economias dos países-membros, buscando atingir maior bem-estar, superando a desigualdade socioeconômica e promovendo uma maior inclusão social de seus habitantes". Meta idêntica à do Mercosul, como não se cansam de afirmar seus líderes populistas. No entanto, não será necessário muito tempo para constatar que o modelo da Aliança, baseado no livre-comércio e não no atraso ideológico, é o único capaz de cumprir o que promete.
Dilma cede a ruralistas - ILIMAR FRANCO
O GLOBO - 16/02
O jogo de cena
Os líderes do agronegócio cobram pressa na edição das instruções. E o governo não tem peito para enfrentá-los. Os ruralistas querem fugir das penas da lei. Os grandes proprietários buscam ser tratados como se fossem pequenos, não tendo a obrigação legal de recuperar a mata degradada. Para isso, a partir de lobby do Ministério da Agricultura, almejam que a fiscalização não seja feita pela área total, mas considerando a matrícula do imóvel. Uma propriedade de cinco mil hectares, por exemplo, se formou com a aquisição de várias áreas (matrículas). Assim, se cada compra for analisada isoladamente, uma fazenda vira diversas pequenas propriedades.
"Uma lei não tem prazo de validade. Fica para toda a vida e não só para a Copa. Manifestações não podem ser consideradas terrorismo"
Paulo Paim Senador (PT-RS)
Pé na estrada
A presidente Dilma fará um giro pela país esta semana para iluminar seu governo. Amanhã, em Governador Valadares, participa de formatura do Pronatec. Terça, anuncia investimentos em obras de mobilidade urbana no Piauí e em Alagoas.
O interventor
O ministro Aloizio Mercadante (Casa Civil) recebeu a tarefa da presidente Dilma de monitorar todos os assuntos relacionados à Copa do Mundo. Não quer ser surpreendida com problemas em cima da hora. E pediu ao ministro para, até o fim dos jogos, não se envolver com as campanhas eleitorais que estarão em curso.
Contribuição ao debate
O PMDB já formou o núcleo de intelectuais que formulará as propostas que o partido vai oferecer ao programa de governo da presidente Dilma. Nele estão, entre outros, o ex-ministro Delfim Netto e o economista José Márcio Camargo.
Cala a boca, Magda!
O deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS) está sendo comparado ao colega Zé Geraldo (PT-PA). Ambos falam o que pensam. Semana passada, foi ao ar vídeo em que Heinze diz: "quilombolas, índios, gays e lésbicas são tudo que não presta." Dias antes, Geraldo disse que a cubana Ramona Rodríguez "já vai tarde" porque bebe.
Montando o palanque
O presidenciável Eduardo Campos está oferecendo apoio do PSB à candidatura do senador Eunício Oliveira (PMDB) ao governo do Ceará. Os socialistas também apoiariam a reeleição do senador Inácio Arruda (PCdoB).
Dia do fico
O governador de Alagoas, Teotônio Vilela (PSDB), não vai deixar o cargo para concorrer ao Senado. Sem palanque, o presidenciável Aécio Neves pediu que providencie candidato à sucessão. O nome mais forte é do tucano Marco Fireman.
UM BRINDE. O deputado Edinho Bez (PMDB-SC) apresentou projeto de lei para incluir o vinho entre os produtos que integram a cesta básica.
Dada a largada - VERA MAGALHÃES - PAINEL
FOLHA DE SP - 16/02
Em reunião com representantes dos principais partidos políticos, a TV Globo definiu na sexta-feira as datas dos debates da eleição presidencial: 2 de outubro, no primeiro turno, e 24 de outubro, no segundo. Também ficou acertado que só serão convidados os quatro candidatos mais bem posicionados na última pesquisa da semana anterior. A cobertura diária das atividades dos candidatos começará em agosto e também ficará restrita aos quatro primeiros nos levantamentos.
Aerotrem Em 2012, a Globo restringiu a seis o número de candidatos no debate da disputa pela Prefeitura de São Paulo. Levy Fidelix (PRTB) conseguiu na Justiça o direito de ser convidado, e o debate acabou suspenso.
Na bancada
A emissora também definiu as datas das entrevistas com os candidatos: no "Jornal Nacional" serão de 11 a 14 de agosto, no "Jornal da Globo", de 1º a 4 de setembro e no "Bom Dia Brasil", de 22 a 25 de setembro.
Convescote
Michel Temer irá promover um jantar amanhã no Palácio do Jaburu com os 90 prefeitos do PMDB em São Paulo com a presença de Paulo Skaf. Pedirá todo o empenho pela candidatura do presidente da Fiesp ao governo do Estado.
RSVP Temer convidou Dilma Rousseff para o jantar, mas a presidente ainda não confirmou presença.
Atestado No encontro com Lula e Alexandre Padilha em Ribeirão Preto, há uma semana, o empresário Maurílio Biagi alegou motivo de saúde para declinar do convite para ser vice do petista. Padilha pediu que Biagi atue como conselheiro da pré-campanha, e ele topou.
Medida certa O petista perdeu 1 kg na primeira semana de caravana pelo interior. Como os eventos são tomados por discursos e fotos, faz as refeições no carro, com marmitas que sua mulher, Thássia, improvisa.
Vem cá Réu no processo do mensalão mineiro, Clésio Andrade pode ser suplente de Josué Gomes (PMDB) na chapa para o Senado em Minas Gerais. Ele assumiu o Senado na cadeira de Eliseu Resende, que morreu em 2011.
Tampão A articulação está sendo costurada pela ala do PMDB de Minas Gerais que defende aliança com Fernando Pimentel (PT) e tenta conter ameaça de dissidência liderada por Clésio.
Vaivém A cúpula do PP recebeu recado de que Eduardo Campos pretende formalizar seu apoio à candidatura de Ana Amélia (PP) ao governo do Rio Grande do Sul no dia 22, data de evento do PSB e da Rede no Estado. Em troca, pedirá apoio da senadora na corrida presidencial.
Prazo O PP ainda tenta reverter o apoio de Ana Amélia a Campos e empurrá-la para o palanque de Dilma, atendendo a um pedido do Planalto, mas nem os dirigentes pepistas acreditam no sucesso da empreitada.
