quarta-feira, junho 10, 2020

Os demônios de antigamente - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 10/06

A crença na existência real do demônio e sua ação maléfica unia intelectuais, reis e população


A vida corria tranquila na pequena Loudun, no interior da França. A orgulhosa torre (Tour Carrée) da cidade já era velha de meio milênio quando os Bourbons assumiram a coroa. O cotidiano modorrento seria abalado por vários acontecimentos extraordinários.

Alguns anos antes dos fatos que descreveremos, foi nomeado um padre para a paróquia de São Pedro e com um cargo na vizinha igreja da Santa Cruz. Urbain Grandier era dotado de boa cultura, aparência agradável e um incontrolável impulso de seduzir mulheres. Suas boas relações políticas o livraram de algumas acusações graves de assédio às paroquianas.

O caldo começou a ficar mais denso: a região foi atacada por uma peste (1632) e crescia a tensão entre protestantes e católicos em torno de questões se a cidade deveria ou não manter seus muros, cuja demolição já tinha sido ordenada pelo cardeal Richelieu. Vamos acrescentar uma outra personagem: Joana de Belcier, descendente de uma pequena nobreza provinciana, dotada de um leve defeito físico na postura. Após fracassar em um convento beneditino, acabou integrando a ordem das irmãs ursulinas, em Loudon.

O lugar passa a viver estranhos acontecimentos sob a liderança de Joana, agora com o nome religioso de Joana dos Anjos. Tudo começou com a visão do fantasma do antigo confessor das religiosas. Depois, as freiras apresentaram ataques histéricos e gritavam palavras obscenas para um público escandalizado. As convulsões se multiplicam e vozes estranhas saíam das gargantas das religiosas. O caso lembrava o precedente em Aix-en-Provence onde, igualmente, freiras ursulinas tinham sido infectadas por espíritos malignos, em 1611. Quase toda a Europa (protestante, inclusive) vivia um surto de “caça às bruxas” e a crença na existência real do demônio e sua ação maléfica unia intelectuais, reis e a população em geral.

Joana dos Anjos acusou formalmente o padre Grandier de ser o causador de todos os distúrbios no convento. O clérigo tinha um bom número de inimigos e tinha se pronunciado contra a decisão do cardeal-ministro de demolir os muros da cidade, aumentando o coro dos descontentes contra o Don Juan clerical. O espetáculo da possessão coletiva das freiras era, agora, um tema nacional. Diante de autoridades e interrogadores, as freiras rolavam no chão e gritavam blasfêmias.

Urbain Grandier foi preso e julgado. Apareceu um pacto diabólico, um documento concreto assinado por vários demônios e conservado até hoje nos arquivos franceses. Os crimes, claro, foram todos comprovados. No dia 18 de agosto de 1634, com uma multidão que excedia a população local, o fogo foi aceso em frente à igreja da Santa Cruz. O clérigo foi muito torturado e, como era esperado, encontraram-se pontos insensíveis à dor e ao sangramento no seu corpo, outro sinal evidente de que tinha selado um acordo com o Inferno. O agente de Satanás convertera-se em carne carbonizada. Restava a possessão do convento.

As freiras foram exorcizadas diversas vezes. O problema era a grande quantidade de demônios. Expulsava-se um e surgiam vários outros que diziam seus nomes e permaneciam no corpo das aflitas. Houve rivalidade entre as ordens. Os capuchinhos foram substituídos por jesuítas na luta contra as legiões. O exorcismo envolvia opiniões do cardeal Richelieu, dos juízes locais e do bispo. Lutava-se pelas almas das ursulinas, lutava-se contra a ação dos seres infernais e, acima de tudo, pelo triunfo do poder monárquico e católico sobre a região. O caso é tão envolvente que a própria Joana dos Anjos é levada à presença do rei Luís XIII e da rainha Ana de Áustria.

Um erudito e místico jesuíta, Jean-Joseph Surin, foi trazido para participar do esforço de exorcismos. Conseguiu expulsar ainda mais demônios, porém entrou em crise depressiva e descreveu que os demônios retirados do corpo das freiras vinham para o seu. O religioso desenvolveu tendências suicidas e descreveu como sentia uma entidade dentro dele. Em janeiro de 1665, morreu Joana. Seus anos finais foram marcados pela obsessão de virar santa. Imersa em afasia e penitências, marcada por estigmas pelo corpo, a popular freira do século 17 faleceu de complicações respiratórias. A 22 de abril do mesmo ano, o padre Surin também fechava os olhos definitivamente. Ele havia trocado uma forte correspondência com a exorcizada.

O caso de Loudon foi descrito como histeria coletiva, jogo político, esquizofrenia e fruto da “demonomania” moderna. Após o escândalo, os juízes passaram a acreditar menos em possessões demoníacas, como defendeu Robert Mandrou no controverso livro Magistrados e Feiticeiros na França do Século 17 (ed. Perspectiva). O jesuíta Michel de Certeau escreveu uma análise clássica: La Possession de Loudun, ainda sem versão em português. De Certeau também explorou a escrita mística do padre Surin, seu colega de ordem. Freud interessou-se pelas narrativas em texto de 1923. Aldous Huxley publicou o romance Os Demônios de Loudun, em 1952. O livro inspirou uma ópera de Krzysztof Penderecki. Jerzy Kawalerowicz fez um filme: Madre Joana dos Anjos. O inglês Ken Russell dirigiu Vanessa Redgrave e Oliver Reed tratando do episódio. A possessão inspirou o intelecto e as artes.

E os demônios? Ainda brilhariam em Salem, no fim do século 17. Depois iriam perder lugar para outras atrações. A histeria coletiva? Essa sobreviveu e ainda assombra governantes e juízes. Ah se madre Joana dos Anjos tivesse internet... É preciso manter a esperança... e a sanidade.

Os mortos de cada um - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 10/06

Mentiras sobre o número de casos da Covid não trarão nossos amigos de volta


Matemática, nem pensar. Em sua incompatibilidade com o conhecimento, Jair Bolsonaro mete as patas traseiras pelas dianteiras até na mais elementar aritmética. Basta ver seu uso das quatro operações: somar, diminuir, multiplicar e dividir.

Começou por dividir o povo brasileiro em “nós” contra “eles”, imaginando que sua facção —“nós”, digo, eles— fosse majoritária em relação aos que se oporiam aos seus desmandos —“eles”, digo, nós. Um ano e meio depois de sua posse, o resultado está nas ruas. Além dos 30 jecas que vão ao Alvorada para cacarejar aos seus palavrões, os que ainda saem para defendê-lo só podem redobrar em violência, já que estão minguando em número.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro vê multiplicarem-se os que repelem sua política de negação da pandemia, agressão às instituições, destruição da Amazônia, extermínio do povo indígena, racismo explícito, desmantelamento da educação, da cultura e do patrimônio e suas agora declaradas ligações com corruptos. A aversão a ele já não se limita aos brasileiros de várias cores políticas e partidárias. Vem também de importantes instituições internacionais com quem o Brasil mantém —ou mantinha— relações. Quem vai querer negociar com um país nas mãos de um desequilibrado?

E, ao maquiar o número de vítimas diárias da Covid, para fazer parecer que elas estão diminuindo, Bolsonaro pensa que ninguém aqui sabe somar. Mas não é uma questão de tabuada. Por trás de cada número, há alguém que seguiu conosco pela vida, que nunca mais veremos e em cujo sofrimento final não suportamos nem pensar.

Cada um de nós já tem mais de uma pessoa por quem chorar nesta pandemia. Alguns dos meus mortos são Aldir Blanc, o desenhista Daniel Azulay, o economista Carlos Lessa, a cantora Dulce Nunes e o fotógrafo Pedro Oswaldo Cruz. Eu os estimava e admirava. As mentiras de Bolsonaro não os trarão de volta.

Existe uma imunidade oculta? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 10/06

É algo que vale investigar, pois a ciência aprende com erros, mesmo quando os cientistas não os admitem


Há pesquisadores com currículos respeitáveis que ousam desafiar a ortodoxia científica. Um deles é Sunetra Gupta, professora de epidemiologia teórica da Universidade Oxford.

Talvez para contrastar com o modelo do Imperial College, que pintava cenários sombrios para o mundo (que estão se confirmando em muitos casos), Gupta e seu grupo apresentaram em março um estudo rival que apontava um quadro bem mais róseo. No modelo da professora oxfordiana, a letalidade real da Covid-19 seria da ordem de 0,1%, ou menor —pelas estimativas mais ortodoxas fica entre 0,5% e 1%.

A diferença se explica porque Gupta acredita que o vírus é muito mais prevalente do que se imagina. Em seus cálculos, em março, cerca de 50% da população britânica já teria tido contato com ele. Era uma hipótese exuberante, mas não impossível.

De lá para cá, saíram os resultados de inúmeros inquéritos sorológicos, que apontam proporções bem mais modestas de portadores de anticorpos. Elas ficariam quase sempre abaixo dos 10% da população, chegando a 20% só em lugares duramente atingidos, como Nova York. Seria uma excelente oportunidade para Gupta se corrigir.

