quarta-feira, julho 17, 2019

Não deturpem o liberalismo! - HELIO BELTRÃO

FOLHA DE SP - 17/07

Liberalismo não pode ser confundido com social-democracia ou com neoliberalismo


O Brasil vive uma primavera liberal. O liberalismo tem ocupado um espaço crescente na academia, na mídia e na política. Pela primeira vez na história defensores dessa doutrina inexplorada têm sido protagonistas no debate público ao confrontarem o Estado devorador.

No entanto, o desconhecimento sobre a essência do liberalismo gera situações estranhas. Não é incomum que haja críticas mal direcionadas, seja porque não fazem parte de seu escopo ou porque são atribuíveis à outra doutrina.

Adicionalmente, alguns aproveitadores intitulam-se liberais apesar de não defenderem o liberalismo. Roberto Campos dizia que todo cidadão com formação marxista parece um francês falando tupi-guarani quando se torna liberal.

É indesejável que a desinformação torne o debate uma torre de Babel na qual ninguém se entenda. Mais perigoso é o assalto a conceitos, como ocorreu nos EUA, onde “liberalism” passou a ser associado à esquerda.

Instrumentos analíticos como a categorização pelos “tipos ideais” de Max Weber são úteis. Delimitam-se as fronteiras entre as doutrinas e ganha-se em inteligibilidade e clareza, ainda que a realidade, mais complexa, comporte ambiguidades e superposições.

Liberalismo não pode ser confundido com socialismo, social-democracia ou mesmo com neoliberalismo.
Qual é a essência do liberalismo? É um conjunto de ideias que propõe uma forma de pensar a sociedade e o mundo. É bem mais abrangente que a simplista alcunha “livre mercado”. É focado nas pessoas comuns e em sua busca por felicidade e paz.

É multidisciplinar; ao lermos Adam Smith, por exemplo, ficamos em dúvida se sua especialidade é economia, história, sociologia, filosofia ou psicologia.

No entanto, o escopo do liberalismo é limitado ao âmbito político-econômico e às relações em sociedade. Não se manifesta sobre valores pessoais, como o conservadorismo, mas prega a tolerância. Ocupa-se exclusivamente pela política, ou seja, por aquilo o que o governo ou a governança pública devem ou não fazer.

Assim circunscrito, o liberalismo estabelece a tríade vida, liberdade e propriedade como valores supremos. Os indivíduos não devem ser sacrificados em razão de alegados bens comuns. Presume-se que ordem e prosperidade emerjam das interações voluntárias e desimpedidas entre os indivíduos, e consequentemente o poder centralizado é visto com suspeição.

Conclui-se que a lei deve se limitar a resguardar a tríade, em uma atitude de laissez-faire, deixar fazer.
As demais doutrinas têm pressupostos incompatíveis, que se manifestam em proposições legislativas que relativizam ou sacrificam a tríade.

O socialismo defende a estatização de todos os meios de produção e a igualdade de resultados. A social-democracia mescla socialismo com alguma tolerância a mercados. Advoga empresas estatais, política industrial e campeões nacionais, tarifas de importação, política cambial ativa, distribuição de renda, leis e Justiça trabalhistas, e outros.

Já o neoliberalismo, embora rejeite as políticas social-democratas, pleiteia intervenções como agências reguladoras, monopólio da moeda, órgãos antitruste, infraestrutura estatal como estradas e portos, gestão estatal de educação e saúde, renda mínima, entre outros.

Argumenta-se que o neoliberalismo não existe. No entanto, o tipo ideal acima existe e é distinto do liberalismo. Não vejo motivo razoável de utilizar outra denominação menos aceita.

O liberalismo, por força de seus princípios, rejeita cada intervenção acima. Chegou a hora de soluções de baixo para cima, pois o contrário já está provado que não dá certo.

Helio Beltrão
Engenheiro com especialização em finanças e MBA na universidade Columbia, é presidente do instituto Mises Brasil.

O pedestal de Moro - BERNARDO MELLO FRANCO

O Globo - 17/07

Moro se diz vítima de uma “campanha contra a Lava-Jato e a favor da corrupção”. Mas a operação não se limita à figura dele, e apontar excessos não significa defender a impunidade


Sergio Moro saiu de férias, mas não saiu de cena. Diante de um novo lote de vazamentos, o ministro imitou o chefe e foi ao Twitter. Mais uma vez, ignorou a mensagem e atacou o mensageiro. “Sou grande defensor da liberdade de imprensa, mas essa campanha contra a Lava-Jato e a favor da corrupção está beirando o ridículo”, escreveu.

O ex-juiz cometeu duas impropriedades na mesma frase. Na primeira, indicou que a sua fé na liberdade de imprensa não é tão desinteressada assim. Quando a notícia não o favorece, o jornalismo deixa de merecer sua defesa.

Na segunda, Moro tentou desqualificar as reportagens como uma “campanha contra a Lava-Jato e a favor da corrupção”. É um argumento duplamente falso. A operação não se limita à figura do juiz, e apontar excessos em investigações não significa defender a impunidade dos investigados.

Desde que os diálogos começaram a vir à tona, o ministro já adotou ao menos três estratégias diferentes. Inicialmente, disse que o único “fato grave” seria a invasão dos celulares de procuradores. O discurso só convence quem não quer ler o conteúdo dos chats.

Em seguida, Moro passou a sugerir que as mensagens seriam falsas ou adulteradas. A conversa caiu por terra quando ele se desculpou por ter chamado os os militantes do MBL de “tontos”, em bate-papo com o procurador Deltan Dallagnol.

Agora o ex-juiz tenta vender uma tese conspiratória. A se acreditar no tuíte de ontem, imprensa e oposição teriam se associado num complô contra a Lava-Jato. É um discurso enganoso, semelhante ao de políticos que ele condenou.