Nova... Advogado de José Genoino, Luiz Fernando Pacheco entrará amanhã com petição no Supremo Tribunal Federal apresentando laudos que, segundo ele, "confirmam o delicado estado de saúde'' do ex-deputado.
... tentativa O cardiologista do petista atestou que ele mantém "alto risco" cardiovascular. "Nosso pedido será para que ele continue a cumprir pena em regime humanitário de prisão domiciliar", diz o criminalista.
Provisório No ano passado, Joaquim Barbosa prorrogou a prisão domiciliar de Genoino até fim de fevereiro. Depois disso, ele deve ser submetido a novos exames para que o ministro decida se volta para a Papuda.
tiroteio
"Os ataques de Padilha ao PSDB mostram o fracasso de sua gestão na Saúde: falou mais do partido que nos três anos no ministério."
DE CARLOS BEZERRA, líder do PSDB na Assembleia paulista, sobre as críticas que o pré-candidato petista fez ao governo Alckmin em giro pelo interior.
Contraponto
Olhando com lupa
Senadores da Comissão de Constituição e Justiça ficaram surpresos com o ritmo de Gleisi Hoffmann (PT-PR) em seu retorno ao Congresso. Depois que a ex-ministra da Casa Civil pediu vista de uma série de projetos, Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) disse a um colega:
-Desse jeito, a senadora vai ter que reforçar um estoque de óculos para ler todos os projetos!
Mais tarde, na apreciação de outro texto, Álvaro Dias (PSDB-PR), adversário paranaense de Gleisi, insistiu:
-Eu sei que a lente da senadora Gleisi está esverdeada e embaçada e ela não pedirá vista.
A Petrobras e o risco de indexação - MAÍLSON DA NÓBREGA
REVISTA VEJA
A Petrobras tem sofrido excessiva interferência do governo em suas atividades. A ela se atribuiu a responsabilidade de operadora única na exploração do petróleo do pré-sal, com participação mínima de 30% nos investimentos. Os preços da gasolina e do diesel são controlados para evitar que a inflação rompa o teto da meta (6,5%) devido a erros da política econômica.
A dívida da empresa saltou de 46 bilhões de dólares, em 2005, para 250 bilhões de dólares, em 2013. A rentabilidade despencou. O valor de mercado caiu mais de 100 bilhões de dólares entre 2010 e 2013. No ano passado, a Petrobras foi a campeã de perda de valor na bolsa (cerca de 30 bilhões de reais).
Há muitas razões, que o espaço não permite comentar, para rever a exagerada responsabilidade da estatal no pré-sal, o que vai requerer difíceis negociações políticas. Já o abandono do controle de seus preços depende exclusivamente de um ato de vontade do governo. Em fins do ano passado, soube-se que a empresa teria tido a aquiescência da presidente Dilma para implementar uma fórmula de reajuste periódico dos preços de gasolina e diesel, que levaria em conta a taxa de câmbio e cotações internacionais. Mecanismo similar funcionava bem quando o PT assumiu o governo em 2003.
A suposta medida foi recebida com entusiasmo pelos investidores e com alívio pelos produtores de etanol. Aqueles se animaram com a perspectiva de recuperar as perdas do valor de mercado. Estes esperavam recompor a competitividade do produto, cujos preços variam em linha com os da gasolina. A intervenção nos preços inviabiliza novos investimentos e tem provocado o fechamento de destilarias.
A alegria durou pouco. O ministro da Fazenda é economista descartou imediatamente a ideia, alegando que ela poderia restabelecer a indexação da economia. Falou-se que a fórmula provocaria corrida aos postos nos dias de reajuste dos preços. Dilma também ficou contra a fórmula. Para ela, "indexar a economia brasileira ao câmbio e a outra variável é uma temeridade". Ela está certa em tese, mas inteiramente equivocada quanto ao risco de indexação advindo da proposta da Petrobras. Dilma foi mal assessorada.
O país pagou um preço alto, é verdade, pela indexação generalizada de preços, salários e contratos, que virou uma praga a partir de meados dos anos 1960 e somente foi extinta com o Plano Real (1994). O processo hiperinflacionário concentrou renda, desestimulou investimentos, enfraqueceu o mercado de capitais e reduziu o potencial de crescimento da economia. Acontece que tal indexação não é o que Dilma e Mantega apregoam. Significava a correção de preços, salários e contratos por um índice de inflação passada. Nada a ver com"a fórmula da Petrobras.
Em uma economia livre da praga da indexação, como é hoje a brasileira, os preços variam em função de aumento de custos e de fatores que influenciam a oferta e a demanda do respectivo bem ou serviço. Repasses de custos aos preços finais acontecem rotineiramente, em decorrência de múltiplas causas, inclusive da taxa de câmbio. Se a tese da presidente estivesse correta, as variações de preços de produtos agrícolas no mercado doméstico incorporariam o risco de trazer de volta a indexação de outrora. Como se sabe, esses preços são influenciados por fatores como demanda, cotações externas e condições de oferta, que são também impactadas pelo clima. Não há razão plausível para manter a Petrobras sob o garrote do controle de seus preços. Nem para imaginar que motoristas correrão para os postos para ganhar uns trocados, o que não acontecia quando a fórmula vigorava. Menos ainda para temer a reindexação da economia.
O controle de preços da gasolina e do diesel fragiliza financeiramente a empresa e aumenta inconvenientemente a demanda de combustíveis, o que tem elevado as importações de petróleo e derivados e provocado a deterioração da balança comercial. Além disso, a interferência do governo tem causado efeitos negativos na cadeia produtiva de combustíveis e de transportes, criando mais distorções.
Motivos não faltam para restabelecer a racionalidade no mercado de combustíveis, evitar riscos de desabastecimento e abandonar prática inequivocamente danosa.
A Petrobras tem sofrido excessiva interferência do governo em suas atividades. A ela se atribuiu a responsabilidade de operadora única na exploração do petróleo do pré-sal, com participação mínima de 30% nos investimentos. Os preços da gasolina e do diesel são controlados para evitar que a inflação rompa o teto da meta (6,5%) devido a erros da política econômica.