A pesquisadora, porém, insiste em seus cálculos iniciais. Critica a qualidade dos testes e diz que há uma espécie de imunidade oculta, que seria resultado de características genéticas e da exposição a outros coronaviridae e por isso não aparece nos exames que buscam por anticorpos específicos.

Penso que devemos desconfiar das posições desses dissidentes, mas sem nunca deixar de ouvi-los. Mesmo que estejam errados no atacado, como Gupta parece estar, não é impossível que estejam em melhor posição do que outros para enxergar coisas que o consenso negligencia. Há uma imunidade epidemiologicamente relevante que não conseguimos detectar? É algo que vale investigar. A ciência aprende com erros, mesmo quando os cientistas não os admitem.

Fintechs de crédito dão guinada na crise - FELIPE MATOS

ESTADÃO - 10/06

Nativas digitais, as fintechs oferecem soluções mais simples, rápidas, com menos burocracia, critérios atualizados e chegam onde os bancos não vão, como os segmentos de microempreendedores individuais


A crise do coronavírus vem escancarando deficiências no acesso a crédito para pequenas e médias empresas no sistema financeiro tradicional. O Banco Central injetou mais de R$ 1 trilhão em liquidez para o sistema bancário. O BNDES subsidiou o risco de linhas de linhas de crédito de R$ 40 bilhões, utilizando também os bancos como canal de distribuição do crédito. Mesmo assim, os recursos não chegaram na ponta. Critérios de concessão inadequados, processos muito burocráticos, e preferência dos bancos por oferecer produtos de crédito próprios e mais caros em detrimento das linhas subsidiadas são algumas das explicações para o problema.

Nesse contexto, as fintechs aparecem como resposta. O segmento é dos que mais vem crescendo durante a crise, com o volume de buscas por soluções financeiras digitais oferecidas por essas startups crescendo até 300% no período pós-isolamento social, segundo pesquisa do Google For Startups.

Nativas digitais, as fintechs oferecem soluções mais simples, rápidas, com menos burocracia, critérios atualizados e chegam onde os bancos não vão, como os segmentos de microempreendedores individuais, que vem sendo atendido especialmente por maquininhas de cartões digitais, por exemplo. Ainda assim, essas empresas enfrentam o desafio de ganhar escala rapidamente, desafio esse que exige disponibilidade de capital, especialmente para a tomada de crédito.

A guinada que faltava parece estar próxima. Em uma iniciativa inovadora, o BNDES criou uma chamada convocando fintechs e gestores de fundos de crédito – os FDICs – que pretende injetar R$ 4 bilhões em até 10 fundos que forneçam crédito para PMEs, com o banco de desenvolvimento assumindo a maior parte do risco. A iniciativa receberá propostas até hoje e já vem sendo considerada um sucesso. Apenas o evento online para tirar dúvidas dos participantes atraiu mais de 500 pessoas. Além disso, a iniciativa vem provocando movimentos de colaboração e parcerias entre fintechs e diversos agentes do mercado, unindo a agilidade, capilaridade e inovação das startups, com o know-how de gestão financeira e acesso a capital dos fundos. Segundo gestores com quem conversei, muitas dessas parcerias construídas para atender ao edital devem seguir de pé mesmo se não forem contempladas. E, ao que tudo indica, o próprio edital trata-se de um teste do BNDES, que se bem-sucedido, deve ser ampliado em volume de recursos.

Se de um lado, a crise escancarou problemas estruturais conhecidos, por outro, acelera inovações para sua solução. E o BNDES cumpre seu papel de fomento, numa de suas ações mais ousadas e louváveis dos últimos anos. O ecossistema de inovação e as pequenas e médias empresas agradecem.

ESPECIALISTA EM EMPREENDEDORISMO E TECNOLOGIA, JÁ APOIOU MAIS DE 10 MIL STARTUPS NO BRASIL E É SÓCIO DA 10K.DIGITAL

Juros abaixo de 2,0% - FABIO ALVES

ESTADÃO - 10/06

A necessidade de estímulo monetário é maior agora do que na última reunião do Copom


Cresceu a probabilidade de o Copom não somente reduzir a taxa Selic em 0,75 ponto porcentual, para 2,25%, na sua reunião da próxima semana, como também deixar a porta aberta no comunicado para um derradeiro corte no encontro de política monetária de agosto, levando os juros básicos para abaixo de 2,0%, um patamar nunca antes imaginado no Brasil.

Esse desfecho seria completamente diferente do que sinalizou o Copom na sua mais recente reunião, em 6 de maio, quando, após cortar a Selic em 0,75 ponto, informou que considerava ainda apenas um último ajuste nos juros para o encontro dos dias 16 e 17 deste mês – e não em magnitude maior do que 0,75 ponto.

Acontece que, desde maio, o cenário mundial melhorou significativamente, enquanto, em contraste, a perspectiva para a economia brasileira se deteriorou, uma vez que a curva de contaminação do novo coronavírus ainda está na ascendente no País e o relaxamento das medidas de isolamento social em Estados e municípios corre risco de revés caso o número de casos e de mortes volte a crescer.

No exterior, por outro lado, além de ficarem mais animados com a reabertura das economias na Europa e nos Estados americanos, fortalecendo a aposta de uma retomada mais rápida do PIB global, os investidores partiram para a busca de ativos com maior retorno, uma vez que o Federal Reserve (Fed) e outros grandes bancos centrais inundaram os mercados com grande liquidez para conter os impactos causados pela pandemia.

Com isso, houve um afrouxamento importante das condições financeiras no mundo, em particular nos países emergentes. A taxa dos contratos de cinco anos de Credit Default Swap (CDS) do Brasil, um termômetro do risco país, caiu quase pela metade: de próxima a 400 pontos no auge da crise do coronavírus, em meados de março, essa taxa chegou a ceder para até 201 pontos. Já o dólar, depois de bater a máxima histórica de R$ 5,97 ao longo do dia 14 de maio passado, fechou na segunda-feira a R$ 4,8544, menor valor desde o dia 13 de março.

Na ata da reunião de maio, o Copom levantou como um dos principais temas o limite efetivo mínimo para a taxa Selic, abaixo do qual o corte de juros geraria mais instabilidade e até aperto das condições financeiras. Para o Copom, esse limite é mais alto nos países emergentes, em razão de um prêmio de risco mais elevado por causa de, entre outros fatores, uma maior fragilidade fiscal.

Mas esse limite é fluido e muda conforme as condições externas e internas. Diante do cenário na reunião de maio, o Copom talvez tenha calculado esse limite como 2,25%. Ou seja, para entregar a inflação na meta em 2021, o horizonte relevante para a política monetária atualmente, era necessário apenas mais um corte de 0,75 ponto em junho. Mas aumentou a chance de uma redução também no Copom de agosto, de 0,50 ponto, o que levaria a Selic a mínima histórica de 1,75%.

Isso porque, desde o último Copom, a ansiedade do mercado diminuiu com um descontrole fiscal, especialmente depois que o presidente Jair Bolsonaro vetou o trecho do projeto de socorro financeiro a Estados e municípios sobre reajustes salariais a servidores públicos, congelando os salários até o fim de 2021.

Com o recuo do dólar, também é menor a preocupação com uma pressão sobre a inflação. Na pesquisa Focus, a projeção de inflação para 2021 caiu de 3,30%, no início de maio, para 3,10% atualmente, bem abaixo da meta de 3,75%. Sem falar que a estimativa do desempenho do PIB em 2020 passou de uma queda de 3,76% para uma contração de 6,48%.

A necessidade de estímulo monetário é maior agora do que na última reunião do Copom. E quando perguntado se já haveria espaço para o Banco Central usar ferramentas não convencionais de política monetária, como a compra e venda de títulos públicos no mercado secundário, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem dito que isso só acontecerá quando se exaurir seu principal instrumento, que é a taxa de juros.

Segundo ele, está longe de ter esgotado o uso da Selic. Essa não é uma sinalização de quem defenda a ferro e fogo que 2,25% seja o limite mínimo de juros no Brasil.

Contabilidade criativa de novo? - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 10/06

O Ministério da Economia poderia ser acusado de estar fazendo contabilidade criativa, por isso recuou da decisão de transferir o dinheiro do Bolsa Família para a comunicação do Palácio do Planalto. Eram R$ 83,9 milhões, mas a manobra poderia liberar para outros gastos pelo menos R$ 6 bilhões em três meses. Foi assim: o governo usou o dinheiro do auxílio emergencial e pagou o Bolsa Família. Com isso “sobraram” recursos para usar como quisesse. Como escrevi na segunda-feira, no meu blog, as fontes que ouvi disseram que não era ilegal, mas que no mínimo era um erro técnico.

O auxílio emergencial foi pago com crédito extraordinário pedido ao Congresso para essa finalidade. O orçamento do Bolsa Família oscila entre R$ 2,4 bilhões e R$ 2,5 bilhões por mês. Em abril, foram gastos apenas R$ 113 milhões. Ao pagar os beneficiários do Bolsa Família com os recursos do auxílio, o governo ficou com mais liberdade para gastar dinheiro do orçamento. Mas isso misturava despesas obrigatórias com gastos emergenciais aprovados dentro do estado de calamidade.

