segunda-feira, junho 01, 2020

Neonazismo, bolsucranização e ex-prostituta e ex-feminista hoje de família - REINALDO AZEVEDO

UOL - 01/06



Bandeira de partido neonazista da Ucrânia na manifestação de bolsonaristas em São Paulo; no canto superior esquerdo, Sara Winter quando cortava o pênis de boneco de Bolsonaro; abaixo dela, Cara Zambelli, também do "Femen". Agora, são mulheres de família. Da família BolsonaroImagem: Marlene Bergamo/Folhapress; Gabril Barreira;


Negar os apelos dos grupos bolsonaristas mais radicais ao nazismo, ao fascismo e derivados de extrema direita corresponde a ignorar o óbvio. Na manifestação em São Paulo, pessoas portavam duas bandeiras que faziam referência à Ucrânia: uma delas trazia as cores do país, azul e amarelo, com o brasão, e outra, em vermelho e preto, era uma homenagem ao partido Pravyi Sektor, que é uma milícia armada, de inspiração neonazista .

No dia 20 de abril, Sara Winter, a tal líder do Acampamento dos 300, escreveu no Twitter: "Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!" Ex-prostituta, foi, de fato, a Kiev, capital daquele país, para receber lições do grupo feminista "Femen", que ajudou a trazer ao Brasil. A também bolsonarista Carla Zambelli, deputada federal, pertenceu à turma, o que ela nega, embora fotos digam o contrário.

Do "sextremismo", o feminismo extremista, Sara Fernanda Giromini se tornou uma bolsonarista roxa. Em 2014, num protesto em Copacabana, ela participou de uma performance, com os seios à mostra, em que, ao lado de uma colega, cortava o pênis de um boneco que representava o então deputado federal Jair Bolsonaro. Tudo ficou para trás. Ela agora é "de família".

O que é "ucranizar" num primeiro momento? Corresponde a seguir as lições de Olavo de Carvalho. Num vídeo, a ex-prostituta e ex-feminista convertida à "bolsucrazanização" explica como devem ser tratadas as autoridades do Congresso e do Supremo:
"Eu consigo deixar esses caras com vergonha, eu consigo desestabilizá-los emocionalmente. E eu consigo, principalmente, mostrar para a imprensa que está cobrindo (...) que o povo já não os reconhece mais como autoridades. Quando eu consigo desmoralizá-los diante do próprio povo, é o primeiro passo para quebrar o poder que eles têm: a quebra da autoridade. Então, gente, o que eu estou ensinando? Táticas de guerra não violenta. Eu não sei nada sobre guerra. Mas eu sei muito de guerra não violenta. É o que eu estou fazendo. Primeiro passo: desmoralizá-los com atos, com palavras. O primeiro passo é você humilhá-los, ridicularizá-los. Para que a gente possa tirar a autoridade dessas pessoas e mostrar que o povo está reagindo". https://www.youtube.com/watch?v=kKPQtWfeFSI


Isso, obviamente, não é Sara Winter. É Olavo de Carvalho. "Ah, para que dar tanta atenção a essa moça, uma espécie de rascunho da cópia de Joice Hasselmann, de quem tenta roubar até a entonação da fala e as pausas dramáticas?" Porque gente assim, que tem um passado a perder e um eventual futuro a ganhar, mostra-se disposta a tudo. Não é uma comparação, claro!, mas um alerta sobre o risco de desprezar a mediocridade violenta. Hitler só se mudou da Áustria para a Alemanha aos 24 anos. Aos 34, já tinha tentando dar um golpe de Estado. Antes de completar 44, o pintor frustrado e provável ex-prostituto masculino, com sugestões de que pudesse ser pedófilo (by "A Mente de Adolf Hitler", de Walter C. Langer) —, se tornou chanceler da Alemanha.








Se as instituições se deixam desmoralizar, esses tipos avançam.

O grupo de Sara Winter, que parece dar de ombros para o fato de que está sendo investigada, organizou um protesto em frente ao Supremo no sábado. Não havia 300 lá. Quando muito, 30. Todos com tochas acesas, ao som de uma música que convocava as forças do caos. Era a mímica da Ku Klux Klan. Ela mesma já admitiu que o seu acampamento comporta pessoas armadas.

Essas aberrações poderiam estar em curso, vá lá, mas sem conexão com o poder.

Mas está! O presidente sobrevoou a Praça dos Três Poderes, em companhia do ministro da Defesa, em helicóptero escancaradamente militar, para saudar os seus bambas. André Mendonça, ministro da Justiça, cometeu o despropósito de entrar com um habeas corpus para impedir que bolsonaristas, incluindo Sara, com uma extensa ficha de crimes prestados contra o Supremo e contra a democracia, sejam investigados.

Não me venham com a conversa mole de que não existe nazista sem nazismo nem fascista sem fascismo. Tentem surpreender um tantinho a inteligência alheia. Existem os valores do nazismo e os valores do fascismo. Estão no discurso e na prática de grupos bolsonaristas, incluindo o presidente da República. Mundo afora, tentam milicianizar a democracia e destruir os fundamentos do próprio regime.

O Brasil é a prova de que estupidez não deve ser subestimada.

Santidade, silêncio e sanidade - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 01/06

Nestes dias precisamos mesmo de todas as pequenas santidades que estão a nossa volta


Nelson Rodrigues dizia que a busca por ser racional era uma dolorosa ascese, um esforço, semelhante à busca pela santidade.

Em dias como esses, em meio a tagarelice que se abateu sobre a pandemia nas redes, na mídia, nos cientistas, nos políticos, a busca por alguma gota de racionalidade virou uma dura ascese que beira o cultivo do silêncio como saída para um mínimo de sanidade. O silêncio não é, necessariamente, mudez. E a sanidade, por sua vez, pode ser a escolha de uma outra linguagem ou perspectiva no olhar.

Santidade é um tema que precisamos lembrar nestes dias em que vivemos. Aliás, devemos sempre lembrar, mas na agonia aguda, ele é sempre mais essencial.

O teólogo Hans Urs von Balthasar (1905-1988), sacerdote e teólogo suíço, escreveu um livro chamado (numa tradução do alemão) irmãs no espírito: Tereza de Lisieux e Elizabeth de Dijon, sem edição no Brasil, que eu saiba. Trata-se de uma peça importante nos estudos do que podemos chamar de fenomenologia da graça, como ele mesmo diz, ou fenomenologia da santidade. Segundo o autor, existem dois tipos básicos de santidade.
Cammarota

Um primeiro é a santidade que brota do solo da comunidade e se ergue em direção a Deus, como que pedindo seu reconhecimento. Esse tipo é o mais comum, mas esse “comum” nada tem de mais fácil, apenas se trata de mais frequente. Aliás, essa frequência tem a ver justamente com a necessidade que a humanidade tem de buscar o reconhecimento de Deus pelo seu esforço contínuo no dia a dia.

Esse santo ou santa tem como traço a força de vontade de realizar o bem buscando a semelhança com Deus. Na Bíblia hebraica, Deus diz que devemos ser santos como Ele é. Nesse sentido, a santidade horizontal, como diz Von Balthasar, às vezes, é uma santidade que surge como fruto do livre arbítrio humano tentando se aproximar de Deus.

Não por vaidade de ser “semelhante a Deus”, porque ninguém chega a isso, mas movida pela consciência típica da santidade que é a dolorosa ascese na busca de superar as fraquezas humanas.

Entendo que o santo é aquele que sabe que quanto mais alguém se acha próximo de Deus, mais longe está, e quanto mais se sabe longe de Deus, mais perto está. Portanto, essa semelhança passa, necessariamente, pela humildade de se reconhecer dessemelhante a Deus. Por isso, o orgulho moral de si mesmo (erro de Jó) é um traço da não santidade.

Esse tipo de santidade é contínua, repetitiva no seu esforço, muitas vezes invisível ao olhar superficial humano. Cotidiana no seu cenário, não tem um roteiro grandiloquente.

O segundo tipo de santidade, segundo Von Balthasar, é muito mais raro. Podemos chamá-la, seguindo o teólogo, de vertical. Esta é fruto da escolha que Deus faz por uma pessoa, à revelia da sua vontade, o que faz dela, de certa forma, mais dramática no seu roteiro de realização.

O segundo tipo de santidade seria a dos gigantes da hagiografia geral do catolicismo. Hagiografia é uma disciplina, hoje rara, que narra a vida dos santos.

Segundo o teólogo, esse segundo tipo pode contar, inclusive, com a resistência por parte do eleito. Essa resistência pode ser resultado do sentimento de invasão da sua vida por Deus, uma sensação comum em muitos heróis bíblicos. Deus costuma invadir a vida daqueles que ele escolhe para realizar seus projetos.