A dívida da empresa saltou de 46 bilhões de dólares, em 2005, para 250 bilhões de dólares, em 2013. A rentabilidade despencou. O valor de mercado caiu mais de 100 bilhões de dólares entre 2010 e 2013. No ano passado, a Petrobras foi a campeã de perda de valor na bolsa (cerca de 30 bilhões de reais).
Há muitas razões, que o espaço não permite comentar, para rever a exagerada responsabilidade da estatal no pré-sal, o que vai requerer difíceis negociações políticas. Já o abandono do controle de seus preços depende exclusivamente de um ato de vontade do governo. Em fins do ano passado, soube-se que a empresa teria tido a aquiescência da presidente Dilma para implementar uma fórmula de reajuste periódico dos preços de gasolina e diesel, que levaria em conta a taxa de câmbio e cotações internacionais. Mecanismo similar funcionava bem quando o PT assumiu o governo em 2003.
A suposta medida foi recebida com entusiasmo pelos investidores e com alívio pelos produtores de etanol. Aqueles se animaram com a perspectiva de recuperar as perdas do valor de mercado. Estes esperavam recompor a competitividade do produto, cujos preços variam em linha com os da gasolina. A intervenção nos preços inviabiliza novos investimentos e tem provocado o fechamento de destilarias.
A alegria durou pouco. O ministro da Fazenda é economista descartou imediatamente a ideia, alegando que ela poderia restabelecer a indexação da economia. Falou-se que a fórmula provocaria corrida aos postos nos dias de reajuste dos preços. Dilma também ficou contra a fórmula. Para ela, "indexar a economia brasileira ao câmbio e a outra variável é uma temeridade". Ela está certa em tese, mas inteiramente equivocada quanto ao risco de indexação advindo da proposta da Petrobras. Dilma foi mal assessorada.
O país pagou um preço alto, é verdade, pela indexação generalizada de preços, salários e contratos, que virou uma praga a partir de meados dos anos 1960 e somente foi extinta com o Plano Real (1994). O processo hiperinflacionário concentrou renda, desestimulou investimentos, enfraqueceu o mercado de capitais e reduziu o potencial de crescimento da economia. Acontece que tal indexação não é o que Dilma e Mantega apregoam. Significava a correção de preços, salários e contratos por um índice de inflação passada. Nada a ver com"a fórmula da Petrobras.
Em uma economia livre da praga da indexação, como é hoje a brasileira, os preços variam em função de aumento de custos e de fatores que influenciam a oferta e a demanda do respectivo bem ou serviço. Repasses de custos aos preços finais acontecem rotineiramente, em decorrência de múltiplas causas, inclusive da taxa de câmbio. Se a tese da presidente estivesse correta, as variações de preços de produtos agrícolas no mercado doméstico incorporariam o risco de trazer de volta a indexação de outrora. Como se sabe, esses preços são influenciados por fatores como demanda, cotações externas e condições de oferta, que são também impactadas pelo clima. Não há razão plausível para manter a Petrobras sob o garrote do controle de seus preços. Nem para imaginar que motoristas correrão para os postos para ganhar uns trocados, o que não acontecia quando a fórmula vigorava. Menos ainda para temer a reindexação da economia.
O controle de preços da gasolina e do diesel fragiliza financeiramente a empresa e aumenta inconvenientemente a demanda de combustíveis, o que tem elevado as importações de petróleo e derivados e provocado a deterioração da balança comercial. Além disso, a interferência do governo tem causado efeitos negativos na cadeia produtiva de combustíveis e de transportes, criando mais distorções.
Motivos não faltam para restabelecer a racionalidade no mercado de combustíveis, evitar riscos de desabastecimento e abandonar prática inequivocamente danosa.
No Brasil a conversa é outra - SUELY CALDAS
O Estado de S.Paulo - 16/02
O intervencionismo do Estado foi necessário e bem-vindo em determinados momentos da História. Nos EUA pós-crise de 1929, o democrata Franklin D. Roosevelt enfrentou o desemprego, a pobreza e a destruição da economia com seu New Deal - um conjunto de leis e regras inspiradas nas ideias do economista inglês John M. Keynes, que ampliou a participação do Estado na economia, criando demanda e tirando da paralisia setores econômicos destruídos pela crise. Eleito em 1932, Roosevelt reorganizou a economia, aliviou o desemprego, usou o Estado para dar musculatura ao capitalismo e recuperou a esperança das famílias americanas, que o reelegeram para mais três mandatos.
No Brasil, Getúlio Vargas foi um ditador populista que, no plano político, prendeu opositores e censurou a imprensa. Mas na economia foi um estadista de olho no futuro. Sua marca foram o intervencionismo estatal e a obsessão por dar a partida para industrializar o Brasil, até então um país agrário que produzia café, leite e açúcar. Na ditadura do Estado Novo, criou a Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional e a Fábrica Nacional de Motores, as três com financiamento dos EUA. Ao retornar ao poder, em 1951, acrescentou a Petrobrás e o BNDES. Todas estatais, essas empresas constituíram o alicerce que permitiu dinamizar a industrialização no período Juscelino Kubitschek. Alguns de seus biógrafos apostam que, se vivo fosse neste século 21, Getúlio Vargas seria favorável às privatizações e à revisão das leis trabalhistas, por ele criadas em 1937.
Ao assumir a Presidência em 1995, Fernando Henrique Cardoso reconheceu o papel do Estado como impulsionador da industrialização e do progresso nos anos 40/60. Mas, 40 anos depois, mudanças ocorridas no mundo obrigavam a avançar, tornando inescapável decretar "o fim da Era Vargas". E deu seguimento a um programa liberal, com privatização de estatais, reformas estruturais, inclusive a do Estado, e aprovação de um conjunto de leis que, ao suprimir monopólios estatais e pôr o Brasil em consonância com países de economia avançada, passaram a atrair investidores estrangeiros para financiar o progresso econômico.