O argumento do Ministério da Economia foi que os beneficiários do Bolsa Família tiveram o direito de optar por receber o benefício mais alto. O que me explicaram no Congresso é que sim, eles puderam optar, até pelas mudanças feitas no próprio parlamento. O problema é que o governo poderia ter usado o orçamento para pagar o valor normal, e complementado com os recursos extraordinários.

— Isso permitiria a eles pedir um valor um pouco menor de crédito extraordinário. Eles que se preocupam tanto com o crescimento da dívida. Isso é dívida — disse uma fonte do Congresso.

A contabilidade escolhida produziria uma série de ruídos. O primeiro foi o valor de R$ 83,9 bilhões para o setor de comunicação do Planalto. De acordo com a nota do Ministério da Economia, “o reforço da dotação advém da solicitação da Presidência da República para recompor seu orçamento”. O dinheiro iria para “ações de comunicação e de campanhas publicitárias de caráter educativo, informativo e de orientação do cidadão”. É, pode ser. Mas esse setor dirigido pelo secretário Fábio Wajngarten está sempre envolvido em controvérsias.

Isso era só o começo. A decisão de pagar despesa fixa com crédito extraordinário abriria um “espaço orçamentário que poderá ser utilizado para o atendimento de outras despesas da União”, segundo a nota de ontem do Ministério da Economia. Ou seja, do ponto de vista da comunicação, também foi péssimo. Cada vez que fosse liberado algum gasto tendo como fonte o dinheiro do Bolsa Família haveria reação.

Mas o que acendeu a luz vermelha no governo foi o movimento do Tribunal de Contas da União para entender o que estava acontecendo. Quatro anos depois da queda de uma presidente por pedaladas fiscais, esse manejo das contas poderia ser entendido como contabilidade criativa. E isso ganharia força no debate político.

O presidente Bolsonaro está às voltas com várias investigações. Neste momento, há o inquérito por suspeita de interferência na Polícia Federal. O presidente conta com a colaboração do Procurador-Geral da República para se livrar das suspeitas de cometimento de vários crimes. O inquérito das fake news, cuja investigação será compartilhada com o TSE, se aproxima de pessoas ligadas ao presidente. Há ainda o inquérito das manifestações antidemocráticas das quais ele tem participado. Bolsonaro tem também contra si a trágica administração da pandemia. Ontem, de novo ele deu demonstrações de alienação total da realidade:

— Ninguém morreu por falta de UTI e respirador. Quem morreu não foi por falta de leito. Muitos faleceram, no futuro poderá se comprovar, por não usar a hidroxicloroquina — disse Bolsonaro.

A esta altura dos acontecimentos, com 38.497 mortos, o presidente é capaz de afirmar algo que contraria todos os fatos. O Ministério da Saúde tentou manipular os números de mortos e foi obrigado a recuar pelo Supremo Tribunal Federal.

Com tanta confusão, o governo preferiu não correr risco de ser acusado de pedalada fiscal. Era só mesmo o que faltava. Por isso, apesar do que disse na nota técnica de segunda-feira, o Ministério da Economia preferiu suspender o repasse para a comunicação da presidência.

Maquiagem de mortos foi tiro contra o próprio pé - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 10/06


Quem observa a maneira como a área da Saúde passou a ser administrada imagina que os responsáveis pelo setor sofrem de insanidade. Isso é um engano. Eles não sofrem. Na verdade, encontram um certo prazer na insanidade. Só a loucura prazerosa pode explicar o surgimento da suposição de que seria possível maquiar a contagem dos mortos do coronavírus. O novo sistema não foi nem implantado e uma liminar do Supremo, expedida por Alexandre de Moraes, já ordenou o restabelecimento da sistemática de divulgação anterior.

Em encontro com parlamentares, o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, referiu-se às mudanças como mero projeto. Conversa fiada. Se fosse mera cogitação, o modelo anterior não teria sido virado do avesso antes que a sociedade fosse informada sobre as mudanças pretendidas. Em reunião ministerial, o general afirmou que a planilha que apresenta a soma total de contaminados e de mortos não fornece informação digna para o povo brasileiro. Faltou definir dignidade.

Até a semana passada, o ministério fornecia diariamente a soma das mortes confirmadas no dia acrescidas dos óbitos ocorridos em dias anteriores e que dependiam de exames para confirmar o diagnóstico de covid-19. O que planejava fazer o governo? Divulgar apenas as mortes confirmadas nas últimas 24 horas, desconsiderando as pendências de dias anteriores. Além disso, retardou-se a divulgação dos dados de 19h para 22h, apenas para que a pilha de corpos sumisse dos telejornais no horário nobre.

O problema é que ocultar milhares de cadáveres não é tão simples como esconder Fabrício Queiroz. E a insanidade do esconde-esconde ofereceu material para a desmoralização do sistema oficial de estatísticas sobre o coronavírus e matéria-prima para que o Supremo atravessasse na traqueia de Bolsonaro mais uma derrota judicial. O presidente e seus auxiliares vão se especializando num esporte doloroso: o tiro contra o próprio pé.

Desabafos - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 10/06

Mandonismo absolutista e irritante de Bolsonaro é revelador. Mostra total incompreensão do seu papel


1. Quando o clássico autoritarismo nacional toma fôlego, ataca de cima e revela o desejo de retorno; quando a democracia é ameaçada por manifestações e agressões verbais que transformam adversários em inimigos; quando insultos são vociferados pelo presidente da República e alguns dos seus ministros — como o da Educação, o qual não tem ideia do que é um “povo indígena”—; quando se interfere na Justiça em favor do familismo — esse vírus central do privilégio e da corrupção—; quando vejo a olho nu a mais neurótica irresponsabilidade cívica; nada é mais necessário do que a lucidez das análises compreensivas. É preciso um desabafo sociológico.

Pois se a consciência, como mostraram Marx, Weber, Durkheim e, sobretudo, Freud, é o que nos torna entidades morais — com o dever inexorável de pensar duas ou mais vezes contra e a favor de nós mesmos — , nada é mais premente do que tentar conjugar o histórico com o eventual. A conjuntura não abole a estrutura; antes, pelo contrário (veja-se Marshall Sahlins), elas são interdependentes. Sistemas fundados no servilismo, na escravidão e no ressentimento coletivo reprimido suscitam a ilusão das soluções derradeiras, de regimes definitivos.

Ganha um fim de semana em Manhattan (com direito a pandemia e a tomar parte nos protestos contra a segregação racial) quem me indicar um comentário político que não seja sociológico.

2. Por causa disso, reitero a pergunta que não pode calar: o que trouxe ao centro no cenário político brasileiro o capitão Bolsonaro e filhos? Eles — toscos e rudes — surgiram do nada ou foram feitos protagonistas porque a peça a que se assistia era desmoralizadora e dava cabo do próprio teatro, hoje — paradoxalmente — não menos ameaçado também por meio um agente externo sem intenção política: a pandemia.

3. Invoco o Rousseau do “Contrato social”: “Antes de examinar o ato pelo qual um povo se entrega a um rei, será melhor examinar o ato que o torna povo. Este ato é a verdadeira fundação da sociedade.”

Convenhamos que isso não é impossível, mas é difícil numa sociedade fundada de fora para dentro, debaixo de um autoritário e burocrático colonialismo radicalmente católico e anti-igualitário. Um sistema consolidado pela fuga, em 1808, da Corte portuguesa diante do avassalador surto democrático napoleônico. Um Brasil movido por laços de puxa-saquismo com punhos de renda, irmão de um desumano escravismo negro.

4. Fomos reino, império, república logo alterada como ditadura civil e militar. Pagamos, penamos e conseguimos a democratização. Hoje somos um Estado nacional que se quer moderno, próspero e democrático. Fizemos a nossa independência de Portugal ou foi o contrário? Mais: quando é que, como diz Octavio Paz focando o México e a América Espanhola, vamos nos tornar independentes e a favor de nós mesmos? Quando vamos enfrentar a nossa ambiguidade institucional e o protagonismo político do nosso familismo?

5. O mandonismo absolutista, irritante e errático de Jair Bolsonaro é revelador. Mostra uma total incompreensão do seu papel de — usemos um epíteto antigo — “supremo mandatário da nação”. O que vi no famoso vídeo foi como um líder influencia seus seguidores. Uns, é claro, mais do que outros. Mas ali, é óbvia a coerção a arremedar o líder, copiando o seu comportamento mal-educado e o seu vocabulário escabroso. Pois não há quem não deseje um líder capaz de desafiar o bom senso, por mais que isso seja uma infantilização e conduza ao desastre como, vale lembrar, foi o caso de uma Alemanha “altamente civilizada e ariana” na sua paixão por Hitler e pelo seu nacional-socialismo germânico.