Mas, como dizem, a graça nunca ofende a natureza. Nesse sentido, essa máxima quer dizer que com o tempo o eleito percebe sua missão (ou carisma) e, às vezes lentamente, vai entendendo a razão de Deus tê-lo escolhido, e sua vida subjetiva se acalma diante do inevitável. Mas, o transtorno, diríamos numa linguagem psicológica, não é menor. Passar a viver acompanhado por Deus, sem ter escolhido tal fato, já é parte do seu carisma de santidade.

Isto é o que Von Bathasar quer dizer pela vida invadida pelo sobrenatural que transforma a natureza em direção ao divino.

Nestes dias, precisamos de todos os santos possíveis. Para além dos dois tipos de santidade descritas pelo teólogo, precisamos mesmo de todas as pequenas santidades que estão a nossa volta.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Sobrevoo da praça, óculos escuros, Mussolini do Cerrado e 34 anos em um dia - REINALDO AZEVEDO

UOL - 01/06




Bolsonaro em Brasília, em 2020; Mussolini em Roma, em 1937, e Newton Cruz em Brasília em 1984. O autoritarismo gosta de cavalos, o que não é culpa do bicho. General e óculos escuros, em certas circunstâncias, fazem má história: como Pinochet (canto inferior direito). Que Azevedo e Silva, no helicóptero, pense na herança, como naquela música de Lupicínio RodriguesImagem: Marlene Bergamo/Folhapress; Reprodução; Carlos Namba/Editora Abril; Pedro Ladeira/Folhapress e Reprodução


Desde que Jair Bolsonaro deu início a seu esforço para viabilizar um autogolpe, viveu-se ontem o dia mais grave, mais sério, mais ameaçador. E não porque, pela undécima vez, alheio às mortes e ao desastre da pandemia, ele, de novo, caiu nos braços da galera. Mas porque, pelo segundo domingo consecutivo, resolveu sobrevoar de helicóptero os Três Poderes da República, desta feita num aparelho com camuflagem. E se falta gravidade ao que se leu até aqui, a coisa pode piorar bastante quando se vê, lá dentro, de óculos escuros, o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa. O general não acompanhou o presidente na expedição a povo. Nem precisava.

Será que Azevedo e Silva não conhece a praça vista de acima? Saudade do tempo da Brigada de Infantaria Paraquedista? O mundo olha para o Brasil como nunca dantes na história. Não, ao menos, desde a redemocratização. Com quase três mil militares da ativa no governo, a administração se tornou uma espécie de repartição das Forças Armadas. Dizer o quê? A combinação general com óculos escuros é coisa que a história costuma mandar para a lata de lixo. Ou para os compêndios de agressão aos direitos humanos. A mais famosa é aquela em que Augusto Pinochet aparece com cara de Augusto Pinochet.

O ministro não é ingênuo e sabe que nós não somos. Estava passando um recado: "As Forças Armadas estão com Bolsonaro", embora, na semana passada, quando Eduardo Bolsonaro anunciou a ruptura, tanto Augusto Heleno (GSI) como Hamilton Mourão (vice-presidente) tenham descartado o... golpe.

Parece que há gente tentando brincar com a quadratura do círculo, buscando encontrar um jeito de golpear de fato, sem golpear o direito; de instaurar um regime militar, sem que isso possa ser chamado pelo nome; de meter uma canga nas instituições, mas ainda chamando o regime de democracia; de tirar o Poder dos Poderes, sem, no entanto, dar à coisa a feição de uma quartelada.

Como isso não existe, das duas uma: ou se dá o golpe mesmo ou se põe fim a essa coreografia ridícula, que desmoraliza as Forças Armadas como entes do Estado brasileiro. Nem Ives Gandra Martins conseguirá colocar seu talento retórico a serviço de uma instância intermediária, com sua leitura do Artigo 142 da Constituição com a qual só golpistas concordam. Acontece que alguém precisa lembrar a doutor Ives que quem usa tanque não precisa de argumentos.

É claro que Azevedo e Silva está se juntando ao presidente para assustar o país, no que, obviamente, faz muito mal. Não, eu não creio que o golpe seja possível — a menos que a insanidade já tenha se espalhado pelo alto comando das Três Forças. Ocorre, reitero, que esse não é o único mal que pode acontecer ao país.

No chão, Bolsonaro resolveu pegar um cavalo da Polícia Militar e desfilar, chegando até a galopar um pouquinho. Não chegava a ter o porte de baixinho parrudo e marrento de Mussolini, mas a imagem, claro!, remetia ao ditador. A última vez em que uma autoridade desfilou a cavalo em Brasília para ameaçar pessoas foi em 1984. O presidente Figueiredo decretou estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em outros nove municípios do entorno por ocasião da votação da emenda Dante de Oliveira, a das Diretas-Já. Segundo a desculpa oficial, foi para evitar que o Congresso fosse pressionado...

Em 1984, o objetivo era evitar pressão sobre o Congresso. Em 2020, estimula-se que fascistoides intimidem o Parlamento e o Supremo. O espetáculo daquele Napoleão de hospício tem 36 anos. Quase quatro décadas depois, cá estamos nós a debater a "questão militar". É claro que isso quer dizer alguma coisa. E não é boa. Não por acaso, o mundo olha para o Brasil com espanto e, não vai demorar, com desprezo.

Figueiredo foi o último ditador do regime inaugurado em 1964. Do que, exatamente, alguns saudosistas andam a sentir falta?

Neste domingo, Mourão, o vice, escreveu um Twitter endereçado ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:
"Quanto à afirmação: 'os responsáveis pelos erros do Governo, queiram ou não, serão os militares'; convido o ex-presidente FHC a refletir sobre a História do Brasil e verificar se não são eles que, mais uma vez, servindo ao Estado, mantêm a estabilidade institucional do País".

Mourão parece ter a ambição de ensinar história a FHC, que fizera aquela afirmação em entrevista ao jornal espanhol El País. Junto com a postagem, ia uma foto da Praça dos Três Poderes.

O processo de intimidação está em curso. Falta agora que os militares definam onde estão os inimigos da estabilidade. Tudo indica que são mesmo as instituições. O mais recente esforço em favor da moralidade nacional, aviltada pela Constituição — não é mesmo, valentes? —, é abrir as porteiras para o fundão do Centrão. Só ele pode trazer aquele sentido de honra, sem o qual não se pode falar em pátria, certo?

Não entendi que parte da fala de FHC deixou Mourão irritado? Alguma dúvida de que os militares terão em sua biografia o governo Bolsonaro?

Na noite anterior, a Praça dos Três Poderes havia assistido a uma manifestação escancaradamente fascistoide, com apelos à Ku Klux Klan. No domingo, o ministro da Defesa a sobrevoava como a dizer: "Está tudo dominado".

Não está. Numa democracia, os militares são reverentes à Constituição; não é a Constituição que é reverente aos militares.

Ou erro em alguma coisa, generais?

Melhor vocês todos fariam, em benefício do ente ao qual pertencem, se resolvessem deixar o governo para quem tem a função de governar. E notem: poderia, ao menos, estar dando certo. Percebam, no entanto, o buraco que vocês estão ajudando a cavar. É claro que a história não lhe será leve.

Política baseada na raiva vai chegando ao seu limite - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 01/06


As manifestações antissanitárias deste domingo foram marcadas por uma novidade. Jair Bolsonaro e seus apoiadores extremistas ganharam no Rio de Janeiro e em São Paulo o contraponto das extremadas torcidas organizadas de futebol, que se dispõem a sair no braço contra a volta da ditadura.

Na Avenida Paulista, a Polícia Militar dispersou os antípodas com uma chuva de bombas de gás. O pedaço do Brasil que se esconde do vírus constata de longe a falta que faz a sensatez. Bolsonaro ainda não notou. Mas a política da raiva vai chegando ao seu limite.

O presidente tem diante de si duas decisões duras para tomar. Primeiro precisa resolver que preço está disposto a pagar para fugir das investigações que o enroscam. Depois, tem que decidir o que vai fazer com seus filhos.

No primeiro caso, Bolsonaro está numa situação delicada. Ainda não apareceu ninguém capaz de convencê-lo de que, ao regatear a crise, eleva o tamanho do prejuízo. No segundo, tem dificuldades para admitir que os filhos viraram fardos. Sabe que Flávio, Carlos e Eduardo encrencaram-se por agir em seu benefício.

Com uma ignição instantânea instalada na aorta, o mais provável é que Bolsonaro reaja às adversidades com mais raiva. Para se blindar de eventuais pedidos de impeachment ou denúncias criminais, pagará mais caro pela proteção do centrão.