É claro que tais mudanças mexeram com estruturas políticas há muitas décadas enraizadas e tirando proveito da máquina estatal. Governadores rejeitavam abrir mão do poder de usar bancos, empresas elétricas e telefônicas estaduais e as siderúrgicas federais para financiar campanhas eleitorais; deputados, senadores e prefeitos viram diminuir o poder para dar emprego a apadrinhados e conseguir empréstimos com dinheiro público a empresas que financiavam suas campanhas. Enfim, toda sorte de favores e favorecimentos que o Estado proporcionava passou a ficar em risco para políticos e burocratas que usavam a máquina estatal em benefício pessoal e de amigos.
A capilaridade da classe política presente em todos os Estados fez espalhar e crescer pelo País a grita contra as privatizações. E, como sempre fizeram (e conseguem!), manipularam a população - sobretudo os mais pobres e desinformados - com o falso discurso nacionalista e do Estado provedor, em vigor no País desde Getúlio Vargas. Só não confessavam que o Estado era provedor para eles próprios. Para a população sobrava pagar a conta.
Pois bem, caro leitor. Hoje não há mais siderúrgicas, bancos e telefônicas estaduais. Com a privatização, desapareceram também os crônicos déficits com que essas empresas operavam, sempre cobertos com dinheiro de impostos pagos pela população. Restaram estatais Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco do Nordeste e parte considerável do setor elétrico - algumas distribuidoras estaduais e praticamente todas as geradoras federais. É justamente onde há gestões ineficientes, falta de planejamento, interferências danosas do governo, uso político das empresas e seu consequente corolário de apagões (quase uma centena só no governo Dilma).
Intervencionismo do Estado é bem-vindo, e mais ainda quando corrige extremismos liberais, como ocorreu na crise de 2008. O caso brasileiro é outra conversa.
O intervencionismo do Estado foi necessário e bem-vindo em determinados momentos da História. Nos EUA pós-crise de 1929, o democrata Franklin D. Roosevelt enfrentou o desemprego, a pobreza e a destruição da economia com seu New Deal - um conjunto de leis e regras inspiradas nas ideias do economista inglês John M. Keynes, que ampliou a participação do Estado na economia, criando demanda e tirando da paralisia setores econômicos destruídos pela crise. Eleito em 1932, Roosevelt reorganizou a economia, aliviou o desemprego, usou o Estado para dar musculatura ao capitalismo e recuperou a esperança das famílias americanas, que o reelegeram para mais três mandatos.
No Brasil, Getúlio Vargas foi um ditador populista que, no plano político, prendeu opositores e censurou a imprensa. Mas na economia foi um estadista de olho no futuro. Sua marca foram o intervencionismo estatal e a obsessão por dar a partida para industrializar o Brasil, até então um país agrário que produzia café, leite e açúcar. Na ditadura do Estado Novo, criou a Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional e a Fábrica Nacional de Motores, as três com financiamento dos EUA. Ao retornar ao poder, em 1951, acrescentou a Petrobrás e o BNDES. Todas estatais, essas empresas constituíram o alicerce que permitiu dinamizar a industrialização no período Juscelino Kubitschek. Alguns de seus biógrafos apostam que, se vivo fosse neste século 21, Getúlio Vargas seria favorável às privatizações e à revisão das leis trabalhistas, por ele criadas em 1937.
Ao assumir a Presidência em 1995, Fernando Henrique Cardoso reconheceu o papel do Estado como impulsionador da industrialização e do progresso nos anos 40/60. Mas, 40 anos depois, mudanças ocorridas no mundo obrigavam a avançar, tornando inescapável decretar "o fim da Era Vargas". E deu seguimento a um programa liberal, com privatização de estatais, reformas estruturais, inclusive a do Estado, e aprovação de um conjunto de leis que, ao suprimir monopólios estatais e pôr o Brasil em consonância com países de economia avançada, passaram a atrair investidores estrangeiros para financiar o progresso econômico.
É claro que tais mudanças mexeram com estruturas políticas há muitas décadas enraizadas e tirando proveito da máquina estatal. Governadores rejeitavam abrir mão do poder de usar bancos, empresas elétricas e telefônicas estaduais e as siderúrgicas federais para financiar campanhas eleitorais; deputados, senadores e prefeitos viram diminuir o poder para dar emprego a apadrinhados e conseguir empréstimos com dinheiro público a empresas que financiavam suas campanhas. Enfim, toda sorte de favores e favorecimentos que o Estado proporcionava passou a ficar em risco para políticos e burocratas que usavam a máquina estatal em benefício pessoal e de amigos.
A capilaridade da classe política presente em todos os Estados fez espalhar e crescer pelo País a grita contra as privatizações. E, como sempre fizeram (e conseguem!), manipularam a população - sobretudo os mais pobres e desinformados - com o falso discurso nacionalista e do Estado provedor, em vigor no País desde Getúlio Vargas. Só não confessavam que o Estado era provedor para eles próprios. Para a população sobrava pagar a conta.
Pois bem, caro leitor. Hoje não há mais siderúrgicas, bancos e telefônicas estaduais. Com a privatização, desapareceram também os crônicos déficits com que essas empresas operavam, sempre cobertos com dinheiro de impostos pagos pela população. Restaram estatais Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco do Nordeste e parte considerável do setor elétrico - algumas distribuidoras estaduais e praticamente todas as geradoras federais. É justamente onde há gestões ineficientes, falta de planejamento, interferências danosas do governo, uso político das empresas e seu consequente corolário de apagões (quase uma centena só no governo Dilma).
Intervencionismo do Estado é bem-vindo, e mais ainda quando corrige extremismos liberais, como ocorreu na crise de 2008. O caso brasileiro é outra conversa.
Rumo ao imprevisível - CELSO MING
O ESTADO DE S. PAULO - 16/02
O governo da Argentina deu um passo para o imprevisível. Reconheceu que a inflação anteriorestava calculada com bases estatísticas irrealistas e garantiuque passará a publicar números não manipulados. E agora?
A inflação do peso argentino em janeiro sob a nova metodologia supervisionada pelo Fundo Monetário I nter-nacional foi de 3,7%. No critério anterior, ficaria abaixo de 0,8%. Ao longo de todos esses anos, a inflação publicada pelo Indec, o organismo oficial, não passava dos 9,9% ao ano, enquanto as estimativas divulgadas pelos institutos privados apontavam algo entre 27% e 32% ao ano (veja o gráfico).