6. Quando usamos de modo imperativo categorias constitutivas do regime democrático como liberdade, igualdade e justiça, corremos o risco de praticar terrorismo ideológico porque — dependendo do contexto — surge o silêncio. Quem seria contra a liberdade sem ser suspeito de fascismo? E, no entanto, ser privado de escolha ou do debate é estar na prisão do fascismo que — basta olhar para a história — é de direita e lamentavelmente também de esquerda.

Essa democracia que sempre e em todo lugar produz tantas crises deve ser a todo custo defendida. Justamente por isso, não pode deixar de ser pensada.

Bafo do impeachment - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 10/06

Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment


Jair Bolsonaro conduziu uma reunião do conselho de ministros nesta terça-feira no Palácio da Alvorada em que quase parecia um estadista. Comedido, falou sobre as declarações da véspera da especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) que minimizou os riscos de contágio da covid-19 por pessoas assintomáticas. Não tripudiou, não comemorou, não desancou a OMS. Não falou palavrões.

No domingo anterior, não fez sua tradicional aparição cercado de apoiadores na rampa do Palácio do Planalto.

Depois de esticar a corda ao máximo, ao determinar que o Ministério da Saúde revisasse e escamoteasse os dados de contágio e óbitos da pandemia, recuou diante de mais uma invertida do Supremo Tribunal Federal (STF), numa semana plena de potenciais encrencas para o governo no Judiciário.

Todos esses recuos são do conhecido comportamento ciclotímico de Bolsonaro, mas agora foram ditados por avisos muito claros que auxiliares fizeram ao presidente: o apagão de dados da covid-19 era o que de mais cristalino em termos de crime de responsabilidade o “capitão” cometeu até aqui, e não passaria incólume só com notas de repúdio.

Tanto que a reação da sociedade, da imprensa, dos Poderes, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da CNBB, do papa, da OMS, da universidade John Hopkins não deixou margem para dúvida.

Somando a gravidade da pedalada com as vidas e o fato de que as ruas começam a encher, Bolsonaro viu a cara do impeachment, e, pela primeira vez, ela estava viva.

ARMAS

Ideia de zerar alíquota é novo

Se o discurso de Bolsonaro está no modo de contenção desde segunda-feira, as ações do presidente continuam mostrando a propensão de ampliar a influência política do bolsonarismo sobre as Forças Armadas e as polícias. Diante de tanta coisa que o presidente fala, passou quase batida sua declaração de que vai zerar a alíquota de importação de armas para “ajudar o pessoal do artigo 142 e 144 da Constituição”. Mais uma vez Bolsonaro investe na leitura golpista dos dois artigos para associá-los à possibilidade de usar os militares e as polícias como forças de “defesa” de um governo ameaçado por riscos reais ou imaginários.

PT EM TRANSE

Novos líderes já não escondem incômodo com ‘lulocentrismo’

As recentes bolas foras de Lula na tentativa de mostrar que é uma liderança de peso na pior crise política, econômica, de saúde e social que o Brasil enfrenta em anos já levam boa parte da nova geração não só de líderes petistas, mas de toda a esquerda, a demonstrar em público o incômodo com a forma autocentrada com que o condenado na Lava Jato conduz a sigla. No Roda Viva na segunda-feira, o governador do Ceará, Camilo Santana, fez algo que seria sacrilégio no partido até outro dia: disse com todas as letras que Lula está “equivocado” ao negar fazer parte de uma frente ampla pela democracia, e disse que o PT tem de fazer aliança em Fortaleza sem estar na cabeça da chapa, outra heresia. Não demorou a que Gleisi Hoffmann lançasse a candidatura de Lula em 2022, para mostrar que o establishment petista segue alheio à irrelevância da sigla também na oposição a Bolsonaro, depois de ser apeada do poder com Dilma Rousseff.

O processo - ROSÂNGELA BITTAR

ESTADÃO - 10/06

Opositores ao governo já iniciaram a caminhada, mas ainda não há um líder


O desfecho das manifestações nas ruas, dos manifestos dos movimentos organizados, das reuniões privadas e debates públicos ainda não está totalmente visível. Os opositores ao lamentável governo Jair Bolsonaro já iniciaram a caminhada, mas seu horizonte ainda não tem o nome de um líder ou uma definição clara sobre o cenário político que procuram. O propósito é levar adiante um processo, organizado e consequente.

A partir de agora, estão decididos a selecionar os fatos, dia a dia, até que fiquem instaladas as condições para providências concretas. No debate do domingo, na GloboNews, em que formalizaram sua união contra o mal, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros Ciro Gomes e Marina Silva apontaram estágios diferentes da reação política ao escárnio do governo Jair Bolsonaro com a opinião pública dos brasileiros.

Ciro, por exemplo, fixou-se no impeachment, opção do grupo de partidos de esquerda e centro com quem tem conversado. Não agora, imediatamente, mas com previsão para agosto ou setembro. Fernando Henrique demonstrou cautela com relação a isto e seu raciocínio sobre os desdobramentos da nova frente ampla aponta em direção à travessia até as eleições de 2022.

Por sinal, o impeachment nunca foi a primeira opção do ex-presidente. Na deposição do ex-presidente Fernando Collor, FHC dizia que “impedimento é bomba atômica, existe para não ser usada”. Uma semana depois desta caracterização extrema, estava ele, pessoalmente, colhendo a assinatura de Marcelo Lavenère, então presidente da OAB, à petição. Entre a frase e a ação o impeachment se impusera.

No caso atual, o ex-presidente ainda se guia pela fase inicial, a prudência. É preciso observar como, nesses próximos dois a três meses, os fatores das crises produzidas e alimentadas por Bolsonaro se refletirão sobre o destino do governo.

Podem surgir elementos que acelerem o processo de impedimento ou que retardem a saída para a disputa eleitoral. Por exemplo: o inquérito das fake news vai evidenciar a participação de algum filho nas atividades do gabinete do ódio? Algum dos processos que restaram no TSE poderia afastar a chapa Bolsonaro-Mourão? O inquérito da interferência do presidente na ação da Polícia Federal comprovará as suspeitas de ligação do seu grupo político com milicianos?

São questões a terem respostas nos próximos meses. Definirão a ação da frente de oposição.

As eleições municipais que ocorrerão neste meio tempo não são obrigatoriamente pontes para um grande consenso, mas podem funcionar como mata-burro.

Muito há para ser definido. No diálogo das forças que agora se unem contra o esfacelamento político, econômico, humano e ético do Brasil, não apareceram nomes de líderes que poderão galvanizar essas forças políticas. É o que mais se procura, hoje. Os nomes. O nome.

É preciso, antes, avaliar convergências, incompatibilidades, esquemas que podem sustentar a mudança. O que colocar no lugar? Que partidos vão se aliar para formar uma chapa? Quem com quem, em torno do quê? São questões urgentes na agenda deste período que se segue ao primeiro passo, o da união.

O fato político que servirá de denominador comum ainda não amadureceu, mas a iniciativa de aliança já foi suficiente para evidenciar que Jair Bolsonaro está absolutamente isolado. O Centrão, grupo parlamentar que divide o governo Bolsonaro com os militares, tem votos para evitar o impeachment, mas não tem consistência para garantir estabilidade política que o presidente precisa. Os partidos tradicionais, de centro e centro-esquerda, que poderiam assumir o papel, são dominados pelos líderes ora em oposição. E não poderá contar com os arranjos espontâneos do eleitorado de 2018.

Liberalismo de Guedes ganha um aroma eleitoral - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 10/06


A pandemia mexeu com o liberalismo de Paulo Guedes. Com uma ponta de ironia, um colega de governo diz que "aquele Guedes que todos conheceram antes do vírus sofreu uma metamorfose." O ministro da Economia "não mudou de nome para não ter que trocar os documentos, mas é um novo homem." Sua prioridade agora é o Bolsa Família, que mudará de nome para que não se imagine que o bolsonarismo virou petismo.

A expressão "pré-vírus" ganhou ares de adjetivo, com conotação de coisa antiga, ultrapassada. Como nessa frase, dita depois da reunião ministerial presidida por Jair Bolsonaro: "Nada mais pré-vírus do que o figurino Chicago-clássico. Ficou démodé!" Graças à crise sanitária, o Posto Ipiranga enxergou a clientela pobre do país, inclusive os "38 milhões de brasileiros invisíveis". Súbito, a cegueira virou um fenômeno "pré-vírus."

Coube a Guedes, não a Onyx Lorenzoni, suposto ministro do Bolsa Família, informar a boa-nova às lentes das câmeras que transmitiam ao vivo a reunião ministerial: Bolsonaro anunciará oportunamente a "unificação de vários programas sociais." Vem aí o "lançamento do Renda Brasil." O ministro da Economia fez as vezes de titular da pasta da Cidadania ao avisar também que o "auxílio emergencial" (pode me chamar de Vale Corona) será estendido por "dois meses".

Na véspera, em videoconferência com parlamentares, Guedes já havia falado sobre o Renda Brasil, "mais abrangente" do que o Bolsa Família. Antecipara sua concordância com a ideia de esticar o "socorro aos mais vulneráveis" por dois meses. O benefício de R$ 600 começou a ser pago em abril. Com o aditivo, vai até agosto.