Retratado em atos governistas como um Super-Homem, Moro parece ter se convencido de que está acima dos mortais. Do alto de seu pedestal, ele não teria que se submeter a cobranças e questionamentos como qualquer agente público. Quem ousar criticá-lo deve ser queimado na fogueira dos hereges.

A favor do ex-juiz, diga-se que ele não está sozinho. Ontem Jair Bolsonaro adotou o mesmo tom ao defender a indicação de seu filho Eduardo para o cargo de embaixador do Brasil em Washington. “Se está sendo criticado pela mídia, é sinal de que é a pessoa adequada”, afirmou.

Quando faltam argumentos, o presidente e o ministro atacam os culpados de sempre.

Previdência – pensar até as últimas consequências - JOSÉ CECHIN

O Estado de S.Paulo - 17/07

Sociedade brasileira admite aposentar jovens até com menos de 50 anos de idade...


Daniel Kahneman, psicólogo vencedor do Prêmio Nobel de Economia, mostrou que temos duas formas de pensar: uma rápida e outra devagar. A primeira é instintiva, imediata, sem exigência de esforço, influenciada por lembranças recentes ou eventos marcantes, ainda que irrelevantes, e que leva frequentemente a erro. A outra é reflexiva, analítica, exige raciocínio e esforço mental. Naturalmente, seguimos a primeira e decidimos com base nela. Para evitar erros em decisões importantes deveríamos sempre envolver a forma lenta de pensar e, assim, levar os pensamentos às últimas consequências lógicas.

Pretendo avaliar reações à reforma da Previdência, situação tormentosa e atual que se vem prolongando há décadas, à luz dessas duas formas de pensar.

A forma rápida leva a rejeitar a reforma, por ser aparentemente danosa para cada indivíduo que pretenda um dia se aposentar. Nessa visão, afetaria direitos por estender o tempo de contribuição ou alterar a forma de cálculo de seu valor. A conclusão do pensar rápido: opor-se porque subtrai direitos.

A forma lenta de pensar leva a conclusões diferentes. Isso porque um direito que não possa ser cumprido existe apenas no papel. A expectativa por um direito orienta decisões que as pessoas tomam no dia a dia, confiando na sua exequibilidade, especialmente quando previsto na Constituição. Se a expectativa não puder ser cumprida no futuro, as pessoas descobrirão tarde demais que seguiram decisões, coerentes à época, mas que o desenrolar do tempo as falseou. Dada a rápida transição demográfica no Brasil, a Previdência sem reforma caminha para a insustentabilidade, por um motivo muito simples: haverá aposentáveis em número tão grande que não poderão ser financiados pelas contribuições dos menos numerosos em idade ativa.

Por isso a reforma não implica perda de direitos. Antes o contrário: se bem desenhada, representará a garantia de que os direitos poderão ser cumpridos futuramente. Opor-se à reforma é cultivar o autoengano, é crer que forças do além virão em socorro do Estado quando suas finanças falirem por completo, porque toda a arrecadação será consumida pelo pagamento de benefícios da Previdência. Em 2018 absorveram mais de 43% da despesa não financeira da União.

Levemos a avaliação um passo além. O pensar rápido leva à insatisfação quanto à qualidade e quantidade dos serviços públicos diante da elevada carga tributária. É óbvio que a carga é alta e está entre as 15 maiores em 200 países do mundo. Também parece óbvio que o retorno do Estado para a sociedade é sofrível, pelo menos se julgado pela qualidade da educação, pela insuficiência de investimentos, especialmente em saúde pública, pela insegurança pública, pelas grandes deficiências na infraestrutura. No entanto, cada real que o Estado arrecada da sociedade é a ela devolvido, tirante desvios irregulares. Mas a devolução se dá em itens que possivelmente desagradam aos contribuintes. De fato, quase quatro quintos de todo o gasto não financeiro da União se destinam a pagamentos e transferências para pessoas: pessoal ativo e aposentado da União, benefícios do INSS, benefícios assistenciais, seguro-desemprego e abono salarial.

A insatisfação sobre os serviços públicos não nasce do fato de o Estado não devolver à sociedade o que dela retira em tributos. O que desagrada é a estrutura desses gastos ou os itens em que os recursos são despendidos, que não atendem às aspirações. É esse aspecto que escapa da forma rápida de pensar. Note-se que mesmo entre os que recebem esses pagamentos e transferências reina a crítica aos serviços estatais.

Aprofundando o pensamento analítico, não deveria causar surpresa a escassez de recursos para as atividades típicas do setor público, como, por exemplo, a saúde. Os recursos da seguridade, que devem financiar saúde, previdência e assistência, vêm sendo consumidos em proporção cada vez maior pela previdência, restando cada vez menos para as outras ações da seguridade. É preciso alterar a estrutura de gastos para que o Estado possa destinar mais recursos a saúde, educação, segurança e investimentos para o País crescer.

Reclamar da alta carga e dos serviços medíocres é incompatível com opor-se à reforma. Desejar direitos efetivos também é incompatível com oposição à reforma. Claro que apoiá-la não equivale a concordar com toda e qualquer de suas proposições. Como o gasto previdenciário caminha para exaurir todos os recursos da União, é esse foco que precisa ser contido. Há formas para isso.

A Previdência existe para assegurar renda quando faltarem forças para trabalhar, como na maternidade, na doença, por acidente, invalidez e idade avançada. Há uma idade em que a pessoa se torna incapaz para o trabalho. Varia de indivíduo para indivíduo. Por isso as sociedades convencionam uma idade para a saída do mercado de trabalho e a entrada em aposentadoria – normalmente acima dos 60 anos, já caminhando para mais de 70. A escolha é de cada sociedade.