Os filhos, alvejados no inquérito sobre a PF e no caso das fake news, serão usados como peças do enredo em que Bolsonaro faz o papel de vítima de perseguição.

Bolsonaro prioriza o destempero imaginando que, quando a poeira da pandemia baixar, o desemprego cairá no colo dos governadores. Aí estão, a um só tempo, seu erro e sua insensatez.

Com os mortos do coronavírus roçando a casa dos 30 mil e o desemprego vitimando 13 milhões de pessoas, essa ideia de que o presidente não pode fazer nada além de expressar sua raiva está corroendo aos poucos a paciência nacional. Formam-se longe das ruas movimentos e alianças de resistência.

Identidade digital, pergunte à Índia - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 01/06

Sistema de identidades digitais únicas resolveu o problema da invisibilidade no país


A crise da Covid-19 expôs o quanto o Brasil se desviou do trilho do desenvolvimento. Outros países do Brics vinham prosperando nos últimos anos, promovendo inclusão da população na base da pirâmide social. Uma boa pessoa para falar sobre isso é Nandan Nilekani, um dos articuladores do sistema de identidades digitais da Índia.

Nilekani tem 64 anos e, antes de se juntar ao governo como diretor do órgão de identidades digitais do país, foi um dos fundadores da Infosys, multinacional de tecnologia que fatura US$ 20 bilhões anuais.

Para entender o salto indiano, basta olhar alguns números simples que Nilekani traz em suas apresentações. Em 2008, apenas 17% dos adultos do país tinham conta em banco. Em 2011, a Índia alcançou a média global de bancarização. Em 2018, 80% da população adulta havia sido a, ultrapassando em muito a média global.

Pelos caminhos normais de desenvolvimento, essa trajetória de 2008 a 2018 teria levado 46 anos. O que fez a diferença no país foi o uso de tecnologia aliado a uma política pública clara e efetiva. O nome mais popular dessa mudança é o sistema conhecido como Aadhaar (palavra que em hindu significação “fundação”). Trata-se de um sistema de identidades digitais únicas, que resolveu o problema da invisibilidade no país.

Esse problema veio à tona de forma trágica no Brasil. Em tempos de Covid-19, “descobriu-se” que há cerca de 30 milhões de brasileiros fora dos cadastros governamentais. São os invisíveis-ingovernáveis, que inexistem para o Estado.

As filas nas agências da Caixa conjugadas com a insuficiência o aplicativo lançado pelo governo são a superfície desse problema, que no Brasil cobra seu preço em vidas.

Já a identidade digital indiana funcionou justamente como “fundação” para o processo de inclusão social e financeira. Sua principal característica é a simplicidade. O Aadhaar utiliza só quatro dados básicos: nome, data de nascimento, sexo e endereço (ou outro identificador, como telefone). A esses quatro dados a identidade agrega até três identificadores biométricos únicos (digital, íris e rosto). A conjugação desses elementos leva à geração de um número único de 12 algarismos.

Esse sistema torna-se, então, o passaporte único das relações entre cidadãos e governo, contrastando com o Brasil, que vive uma multiplicação de cadastros administrativos e documentos.

Há atualmente na Índia mais de 1,2 bilhão de usuários do Aadhaar. Para abrir uma conta bancária (ou receber benefícios sociais), todas as operações passaram a poder ser feitas pelo celular, dispensando a presença física. Foram abertas 647 milhões de contas bancárias, e US$ 32,4 bilhões em benefícios sociais já foram distribuídos através dele.

Outra característica do Aadhaar é que ele não comporta divisões sociais entre ricos e pobres. No Brasil, os ricos têm acesso a sistemas de identificação digital que permitem fazer algumas ações pela internet (como é o caso do vergonhoso Certificado Digital, coordenado pelo ITI). Já a população mais pobre ou não tem documentação alguma ou vive condenada ao martírio da burocracia de papel.

Resolver o caos do sistema de identificação no Brasil deveria ser tarefa essencial dentre as muitas medidas que o país precisa adotar para retornar ao trilho do desenvolvimento.

READER

Já era Encostar em tudo sem se preocupar
Já é Medo de tocar em lugares públicos em razão da Covid-19
Já vem Economia low touch (de baixo índice de contato físico)

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

"Antifas" apanham da PM; fascistoides bolsonaristas provocam e saem ilesos - REINALDO AZEVEDO

UOL- 01/06



Faixa em defesa da democracia. Essa era a pauta do protesto dos que se manifestavam contra Bolsonaro. Polícia precisa apurar com seriedade os episódios que resultaram em violênciaImagem: Marlene Bergamo/Folhapress


A irresponsabilidade golpista de Jair Bolsonaro, com a conivência do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, não permaneceria por muito tempo no status em que vinha: na prática, as ruas — o espaço público — haviam se transformado num monopólio da minoria de extremistas que apoia Jair Bolsonaro e que pede, abertamente, golpe de Estado, em manifestações escancaradamente ilegais, sem qualquer intervenção das Polícias e com reação discreta do Ministério Público Federal. Trata-se, não custa lembrar, de atos criminosos.

Em São Paulo, a primeira resposta vistosa veio na forma de uma manifestação de membros de torcidas organizadas: do Corinthians, Santos, Palmeiras e São Paulo. Que eu me lembre, é a primeira vez que torcedores arquirrivais dividem o espaço público em nome de uma causa comum, sem possibilidade de confronto entre si. E por um motivo decente. Muitos dos que protestavam designavam a si mesmos como "Antifas", síncope da palavra "antifascistas". Mundo afora, há uma articulação de movimentos que se intitula "Ação Antifascista". Nos EUA, comandam os atos contra o racismo e a violência policial.

Fizeram um protesto em defesa da democracia na Avenida Paulista. Era fatal que viesse a resposta às provocações da extrema direita golpista. E é preciso, numa das dimensões da realidade, lamentar que tenha ocorrido: estavam lá, a emular com os bolsonaristas, numa prática de risco para si, para seus familiares e para as pessoas com as quais convivem. A aglomeração, com a contaminação pelo coronavírus e o número de mortes por covid-19 ainda em ascensão, é obviamente imprópria.

Mesmo assim, os manifestantes decidiram enfrentar o perigo, o que deveria servir de alerta a qualquer governo sensato e ao aparato que hoje lhe dá sustentação: as Forças Armadas. Mas, tudo indica, há pessoas dispostas a ver brasileiros fazer correr o sangue de brasileiros. Os golpistas estão em busca de um pretexto. Há muita gente escrevendo a sua biografia nestes tempos, em especial os militares da ativa e da reserva que hoje compõem a gestão Bolsonaro.

Todos sabem o desdobramento. Houve confronto entre os "antifas" e a PM, o que, convenham, é precisamente o que querem os extremistas de direita, o próprio presidente e, infelizmente, a ala militar do governo. Depois de inúmeras manifestações escancaradamente fascistoides — uma delas, em Brasília, reproduziu a estética da Ku Klux Klan —, o primeiro ato com confronto físico com a Polícia, em São Paulo e no Rio, se dá entre as respectivas PMs e quem se opõe à escalada fascistoide do governo. Os criminosos em favor do poder de turno seguem impunes e intocáveis.

Provocações oriundas de um pequeno grupo de bolsonaristas que estava concentrado em frente à Fiesp acabaram resultando na reação violenta de policiais militares. Mas não contra os provocadores. Os manifestantes pró-democracia é que apanharam. Do confronto desnecessário ao vandalismo, passaram-se poucos minutos.

Isso requer, desde logo, que os que se opõem a Bolsonaro tomem um cuidado extremo. Na hipótese de continuarem a pôr em risco a própria saúde, precisam ir aos protestos armados: não de revólveres, não de pedras, não de qualquer outro instrumento ou artefato que causem ferimentos. Precisam se armar de câmeras até os dentes: as dos celulares e essas portáteis que se vendem em loja de bugigangas eletrônicas, que podem ser afixadas na jaqueta, penduradas no pescoço, atadas aos óculos. O Brasil e o mundo precisam reconhecer a verdadeira face da violência.

A manifestação dos membros das torcidas organizadas era pacífica. Conheço várias pessoas que lá estiveram. Um dos símbolos usados pelos bolsonaristas para provocar os opositores era a bandeira do partido neonazista ucraniano Pravyi Sektor. Ameaçavam romper a linha divisória, mas eram contidos. Até que uma mulher — usando máscara com a bandeira dos EUA e portando um taco de beisebol em que se lia a palavra "Rivotril" — o fez, ofendendo os adversários. Foi afastada do local pelos PMs e protegida por eles.