Numa evidência de que a nova consciência social de Guedes e o caixa do Tesouro têm limites, a equipe econômica gostaria de reduzir o auxílio para R$ 300. Um grupo de congressistas articula a manutenção dos R$ 600. O Planalto espera contar com seus novos aliados: os heróis da resistência do centrão.

Paulo Guedes não está sozinho na descoberta repentina de uma vulnerabilidade social que reclama um ajuste de prioridades. Com a ajuda do Datafolha, Jair Bolsonaro também se convenceu de que precisa dar um conteúdo, digamos, mais humano à sua Presidência.

Bolsonaro prevaleceu na disputa eleitoral de 2018 com 39% dos votos de 147 milhões de brasileiros que estavam aptos a votar. Hoje, informa o Datafolha, é aprovado por 33% do eleitorado. Ou seja, encolheu. Poderia ter sido pior. Dos 33% que o apoiam, apenas 22% são bolsonaristas empedernidos. Outros 11% são eleitores pobres que, embora não tivessem votado no capitão, foram seduzidos por ele depois que passaram a receber o socorro financeiro da pandemia.

A mesma pesquisa revelou que a taxa de reprovação a Bolsonaro saltou de 38% no início de abril para 43% —a pior marca desde a posse. Daí o aroma eleitoral que exala do discurso de Paulo Guedes, cada vez mais adaptado às conveniências políticas do chefe. O governo falava em reformular programas sociais desde o ano passado. Mas tratava a ideia a golpes de barriga.

A pandemia e suas repercussões econômicas desenvolveram em Bolsonaro um sentimento de urgência que é impulsionado pela psicose do que está por vir. Num passado remoto, quando se opunha aos governos do PT como deputado do baixo clero da Câmara, Bolsonaro via o Bolsa Família como uma isca do petismo para fisgar "eleitores de cabresto", mantendo-os num "curral eleitoral" eterno. Agora, o capitão prepara sua própria pescaria. Com o aval da Escola de Chicago.

Tloc! Pluf! Nhoc! - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 10/06

Balanço do BC incha sempre, como a barriga do Rabicó em 'Reinações de Narizinho'


Em "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, quando Narizinho subia na jabuticabeira, o leitão Rabicó ficava embaixo à espera dos caroços. Cada vez que soava lá em cima um tloc! seguido de um pluf! ouvia-se embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer coisa. E a música da jabuticabeira era assim: "Tloc! pluf! nhoc!; tloc! pluf! nhoc!"¦"

Nossa nativa jabuticaba é cultivada também no Banco Central com floração duas vezes por ano. A cada semestre o BC apura ganhos ou perdas não-realizados das reservas internacionais devido à variação do dólar e acerta contas com o Tesouro Nacional.

Devido à marcação a mercado, mesmo sem venda de reservas internacionais, apura-se ganho contábil, que atiça o apetite alheio. Até o fim de maio, os ganhos eram cerca de R$ 500 bilhões, 7% do PIB.

Com o déficit primário estimado de 10% do PIB este ano, o Tesouro está obrigado a levantar uma montanha de dinheiro no mercado. Há R$ 500 bilhões em ganhos contábeis no BC? Tloc!

Em tese o BC não pode financiar o Tesouro, mas em terras tupiniquins a teoria não é a melhor amiga da prática; usualmente a política monetária coça as costas da fiscal e vice-versa.

A cada semestre em que o dólar sobe, o BC cria reais novos e os credita à conta do Tesouro ("afinal é um ganho da União"). Em contrapartida, nos semestres em que o dólar cai, o Tesouro entrega um vale, ou seja, um título público ("afinal o BC não pode ficar descapitalizado"): pluf!

Em uma conta, entra dinheiro vivo, na outra, um vale. Sob a ótica do Tesouro, "se o dólar subir, eu ganho; se cair, você perde": nhoc!

O balanço do BC incha continuamente, como a barriga do Rabicó. Na carteira de ativos, mais títulos; no passivo monetário, a conta do Tesouro mais forrada.

Para evitar essa arma de dilatação em massa, o Congresso aprovou em 2019 a lei 13.820, que determina que o BC acumule eventuais ganhos não realizados em uma conta de resultados a serem compensados por perdas futuras. Assim, extingue-se a máquina contábil de inchaço. Ou melhor, extinguir-se-ia.

No final deste mês, usando uma brecha contestável prevista no artigo 5o da referida lei, o Conselho Monetário Nacional poderá determinar que o BC crie reais e os transfira ao Tesouro com respaldo dos ganhos não realizados. Nem a dívida bruta do setor público nem a dívida líquida se alterariam com a eventual manobra. No entanto, melhoraria o caixa do Tesouro (o "colchão de liquidez") em contrapartida à fragilização do BC.

Além de criar dinheiro previamente inexistente para o Tesouro, o principal problema da manobra é que, caso o dólar caia no segundo semestre, será necessária uma recapitalização do BC por meio de emissão de dívida pública. De fato, nem precisamos esperar: neste mês, o dólar caiu de R$ 5,33 para cerca de R$ 4,90. Portanto, os efêmeros R$ 500 bi já não existem: o ganho não realizado já pode estar abaixo de R$ 350 bi.

Como indica o economista Fernando Ulrich, o CMN pode indicar ao mercado duas sinalizações ruins com a medida: a) um piso implícito para o dólar, com BC e Tesouro alinhados em evitar que o dólar caia abaixo do nível de 30 de junho, pois tanto o BC se descapitalizará como o Tesouro terá um prejuízo, e b) um incentivo para futuras jabuticabas monetárias, por meio das quais o Tesouro buscará altas do dólar para extrair ganhos bem reais a partir de ganhos fictícios de reservas que nem vendidas foram.

As "Reinações de Narizinho" eram mais edificantes.

A ‘dubiedade’ do presidente - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 10/06

A manutenção do regime plenamente democrático depende fundamentalmente da defesa clara de suas instituições contra os ataques dos liberticidas


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, disse que “algumas atitudes” do presidente Jair Bolsonaro “têm trazido uma certa dubiedade, e essa dubiedade impressiona e assusta a sociedade brasileira”. O ministro enfatizou que Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão “juraram defender a Constituição e são democratas”, e que “chegaram ao poder pela democracia e merecem nosso respeito”. Contudo - enfatizando que falava “em especial” do presidente Bolsonaro, com quem dialoga e tem, em suas palavras, “uma relação harmoniosa” -, declarou que “não é mais possível” ter “atitudes dúbias” em relação à democracia.

Isto é, a manutenção do regime plenamente democrático depende fundamentalmente da defesa clara de suas instituições contra os ataques dos liberticidas - como tem acontecido com frequência preocupante nos últimos tempos por parte dos camisas pardas que idolatram Bolsonaro, sem que o presidente da República os censure de nenhuma maneira. Ao contrário, Bolsonaro, enquanto diz respeitar a democracia e os demais Poderes, confraterniza com quem advoga às escâncaras o fechamento do Supremo e do Congresso e demoniza a oposição.

É essa “dubiedade” que, de fato, como disse o ministro Toffoli, “impressiona e assusta a sociedade brasileira”. Não é possível se dizer um democrata e, ao mesmo tempo, atacar a imprensa dia e noite, avisar que não cumprirá alguma decisão judicial e estimular movimentos golpistas, como fez e faz Bolsonaro. Também nada há de democrático quando um presidente diz que “o grande problema do momento” são as manifestações pacíficas contrárias a seu governo, cujos participantes Bolsonaro, sem qualquer amparo na lei e no bom senso, já qualificou como “terroristas”. Segundo o presidente, “estão começando a colocar as mangas de fora”.

À parte o fato estarrecedor de o chefe do Executivo considerar o “grande problema do momento” algumas passeatas de opositores, em vez da pandemia de covid-19, essas declarações explicitam mais uma vez sua rematada incapacidade de entender o que é e como funciona uma democracia.

Para Bolsonaro, a democracia e suas instituições atrapalham seu governo. Manifestações de rua, por exemplo, não são expressão legítima de descontentamento, e sim, segundo ele, sabotagem por parte dos que “não aceitaram perder no voto as eleições de 2018”. Além disso, na concepção bolsonarista, o Supremo tem se intrometido indevidamente no trabalho do presidente - seja ao suspender a nomeação de um seu amigo para chefiar a Polícia Federal, por evidente desvio de finalidade; seja ao impedi-lo de determinar unilateralmente a reabertura de comércio e de serviços nos Estados e municípios, pois tal decisão feriria o princípio federativo; seja ao ordenar que o Ministério da Saúde volte a divulgar os números completos da pandemia, sem qualquer manipulação e omissão, de acordo com o princípio constitucional da publicidade da administração pública.

Pouco importa que nesses como em outros casos as decisões do Supremo tenham seguido estritamente a Constituição. Para Bolsonaro, os ministros do STF usurpam seu poder e o impedem de governar. Talvez seja por esse motivo que o presidente tenha dito que tudo vai melhorar em seu governo quando ele mudar a composição do Supremo. “Eu vou indicar o primeiro ministro do Supremo agora em novembro. O primeiro. Vai arrumando as coisas devagar aqui”, declarou.