Incapacidade não costuma vir aos 50 anos de idade. Acontece que a sociedade brasileira admite aposentar jovens até mesmo com menos de 50 anos, que usufruirão o benefício por período maior que o de contribuição. Os serviços públicos são insatisfatórios porque os recursos para financiá-los são despendidos com pessoas em plena capacidade produtiva, muitos dos quais permanecem no mercado de trabalho, com os proventos simplesmente representando mais uma renda no meio da vida de trabalho. Se a sociedade deseja manter as atuais regras de elegibilidade à aposentadoria, deverá contentar-se com carga tributária cada vez mais alta e serviços, incluídas as aposentadorias, cada vez mais insatisfatórios.

Em suma, é preciso passar da forma rápida de pensar e levar o pensamento às últimas consequências lógicas para que norteie adequadamente nossas ações e decisões.

Quando o imperador Calígula nomeou seu cavalo cônsul - JUAN ARIAS

El País - 17/07

A História Antiga às vezes confunde realidade e fantasia, difíceis de se distinguir. É o que aconteceu com o terceiro imperador de Roma, conhecido como Calígula. Até as crianças conhecem sua curiosa e emblemática história do amor que nutria por seu cavalo preferido, chamado Incitatus (Impetuoso). Chegou a se apaixonar a tal ponto por ele que até o nomeou Cônsul da Bitínia. Contam que era uma afronta ao Senado e às Instituições que desprezava como déspota absoluto.

Seu cavalo era de corrida e na noite anterior a sua competição exigia um silêncio absoluto da cidade de Roma para que não incomodassem o sono do animal, com quem o imperador dormia. O castigo a quem ousasse interromper o silêncio era a pena de morte. O cavalo era na realidade o verdadeiro imperador com poderes absolutos. Verdade ou não, é interessante conhecer a História Antiga que foi forjando a Moderna através dos séculos para ver o que Humanidade conquistou em matéria de liberdade e como as possíveis loucuras de nossos governantes são brincadeira ao lado das loucuras dos imperadores e reis despóticos e absolutistas do passado.

Com todas as lacunas de nossas frágeis democracias, estamos a milhares de anos-luz do que foram os impérios antigos e suas arbitrariedades. Mas isso de deve, ao mesmo tempo, à resistência através dos séculos que o Homo sapiens impôs aos poderes ditatoriais e como aumentou os espaços da democracia. Os pessimistas irredutíveis continuam gostando da célebre frase do escritor e militar espanhol do século XV, Jorge Manrique: “Todo tempo passado foi melhor”.

Sem necessidade de ser otimistas nos tempos em que vivemos, a verdade é que, objetivamente, poderíamos dizer que, pelo contrário: os tempos passados sempre foram piores do que os de hoje. Por isso, é importante que nas escolas se ensine a História Antiga, para entender melhor e apreciar os saltos que a Humanidade deu à procura de uma dignidade maior das pessoas, de uma visão mais clara dos direitos humanos que abarquem todos, e do direito da sociedade a compartilhar o poder com os políticos.

Somente para lembrar os saltos para melhor da história humana, basta recordar que, por exemplo, nos tempos de Calígula e até séculos depois, os pais tinham o direito de vida e morte de seus filhos ao nascer. Podiam concedê-los o direito à vida ou, se não gostassem, podiam sacrificá-los. O estatuto dos direitos da infância à vida e à necessidade de ser respeitados não tem cem anos. Por sua vez, a mulher há menos de um século era mais um objeto nas mãos do homem do que uma pessoa com direitos. Na Espanha, há pouco tempo as mulheres não podiam viajar sem a permissão de seus maridos, estudar na Universidade, ter uma conta corrente. Sem contar com os avanços da ciência e da medicina que nos permitem viver mais do que nunca, demos saltos gigantescos na política e nas ciências sociais. Hoje a palavra escravidão é condenada e ninguém pode ser discriminado por suas crenças e seu gênero nos países que chegaram a um certo grau de democracia e respeito pela individualidade.

Isso quer dizer que podemos nos deitar nos louros e deixar os políticos em paz mesmo quando pretendem promover seu cavalo? Não! Justamente porque conseguimos o que a Humanidade não conseguiu em séculos, devemos ser mais resistentes e críticos com as tentações dos governantes de querer voltar aos tempos dos absolutismos em que as feras em seus instintos mais primitivos eram deixadas livres. Foram a resistência da sociedade, as lutas pelas liberdades que custaram muito sangue, o que nos permite hoje desmentir o escritor espanhol e dizê-lo que, apesar de tudo, hoje estamos melhor do que ontem.

Mas cuidado, porque vivemos um momento especial e difícil em que os cavalos transformados em cônsules e mais mimados do que as pessoas, parecem andar soltos e faladores com saudades dos tempos dos imperadores romanos. Porque se é verdade que nunca estivemos melhor, também é verdade que desabar ao abismo é mais rápido do que continuar subindo, com esforço e luta, à custa das conquistas democráticas. Sempre existe a tentação, aberta e latente de querer voltar a um passado em que os loucos ao modo de Calígula chegam a nos parecer até engraçados e divertidos.

O Brasil volta ao tempo dos fidalgos - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 17/07

Eduardo Bolsonaro não tem as mínimas qualificações para o cargo. Indicação joga o Brasil de volta ao tempo da fidalguia

Quando a Presidência erra, outra instituição corrige. É assim que funciona na democracia. Está com o Senado o poder de evitar a insensatez do presidente Bolsonaro de indicar o filho, sem qualquer experiência na diplomacia, para o posto mais revelante da nossa política externa. É evidentemente um ato de nepotismo e se alguma firula jurídica diz o contrário é preciso repensá-la, porque é de uma clareza meridiana que ele só está sendo escolhido por ser filho. Fidalgo.