A provocadora e os policiais foram seguidos a distância, num trecho curto da avenida, por um pequeno grupo dos antibolsonaristas. A polícia reagiu — ou agiu — usando bombas de gás lacrimogêneo. E a porcaria estava feita. Aí se viram vandalismo e quebra-quebra. É claro que tais práticas são inaceitáveis e precisam ser reprimidas. Mas cumpre que o governador João Doria lembre à sua Polícia que se está apenas no começo de um ciclo.

O papel da PM também é proteger os manifestantes. Ainda que tenha havido um ato ou outro mais agressivos dos "antifas", será mesmo que isso justifica que se joguem bombas de gás a torto e a direito, em meio a uma multidão já exaltada? Sem contar que a equação "torcidas organizadas-polícia" já é, por si, tensa.

Eu gostaria muito que os vídeos desmentissem os testemunhos e que viessem a provar que a reação da PM não foi desproporcional e potencialmente danosa. Mas, sinceramente, acho difícil que isso venha a acontecer. Que fique claro: o quebra-quebra, inaceitável em qualquer caso, seguiu-se às bombas. Estas não vieram para conter o quebra-quebra. Até o primeiro estouro, o que se ouvia eram palavras de ordem em defesa da democracia e contra o presidente. Isso está coberto pelo direito à liberdade de expressão. Pedir golpe de Estado e fazer a apologia do neonazismo não.

E os golpistas? Apanharam? Não. Eles pedem o fechamento do Congresso e do STF de taco de beisebol na mão e portando uma bandeira nazista, mas tudo dentro da lei e da ordem, não é mesmo?

A fraqueza de Bolsonaro – EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 01/06

Com a MP 971/20, o presidente da República deu aumento a uma elite do funcionalismo


O presidente Jair Bolsonaro diz-se preocupado com a economia e com quem precisa trabalhar para “levar o leite dos seus filhos, o arroz e o feijão para sua casa”. Também tem dito que não será possível continuar socorrendo Estados e municípios, numa espécie de preocupação repentina com a saúde das finanças públicas. Tudo isso é o que o presidente diz. O que ele faz é completamente diferente. Em plena pandemia, com uma gravíssima retração da economia, do emprego e da renda das famílias, Jair Bolsonaro valeu-se de sua caneta presidencial para assinar medida provisória (MP) concedendo aumento a policiais civis e militares do Distrito Federal (DF). É um acinte, uma completa imoralidade com a população brasileira.Com um custo estimado de R$ 505 milhões ao ano,

a MP 971/20 deu aumento de 8% a 25% a policiais do DF. Antes do reajuste, os vencimentos dos agentes da Polícia Civil variavam entre R$ 8.698,78 e R$ 13.751,51. Com o aumento, passarão a ser de R$ 9.394,68 a R$ 14.851,63. Já os delegados ganhavam, antes do aumento, entre R$ 16.830,85 e R$ 22.805,00. Com a benesse presidencial, ganharão entre R$ 18.177,32 e R$ 24.629,40. O reajuste também abrange os órgãos de segurança pública dos ex-territórios federais de Rondônia, Roraima e Amapá, abrangendo todos os agentes da ativa ou da reserva que ingressaram na carreira quando esses Estados eram territórios.

Com a MP 971/20, o presidente Jair Bolsonaro deu aumento de salário a uma elite do funcionalismo público. O salário mínimo vigente de um trabalhador é de R$ 1.045. Vale lembrar também que, em razão das circunstâncias excepcionais causadas pela covid-19, foram aprovadas regras emergenciais permitindo a redução salarial e até mesmo a suspensão temporária do contrato de trabalho de empregados da iniciativa privada, como forma de viabilizar a manutenção dos empregos. Nem se fale da situação dos trabalhadores informais. Em muitos casos, a pandemia representou o desaparecimento da renda familiar, com muitos lares dependendo exclusivamente do auxílio de R$ 600 aprovado pelo Congresso. No entanto, nada disso parece preocupar o presidente Jair Bolsonaro. Usou seu poder de editar medida provisória para aumentar salários que, em alguns casos, ultrapassam a faixa dos R$ 20 mil.

A situação social e econômica do País é tão drástica que o Congresso aprovou, no dia 6 de maio, lei complementar (LC) proibindo reajuste do salário do funcionalismo por 18 meses. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro adiou propositadamente a sanção da Lei Complementar 173/20, dando margem para que categorias do funcionalismo público estadual obtivessem nesse período aumentos salariais. A desafiar toda a racionalidade, o presidente da República valeu-se de sua demora na sanção da LC 173/20 para dar aumento salarial aos policiais do DF.

Não bastasse o reajuste em plena pandemia, a MP 971/20 estabelece efeitos retroativos. “Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação com produção de efeitos financeiros a partir de 1.º de janeiro de 2020”, diz o art. 6.º. Enquanto a imensa maioria dos brasileiros vê sua renda definhar, policiais civis e militares do DF receberão, além do aumento salarial, o refrigério de algumas parcelas adicionais “atrasadas”.

“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”, diz o art. 62 da Constituição. No caso da MP 971/20, a relevância e a urgência situavam-se precisamente em sentido contrário ao disposto pelo presidente Jair Bolsonaro. É urgente e da máxima relevância que nenhum funcionário público tenha aumento de salário em plena pandemia.

Amiúde, o presidente Jair Bolsonaro queixa-se de um suposto tolhimento de seus poderes presidenciais. Na verdade, é o próprio Bolsonaro que se dispõe a ser fraco, valendo-se de seu poder de editar medida provisória para se tornar submisso a nefastas pressões corporativistas, justamente no momento em que deveria, por razões óbvias, negar esse pedido.

A resistência ao fascismo tabajara - LUIZ WERNECK



Soam por toda parte os sinais de perigo e os toques de reunir. Forças malévolas que nos sitiavam, espreitando nossos movimentos e confiantes na pandemia que nos obriga, em defesa da vida, a evitar as manifestações nos espaços públicos, um recurso importante do nosso repertório defensivo, calcularam ter chegado a hora do assalto às nossas posições. Não há por que tergiversar, o risco é real e seu nome é fascismo – tabajara, mas fascismo – que nos ronda desde os anos 1930, derrotado por duas vezes, em 1945 e 1985, mas nunca erradicado, entranhado como está em nossa história de modernização capitalista autoritária.

Fernando Gabeira, em iluminado artigo no Estado de São Paulo na edição de 29 do corrente mês, a rigor um manifesto, bendiz o dom de receber na derradeira fase da sua bela trajetória pessoal a missão de lutar pela democracia. Tal missão a todos, de todas as gerações, é confiada nesse momento difícil em que a sociedade se vê acuada pelo flagelo de uma epidemia letal. Hegel dizia que a escravidão somente era possível quando o bem da vida se punha acima do bem da liberdade. Nosso caso não é tão dramático, mesmo confinados contamos com espaços de liberdade e recursos para uma livre comunicação por meio da internet, conquista civilizatória ao alcance de todos.

Gabeira está consciente disso e dos limites que nos atam diante dos imensos recursos das forças que nos sitiam, mas os homens pensam e criam, e os desafios que nos confrontam exigem imaginação e inventividade. O caso da favela paulista Paraisópolis e de outras comunidades populares nos servem como paradigmas exemplares, a organização por conselhos, por sovietes, formas clássicas presentes em lutas populares, bem celebradas na obra de Hanna Arendt, ensinam caminhos a serem percorridos.

Em suas ações de defesa da vida, ameaçadas pela difusão da epidemia que a todos assola, as comunidades populares têm encontrado o apoio em círculos externos a elas, intelectuais solidários, pessoas e instituições de boa vontade, especialmente na Universidade e nos seus especialistas em saúde pública e técnicas de organização social. Surgem dessas inovações uma trama promissora, ainda em embrião, a combinar a agenda da defesa da vida com a da liberdade, pauta dos intelectuais ameaçados tanto pela pandemia como pela escalada autoritária em curso que tem como alvo o mundo da cultura e seus valores.

Tal descoberta para se impor na vida social depende da manifestação da vontade, muito particularmente da Universidade, que conta em seus quadros com especialistas capazes de levarem a termo a sua difusão mesmo nas circunstâncias adversas em que todos nos encontramos. A propósito, vale lembrar os protestos atuais contra a violência policial na sociedade americana –um caso extremo em que cidadãos se arriscam ao contágio pelo vírus diante da luta por liberdade –, exposta como a nossa à pandemia. Aqui, estamos começando a aprender a nos reunir e deliberar pela internet.