Ou seja, a expectativa de Bolsonaro é que um ou dois ministros indicados por ele, num colegiado de 11, seja o suficiente para fazer o Supremo dobrar-se às suas vontades. Além de revelar profunda ignorância de como funciona o Supremo, tal raciocínio explicita o desejo bolsonarista de domesticar o Judiciário, fazendo-o trabalhar a favor de seu projeto autoritário de poder - exatamente como fez o ditador venezuelano Hugo Chávez.

Como destacou o ministro Toffoli em seu discurso, a estabilidade democrática do País se deve em grande parte à autonomia e à independência das instituições: “Seguiremos vigilantes em relação a qualquer forma de ataque ou ameaça ao Poder Judiciário, ao Supremo Tribunal Federal e às instituições democráticas deste país”. É o que esperam os cidadãos brasileiros que amam a liberdade.

O homem da coragem errada - PAULO DELGADO

ESTADÃO - 10/06

A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda


A qualidade de governante não se adquire sem fundamento, especialmente se o rolo compressor que brota de individualidade exacerbada é safra diária de disparates absurdos.

A combinação de coragem errada com circunstância ruim é um desastre. Abrir a boca para berrar só piora se a educação é nota de rodapé e o texto principal, palavrão. A agressividade nele é um método cujas ameaças são um ardil.

Sempre foi admitido no círculo das instituições mesmo quando as criticava sem pudor. Sua lógica é parecer fora dos costumes desde que foi inocentado no STM por desonra de conduta e nunca punido pelas injúrias e pelos desacatos como deputado. Duas escolas que tiraram dele a noção de castigo. Percebeu que a verdade é diminuída em valor quando a autoridade, civil e militar, de direita ou esquerda, está bem confortável em seu cargo e disposta a acreditar no que for.

Obtendo sucesso como um fora da ordem se envolveu em ações inimagináveis, bem abaixo do padrão de um país que fala tanto em Estado Democrático de Direito. E constatou que os fatos, vindos dele, não valem como prova. Bingo. Beneficiado pela simbiose dos radicais – um pacto entre espalha-brasas cujos extremos se alimentam –, livrou-se do confronto adulto e informado, o único que pode realmente detê-lo. Pôs em prática a ideia de que o medo ativa o inimigo. E decidiu que amigo é quem embarca na aventura destrutiva em que vive.

Uma boa maneira de conhecer a vida dos homens é observar o tom de voz e a frequência das palavras que usa. A palavra insincera cumpre a função de abolir a relação com a realidade que incomoda. Escorre e arrasta a culpa para longe da consciência que a utiliza. Deposita no outro a responsabilidade que não assume.

Ele está levando uma surra dos estereótipos que cultiva. Esqueceu-se de que na última eleição para presidir a Câmara teve quatro votos. Nem o filho votou. Mas como caiu para cima, sem nenhum atributo de liderança, mantém a astúcia: ser hostil à divergência de opinião é a principal característica do sucesso político há mais de 30 anos.

A reunião não seria jocosa mesmo se a veneziana continuasse fechada e o creia-em-mim não fosse tão paranoico. Já são 16 as vezes que a palavra-espetáculo que mais o excita é a referência ao sêmen usada como ponto final da frase. Um verdadeiro doping vocabular: não haverá outro dia igual a ontem; eu sou a Constituição; não respondo a ninguém que queira me julgar; não cedo ao Estado meu poder. Somado a essa mania de distorcer tudo, fazer gato-sapato da história dos judeus e misturar Confúcio com ignorância.

O sujeito cindido e espaçoso é assombrado. Meios-tons na economia, strip-tease na política, desprezo por doentes, apartheid social-ambiental rebaixando o perfil internacional do País. Jogador treinado no ringue parlamentar, usa o baralho sem conhecer todas as cartas e ameaça com recursos de poder que não possui.

Mas joga a isca. Anunciar, sem ser contestado, que tem seus tontons macoutes voluntários e ativos é de rir sem alegria. Ai de ti, SNI. A ameaça sem dubiedade às instituições Supremo, Congresso, mídia lembra “acorda, amor. É a dura, numa muito escura viatura”.

Os serviços de inteligência estão totalmente atomizados e acabam operando uns contra os outros. Não servem nem para antecipação de decisão, nem para contrainformação. Ao invés de o Estado organizar sua sinergia para proteger o País, o presidente usa os buracos na doutrina de segurança e defesa para fazê-la mais vulnerável.

Interessante é saber de onde vem esse desejo de desobedecer. Com as críticas do ministro da Justiça soubemos como se concilia o sistema de Justiça com a ideia de que “lei errada não se cumpre”. O crime organizado gosta da confusão criada por presidente que prega não ter medo da ameaça legal.

Refém do temperamento bilioso, coloca, cuidadosamente, a mão suja na mão de quem lhe estende a mão, assinando a culpabilidade de um Estado que zomba da doença e da morte. Quanto ao resto, quem quiser ver algo melhor que veja. Na eleição desanca o Parlamento, no governo confirma o ditado: quem não tem cão caça como gato.

Domingos imorais. Quando a pata do animal escavou o asfalto em busca de um ponto de apoio o arreio afrouxou e ele caiu do cavalo dias depois ao escorregar em outro Estado. Foram cinco voltas inúteis num Super Puma, porta aberta, pondo todos em risco. Se fosse bombeiro não se exibia, nem pisava na mangueira.

A combustão alimenta o paradoxo. A cada hora finge ir ao máximo nas palavras por imaginar que no grito tira a vantagem de quem o ameaça. As aversões ocultas, as dificuldades de apego, a falta de altruísmo e empatia não caracterizam nosso Estado. Governante que induz a população, durante pandemia, a desprezar os riscos de adoecer e morrer pode terminar em tribunal de reparação.

Mantida ativa a sementeira o grão se multiplica em cem, desatarraxa a sociedade e atrela a democracia a um alfinete. Destravar a granada é enquadrar seu impulso de guerra na sabedoria de buscar a paz obrigatória, dever de quem governa.

PAULO DELGADO É SOCIÓLOGO.

Provas compartilhadas - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 10/06

Na frente do prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em Brasília, onde se desenrolam os processos para impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão sob diversas alegações, dois grupos se manifestavam ontem. De um lado, a turma do Bolsonaro, comandada pela ativista Sara Winter. De outro, o grupo da oposição, aparentemente liderado pelo PT.

Ambos com pouca gente, diga-se de passagem, o da oposição menor. Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e seu braço direito, pegou o megafone e começou a esbravejar contra o “golpe” sofrido pela ex-presidente Dilma, e a defender ao mesmo tempo a cassação do mandato de Bolsonaro e Mourão.

Foi tiro e queda, esvaziou-se a manifestação oposicionista. Esse fato fortuito é exemplar de uma situação política apodrecida, que levou à irrelevância de Lula na atual quadra brasileira. Como Bolsonaro, Lula só pensa naquilo, a eleição de 2022. Mas quer que os partidos continuem a girar em torno dele, o sol oposicionista.

Um desejo irrealizável pelas leis em vigor, pois foi condenado em segunda instância e é inelegível. A presidente do PT, Gleisi Hoffman, já lançou a candidatura de Lula, e José Dirceu, mais pragmático, mas igualmente fora da realidade, defende o que chama de “chapa imbatível”, com o governador petista da Bahia Rui Costa para presidente e Flavio Dino, governador do Maranhão do PCdoB, como vice. Uma tentativa de manter o PCdoB como satélite do PT.

No domingo, num programa especial da Globonews de Miriam Leitão, ficaram frente a frente três líderes da oposição a Bolsonaro: Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, Marina Silva, do Rede e Ciro Gomes do PDT. Debateu-se uma aliança oposicionista que unisse vários partidos, aliança essa que o PT já se recusou a aderir, alegando que não poderia conviver com quem trabalhou pelo “golpe” contra Dilma, nem assinar um mesmo documento que o ex-ministro Sérgio Moro.

No programa da Globonews, Ciro Gomes tomou a iniciativa de se reaproximar do ex-presidente Fernando Henrique, a quem criticou regularmente nos últimos anos, depois de terem sido companheiros de partido e de governo. Num momento como o que enfrentamos, com crises para todos os lados, é indispensável que os líderes políticos se unam em tono do que os agrega, como a oposição de Bolsonaro.

Mas os dois populistas, Bolsonaro e Lula, se retroalimentam, e precisam um do outro. Não creio, porém, que depois dessa experiência com o governo Bolsonaro, e com a debilidade política do PT, tenham chance novamente de dividir o eleitorado.

O julgamento da chapa Bolsonaro -Mourão, ontem no TSE, foi o primeiro dos muitos que vão acontecer e deve ser arquivado, porque a questão é frágil. Trata-se de um site “Mulheres contra Bolsonaro” que foi invadido por hackers e teve o nome mudado para “Mulheres a favor de Bolsonaro”.