A inflação oficial de janeiro na Argentina é uma enormidade. Se nos 11 meses seguintes esse número se repetir, a inflação de 2014 será de 55%. Mas bastaria que fosse de 2% para que o acumulado no ano atingisse as projeções anteriores das consultorias.
A aceitação de novos critérios para cálculo da inflação tem conseqüências que não são apenas estatísticas. Como salários e aposentadorias têm de ser reajustados com base na inflação passada, há risco de uma disparada dos preços rumo à hiperinflação e de que se reduza drasticamente a capacidade do governo argentino de honrar seus compromissos internos e externos. Março e abril são temporada forte de negociações salariais e vai ser difícil o governo esconder o que começam a dizer os números oficiais.
Esse é especialmente um problema do setor público. O governo de Cristina Kirchner terá de decidir se garante ou não reajustes condizentes com os novos dados, de salários dos funcionários públicos e dos benefícios dos aposentados.
A maior parte das províncias está quebrada, sem condições de atender às novas reivindicações dos funcionários públicos. Isso significa que devem crescer as pressões dos governadores sobre o governo central para que aumente as transferências de recursos. Por aí se vê que o rombo das contas públicas tende a avançar. Nesse cenário, aumenta o risco de uma corrida ao dólar, num quadro já rare-feitode reservas internacionais.
Ficam à espera de resposta três perguntas intrigantes. A primeira: até que pontoo governo argentino está disposto a cumprir a disposição anunciada de divulgar a inflação real ou, diante das conseqüências, até quando estará disposto a divulgar dados honestos? A confiança está quebrada e não vai se recompor tão cedo porque os técnicos coniventes com a manipulação das estatísticas anteriores são os mesmos que vão agora calcular os preços sob nova metodologia. Além disso, seguem pairando suspeitas mesmo sobre os números novos, uma vez que as instituições independentes chegaram a resultados mais altos.
Segunda pergunta até que ponto números mais realistas do que os anteriores também passarão a ser divulgados em outros indicadores da economia, como evolução do PIB, resultado das contas públicas e contas externas?
E terceira: o que fará o governo argentino par a evitar uma hiperinflação que pudesse provir de movimentos de defesa da soei edade e par a corrigir os outros desequilíbrios da economia?
Não há respostas claras para nenhuma dessas perguntas.
O governo da Argentina deu um passo para o imprevisível. Reconheceu que a inflação anteriorestava calculada com bases estatísticas irrealistas e garantiuque passará a publicar números não manipulados. E agora?
A inflação do peso argentino em janeiro sob a nova metodologia supervisionada pelo Fundo Monetário I nter-nacional foi de 3,7%. No critério anterior, ficaria abaixo de 0,8%. Ao longo de todos esses anos, a inflação publicada pelo Indec, o organismo oficial, não passava dos 9,9% ao ano, enquanto as estimativas divulgadas pelos institutos privados apontavam algo entre 27% e 32% ao ano (veja o gráfico).
A inflação oficial de janeiro na Argentina é uma enormidade. Se nos 11 meses seguintes esse número se repetir, a inflação de 2014 será de 55%. Mas bastaria que fosse de 2% para que o acumulado no ano atingisse as projeções anteriores das consultorias.
A aceitação de novos critérios para cálculo da inflação tem conseqüências que não são apenas estatísticas. Como salários e aposentadorias têm de ser reajustados com base na inflação passada, há risco de uma disparada dos preços rumo à hiperinflação e de que se reduza drasticamente a capacidade do governo argentino de honrar seus compromissos internos e externos. Março e abril são temporada forte de negociações salariais e vai ser difícil o governo esconder o que começam a dizer os números oficiais.
Esse é especialmente um problema do setor público. O governo de Cristina Kirchner terá de decidir se garante ou não reajustes condizentes com os novos dados, de salários dos funcionários públicos e dos benefícios dos aposentados.
A maior parte das províncias está quebrada, sem condições de atender às novas reivindicações dos funcionários públicos. Isso significa que devem crescer as pressões dos governadores sobre o governo central para que aumente as transferências de recursos. Por aí se vê que o rombo das contas públicas tende a avançar. Nesse cenário, aumenta o risco de uma corrida ao dólar, num quadro já rare-feitode reservas internacionais.
Ficam à espera de resposta três perguntas intrigantes. A primeira: até que pontoo governo argentino está disposto a cumprir a disposição anunciada de divulgar a inflação real ou, diante das conseqüências, até quando estará disposto a divulgar dados honestos? A confiança está quebrada e não vai se recompor tão cedo porque os técnicos coniventes com a manipulação das estatísticas anteriores são os mesmos que vão agora calcular os preços sob nova metodologia. Além disso, seguem pairando suspeitas mesmo sobre os números novos, uma vez que as instituições independentes chegaram a resultados mais altos.
Segunda pergunta até que ponto números mais realistas do que os anteriores também passarão a ser divulgados em outros indicadores da economia, como evolução do PIB, resultado das contas públicas e contas externas?
E terceira: o que fará o governo argentino par a evitar uma hiperinflação que pudesse provir de movimentos de defesa da soei edade e par a corrigir os outros desequilíbrios da economia?
Não há respostas claras para nenhuma dessas perguntas.
Memória de um caos social e mental - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 16/02
Em 2003, país também vivia surto de retórica histérica sobre 'desordem social' e 'crise institucional'
"CAOS SOCIAL" era a conversa de quase todo mundo em meados de 2003, pelo menos de "todo mundo" das classes "formadoras de opinião", ainda minoritárias, pois não havia "redes sociais" de internet.
Era a metade do primeiro ano do governo Lula. Em agosto de 2003, esta Folha fazia uma enquete com figuras públicas a respeito do zum-zum de então. O texto iniciava assim:
"Onde alguns enxergam sinais de desordem social ou até de risco de crise institucional no país, outros veem apenas alarmismo retórico e reação exagerada a pressões e conflitos de interesses que fazem parte da rotina democrática".
O que se passava?