Decerto que a resistência nessa escala minimalista não tem o condão de opor uma linha forte de resistência ao avanço crescente do autoritarismo, embora em si mesma ela represente um reforço possível da sociedade civil e de suas ações. O reduto principal do sistema defensivo da nossa democracia está nas instituições que herdamos da Carta de 88, principal foco do assédio autoritário em suas tentativas cada vez mais intensas no sentido de neutralizá-las e, no limite, erradicá-las. O poder judiciário, um poder desarmado escorado apenas em sua autoridade moral, somente poderá resistir ao assédio de que é objeto se encontrar sustentação na opinião pública, nas instituições da sociedade civil e nos movimentos sociais que animam a vida popular. Sobretudo na disposição de reiterar aqui o esforço exemplar dos cidadãos americanos nos dias que correm de defesa intransigente dos seus direitos constitucionais.

Para uma defesa eficaz contra os perigos que nos rondam, não basta inventariar os recursos de força com que contamos, morais e organizativos, entre os quais os entes federativos refratários à escalada autoritária que se prepara para um golpe final em nossa democracia. A reunião do nosso sistema de defesa requer imperativamente a capacidade de sobrepor o interesse comum, qual seja o de evitarmos o abismo que se abriria diante de nós se permitirmos a ocupação do nosso país por forças estrangeiras à sua história e às suas tradições de perseguir os fins de uma obra civilizatória. Torna-se necessário também compreender a que aspiram as forças que nos antagonizam e a lógica que organiza sua movimentação.

O triunfo da coalizão de forças heterogêneas na sucessão presidencial contou como uma de suas palavras chave a ideologia do neoliberalismo, por meio da qual atraiu o apoio decidido das elites econômicas, especialmente das financeiras e agrárias, presença dominante no capitalismo brasileiro atual. Com essa marca de batismo, o novo governo nasce em antagonismo com a Constituição, de concepção, em seus traços principais, socialdemocrata. Remover a Carta, considerada como entrave aos seus fins econômicos, tornou-se assim um objetivo estratégico do governo Bolsonaro em seu projeto de capitalismo de estilo vitoriano, endossado por seu ministério, tendo à frente a anacrônica presença do ministro Paulo Guedes.

Em razão da arquitetura da Carta, que confiara a defesa dos direitos que criara a uma rede complexa de instituições, ao estilo da Constituição americana e com elementos importados do sistema alemão, a ser sustentada, em última instância, pelo Poder Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal, o regime Bolsonaro identificou de pronto o inimigo a ser confrontado. O teatro das operações ora em curso estava armado, e a palavra de ordem delenda Cartago com que os romanos preparavam sua guerra de extermínio contra a sua cidade rival pelo domínio do mar Mediterrâneo, encontra sua tradução nos desígnios do atual governo de defenestrar o Poder Judiciário do sistema político, entregue apenas à jurisdição dos conflitos privados.

A vontade do poder, encarnada no chefe da nação, não deve reconhecer obstáculos à sua manifestação, leitura privilegiada dos desígnios de Deus, da pátria e da família. Com pandemia e contra todos os riscos, o que há de melhor em nós, acima de todas as diferenças entre nós, não podemos aceitar isso.

Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio

O mal da ignorância - GUSTAVO LOYOLA

Valor Econômico - 01/06

Quaisquer medidas que enfraqueçam a capacidade do setor bancário de ofertar crédito prolongarão a crise econômica


A severa crise econômica e social desencadeada pela pandemia da covid-19 tem estimulado o surgimento no Congresso Nacional de propostas com medidas cujos resultados podem vir a ser muito mais desastrosos do que o próprio mal que se pretende combater. O setor bancário, em particular, tem sido especialmente visado por iniciativas legislativas que, se levadas adiante, terão efeitos extremamente nocivos na economia, tanto no curto prazo quanto no longo prazos.

Uma principais alavancas para a recuperação da economia brasileira no pós-covid terá que ser necessariamente a expansão do crédito para famílias e empresas. Desse modo, quaisquer medidas que enfraqueçam a capacidade do setor bancário de ofertar crédito terão como consequência inevitável o prolongamento da crise econômica, agravando o desemprego e a crise social.

Os bancos e por consequência o mercado de crédito têm sido vítimas costumeiras de um tripé formado pela ignorância, pelo preconceito e pelo oportunismo. No Brasil, a história demonstra que a prevalência desse tripé - notadamente em situações de crise econômica - trouxe à luz políticas públicas de péssima qualidade que apenas contribuíram para comprometer o desempenho da economia.

No capítulo da ignorância - que frequentemente é deliberada - o equívoco predominante é desconsiderar não apenas as características complexas dos mercados de crédito, mas até mesmo princípios comezinhos que não escapariam à atenção de um primeiranista de Economia. Por exemplo, é absolutamente errada a ideia de que o tabelamento dos juros de um produto de crédito, como pretendido por um projeto ora em exame no Senado Federal, possa trazer algum benefício para empresas e indivíduos necessitados de recursos.

Uma característica fundamental dos mercados de crédito é justamente o risco do credor não receber de volta os recursos emprestados. Esse risco tem que ser corretamente avaliado sob pena de a própria atividade de concessão de crédito se inviabilizar ao longo do tempo. Outro aspecto frequentemente ignorado é que o dinheiro emprestado pelos bancos não lhes pertence, mas sim aos seus depositantes. Desse modo, as instituições bancárias não podem, nem devem, sair emprestando recursos sem se preocuparem com a capacidade de pagamento dos devedores.

Os bancos são empresas altamente reguladas justamente por lidarem com recursos de terceiros e pelo risco de que sua má gestão possa trazer crises sistêmicas que paralisariam a economia e trariam elevados prejuízos para seus depositantes. Nesse sentido, os dirigentes e os acionistas controladores dos bancos estão sujeitos a ter seu patrimônio sequestrado para cobrir prejuízos que eventualmente causem aos credores dessas instituições.

O preconceito em relação aos bancos é outra fonte de ideias amalucadas em relação ao mercado de crédito. A noção de que o dinheiro é coisa do diabo está muita arraigada na cultura judaico-cristã, amplificada aqui no Brasil pelo nosso desprezo pelo lucro e pelo sucesso do outro. O preconceito em relação aos bancos (às vezes ligado a puro oportunismo) é tão enraizado que frequentemente traz à luz situações que beiram o ridículo. Como, por exemplo, a postura de alguns empresários que, no afã de se queixar publicamente dos bancos, se esquecem de que suas poupanças e as de suas empresas estão sob guarda das mesmas instituições contra as quais açulam os políticos a adotarem medidas danosas à higidez do sistema bancário.

Tendo presidido o Banco Central numa época em que o Brasil estava passando por uma séria crise bancária (1995-1997), vivenciei na pele a força desse preconceito. Muito embora o Proer tenha sido um programa muito bem-sucedido em seus propósitos de fortalecer o sistema bancário e evitar prejuízos para os depositantes, tivemos muito pouco apoio da sociedade ao programa; ao contrário, o Proer foi vilipendiado como “ajuda aos banqueiros” e os dirigentes do BC tornaram-se vítimas de diversos processos judiciais oportunistas e de caráter político.

Quanto ao oportunismo, é o que mais se vê na crise atual. Infelizmente muitos querem dela tirar algum proveito, seja político, seja econômico. O próprio ministro do Meio Ambiente patrocinou em reunião ministerial a ideia de “passar a boiada” aproveitando-se da crise. No caso dos bancos, atirar-lhes pedras sempre pode render algum dividendo eleitoral, além de serem convenientes bodes expiatórios. Deve ser lembrado à exaustão que os bancos não são responsáveis pela crise atual e, ao contrário, serão peças fundamentais para sua mitigação e superação.

No romance “A Peste”, de Albert Camus, há uma frase que pode ser muito adequada aos tempos atuais de pandemia e ignorância: “O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade”.


O homem que fala demais - CARLOS PEREIRA

O Estado de S.Paulo - 01/06

Bolsonaro arrisca os limites institucionais, pois precisa blefar para alimentar seu núcleo duro



A atual composição do Supremo Tribunal Federal é fruto de indicações de seis diferentes presidentes. Este processo gerou uma Corte composta de preferências políticas e ideológicas muito distintas. Apesar dessas diferenças, percebe-se que as últimas decisões da Suprema Corte têm mostrado uma unidade incomum entre seus onze membros, especialmente em se tratando de um plenário tão diverso. Será que as heterogeneidades ideológicas e políticas entre seus membros foram diluídas?

As decisões unânimes da Suprema Corte podem estar diretamente relacionadas com os discursos e ações belicosas do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis, que têm confrontado de forma polarizada e plebiscitária as instituições democráticas, em especial o próprio Supremo, mas também o Congresso Nacional.

Precisou que o Supremo “pagasse para ver” ao demonstrar seu compromisso firme com a democracia, por meio de decisões consistentemente unânimes e contrárias às preferências do presidente, para que, mesmo timidamente, os céticos e temerosos com a solidez das instituições democráticas brasileiras percebessem que as ameaças autoritárias do presidente Bolsonaro não passam de um blefe.