É muito subjetivo determinar se foi o candidato quem mandou invadir o site, e o relator do caso, ministro Og Fernandes, votou pelo arquivamento. O ministro Facchin quer continuar a investigação. Assim como esse, outros processos também são frágeis.

O fundamental para o TSE é definir se essas ações mudaram o resultado das eleições. Nesse sentido, o único processo que vai dar discussão é o de impulsionamento de mensagens no WattsApps, mentirosas ou favoráveis a Bolsonaro. Impulsionamento na campanha eleitoral é ilegal - não se pode mandar a mesma mensagem para milhares pessoas porque é caro e caracteriza abuso de poder econômico.

Além disso, quando impulsiona mensagens mentirosas, outro candidato está sendo prejudicado. O compartilhamento de provas encontradas no inquérito do Supremo que já investiga fake news há um ano, se autorizado, pode robustecer esse processo no TSE, e a quebra de sigilo dos empresários envolvidos no apoio ao governo Bolsonaro nas redes sociais pode levar à criminalização desse apoio, comprovando o abuso do poder econômico.

O presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, já avisou que a esperança de grupos de que o TSE possa resolver uma questão politica que está posta, com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão, é infundada. O Tribunal não agirá politicamente, garante. O julgamento deve acontecer ainda este ano, o que, no caso de impugnação da chapa, obrigaria a uma nova eleição direta para presidente da República. Se acontecer depois do segundo ano de mandato presidencial, a eleição seria indireta. O TSE pode também impugnar apenas a candidatura de Bolsonaro, e nesse caso assumiria o restante do mandato o vice Hamilton Mourão.

Mas é preciso levar em conta que é muito difícil anular uma chapa presidencial eleita por 60 milhões de votos. A não ser que o excesso de provas torne inevitável a decisão.

O bote salva-vidas de Bolsonaro - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 10/06

Bolsonaro investe em novo Bolsa Família para salvar governo

Na campanha, presidente negou que tivesse programa de renda mínima


Em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro entregou ao TSE um plano de governo que prometia, “a cada brasileiro, uma renda igual ou superior ao que é atualmente pago pelo Bolsa Família”. No dia seguinte, o candidato mostrou que não havia lido o programa. Quando a imprensa noticiou a ideia, ele achou que fosse mentira. “Meu Deus! Kkkkkkkk! É inacreditável!”, escreveu.

Bolsonaro sempre submeteu suas posições a conveniências políticas. Naquele ponto da corrida eleitoral, ele preferiu rechaçar a proposta de renda mínima para se contrapor aos rivais do PT. Agora, o governo trabalha num projeto que pode servir de bote salva-vidas para seu mandato.

Há meses, ministros falam em expandir e rebatizar o Bolsa Família para apagar a marca petista e vincular o benefício a Bolsonaro. A proposta tomou velocidade na esteira do auxílio emergencial do coronavírus.

Na segunda (8), o austero Paulo Guedes disse que os cidadãos atendidos por esse programa serão incluídos no novo Renda Brasil.

Ninguém explicou se os beneficiários do programa precisarão atender aos requisitos do Bolsa Família, como a vacinação de crianças e a comprovação de frequência escolar. Ficou aparente, no entanto, o cálculo político para sustentar um governo com impopularidade crescente. Bolsonaro perdeu apoio nas faixas mais ricas do eleitorado, mas ganhou espaço em segmentos de baixa renda.​

Se tornar permanente um auxílio de R$ 200 para trabalhadores informais, como sugere Guedes, o governo pode fidelizar parte desse grupo. Uma análise do Datafolha mostrou que, dos 33 pontos de avaliação positiva de Bolsonaro, quase 7 vêm de pessoas que não votaram nele, mas pediram a ajuda ao governo.

Com a jogada, o presidente ainda reforça a tentativa de transferir a governadores a responsabilidade pela crise econômica do coronavírus. Bolsonaro perdeu a batalha do isolamento e passou a manipular as estatísticas que comprovam o fracasso do país no combate à doença, mas já mira o período pós-pandemia.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

A pior crise do Brasil é Jair Bolsonaro - JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 10/06

Mais maligno que pandemia, recessão e desgoverno, juntos, é o presidente



Intriga o sentido da expressão “tempestade perfeita”, que poderia ser confundida com calmaria. Mas é o inverso do que a ideia da perfeição sugere: a conjunção dos efeitos perversos de temporais coincidentes, como no descontrole do contágio do novo coronavírus provocando uma crise sanitária inusitada, o início e o agravamento da perspectiva da mais profunda recessão econômica de nossa História e a incapacidade de gestão estatal. A cereja do bolo de veneno é a ocupação do mais elevado poder republicano por um cidadão perverso, paranoico, paleolítico e cujo cérebro paira entre ignorância total e insanidade mental.

O Brasil repete-se na perda constante das oportunidades oferecidas pela conjuntura internacional. A pandemia de covid-19 exacerba essa característica de um país que não se livrou do estigma da escravidão como meio de produção. O vírus velocíssimo e até agora indestrutível, egresso do Extremo Oriente, tornou-se planetário ao devastar vidas e poupanças do continente europeu. O fato de o País estar sob a linha do Equador nos permitiu tomar conhecimento de sucesso e insucesso no combate à praga. Mas não dispomos de testes para seguir o exemplo da Coreia do Sul e até hoje não temos a mínima ideia matemática da velocidade da transmissão e da letalidade da nova doença. No fim da semana passada, a incontinência verbal de um bilionário sem juízo nos livrou de sua decisão de nossa retirada do competitivo mercado de respiradores mecânicos para evitar o colapso do sistema da saúde. Até agora evitado pela eficiência do Sistema Único de Saúde (SUS), o patinho feio de nosso horrendo serviço público.

A existência rara de fina inteligência no governo federal premiou nossa Pátria desleixada com a raridade de um ministro de Saúde, Luiz Henrique Mandetta, reunindo credibilidade e popularidade para evitar que as deficiências estruturais e a indigência intelectual de nossas elites reduzissem a índices intoleráveis infecção e letalidade de uma doença que desafia os mais privilegiados cientistas da humanidade. Mas o chefe do Executivo, eleito por 57 milhões, 796 mil e 986 votantes no segundo turno, submeteu-o a humilhações e o demitiu por inveja e paranoia. O primeiro absurdo, demissão do ministro da Saúde em plena subida do contágio do vírus, foi repetido na demissão do segundo, Nelson Teich, em menos de um mês. E por motivo ainda mais fútil: a insubmissão à prescrição de uma panaceia particular, a cloroquina, repetindo o que, como parlamentar, fizera antes com outra picaretagem, a “pílula do câncer”.

Empenhado em fazer valer maluquices de um pornógrafo de rede social e de financiadores de disparos de fake news, Jair Bolsonaro escoiceou ciências médicas e lógica plana ao trocar a coordenação do combate ao microrganismo por uma surrealista dicotomia inexistente entre vidas e negócios. Essa sandice apavorante levou ao comando da guerra virológica Eduardo Pazuello, general da intendência (que, segundo Napoleão Bonaparte, “segue” as tropas, não as lidera), com deficiente compreensão de biologia elementar, como a posição do coração no corpo. E conseguiu superar a própria incapacidade de entendimento básico de administração pública ao nomear para a secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos do ministério Carlos Wizard, bilionário irresponsável que, disposto a impor sua fé criacionista, anunciou a suspensão da compra de respiradores, um crime. E insultou a inteligência da Nação e a honra dos secretários estaduais de Saúde, anunciando a adulteração das estatísticas de casos e óbitos de covid-19 e adicionando um delito de responsabilidade ao rosário de penas do presidente da República e do roliço intendente da Saúde.

A melhor frase sobre essa rematada demência é da lavra do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ): “Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”. Os atos antibolsonaristas de domingo, desafiando recomendações sanitárias, cumpriram, porém, o papel essencial de mostrar que a seita nazibolsolulofascista, criacionista, terraplanista, “ignorantista” e assassina não é dona das ruas. Mas este não é mais momento de meras belas palavras. A Pátria precisa que mandatários do poder em nome do povo assumam seu dever de atirar o capitão à procela imperfeitíssima no mar, adotando a visão profética do poeta Alberto da Cunha Mello: “A tempestade desse barco é seu próprio comandante”.

A ordem constitucional vigente, da qual a democracia não pode abrir mão, mesmo ante a perspectiva atroz de um golpe policial-militar de milícias populares chavistoides anunciadas por Jair Messias na reunião de porão de Máfia de Chicago durante a lei seca, não tem como repetir a solução de 1919. Na República Velha, Delfim Moreira, o vice psicopata do presidente reeleito morto (Rodrigues Alves), foi isolado sob a regência de Afrânio Mello Franco até a chegada de Epitácio Pessoa, que derrotou Ruy Barbosa na eleição presidencial a bico de pena. Mas coragem e lucidez poderão achar o correto caminho legal para expurgar o capitão tempestade.