Havia um novo surto de invasões de terras pelo MST, que anunciava que faria a reforma agrária "no tapa", que o número de famílias acampadas passaria de 110 mil para 1 milhão e que expulsaria "sem explicações" os fazendeiros de suas terras.
O pessoal do Movimento dos Sem Teto, variantes e precursores, invadira meia dúzia de prédios do centro paulistano, um terreno da Volks em São Bernardo, acampava diante de empresas estatais de habitação e fazia passeatas pequenas por bairros ricos da cidade, causando menos efeito que os falecidos rolezinhos.
Pastorais sociais católicas davam trela e apoio aos sem-terra e aos sem-teto, que contavam ainda com uma forcinha de partidos nanicos de extrema-esquerda e "punks", talvez tios dos black blocs.
Servidores federais faziam greve e passeatas de 30 mil, 60 mil pessoas. Protestavam contra a reforma da Previdência deles. Um dia, "vândalos infiltrados" nessas passeatas depredaram o Congresso. Noutro, houve tumulto de servidores na Câmara, que chamou a PM, na época um escândalo.
Haveria "infiltrados" nas manifestações? Manipulação política? Assim especulavam governo e oposição, "esquerda" e "direita".
"Não tem risco nenhum. No Brasil, nunca faltou quem quisesse fazer terrorismo por pouca coisa", dizia Lula à Folha, em agosto.
No entanto, o clima estava mesmo tenso. Havia o teatro social das ruas, algum drama raivoso contra a vitória do PT e tragédia econômica.
A renda per capita de 2003 era quase a mesma de 1997, mas, para piorar, o país era ainda mais pobre e desigual do que agora. O desemprego rondava os 12%, ante os 5% de 2013. A massa salarial, o total dos salários pagos, caía mais de 10% nas regiões metropolitanas.
Em agosto daquele ano, o consumo caía mais de 4%, em termos anuais. Em 2013, pior ano desde então, o consumo cresceu mais de 4%.
No fim de maio de 2003, já sentindo a chapa quente, Lula discursaria assim em fábrica da Ford: "Como diria meu lado musical, estamos afinando a orquestra. Logo, logo, o espetáculo do crescimento vai começar". Fracassara o Fome Zero, o Bolsa Família era embrionário.
Sem que ninguém prestasse muita atenção, na época, o país voltaria a crescer logo depois do "caos social". Na verdade, até o final de 2006 quase ninguém perceberia muito bem que o país entrara num surto de crescimento.
Em setembro, o "caos social" minguara. O assunto morreu esquecido mais ou menos na mesma época.
O que a situação de agora tem a ver com a de 2003? Nada, afora a histeria, oportunismos reacionários e a retórica inflada de burrices.
Em 2003, país também vivia surto de retórica histérica sobre 'desordem social' e 'crise institucional'
"CAOS SOCIAL" era a conversa de quase todo mundo em meados de 2003, pelo menos de "todo mundo" das classes "formadoras de opinião", ainda minoritárias, pois não havia "redes sociais" de internet.
Era a metade do primeiro ano do governo Lula. Em agosto de 2003, esta Folha fazia uma enquete com figuras públicas a respeito do zum-zum de então. O texto iniciava assim:
"Onde alguns enxergam sinais de desordem social ou até de risco de crise institucional no país, outros veem apenas alarmismo retórico e reação exagerada a pressões e conflitos de interesses que fazem parte da rotina democrática".
O que se passava?
Havia um novo surto de invasões de terras pelo MST, que anunciava que faria a reforma agrária "no tapa", que o número de famílias acampadas passaria de 110 mil para 1 milhão e que expulsaria "sem explicações" os fazendeiros de suas terras.
O pessoal do Movimento dos Sem Teto, variantes e precursores, invadira meia dúzia de prédios do centro paulistano, um terreno da Volks em São Bernardo, acampava diante de empresas estatais de habitação e fazia passeatas pequenas por bairros ricos da cidade, causando menos efeito que os falecidos rolezinhos.
Pastorais sociais católicas davam trela e apoio aos sem-terra e aos sem-teto, que contavam ainda com uma forcinha de partidos nanicos de extrema-esquerda e "punks", talvez tios dos black blocs.
Servidores federais faziam greve e passeatas de 30 mil, 60 mil pessoas. Protestavam contra a reforma da Previdência deles. Um dia, "vândalos infiltrados" nessas passeatas depredaram o Congresso. Noutro, houve tumulto de servidores na Câmara, que chamou a PM, na época um escândalo.
Haveria "infiltrados" nas manifestações? Manipulação política? Assim especulavam governo e oposição, "esquerda" e "direita".
"Não tem risco nenhum. No Brasil, nunca faltou quem quisesse fazer terrorismo por pouca coisa", dizia Lula à Folha, em agosto.
No entanto, o clima estava mesmo tenso. Havia o teatro social das ruas, algum drama raivoso contra a vitória do PT e tragédia econômica.
A renda per capita de 2003 era quase a mesma de 1997, mas, para piorar, o país era ainda mais pobre e desigual do que agora. O desemprego rondava os 12%, ante os 5% de 2013. A massa salarial, o total dos salários pagos, caía mais de 10% nas regiões metropolitanas.
Em agosto daquele ano, o consumo caía mais de 4%, em termos anuais. Em 2013, pior ano desde então, o consumo cresceu mais de 4%.
No fim de maio de 2003, já sentindo a chapa quente, Lula discursaria assim em fábrica da Ford: "Como diria meu lado musical, estamos afinando a orquestra. Logo, logo, o espetáculo do crescimento vai começar". Fracassara o Fome Zero, o Bolsa Família era embrionário.
Sem que ninguém prestasse muita atenção, na época, o país voltaria a crescer logo depois do "caos social". Na verdade, até o final de 2006 quase ninguém perceberia muito bem que o país entrara num surto de crescimento.
Em setembro, o "caos social" minguara. O assunto morreu esquecido mais ou menos na mesma época.
O que a situação de agora tem a ver com a de 2003? Nada, afora a histeria, oportunismos reacionários e a retórica inflada de burrices.