O primeiro embaixador brasileiro na República era um monarquista. Joaquim Nabuco foi um representante esplêndido da República brasileira. O que aprendemos com a História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado, independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que assim atingisse a idade mínima.

A carreira diplomática tem exigências e peculiaridades próprias. É complexa, delicada e cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês e espanhol pode ser embaixador equivale a escolher alguém para comandar um dos Exércitos porque sabe atirar e marchar. O diplomata, como o militar, segue uma sequência de etapas na carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do Instituto Rio Branco, até chegar a embaixador. E no início assume representações menores, até chegar à senioridade e às missões de maior responsabilidade. Não se faz essa exigência, como bem sabem os militares, por qualquer apego à escala hierárquica, mas porque no caminho cumpre-se o tempo necessário do aprendizado.

O argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o presidente americano Donald Trump e por isso é a pessoa indicada revela um abissal desconhecimento de como funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha direta na Casa Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de assuntos latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Eduardo como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da diversidade americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu o primeiro dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou na cabeça o boné de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente está cada vez mais tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra quatro deputadas da esquerda democrata — uma naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram consideradas racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla maioria uma moção de censura ao presidente Trump.

Há, claro, chefes de missão que não são diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom trabalho, mas nunca houve no Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais um passo no desmonte da brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil sempre se orgulhou. Mas, além disso, ela ofende o nosso atual estágio de desenvolvimento democrático.

O Brasil nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um fidalgo, filho de alguém poderoso. Depois se transformou no país das carteiradas, aquele cujo defeito se resumia na frase “sabe com quem está falando”. A democracia foi corrigindo essas distorções. E assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a obrigatoriedade do princípio da impessoalidade para a escolha de pessoas para os cargos públicos.

Essa ideia de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as mínimas qualificações para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o Brasil de volta ao inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência não tem noção, que os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a prerrogativa de decidir sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse assunto pensando no país e não na conveniência política. E o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo, ressalvou o posto de embaixador entregue ao filho do presidente como uma situação aceitável.

À beira do ridículo - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 17/07

Contaminados pelo prestígio, poderosos simplesmente não admitem ser contrariados

Sergio Moro deve ter se animado com os aplausos que recebeu no voo que tomou para a Flórida, na semana passada. O ministro interrompeu as férias com a família e foi às redes sociais para criticar, mais uma vez, a divulgação de conversas da força-tarefa da Lava Jato.

"Sou grande defensor da liberdade de imprensa, mas essa campanha contra a Lava Jato e a favor da corrupção está beirando o ridículo", escreveu o ex-juiz, nesta terça-feira (16). "Se houver algo sério e autêntico, publiquem por gentileza."

O ministro mostrou que não aceita questionamentos sobre sua atuação como julgador. Segundo sua lógica tortuosa, a única justificativa para a publicação dos diálogos é uma conspiração para proteger criminosos e matar os processos de Curitiba.

Moro ignora o interesse público ao atacar os veículos que publicaram reportagens sobre o assunto. O ministro parece ter adotado o comportamento típico de autoridades que preferem agir como seres intocáveis. Contaminados pelo prestígio, muitos poderosos simplesmente não admitem ser contrariados.

Nesse episódio, o ex-juiz espelha seu novo chefe. Jair Bolsonaro é um mestre em abafar verdades inconvenientes e desqualificar seus críticos. Na segunda-feira (15), ele elaborou um raciocínio esdrúxulo para tentar desmerecer os reparos feitos à indicação de um filho sem qualificações para o posto mais importante da diplomacia brasileira no exterior.

"Se está sendo tão criticado, é sinal de que é a pessoa adequada", disse o presidente. Bolsonaro não quis mencionar que também houve desaprovação à escolha de Eduardo entre seus aliados. Sempre ouvido e elogiado pela primeira-família, o ideólogo Olavo de Carvalho refutou a indicação, mas foi desprezado.

O presidente e seus auxiliares confundem críticos com inimigos, insistem em decisões inadequadas e são incapazes de reconhecer seus erros. Dessa maneira, eles buscam uma blindagem para seus atos. Correm o risco, no entanto, de ficar isolados dentro dessa redoma.

Bruno Boghossian
Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).

Cosa nostra - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 17/07


É bem possível (e é bem possível o contrário, aliás) que, diante das tantas críticas e da não muito animadora repercussão, Jair Bolsonaro reconsidere o infalível plano de indicar o sangue do seu sangue à embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Já estamos nos acostumando com um governo que é todo feito de excentricidades e nenhum centro, pois o estilo é esse e o estilo é o homem: testar os limites do arbítrio, a reação da imprensa e a receptividade da militância. Se colar, colou.

Seja qual for desfecho de mais esse esquete, a ideia em si é estapafúrdia, e deveria servir de alerta a todos aqueles que, tendo apostado no Capitão como o mal menor ante o PT, insistem em tratá-lo como se fosse o bem maior a despeito do PT, mesmo depois da findas as eleições. Ou então confessem de uma vez por todas: vocês “amam muito tudo isso”.

Não me atenho às controvérsias jurídicas acerca do nepotismo. Mais do que impedimentos legais, há – deveria haver – óbvios impedimentos éticos e institucionais. Nunca uma nova prática soou tão velha. A indicação de parentes a cargos de altíssima relevância é própria de Estados em que a separação entre poderes não é clara, e a distinção entre o interesse público e o desejo privado não é estabelecida.

Alguma novidade por aqui?