Se as chances de sucesso da estratégia de confronto com as instituições democráticas são praticamente nulas, por que de Bolsonaro não apenas insiste em utilizá-la, mas também o faz de forma cada vez mais virulenta e ameaçadora?

Bolsonaro blefa porque essa é a uma das poucas armas, talvez a única, que populistas plebiscitários, como ele, dispõem para continuar alimentando seus vínculos políticos e identitários com seu núcleo duro de eleitores. Bolsonaro, na realidade, encontra-se encurralado e, consequentemente, necessita não apenas de conexões identitárias polarizadas, mas da sua utilização com intensidade e frequência cada vez mais alta.

Quando Bolsonaro decidiu governar de forma minoritária, rejeitando a necessidade de construir coalizões legislativas estáveis, ficou cada vez mais dependente destas conexões diretas com seus eleitores para sobreviver, especialmente a partir de apelos de perfil fortemente identitário que funcionam como atalhos cognitivos de proteção para os membros do grupo.

A má gerência da pandemia do novo coronavírus e os riscos decorrentes das investigações em curso pela Polícia Federal e dos inquéritos no Supremo obrigaram Bolsonaro a fazer importantes inflexões no seu governo contrárias aos compromissos assumidos com seus eleitores. A montagem de uma coalizão de sobrevivência com os partidos do Centrão e a intervenção na Polícia Federal, que culminou com a saída de Sérgio Moro, são exemplos que corromperam alguns dos pilares centrais que nutriam as conexões identitárias com seus eleitores.

Sob risco de ver erodir ainda mais as suas conexões identitárias e observar seus eleitores mais fiéis também se desgarrarem, Bolsonaro não pode se dar ao luxo de simplesmente parar de falar. Precisa do confronto polarizado para continuar a existir politicamente.

O presidente, portanto, enfrenta um dilema de difícil solução. Tem que manter seu núcleo duro firme e coeso por meio de apelos identitários cada vez mais inflamados e com alguma coerência, mas, ao mesmo tempo, não pode cruzar os limites institucionais que venham a colocar em risco o seu próprio mandato. Ou seja, precisa dar a impressão que vai para os extremos, mesmo que ele saiba que não pode fazer isso, pois o desfecho final será certamente desfavorável a ele mesmo.

Bolsonaro busca o impasse com o STF - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 01/06

Presidente busca desqualificar Supremo porque sabe que tribunal pode ser a origem de sua derrocada


Agrava-se a pandemia do coronavírus e Jair Bolsonaro não está preocupado. Agrava-se a crise política e o presidente da República não se comporta como quem deseja o seu distensionamento.

Ele não se constrange em andar a cavalo na Esplanada e passear de helicóptero às custas do dinheiro público para forjar cenas de apoio popular.

Os lampejos de diálogo que sinaliza num dia esvaem-se em seguida quando prestigia um protesto antidemocrático. Mais uma vez, Bolsonaro foi o protagonista de um ato anti-STF na Praça dos Três Poderes.

A única preocupação do presidente hoje é estimular o impasse com o Supremo porque sabe que o tribunal pode ser a origem de sua derrocada.

Parece sem lógica, mas nada é melhor, na tática bolsonarista, do que desqualificar a corte no meio do jogo.

Um inquérito avança sobre a interferência do presidente, evidenciada pelos elementos notórios, em peças de comando da Polícia Federal.

Outro fecha o cerco no "gabinete do ódio" instalado no Planalto, sob a tutela de Carlos Bolsonaro, o 02. O TSE surge no xadrez como possibilidade de cassação da chapa eleitoral.

O compartilhamento do inquérito das fake news com a corte eleitoral pode municiar ações sobre o financiamento da vitória de Bolsonaro.

Um processo de impeachment ficaria pendurado na temperatura do Congresso. Para se proteger, Bolsonaro abriu o balcão de negócios com os políticos fisiológicos do centrão.

Sem compromisso com o país, esse grupo de partidos abraçou e traiu Dilma Rousseff. Bolsonaro não tem muita alternativa porque o Judiciário não dará trégua a ele.

Cresce um movimento de procuradores incomodados com o alinhamento de Augusto Aras ao Planalto.

O chefe da PGR vai ser pressionado internamente a não engavetar o volume de complicações do governo.

A sociedade se mobiliza com abaixo-assinados e outras manifestações.

Também contra o governo vê-se até o milagre (provavelmente bem efêmero) de torcidas organizadas de futebol rivais lado a lado.

O presidente, o vírus e o balanço - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/06

Insegurança gerada pelo presidente assusta investidores e prejudica o País


A crise permanente criada pelo presidente Jair Bolsonaro é a maior ameaça à segurança externa da economia brasileira. Contas externas sustentáveis dependem, no caso do Brasil, das exportações do agronegócio e da confiança do investidor estrangeiro. As vendas de alimentos e matérias-primas de origem agropecuária continuam robustas, apesar das agressões verbais a alguns dos compradores mais importantes, incluída a China. Além disso, a crise ocasionada pela pandemia tem contribuído para a redução dos gastos externos. As despesas líquidas com viagens, por exemplo, foram em abril 91,2% menores que as de um ano antes e ficaram em US$ 90 milhões. Isso contribuiu de forma importante para o déficit na conta de serviços bater em US$ 1,2 bilhão, com recuo de 63,4% em relação ao valor de abril de 2019, segundo o Banco Central.

Principal pilar das transações correntes, o comércio de bens foi novamente superavitário em abril, com saldo de US$ 6,44 bilhões, garantido como sempre pelo agronegócio. As exportações totais, de US$ 18,36 bilhões, foram 4,89% inferiores às de abril de 2019. Mas a retração do mercado, com milhões de famílias em casa e negócios muito reduzidos, derrubou as importações para um valor 15,90% menor que o de um ano antes.

Somados o comércio superavitário de bens e as contas deficitárias de serviços e de rendas, chega-se a um superávit de US$ 3,84 bilhões nas transações correntes. Em março o resultado já havia sido positivo. No ano, porém, o saldo até abril foi um déficit de US$ 11,88 bilhões, 29,94% inferior ao de janeiro-abril de 2019, principalmente por causa da redução de gastos forçada pelo coronavírus. Em 12 meses, o buraco das transações correntes ficou em US$ 44,37 bilhões. No período até março ainda estava em US$ 50,12 bilhões. O rombo acumulado em 12 meses foi financiado, ainda com sobra, por US$ 73,21 bilhões de investimento direto líquido, equivalente a 4,31% do Produto Interno Bruto (PIB) estimado para o período.

Esse investimento, a menos volátil e mais produtiva forma de aplicação de capital estrangeiro, tem declinado desde o trimestre final de 2019. O total acumulado neste ano, até abril, chegou a US$ 18,04 bilhões e ficou 22,28% abaixo do contabilizado nos primeiros quatro meses de 2019. A redução é em parte atribuível à crise internacional. A economia global continua fortemente retraída, mesmo com a retomada inicial das atividades na China.

Em tempo de pouca atividade e muita incerteza, é normal o desvio de capitais para aplicações consideradas seguras, embora pouco rentáveis, como os títulos do Tesouro americano ou mesmo papéis com rendimento negativo, como têm sido os alemães. Quando isso ocorre, as economias emergentes são as maiores perdedoras de recursos. Mas o caso do Brasil tem sido especial.

O País tem sido um dos mais afetados pela mudança nos fluxos de capitais – de investimento direto e principalmente de aplicações tipicamente especulativas. Em abril saíram US$ 7,3 bilhões de investimentos em carteiras de papéis – US$ 4,9 bilhões de títulos de dívidas e US$ 2,4 bilhões de ações e fundos de investimento. A insegurança é bem conhecida. Depois de cerca de 40 reuniões com investidores institucionais da Europa e dos Estados Unidos, nas duas últimas semanas, o economista David Beker, do Bank of America, falou ao Estadão/Broadcast sobre as preocupações dos estrangeiros. Segundo ele, há uma percepção de três crises simultâneas: de saúde, política e fiscal – esta última ligada à incerteza quanto à evolução da política econômica no Brasil. O quadro, acrescentou, era ruim antes da pandemia, por causa do baixo crescimento, e agora piorou. Ele poderia, sem erro, ter assinalado um ponto fundamental: as três crises convergem para a figura do presidente, obcecado por suas preocupações pessoais. Para isso tem chamado a atenção a imprensa internacional. Essa imprensa, segundo o presidente, é formada por esquerdistas. Curiosamente, por meio dela se informam os investidores do mundo rico. Serão esquerdistas disfarçados de bilionários?