Cenário adverso - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
O ESTADO DE S. PAULO - 16/02
Neste início de 2014, dois eventos inesperados estão a afetar a economia brasileira: uma crise em vários países emergentes (que nos afeta via expectativas, conta comercial, conta capital e taxa de câmbio) e um verão excepcionalmente quente e seco.
Do primeiro item tratamos no nosso último artigo. Acrescento que, desde então, houve reação de vários bancos centrais através da elevação da taxa de juros, o que defende o valor da moeda e tende a reduzir a saída de divisas. Em nenhum lugar, pode-se dizer, a situação melhorou muito. As crises políticas em vários locais continuam e o receio com relação ao futuro ainda está presente. Entretanto, parece correto afirmar que os mercados estão um pouco mais calmos nesta semana (como atesta a queda no seguro de crédito contra "default" em muitos países), com pelo menos duas exceções notáveis: Venezuela e Argentina, onde crises cambiais avançam de forma inexorável.
A Venezuela é, de longe, o caso mais grave. A escassez de divisas é gigantesca, o que é retratado pelo movimento do câmbio: a taxa oficial é de 6,3 bolívares por dólar, mas praticamente não é oferecida moeda para o setor privado nessa taxa. Ao contrário, o banco central vende volumes modestos de dólares para compradores autorizados a uma taxa de 11,36 bolívares por dólar, ou seja, a taxa oficial "plus" é quase o dobro da oficial. Ao mesmo tempo, no mercado paralelo o dólar vale 84 bolívares. Essa situação produz quatro resul-
tados lamentáveis. Em primeiro lugar, um enorme ganho especulativo pode ocorrer se alguém conseguir comprar moeda americana ao dólar oficial para em seguida vendê-lo no mercado paralelo. Em segundo lugar, como o volume de moeda negociado no câmbio "plus" é muito pequeno frente à demanda de importações, o abastecimento fica prejudicado e as prateleiras dos mercados estão cada vez mais vazias. Logicamente a inflação tende a subir e já está a ultrapassar os 50% anuais, caminhando para ser a maior do mundo.
O terceiro efeito ocorre sobre a produção industrial, na medida em que partes, peças, componentes e equipamentos não são importados por falta de moeda. A melhor ilustração ocorreu esta semana com o fechamento da fábrica da Tovota por falta de peças. Este é a última etapa do processo de forte redução na produção: as empresas do setor fabricaram 172 mil veículos em 2007, volume que se reduziu, em 2013, para apenas 72 mil unidades. Com as férias coletivas em curso, a produção de 2014 será ainda menor, contribuindo para uma provável queda do PIB neste ano.
Em quarto lugar, os serviços também são afetados. Como colocou Leonardo V. Vera, em artigo recente para o site Infolatam. "Uma crise de dimensão descomunal se avizinha no setor da saúde. Em janeiro a escassez de medicamentos estava em 46% do total. Os distribuidores do setor devem pelo menos US$ 425 milhões de importações por compras realizadas desde 2012 em diante. O mesmo ocorre em muitos outros segmentos.
A escassez absoluta de divisas torna inócuo qualquer arranjo de distribuição da moeda disponível, eleva a inflação, reduz o bem estar da população e paralisa a produção. Não é, pois, para se surpreender com o agravamento da crise política.
O caso da Argentina é menos radical, mas também grave. A desvalorização cambial permitida pelo governo está pressionando a inflação. De fato, um índice de preços que a oposição no Congresso divulga (calculado por uma instituição acadêmica) mostrou um acréscimo de 4,6% apenas em janeiro. Até o novo índice calculado pelo governo, para substituir o desmoralizado índice oficial do Indec, mostrou uma inflação de 3,7% no último mês. Com isso, a inflação em 12 meses ultrapassa, com folga, os 30%. Como a partir de março iniciam-se as negociações trabalhistas, e os sindicatos começam por pedir reajustes de 40% está claro que a inflação seguirá sua trajetória de alta.
Como seria de se esperar, a escassez de divisas j á afeta a balança comercial e as nossas exportações para aquele país,como mostram os dados da balança comercial até a primeira semana de fevereiro.
Além do estresse que este verão está colocando nas pessoas e na infraestrutura, o que já ocorreu até aqui vai afetar a safra agrícola e a oferta de energia. Em ambos os casos, o tamanho das dificuldades depende, evidentemente, do que vai ocorrer com as precipitações até o fim de abril.
Na agricultura o impacto imediato se dá nas verduras (especialmente folhas), feijão e café. Os preços desses produtos já subiram tendo em vista a redução de produção que ocorrerá nos próximos dois meses (hortícolas), no final do primeiro semestre (feijão) e nas safras deste ano e do próximo, no caso do café. Há um efeito, também, na elevação dos preços da carne vermelha, uma vez que a falta de pastos reforça a redução da oferta e a pressão altista dos preços internacionais. No caso de cana de açúcar e laranja, alguma perda de produtividade vai ocorrer, mas ela só pode ser dimensionada nas próximas semanas. No caso de grãos, a colheita da safra de verão será afetada, mas não alterará a característica de uma safra boa. É possível que em vez das 195 milhões de toneladas de grãos esperados, talvez colhamos algo na faixa de 187/188 milhões. Bom número, mas o que resulta é alguma perda de produção e certa pressão na inflação de alimentos.
Energia. Com relação à produção de energia, a situação de hoje é bastante preocupante. A baixa precipitação reduziu a níveis recordes a afluência dos rios e o nível dos reservatórios. Essa situação expõe uma série de deficiências no nosso sistema elétrico e que ficaram claras no importante relatório da Consultoria PSR. Por conta disso, a oferta de energia neste ano passa a depender crucialmente do volume de chuvas até o final de abril. Entramos numa fase de risco, onde a eventual necessidade de algum racionamento não pode ser descartada. No mínimo, o que teremos é uma forte elevação do custo do MW, pressionando as empresas do setor, o Tesouro Nacional (e, portanto, a meta fiscal) e mais adiante, as tarifas pagas pelos consumidores.
Essa situação, associada aos fracos resultados da indústria e do comércio e do índice IBC-Br consolida a percepção de que o crescimento deste ano será bem mais fraco do que de 2013, bem inferior a 2%.