Nenhuma novidade num país em que a ascensão social se dá por meio do Estado e de trocas de favores, do quem-indica e da “cordialidade” de que falava Sérgio Buarque de Holanda. Na dúvida, resolvemos tudo com a mistura de família e Estado, Estado e família, até que não consigamos mais distinguir uma coisa da outra. O vício do “cargo de confiança” é comum àqueles que não confiam na impessoalidade das instituições. Podem ser tudo, até bem intencionados, mas liberais e republicanos não são.

Não bastasse a inconveniência ético-institucional, falta ao rebento messiânico a competência técnica necessária. Seu currículo é constrangedor. Seu inglês é precário. Sua experiência é nenhuma. Sua envergadura intelectual é discutível. Sua cosmovisão é controversa. Isso não é má vontade minha ou de quem quer que seja; são fatos públicos e notórios. É preciso um pouquinho mais do que saber fritar hambúrgueres para assumir chapa tão quente.

Nossa diplomacia, apesar dos desvios lulopetistas, sempre se notabilizou pelo indiscutível preparo cultural dos profissionais de carreira. Já indiquei nesta Gazeta o ótimo livro de Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, que conta uma pouco dessa história que deu certo. Anos de PT corroeram os alicerces; mais alguns anos de Bolsonaro – nestes termos – derrubarão o edifício.

E tudo isso à toa, num assunto frio, em mais uma crise gerada por um governo em permanente processo de autocombustão. Mas decerto é divertido governar. Tudo tão movimentado e surpreendente, como num parque de diversões que acaba de chegar à cidade.

Eu já estou começando a fazer planos para o futuro. Quem sabe um dia não viro também presidente? Ou ministro. No mínimo secretário ou chefe de repartição. Tenho quem me indique, já fui funcionário público, já ensinei crianças e, muito aqui entre nós, sei fazer um feijão carioquinha que vocês nem imaginam.

Troco a receita por uma embaixada.


Por que o aluno deveria limpar sua escola? - WILSON GALVÃO

GAZETA DO POVO - PR - 17/07


No Brasil, uma pergunta como a do título deste artigo pode se revestir de polêmica e causar divergências de opinião entre aqueles que defenderiam, incentivariam ou até se colocariam contrários a essa prática por diversas razões. É fato que este tipo de prática é incomum em nosso país. No entanto, em alguns países asiáticos, como no Japão e na Coreia do Sul, é normal que os alunos cuidem da limpeza das áreas de uso comum, inclusive banheiros, da escola onde estudam.

Em visita a uma instituição de ensino médio localizada em Incheon, cidade próxima a Seul, na Coreia do Sul, presenciei tal cena. É muito interessante de observar. Bate o sinal do término de uma aula e surgem grupos organizados de estudantes que se dividem para limpar e organizar a escola. Alguns alunos limpam os corredores; outros, a biblioteca, as escadarias, os banheiros. E fica tudo muito bem limpo. Aliás, é na escola que eles aprendem a fazer limpeza, faxina e outros afazeres domésticos.

Ajudar na limpeza da escola propicia a formação de um cidadão que irá cuidar e ser responsável pelos mais diversos ambientes e espaços públicos


No Brasil, em 2014, alguns grupos de torcedores asiáticos chamaram muita atenção porque, ao fim de partidas de futebol, se colocaram a limpar a arquibancada e recolher o lixo dos estádios onde tinham acabado de torcer pelo seu país na Copa do Mundo. Isso foi notícia e muita gente elogiou e achou bonita a atitude. O que poucos se questionaram foi qual a origem ou a razão deste comportamento incomum no Brasil. Não há dúvidas de que essa cultura é fruto da educação que receberam na escola.

Essa prática no Brasil poderia produzir efeitos benéficos sob vários aspectos. O primeiro diz respeito ao cuidado, ao zelo com o ambiente da escola. Além disso, os alunos aprenderiam a valorizar e entender o trabalho de pessoas que realizam essa atividade e, muitas vezes, tornam-se invisíveis no dia a dia – infelizmente, às vezes sofrendo desrespeito e humilhações. Situações e práticas que envolvam os alunos no cuidado com o ambiente escolar podem corroborar para a construção de uma relação de pertencimento, responsabilidade, afetividade e identidade para com o espaço da escola. Esse espaço se transforma num lugar de valor e propicia a formação de um cidadão que irá cuidar e ser responsável pelos mais diversos ambientes e espaços públicos.

Ao assistir aos alunos cuidando da limpeza de sua escola, é impossível não relacionar essa prática ao respeito e cuidado que a população coreana tem pelos espaços compartilhados e públicos. Ao caminharmos pelas ruas, metrô, praças ou monumentos em grandes cidades do país, como Seul, é impossível ficar indiferente, pois esses espaços são impecavelmente limpos, bem cuidados e organizados.

Em um momento em que é cada vez mais comum que viralizem nas redes sociais vídeos que mostram situações de violência e depredação no espaço escolar, não seria oportuno refletir sobre estratégias para adaptar à realidade brasileira e implementar boas práticas como as observadas nas escolas coreanas?

Wilson Galvão é coordenador da Assessoria de Geografia, Tempo Integral e Livros Escolares do Sistema Positivo de Ensino. "

Dada a decisão de Toffoli, resta aos “bolsomorominions” a falta de vergonha - REINALDO AZEVEDO

UOL - 17/07


Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz: por ora, dupla é beneficiada pelo devido processo legal. Mas é só o dito-cujo que pode pôr a ambos no lugar de merecimento

A decisão do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo, que determinou que sejam suspensas investigações criminais que usem dados detalhados de órgãos de controle — como Coaf, Receita Federal e Banco Central — sem autorização judicial deflagrou uma notável cascata de hipocrisias Brasil afora, em especial no universo dos chamados "bolsominions". Os "morominions" fingem alguma reação, mas também não podem se descolar de suas almas gêmeas. E agora?