JOSÉ NÊUMANNE É JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Com Bolsonaro, país corre risco de virar Venezuela - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP/O GLOBO - 10/06

Presidente, como Chávez e Maduro, produz uma crise por semana


Quando os professores José Arthur Giannotti, Denis Lerrer Rosenfield e a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) dizem uma mesma coisa, é bom que se preste atenção. Afinal, cada um com suas qualificações, eles têm pouco em comum.

Giannotti disse: "Bolsonaro dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela".

Rosenfield: "No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado".

Joice Hasselmann, ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso: "Antes que o Brasil caia num chavismo de verdade com o sinal trocado, eu propus o processo de impeachment".

Antes da eleição presidencial de 2018 havia gente assustada com a possibilidade de o Brasil virar uma Venezuela na mão do PT. Deu-se o imprevisível e surgiu o risco de uma venezuelização com Bolsonaro.

Ele foi um capitão indisciplinado, Hugo Chávez foi um coronel golpista. Ambos foram eleitos e ambos eram paraquedistas. Uma vez no poder, Chávez aparelhou-o com militares e, nas palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, "existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país".

Bolsonaro nomeou centenas de militares da reserva e da ativa para cargos na sua administração. No Ministério da Saúde há ao menos 21. Seu governo mostrou-se tolerante com policiais militares amotinados, mas não mexeu com a disciplina dos quartéis. O chavismo firmou uma base numa milícia popular, enquanto a milícia bolsonarista é sobretudo eletrônica. As militâncias de Bolsonaro e do chavismo assemelham-se na hostilidade aos meios de comunicação, ao Congresso e ao Judiciário.

Bolsonaro repete que respeita a Constituição e nunca falou em referendos, enquanto Chávez atropelou as instituições durante seu primeiro mandato. Bolsonaro, como Chávez e Nicolás Maduro, produz uma crise por semana. A seu modo, tornou-se um excêntrico na comunidade internacional.

A grande diferença entre os dois países está nas suas economias. A brasileira é seis maior que a venezuelana. Além disso, Pindorama tem empreendedores no andar de cima, enquanto a elite da Venezuela vivia nas tetas da riqueza do petróleo. A sociedade brasileira tem uma complexidade que a venezuelana nunca teve.

Essas ressalvas valem pouco. Se o passado explicasse tudo, o nazismo teria surgido na Grécia, não na Alemanha, e Cuba nunca teria virado um país comunista.

Assim como Paris encheu-se de nobres russos nos anos 20 do século passado, Miami está cheia de cubanos e venezuelanos que não acreditavam que seus países virassem o que viraram. Eles não deram atenção ao que diziam pessoas como Giannotti, Rosenfield e Hasselmann.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Bolsa ou Renda - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 10/06

Programa anunciado gera dúvidas; governo fará bem se ampliar cadastro de pobres


Parece provável que questões e questiúnculas políticas ocupem grande parte do debate em torno do recém-anunciado Renda Brasil —que, segundo o ministro Paulo Guedes, da Economia, será uma versão ampliada do Bolsa Família a ser lançada, em caráter permanente, após o pior da pandemia.

De mais mesquinho, haverá decerto resmungos contra a mudança marqueteira do nome do programa, além da retomada de disputas pela paternidade da ideia de transferir renda diretamente para os estratos mais pobres da população.

Trata-se de polêmica que não deveria sobreviver a esta altura. Vem de longa data, em todo o mundo, o aperfeiçoamento das ações assistenciais do Estado, a partir de estudos acadêmicos, experiências em diversos países e fomento de organismos como o Banco Mundial.

Essa modalidade, mais focalizada e menos paternalista, começou no Brasil de forma embrionária sob o tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e ganhou impulso nas administrações petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-10) e Dilma Rousseff (2011-16).

Mais relevante, no âmbito político, é o que a nova iniciativa pode revelar dos rumos do governo Jair Bolsonaro. Será afrouxada, em definitivo, a austeridade orçamentária? O presidente enfraquecido está em busca de uma outra base de sustentação política e eleitoral?

Um tanto de ceticismo deve preceder tais especulações. Primeiro, porque Guedes é dado a anúncios bombásticos que resultam em coisa nenhuma —já falou, por exemplo, em zerar o déficit público em um ano, arrecadar R$ 1 trilhão com privatizações e obter 40 milhões de testes para a Covid-19 de um misterioso empresário britânico.

Ademais, o regime de arrocho fiscal não é mera escolha ideológica. O governo brasileiro, que hoje depende de dinheiro emprestado até para o custeio cotidiano, não conseguirá criar novas despesas permanentes sem convencer o mercado credor de que a alta explosiva da dívida pública será contida.

Tudo considerado, o governo fará bem se aproveitar a experiência do auxílio emergencial na pandemia, já problemática, para tornar mais completo seu cadastro de famílias de baixa renda, de modo a incorporar trabalhadores informais.

É desejável rever a distribuição de recursos da portentosa rede nacional de proteção social —programas como o seguro-desemprego, por exemplo, deixam de fora quem não teve a carteira assinada. A carga tributária deve mirar mais a renda e menos o consumo.

Com qualquer nome que venha a ter, a transferência de recursos aos mais carentes precisa ser preservada e, se possível e necessário, ampliada —com critérios transparentes e o mínimo de politicagem.

Vendilhões de templos midiáticos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 10/06

Bolsonaro passou a agredir grandes empresas de comunicação, pedindo aos empresários que deixassem de publicar anúncios, para asfixiá-las financeiramente


Enquanto no Legislativo parlamentares governistas vêm pedindo maior agilidade na tramitação do projeto de lei que permite às televisões com baixa audiência promover sorteios e jogos de bingo, uma antiga reivindicação de seus proprietários, há cerca de duas semanas uma ala da Igreja Católica reuniu-se por meios virtuais com o presidente Jair Bolsonaro para pedir, em troca da veiculação de notícias favoráveis, mais concessões de rádio e TV, bem como recursos públicos para instalá-las, repassados sob a forma de publicidade institucional.

Os dois fatos dão a medida de como o governo Bolsonaro, assustado com o renascimento das manifestações de rua contrárias a ele, vem reagindo para tentar manter a popularidade do presidente. A rigor, a estratégia não é nova - ao contrário, foi muito usada no passado, quer no regime militar, quer depois da redemocratização. A utilização política da comunicação midiática sempre foi um instrumento de construção de imagens e narrativas e desqualificação de adversários políticos, principalmente nos períodos eleitorais.

O que é novo, agora, é o fato de que essa estratégia vem sendo implementada de modo escancarado e sem pudor. Ela começou a ser posta em prática quando, desde o início de seu mandato, Bolsonaro passou a agredir grandes empresas de comunicação, pedindo aos empresários que deixassem de publicar anúncios, para asfixiá-las financeiramente. Em 2019, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) distribuiu R$ 4,6 milhões a grupos religiosos de comunicação, dos quais os veículos católicos ficaram com R$ 2,1 milhões.

Além de reivindicar concessões de televisão e publicidade pública em troca de noticiário favorável ao presidente, representantes dessa ala da Igreja pediram a Bolsonaro que lhes desse verbas para promover “obras filantrópicas”. Mas a cortina do bom samaritano se abriu quando líderes da Frente Parlamentar Católica do Congresso afirmaram ter o apoio de empresas americanas interessadas em investir quantias milionárias no Brasil em novos órgãos de comunicação “alinhados a Bolsonaro”. E se escancarou de vez quando o padre Welinton Silva, da TV Pai Eterno, reconheceu que a emissora passa por dificuldades e afirmou que espera uma aproximação com a Secom para oferecer uma pauta positiva das ações do governo. “Precisamos de um apoio maior do governo para continuar comunicando a boa notícia, levando aquilo de bom que o governo pode estar fazendo pelo povo”, disse ele.

A repercussão foi a pior possível. Em carta publicada por este jornal, Francisco Paes de Barros, radialista com cinco décadas de experiência profissional e ex-diretor de várias emissoras de rádio, muitas delas católicas, foi ao ponto. “Fiquei envergonhado com a imagem de Nossa Senhora de Fátima sendo levada ao curralzinho onde Bolsonaro diariamente fala a seu gado. Uma Igreja que tem tantos mártires torturados, desaparecidos, mortos pela ditadura, agora vai ao presidente de pires na mão para pedir ajuda em troca de bênção e apoios”, afirmou.

A mesma indignação foi expressa pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Nota também assinada por outras entidades afirma que “a Igreja Católica não faz barganhas e não atua em troca de favores”. Disse, ainda, que os participantes da reunião com o presidente da República não tinham autoridade para falar em nome da Igreja Católica.

Como Bolsonaro participa de atos em defesa de uma ditadura militar, quer armar a população, desdenha da Constituição e afronta sistematicamente os Poderes constituintes e a imprensa livre, o que esses vendilhões de templos midiáticos estão fazendo, quando propõem transmitir “a boa notícia” do que seu governo está fazendo, em troca de dinheiro, é mais do que um pecado moral. É uma contribuição abjeta para um sistema de comunicação totalitário, sem redações e sem jornalistas, que se alimenta de sinopses laudatórias de um governante que, apesar de se apresentar como cristão, defende ditaduras e torturadores.