Neste início de 2014, dois eventos inesperados estão a afetar a economia brasileira: uma crise em vários países emergentes (que nos afeta via expectativas, conta comercial, conta capital e taxa de câmbio) e um verão excepcionalmente quente e seco.
Do primeiro item tratamos no nosso último artigo. Acrescento que, desde então, houve reação de vários bancos centrais através da elevação da taxa de juros, o que defende o valor da moeda e tende a reduzir a saída de divisas. Em nenhum lugar, pode-se dizer, a situação melhorou muito. As crises políticas em vários locais continuam e o receio com relação ao futuro ainda está presente. Entretanto, parece correto afirmar que os mercados estão um pouco mais calmos nesta semana (como atesta a queda no seguro de crédito contra "default" em muitos países), com pelo menos duas exceções notáveis: Venezuela e Argentina, onde crises cambiais avançam de forma inexorável.
A Venezuela é, de longe, o caso mais grave. A escassez de divisas é gigantesca, o que é retratado pelo movimento do câmbio: a taxa oficial é de 6,3 bolívares por dólar, mas praticamente não é oferecida moeda para o setor privado nessa taxa. Ao contrário, o banco central vende volumes modestos de dólares para compradores autorizados a uma taxa de 11,36 bolívares por dólar, ou seja, a taxa oficial "plus" é quase o dobro da oficial. Ao mesmo tempo, no mercado paralelo o dólar vale 84 bolívares. Essa situação produz quatro resul-
tados lamentáveis. Em primeiro lugar, um enorme ganho especulativo pode ocorrer se alguém conseguir comprar moeda americana ao dólar oficial para em seguida vendê-lo no mercado paralelo. Em segundo lugar, como o volume de moeda negociado no câmbio "plus" é muito pequeno frente à demanda de importações, o abastecimento fica prejudicado e as prateleiras dos mercados estão cada vez mais vazias. Logicamente a inflação tende a subir e já está a ultrapassar os 50% anuais, caminhando para ser a maior do mundo.
O terceiro efeito ocorre sobre a produção industrial, na medida em que partes, peças, componentes e equipamentos não são importados por falta de moeda. A melhor ilustração ocorreu esta semana com o fechamento da fábrica da Tovota por falta de peças. Este é a última etapa do processo de forte redução na produção: as empresas do setor fabricaram 172 mil veículos em 2007, volume que se reduziu, em 2013, para apenas 72 mil unidades. Com as férias coletivas em curso, a produção de 2014 será ainda menor, contribuindo para uma provável queda do PIB neste ano.
Em quarto lugar, os serviços também são afetados. Como colocou Leonardo V. Vera, em artigo recente para o site Infolatam. "Uma crise de dimensão descomunal se avizinha no setor da saúde. Em janeiro a escassez de medicamentos estava em 46% do total. Os distribuidores do setor devem pelo menos US$ 425 milhões de importações por compras realizadas desde 2012 em diante. O mesmo ocorre em muitos outros segmentos.
A escassez absoluta de divisas torna inócuo qualquer arranjo de distribuição da moeda disponível, eleva a inflação, reduz o bem estar da população e paralisa a produção. Não é, pois, para se surpreender com o agravamento da crise política.
O caso da Argentina é menos radical, mas também grave. A desvalorização cambial permitida pelo governo está pressionando a inflação. De fato, um índice de preços que a oposição no Congresso divulga (calculado por uma instituição acadêmica) mostrou um acréscimo de 4,6% apenas em janeiro. Até o novo índice calculado pelo governo, para substituir o desmoralizado índice oficial do Indec, mostrou uma inflação de 3,7% no último mês. Com isso, a inflação em 12 meses ultrapassa, com folga, os 30%. Como a partir de março iniciam-se as negociações trabalhistas, e os sindicatos começam por pedir reajustes de 40% está claro que a inflação seguirá sua trajetória de alta.
Como seria de se esperar, a escassez de divisas j á afeta a balança comercial e as nossas exportações para aquele país,como mostram os dados da balança comercial até a primeira semana de fevereiro.
Além do estresse que este verão está colocando nas pessoas e na infraestrutura, o que já ocorreu até aqui vai afetar a safra agrícola e a oferta de energia. Em ambos os casos, o tamanho das dificuldades depende, evidentemente, do que vai ocorrer com as precipitações até o fim de abril.
Na agricultura o impacto imediato se dá nas verduras (especialmente folhas), feijão e café. Os preços desses produtos já subiram tendo em vista a redução de produção que ocorrerá nos próximos dois meses (hortícolas), no final do primeiro semestre (feijão) e nas safras deste ano e do próximo, no caso do café. Há um efeito, também, na elevação dos preços da carne vermelha, uma vez que a falta de pastos reforça a redução da oferta e a pressão altista dos preços internacionais. No caso de cana de açúcar e laranja, alguma perda de produtividade vai ocorrer, mas ela só pode ser dimensionada nas próximas semanas. No caso de grãos, a colheita da safra de verão será afetada, mas não alterará a característica de uma safra boa. É possível que em vez das 195 milhões de toneladas de grãos esperados, talvez colhamos algo na faixa de 187/188 milhões. Bom número, mas o que resulta é alguma perda de produção e certa pressão na inflação de alimentos.
Energia. Com relação à produção de energia, a situação de hoje é bastante preocupante. A baixa precipitação reduziu a níveis recordes a afluência dos rios e o nível dos reservatórios. Essa situação expõe uma série de deficiências no nosso sistema elétrico e que ficaram claras no importante relatório da Consultoria PSR. Por conta disso, a oferta de energia neste ano passa a depender crucialmente do volume de chuvas até o final de abril. Entramos numa fase de risco, onde a eventual necessidade de algum racionamento não pode ser descartada. No mínimo, o que teremos é uma forte elevação do custo do MW, pressionando as empresas do setor, o Tesouro Nacional (e, portanto, a meta fiscal) e mais adiante, as tarifas pagas pelos consumidores.
Essa situação, associada aos fracos resultados da indústria e do comércio e do índice IBC-Br consolida a percepção de que o crescimento deste ano será bem mais fraco do que de 2013, bem inferior a 2%.
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