A decisão de Toffoli atende a um habeas corpus impetrado pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e tem um escopo bem mais amplo. Atinge, como já se disse, todas as investigações e PICs (Procedimentos de Investigação Criminal) em curso no país até que o Supremo decida se o compartilhamento com o Ministério Público de dados fornecidos por esses órgãos agride ou não direitos fundamentais. A questão deve ser apreciada pelo plenário do tribunal em novembro.

E por que falo em espetáculo de hipocrisia? Vamos ver.

A decisão está essencialmente correta — e pouco me importa se isso é ou não do gosto dos Bolsonaros. Pessoas que desprezo politicamente não determinam o meu juízo sobre os fatos. Entendo que a quebra do sigilo bancário e fiscal de qualquer indivíduo deve ser submetida à Justiça. Mais: os tais Procedimentos de Investigação Criminal têm se constituído em verdadeiros inquéritos criminais informais.

Ora vejam… Quem mais tem recorrido a esses expedientes é justamente a Lava Jato. Vamos lá: se cada órgão de fiscalização resolver criar a sua tropa interna de elite para investigar alvos determinados, passando o resultado do seu trabalho diretamente para a polícia ou para o Ministério Público, então podemos declarar a obsolescência da Justiça.

Vamos ver qual será a decisão do pleno do Supremo quando avaliar a questão. Flávio Bolsonaro comemorou. E seu pai, o presidente da República, fez o mesmo. Não é que ele vira um legalista quando o protegido é o "sangue do seu sangue"? Então vamos às perguntas.

O que estaria dizendo a Primeira Família se uma decisão de um ministro do Supremo beneficiasse, por exemplo, um certo Luiz Inácio Lula da Silva? A Lava Jato é useira e vezeira no uso dos dados decorrentes do tal compartilhamento. Ora, com o apoio de Bolsonaro, de seus filhos e do seu governo, a extrema-direita e setores da direita foram às ruas duas vezes neste 2019. Em ambas, mandaram os direitos individuais às favas — em particular no ato do último dia 30 de junho, em defesa da Lava Jato.

Sim, eu posso afirmar que a decisão de Toffoli está correta — já que os sigilos são uma garantia constitucional, só podendo ser levantados com ordem judicial — porque é o que sempre disse. Mas será que os "bolsominions" e "morominions" podem afirmar a mesma coisa sem que fiquem corados de vergonha? Em havendo alguma, claro!

A resposta é "não!. No dia 30 de junho, por exemplo, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, ultrapassou o limite do bom senso e fez um discurso inflamado, em Brasília, em defesa de Sergio Moro e da Lava Jato, que recorre aos métodos que, por ora, a liminar do ministro susta.

Reitero: e se a decisão de Toffoli beneficiasse diretamente um petista graúdo? A essa altura, o ministro só não estaria sendo chamado de "santo" pelos tais replicantes, movidos pela cretinice mais alvar. Ah, como a decisão atende ao interesse de Flávio, bem…, aí o ministro, então, se comportou como um homem justo.

Eduardo El Hage, coordenador da Lava Jato no Rio, afirma — e especialistas dizem ser um brutal exagero — que a decisão de Toffoli paralisa todas as investigações de lavagem de dinheiro no país. Como, doutor? Então nenhuma delas estava de acordo com as regras do jogo, com o ordenamento jurídico?

Nesta terça, os especialistas em "fake opinions", nas opiniões falsas, ficaram bem atrapalhados. Dizer que a decisão de Toffoli estava correta lhes parecia uma traição a seus preconceitos. Dizer que estava errada contrariava as ordens do patrão. Então preferiram enganar os trouxas com conversa mole.

Acho que Flávio e Fabrício Queiroz fizeram coisas do arco da velha. Que se investiguem as lambanças de acordo com o ordenamento legal. O mesmo vale para Flávio, para Lula ou para um qualquer. Isso, eu posso dizer. Eles não.

DESMORALIZAÇÃO

Sim, a decisão de Toffoli atende aos fundamentos legais. Isso não impede que reste a desmoralização ao discurso bolsonarista.

Uma das divisas dos "bolsomorominions" é o famoso "quem não deve não teme". Como eles acham, afinal, que estão certos, então é sinal de que acreditam que Flávio deve muito, uma vez que o temor, no seu caso, é explícito.

A reação de Bolsonaro é de um ridículo atroz. Uma coisa é a defesa do devido processo legal — algo que é absolutamente estranho ao seu universo. Outra, muito distinta, é achar, como quer o pai extremoso, que não há o que investigar no caso de Flávio e que tudo não passa de perseguição.

A qualquer pessoa com um mínimo de simancol resta a evidência de que Flávio teme, sim, a investigação. Nem poderia ser diferente. Quando Fabrício Queiroz, o seu ex-faz-tudo, resolveu dar uma explicação para as lambanças que ocorriam no gabinete do agora ex-deputado estadual, a emenda saiu bem pior do que o soneto.

Segundo Queiroz, ele, de fato, arrecadava um percentual do salário dos funcionários do gabinete. Mas só agiria desse modo para, com os recursos, contratar ainda mais pessoas para trabalhar informalmente no gabinete. E tudo, claro!, sem a anuência do chefe.

Sim, é preciso, nesse e em todos os casos, resgatar o devido processo legal. Até para que um político como Flávio possa ser punido.

Por ora, o senador se beneficia de uma ação em favor do devido processo legal. Mas é o devido processo legal que pode colocá-lo no local de merecimento.