Arapuca - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 01/06

Militares pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito


A fogueira acendeu-se no 19 de abril, Dia do Exército, quando Jair Bolsonaro e seus devotos manifestaram-se diante do QG do Exército, em meio a faixas pela restauração do AI-5, contra o Congresso e o STF. Suas labaredas espalharam-se um mês depois, no rastro da demissão de Sergio Moro.

Sexta, 22 de maio, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, divulgou uma “nota à Nação brasileira” classificando como “interferência indevida de outro Poder” o ato burocrático do ministro Celso de Mello de encaminhar para análise um pedido de apreensão do celular do presidente. Nos dias seguintes, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoiou o gesto de Heleno, e 89 oficiais da reserva, quase todos coronéis, ameaçaram o STF com o espectro de uma “guerra civil”. A artilharia verbal seguiu, com o agradecimento “emocionado” de Heleno à carta dos coronéis e uma “carta aberta” do Clube Naval repudiando a “arbitrária decisão” de Celso de Mello de divulgar a gravação da reunião ministerial tarja-preta de 22 de abril.

Os militares caíram na arapuca no 5 de agosto de 2018, data em que o então candidato Bolsonaro anunciou o nome do seu companheiro de chapa. Hamilton Mourão, o vice, uma das figuras icônicas da geração de oficiais formados durante a “lenta, gradual e segura” abertura política de Geisel, selou a aliança entre as Forças Armadas e o ex-capitão turbulento, rejeitado pelo Exército por indisciplina. O pacto rompeu a fronteira que, desde 1985, separava os quartéis da política. O vírus da anarquia militar, moléstia crônica do Brasil República, voltou a circular na caserna.

Desde o início, o plano de batalha estava crivado de equívocos fatais. Os militares avisaram, ingenuamente, que os altos oficiais engajados no governo operavam individualmente, não em nome das Forças Armadas. Acreditaram na ilusão de que, por meio de um cordão sanitário de ministros-generais, neutralizariam os excessos de Bolsonaro para produzir um governo pragmático, assentado nos pilares da Economia (Guedes) e da Justiça (Moro). Não entenderam a natureza do movimento bolsonaro-olavista, que se orienta por uma estratégia de ruptura institucional. Pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito.

O movimento bolsonaro-olavista acalenta o sonho delirante de uma “marcha sobre Brasília”. Para isso, multiplica suas ações em rede destinadas a cooptar oficiais militares e sargentos, cabos ou soldados das PMs. A tática atenta contra a disciplina nos quartéis, desgastando os fios da hierarquia castrense. Os manifestos de Heleno, dos coronéis e do Clube Naval conferem nova dimensão à agitação subversiva da ultradireita.

O bombardeio das redes bolsonaro-olavistas não poupou o círculo de generais do Planalto. A queda de Santos Cruz, em junho de 2019, evidenciou que, na ordem de prioridades de Bolsonaro, o núcleo ideológico sempre está acima dos conselheiros militares. Aquele evento assinalou a derrocada da linha de resistência interna. A mira dos canhões voltou-se, então, para o Congresso e o STF.

Há anos, num ritmo ditado pela crise do sistema político, o STF extrapola seus limites constitucionais, operando como Poder Moderador. Nessa moldura, a fábrica de ofensas do bolsonaro-olavismo provocou uma reação em cadeia, iniciada pelo inquérito das fake news e acirrada após as denúncias de Moro. O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para a PF, a ordem de divulgação da reunião ministerial e a operação policial de devassa das redes de propagação do ódio explodiram as pontes remanescentes. Hoje, um presidente sitiado pelas instituições civis busca proteção na casamata dos militares.

“Saia de 1964 e tente contribuir com 2020”, pediu Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ao ministro Heleno. Mesmo o destinatário da mensagem, um dos poucos generais do Planalto que dá ouvidos aos desvarios do núcleo ideológico, não chega ao ponto de desejar a ruptura institucional. Mas, junto com seus camaradas mais sensatos, ele conduziu suas forças à guerra errada, entregando-as ao comando clandestino de um capitão sem farda nem bússola.

Acabou, acabamos - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 01/06

Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, Forças Armadas mostram que topam tudo por seu capitão


Acabou, porra! Esta frase de Bolsonaro, dita na porta do Palácio da Alvorada, me lembrou uma outra frase de um personagem de “Esperando Godot, peça de Samuel Beckett: “Acabou, acabamos.”

Esta lembrança surgiu porque há alguns dias fizemos uma live, eu e o querido embaixador Marcos Azambuja, cujo título era: “Esperando Godot, a tempestade perfeita.” Nesse encontro, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, defendi a tese de que a tempestade perfeita no Brasil era produzida pela associação da pandemia com a presença de Bolsonaro no poder. Há outras combinações no mundo: nos EUA, por exemplo, coronavírus e racismo.

Bolsonaro disse esta frase porque não quer respeitar as decisões do STF, onde, no momento, tem duas preocupações: um inquérito sobre sua interferência na Polícia Federal e outro sobre a máquina de fake news montada por gente muito próxima a ele.

Filho de Bolsonaro, Eduardo entra no nosso ônibus e diz: eu poderia estar fritando hambúrguer nos Estados Unidos, mas vim avisar que haverá uma ruptura, não é questão de se, mas de quando acontecerá.

Juristas ultraconservadores acham o artigo 142 como saída. Se Bolsonaro não aceita as decisões do Supremo, as Forças Armadas têm de funcionar como Força Moderadora, obrigando o Supremo a aceitar tudo o que faz Bolsonaro.

As Forças Armadas já mostraram até onde podem ir. Em primeiro lugar, ocuparam o governo. Isso era previsível, pois o espírito salvacionista que vem desde a Proclamação da República não morreu: só os militares conseguem dirigir este país caótico, pensam.

O mais grave é que as Forças Armadas, através de um general da ativa, ocuparam o Ministério da Saúde, encamparam a errática política de Bolsonaro e querem nos entupir de cloroquina. Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, mostram que topam tudo por seu capitão.

Como assim, nossas Forças Armadas? Outras forças também poderosas foram seduzidas por um simples cabo. A hora não é tanto de reflexões sociológicas, mas de organizar a resistência.

Simplesmente não há tempo a perder. O tempo que perdemos esperando o coronavírus chegar representou muitas mortes.

É hora de avisar a todos os brasileiros no exterior para que reúnam e discutam a necessidade de falar com partidos, organizações, imprensa, organizar núcleos de apoio na sociedade europeia e americana, entre outras.

As Forças Armadas não só encamparam a política da morte de Bolsonaro. Elas tiraram de centro da cena o Ibama e outros organismos que fazem cumprir nossa legislação ambiental, conquistada ao longo de anos de democracia.

O governo brasileiro vai se tornar uma grande ameaça ambiental e biológica simultaneamente. Lutar contra ele em todos os cantos do planeta é uma luta pela vida, pela própria sobrevivência. Esse será nosso argumento.

Internamente, será preciso uma frente pela democracia. Já temos uma frente informal pela vida, expressa no trabalho de milhares de médicos e profissionais de saúde, nos grupos de solidariedade que se formaram ao longo do Brasil.

O que a frente pela democracia tem a aprender com eles? Em primeiro lugar, ninguém perde tempo culpando o outro pela chegada do coronavírus. Em segundo lugar, a gravidade da morte onipresente não dá espaço para confronto de egos.

Uma frente pela democracia não é uma luta pelo poder, mas sim pelas regras do jogo. Quem estiver interessado no poder que espere as eleições. Foi assim no movimento pelas Diretas.

Hoje uma frente pela democracia transcende as possibilidades do movimento pelas Diretas. As redes sociais colocam na arena milhares de novos atores, alguns deles capazes de falar com mais gente do que todos os partidos juntos. O espaço para criatividade se ampliou. O papel de cada indivíduo é muito mais importante do que foi no passado.

Não tenho condições num artigo de falar de todas essas possibilidades. Mesmo porque eles não se limitam à cabeça de uma pessoa. A única coisa que posso dizer produtivamente agora é isto: não percam tempo. É urgente falar com amigos, estabelecer contatos, discutir como atuar adiante, como resistir ao golpe de Estado. Posso estar enganado, mas jamais me perdoaria, com a experiência que tenho, se deixasse de alertar a tempo e também não me preparasse para esta que talvez seja a última grande luta da minha vida.

Não vai ter golpe, vai ter jogo - VINICIUS MOTA

FOLHA DE SP - 01/06

Adversários precisam fazer mais política se quiserem barrar projeto autoritário


Não vai ter golpe, mas vai ter jogo. E o time dos brucutus, que decerto preferiria o golpe, começou a jogar faz um tempinho com a enorme vantagem de estar sentado na estrepitosa máquina do Executivo federal. Eis o que parece hoje o teatro de operações da política nacional.

