O protetor dos amigos pecadores acha que o Brasil é um país de tolos
Em junho de 2003, ao sair de uma audiência com o presidente da República, a professora de Filosofia Marilena Chauí parecia um personagem de Nelson Rodrigues: apresentou-se aos jornalistas varada de luz como um santo de vitral. Numa frase, resumiu a experiência que acabara de viver: “Quando Lula fala, o mundo se ilumina”. Na igrejinha que a companheira Marilena frequenta, pode ser. O brilho do olhar fanático é capaz de clarear um buraco negro na galáxia vizinha. No mundo dos normais, são outros os assombros que se sucedem quando Lula fala.
Os plurais saem em desabalada carreira, a gramática se refugia na embaixada portuguesa, a regência verbal se esconde no sótão da casa abandonada, o raciocínio lógico providencia um copo de estricnina sem gelo, a razão pede a proteção da ONU para livrar-se de outra sessão de tortura. Esses espantos foram reprisados nesta segunda-feira, quando Lula resolveu dissertar sobre a saia justa em que se enfiou Dilma Rousseff depois das revelações de Lina Vieira, ex-secretária da Receita Federal.
O padrinho da mãe do PAC decidiu que é perda de tempo o depoimento de Lina à Comissão de Constituição e Justiça do Senado, marcado para amanhã. ”Seria tão mais simples e tão mais fácil que a secretária mandasse a agenda que ela encontrou com a Dilma”, caprichou no tom desdenhoso. ”Não faria nem gastar dinheiro, pagar passagem ou ir para o Congresso. É só pegar as duas agendas e ver o que aconteceu”, lembrou com o sorriso esperto do detetive que vai culpar o inocente.
O presidente acha que o Brasil é mesmo um país de tolos. Até os recém-nascidos sabem que Dilma não deixa rastros na agenda. Jamais anota conversas de alta voltagem. Sempre apaga pegadas que ficaram da caminhada à beira do penhasco. Ela demorou 20 dias para confessar que teve dois encontros fora da agenda com o Primeiro Compadre Roberto Teixeira, corretor da venda da Variglog, em busca de ajuda federal para fechar negócio o quanto antes. É claro que não registraria uma audiência concebida para convencer a secretária da Receita Federal a encerrar o quanto antes a auditoria nas empresas da família Sarney.
“Toda a vez que se começa carnaval em coisa que não dá samba, as coisas vão ficando mais desacreditadas”, continuou o improviso do dia. O que Lula chama de carnaval é qualificado de escândalo em países sérios, cujos governos sabem que só ficarão desacreditados se agirem como cúmplices dos pecadores. Nesse mundo menos primitivo, um caso desses nunca acaba em nada, muito menos dá samba. Acaba em demissão. E costuma dar cadeia.
“Mais dia menos dias vocês não me perguntarão mais sobre isso”, foi em frente. ”Mais dia menos dia o povo vai ficar ouvindo ela dizer que conversou e a Dilma dizer que não conversou”. É provável. Há sempre uma bandalheira que acabou de ser descoberta lutando por espaço na procissão das delinquências federais. Os andores não cabem todos no noticiário. Acabam esquecidos no imenso armário dos crimes sem castigo.
“Só tem um jeito”, ensinou Lula. ”É abrir a mala que ela levou a agenda e mostrar a agenda para todo mundo”. Esse é o jeito que, aos olhos do presidente, livraria Dilma da enrascada. Há outros. Por exemplo, liberar as gravações do circuito interno que documenta o entra-e-sai no Planalto, e divulgar as anotações das placas dos veículos que estacionam na garagem do palácio.
Outro jeito é a velha e boa acareação entre as partes. Lina já topou. Dilma não quer nem ouvir falar numa coisa dessas. Desde os tempos das cavernas, tem razão quem não rejeita uma acareação. É mais que uma rima pobre. É uma regra sem exceção.