Filhos distanciam Jair Bolsonaro do seu discurso - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 17/07

Na campanha presidencial, Jair Bolsonaro disse coisas que atraíram muitos eleitores. Numa fase marcada pela prisão de Lula, ele ofereceu a ética. Num instante em que Michel Temer comprava com verbas e cargos o congelamento de denúncias criminais no Congresso, o capitão ressuscitou uma palavra fora de moda: meritocracia. No exercício da Presidência, Bolsonaro pratica o oposto do que disse.

Bolsonaro condicionou as nomeações políticas para o segundo escalão à qualificação dos indicados. Criou por decreto um tal de "banco de talentos". Recebeu 75 indicações partidárias. Ainda não nomeou ninguém. De repente, informa ao país que indicará o filho Eduardo Bolsonaro para o comando da embaixada do Brasil em Washington, um posto para o qual o Zero Três não está qualificado.

O presidente levou para o Ministério da Justiça o juiz da Lava Jato. Não fosse pelo Congresso, teria transferido para Sergio Moro o controle do Coaf. Subitamente, Bolsonaro passou a chamar de "perseguição política" a investigação em que o Ministério Público do Rio de Janeiro apura o que o primogênito Flávio Bolsonaro fez no verão passado.

Num esforço que aproxima os Bolsonaro ao que há de mais triste na política, o Zero Um foi ao Supremo para barrar uma investigação que nasceu de relatórios do Coaf. Obteve do ministro Dias Toffoli, em plenas férias do Judiciário, uma decisão que deve barrar investigações sobre lavagem de dinheiro em todo o país. A filhocracia que se estabeleceu sob Jair Bolsonaro vai deixando o presidente sem nexo.

O dinheirinho fácil das palestras - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP /O GLOBO - 17/07

A empresa concebida por Dallagnol tirou da sombra um promíscuo mercado de mimos do andar de cima


Deve-se ao procurador Deltan Dallagnol a exposição do próspero mercado de palestras de autoridades. Em 2018 o doutor recebeu cerca de R$ 300 mil como servidor e planejava a criação de uma empresa de palestras e eventos que poderia render R$ 400 mil. Dallagnol cobrava R$ 35 mil por aparição. Como servidor público recebia mais ou menos isso por um mês de trabalho. Como celebridade, ganhava a mesma coisa num só dia.

Ficou feio para Deltan, mas ele nada fez de novo, apenas decidiu surfar num mercado onde misturam-se fama, favores e fetiches. O ex-presidente Barack Obama cobra US$ 400 mil por uma palestra de 90 minutos.

A porca torce o rabo quando o palestrante (horrível palavra) é um servidor do Estado ou é um cidadão cuja relevância deriva da sua exposição pública no trato de assuntos políticos ou econômicos. Jornalistas, por exemplo. Essa circunstância ganha peso quando o valor da palestra equivale ao salário mensal do convidado. Há empresas, sobretudo do mundo do papelório, que oferecem uma bandeirada de R$ 30 mil.

Ninguém pode ser penalizado pela fama que tem, mas quando um magistrado, procurador ou parlamentar é convidado para dar uma palestra por R$ 30 mil, deve desconfiar da benemerência de seu patrocinador. As mensagens de Dallagnol mostram que uma instituição convidava palestrantes (argh!) oferecendo-lhes R$ 3.000, o que pode ser um valor razoável, mas ele sugeria ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot que cobrasse R$ 15 mil, pois estimava que seu cachê estivesse em R$ 30 mil.

Essas quantias são um dinheirinho fácil. Palestras e eventos, sobretudo aqueles que acontecem em aprazíveis balneários, transformaram-se em mecanismos de confraternização do andar de cima. São boas ocasiões para fazer amigos e influenciar pessoas.

Dallagnol concebeu uma empresa que pertenceria à sua mulher e à do seu colega Roberson Pozzobon. Óbvio, pois eles não poderiam ser os donos, mas receberiam pelas palestras ou cursos que ministrassem. Nas suas palavras: “Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós.” Novamente, ele não inventou essa roda.

Há uma curiosa coincidência no plano de Dallagnol. A ideia da empresa ocorreu-lhe em dezembro, dois meses depois da assinatura de um acordo da Petrobras com o governo americano e um mês antes do fechamento de outro acordo da empresa com o Ministério Público do Paraná. O acerto colocava R$ 1,2 bilhão na caixa dos procuradores para que organizassem uma fundação destinada a incentivar “entidades idôneas, educativas ou não, que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.

O mimo das palestras leva a um beco que parece não ter saída, pois não se pode impedir que alguém queira pagar para ouvir o que outra pessoa tem a dizer. Também não se pode exigir que alguém fale por uma hora e meia e receba apenas um cafezinho.

O nó pode ser desatado. Basta que o convidado coloque na rede todas as palestras que faz, indicando quem pagou e quanto recebeu. Isso poderia ser obrigatório para servidores públicos em atividade e facultativo para os demais bípedes.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Presidente Bolsonaro - ANTONIO DELFIM NETTO

FOLHA DE SP - 17/07

Toda a atividade do semestre se deveu ao novo protagonismo do Congresso


Talvez seja a hora de tentar um olhar mais profundo sobre os propósitos da sua administração, muito prejudicada pela disfuncionalidade de seu "cérebro", a Casa Civil. Se o recém-empossado ministro, o ilustre general Luiz Eduardo Ramos, não atentar para esse fato, dificilmente cumprirá sua missão, apesar de possuir "a sabedoria de Salomão, a capacidade de articular e gerenciar de José do Egito e a força guerreira de David".

Bolsonaro obteve uma brilhante vitória eleitoral, mas seu partido conquistou apenas 10% das cadeiras da Câmara Federal. A montagem do governo ignorou um fato elementar: nas repúblicas democráticas, quando o presidente não elege uma maioria congressual, o natural é que ele a construa politicamente, dividindo o poder com outros partidos.