Nesse tabuleiro, ameaçar com as baionetas, mesmo quando elas não passam de peças decorativas que aludem a um passado obtuso, traz benefícios menores para o grupo no poder. Hipnotiza, com aroma artificial de pólvora, a turma da testosterona e talvez intimide algum adversário.

Mas a retórica do arreganho produz seu maior efeito, para o situacionismo, quando leva muitas forças que poderiam estar trabalhando na concretude da política para isolar e enfraquecer o bolsonarismo a preocupar-se mais com a preservação do enquadramento do regime e menos com o que ocorre em seu miolo.

Talvez não haja escapatória para os democratas. No nosso presidencialismo, o chefe eleito do Executivo, mesmo fraco como Jair Bolsonaro, detém o monopólio do megafone nacional, e isso desde sempre.

Se ele aponta para os quartéis, é inescapável preocupar-se com isso. Saibam todos, no entanto, que o governo Bolsonaro mudou quando, há alguns meses, viu que se aproximava a degola do impeachment. Ele agora opera em modo dual. Enquanto grita “fogo!”, compra apoio parlamentar na moeda de sempre. E essa moeda funciona no nosso sistema.

Se sobreviver até novembro, nomeará seu primeiro ministro para o Supremo Tribunal Federal, o mais duro e coeso obstáculo ao desvario bolsonarista até aqui. Em fevereiro, vai entrar com tudo na disputa das presidências da Câmara e do Senado.

Caso o fôlego dure até julho do ano que vem, mais um magistrado no STF. E quem sabe chegar a 2022 em condições de disputar a reeleição.

Esse é o projeto bolsonarista, em que está diluído o risco da deterioração do regime. Para barrá-lo, os adversários precisam fazer política. Manifestos não bastam. É arregaçar a manga, cooptar o centrão e mirar 342 votos.

A neutralidade da rede em perigo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 01/06

O melhor a fazer neste momento é combater as fake news por meio da identificação dos responsáveis por sua propagação


O tema das fake news está na ordem do dia no Brasil e nos Estados Unidos não é de hoje. Ganhou especial relevância nos últimos meses porque ambos os países realizarão eleições neste ano. Mas não preocupa só por isso. Primeiro, em meio a uma emergência sanitária como a pandemia de covid-19 notícias falsas podem matar. Segundo, tanto o presidente Jair Bolsonaro como o presidente Donald Trump adotaram as fake news, as distorções da verdade factual e os ataques à imprensa profissional como estratégias de governo, não apenas táticas para vencer eleições.

Aqui no Brasil, recente operação da Polícia Federal (PF), autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), começou a descortinar uma organização criminosa que estaria a serviço do governo de Jair Bolsonaro para produzir e publicar mentiras, distorções, ofensas e ameaças contra pessoas e instituições republicanas por meio das redes sociais e aplicativos de comunicação como o WhatsApp. Nos Estados Unidos, vê-se um acalorado debate sobre a responsabilidade das chamadas Big Techs – Google, Twitter e Facebook, principalmente – de realizar a aferição da veracidade de tudo o que é publicado em suas plataformas. Há poucos dias, duas publicações do presidente Donald Trump no Twitter foram classificadas como duvidosas pela empresa. Quem as lia era convidado a visitar fontes confiáveis de informação que refutavam aquilo que o presidente americano havia escrito. Como reação, Trump assinou uma ordem executiva para acabar com o que chamou de “viés político” daquelas empresas, autorizando as agências federais a controlar o que é publicado nas redes sociais e a responsabilizar as empresas, o que é temerário. “Estamos aqui hoje para defender a liberdade de expressão de um de seus maiores perigos”, disse Trump ao assinar o decreto. A pretexto de defender a liberdade de expressão e acabar com o “viés político” nas redes sociais, o presidente americano pretende, na verdade, o exato oposto: controlar politicamente o conteúdo digital e, assim, cercear a liberdade.

Subjacente à discussão acerca da liberdade de expressão, que não por acaso também foi indevidamente invocada pelos bolsonaristas apanhados pela operação da PF, há uma questão que deve preocupar todos tanto quanto preocupa o resguardo da garantia constitucional: a neutralidade da rede. É isto o que, no fundo, está em jogo no debate corrente.

A neutralidade da rede é garantida no Brasil pela Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet, diploma legal elogiado internacionalmente –, que em seu inciso IV do artigo 3.º estabelece que a “preservação e garantia da neutralidade da rede” é um dos princípios que disciplinam a internet no País. Grosso modo, a garantia da neutralidade da rede equivale, no ambiente digital, às garantias individuais resguardadas pela Constituição, razão pela qual deve ser mantida intocada.

Dois projetos que tramitam no Congresso, em que pesem as boas intenções que os inspiraram, têm potencial para comprometer a neutralidade da rede. De autoria dos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tábata Amaral (PDT-SP), na Câmara dos Deputados, e do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), no Senado, esses projetos visam à responsabilização das empresas de tecnologia pelo conteúdo que os usuários publicam nas redes sociais. É inegável que a disseminação de notícias falsas, injúrias e aleivosias é um mal para a vida pessoal dos indivíduos por elas afetados e um mal ainda maior para o viço democrático do País. No entanto, o melhor a fazer neste momento é combater as fake news por meio da identificação dos responsáveis por sua propagação, bem como daqueles que os financiam, levando-os a responder por seus crimes na Justiça. Exatamente como estão fazendo o STF e a Polícia Federal.

A eventual leniência das empresas de tecnologia para conter a disseminação de fake news e ofensas pode e deve ser amplamente discutida. O que é perigoso – e contraproducente – é simplificar uma questão que é complexa, simplesmente levando-as à Justiça. O resultado não será outro: empresas mais cautelosas e, portanto, menos propensas a deixar livre o debate que ocorre nas redes sociais que administram.

Os sinais da desconfiança do capital externo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 01/06

Em abril, a soma de investimentos diretos foi de US$ 234 milhões, o menor valor para o mês em 25 anos


Sem rumo, o governo virou uma usina de instabilidades. Desperdiça um precioso tempo com o negacionismo da Ciência, em plena pandemia, e em discussões políticas estéreis, que só atrapalham a tomada de decisões vitais à recuperação da economia no segundo semestre.

É provável que não tenha percebido, mas o país já começou a pagar um preço político elevado por sua insistência em não discutir soluções e só multiplicar problemas.

Os investidores externos começaram a retirar o Brasil dos seus radares. Em abril, informa o Banco Central, a soma de investimentos diretos foi de US$ 234 milhões. Nesse mesmo mês, no ano passado, o fluxo havia sido de US$ 5,1 bilhões. É o menor valor de capital estrangeiro para o mês de abril em um quarto de século — desde 1995, quando ficou em US$ 168 milhões.

No primeiro quadrimestre, o fluxo chegou a US$ 18 bilhões, pouco menos que os US$ 23,3 bilhões registrados entre janeiro e abril do ano passado. Tomando-se o período de 12 meses encerrados em março, o estoque de investimentos externos ficou em US$ 73,2 bilhões, o equivalente a 4,31% do Produto Interno Bruto.

A pandemia, talvez, possa justificar o resultado de abril na quase totalidade. A despeito da postura negacionista do governo — a “gripezinha”, como definiu o presidente —, agravou as condições recessivas da economia brasileira e sinaliza um drama, se não houver rapidez, abrangência e eficácia no socorro federal às pessoas, a empresas, estados e municípios.

No quadro de abril percebe-se, também, um forte componente político: a desconfiança dos investidores em relação às chances de um governo estável, capaz e confiável na gerência da crise que se desenha no horizonte.

Diferente das aplicações em Bolsa, o investimento estrangeiro direto representa aporte de pessoas físicas ou jurídicas em empresas estabelecidas no país. É complementar à poupança nacional. Resulta de planejamento prévio, análise de perspectivas de mercado e de decisão tomada com base na avaliação de fatores de risco político, de segurança jurídica e de rigor na política ambiental. Nesses quesitos, hoje o Brasil só tem a oferecer incertezas.

O governo Jair Bolsonaro se transformou numa usina de crises, em permanente conflito com o Legislativo e o Judiciário. Seu melhor retrato está no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, onde se vê o presidente em autoconfissão: “O nosso barco tá indo, mas não sabemos ainda (...) pra onde tá indo nosso barco, pode tá indo em direção a um iceberg.”

Se quiser, Bolsonaro ainda tem tempo para recuar e reconquistar a confiança, dentro e fora do país. Mas vai precisar mudar rápido, com eficiência na ação e sob as premissas do respeito às instituições e da plena submissão à ordem constitucional.