É preciso reconhecer que os seus ministros "técnicos" são, em geral, de boa qualidade e têm condições para ajudar o país a reencontrar um crescimento social e econômico robusto, mais equânime e sustentável. Por outro lado, as escolhas de ministros prisioneiros de preconceitos identitários serão um peso morto que continuarão a dificultar aquela caminhada.

Bolsonaro revela um "voluntarismo" para implementar ideias duvidosas, sistematicamente rejeitadas por pesquisas empíricas bem conduzidas. Mas o movimento paciente e cuidadosamente preparado para nomear o filho 03 para a embaixada do Brasil em Washington, sugere que seu "voluntarismo" tem método, como mostra, aliás, o seu apoio ao fundamentalismo evangélico, que caminha para um paradoxo num país que a Constituição quer laico.

Numa recente manifestação evangélica no espaço físico do Congresso Nacional (o que em si mesmo, é um fato estranho), emergiu um predestinado! O ilustre ministro Onyx Lorenzoni afirmou, sem piscar, "entre nós está o escolhido, Jair Messias Bolsonaro, um homem simples". Pode ser uma verdade: ele foi escolhido por 58 milhões de votos (39% do total) de brasileiros desacorçoados com a prosopopeia petista desmontada pela Lava Jato.

Ou pode ser uma fake news, a não ser que Deus tenha confidenciado o fato diretamente a Onyx. Tudo sugere que Bolsonaro está se deixando seduzir pelo "complexo de Messias", criado pela esperta e competente "dialética evangélica" do deputado paulista Marco Feliciano, de olho na vice-presidência na reeleição de 2022.

Toda a atividade do semestre se deveu ao novo protagonismo do Congresso. Bolsonaro limitou-se a levar-lhes, sem convicção, a proposta da reforma da Previdência agora aprovada, mas, à socapa, trabalhou contra ela para proteger seus correligionários.

Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil

Cerco às investigações - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 17/07


O cerco às investigações da Lava Jato continua com a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, de suspender todas as investigações baseadas em dados fiscais repassados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e pela Receita Federal ao Ministério Público, sem autorização judicial. Apesar de decisão do plenário do STF a favor, tomada em 2016.

Também o Conselho Nacional do Ministério Público, através do corregedor Orlando Rochadel Moreira, decidiu investigar o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol com base nas últimas revelações do site Intercept Brasil, a pedido o PT.

Desconhecendo a ilegalidade da invasão dos celulares, o Corregedor tratou como prova válida os diálogos e, baseando-se na versão publicada, pede explicações aos procuradores. Segundo ele, as conversas "revelariam que os citados teriam se articulado para obter lucro mediante a realização de palestras pagas e obtidas com o uso de seus cargos públicos". Esquecendo-se de que as palestras estão autorizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo próprio CNMP.

A notícia boa para os procuradores foi que a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, saiu de sua paralisia e, depois de uma reunião de mais de três horas com Dallagnol e um grupo de outros sete procuradores de Curitiba, declarou seu apoio à atuação deles na Operação Lava Jato.

O fato de Dodge não ter se pronunciado até agora, e de ter segurado delações como a de Leo Pinheiro, presidente da OAS, fez com que o procurador José Alfredo de Paula Silva, coordenador do grupo de trabalho da Lava Jato na PGR, pedisse demissão na sexta-feira.

Com origem em um recurso do senador Flavio Bolsonaro, que está sendo investigado pelo MPF do Rio, a liminar de Toffoli abrange toda e qualquer investigação em andamento no país e, segundo o procurador Eduardo Al Hage, coordenador da Lava Jato no Rio, atinge praticamente todas as apurações de lavagem de dinheiro.

Ao suspender processos e inquéritos abertos com base em dados da Receita ou do Coaf, Dias Toffoli ignorou decisão do plenário do STF, que, em 2016, confirmou a permissão de a Receita poder acessar informações bancárias sem autorização judicial.

O Ministério Público pede rotineiramente que seja feito o compartilhamento de dados para investigações, e a Operação Lava Jato tem trabalhado em sintonia com a equipe especial de fraudes da Receita.

O STF deveria ter analisado o caso, com repercussão geral, em março, com base em um recurso do Ministério Público contra decisão do TRF-3, que afirmou ser ilegal o uso de dados sigilosos em investigações sem autorização judicial. Mas Toffoli adiou o julgamento para novembro.

Até lá, vale a sua decisão monocrática, durante o recesso do Judiciário. Toffoli reconhece que a jurisprudência do Supremo é a favor do compartilhamento sem necessidade de autorização judicial. Tanto que no início do ano considerou importante, reafirmada a jurisprudência, definir limites objetivos que os órgãos de fiscalização deveriam observar ao transferir automaticamente para o MP informações sobre movimentação bancária e fiscal dos contribuintes em geral.

O assunto voltou à discussão recentemente, quando uma investigação sobre o ministro Gilmar Mendes vazou para órgãos de imprensa. Ele ficou naturalmente indignado e deve ser o terceiro ministro a votar contra o compartilhamento de dados sem autorização judicial. No julgamento anterior, em 2016, somente os ministros Marco Aurélio Mello e Celso de Melo votaram contra, ficando vencidos por 9 a 2.

O ministro Toffoli, que ontem suspendeu a permissão monocraticamente, também votou em 2016 a favor. Se permanecer essa proibição, as investigações sobre fraudes financeiras ficarão seriamente prejudicadas até novembro, quando o plenário deve julgar o caso definitivamente.

PARA ENTENDER LEIA O EDITORIAL DO ESTADÃO AQUI

Respeito ao sigilo bancário - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 17/07


Não deixa de ser estranho que o STF tenha de dizer o óbvio, mas, nos tempos atuais, até o mais cristalino direito necessita ser lembrado.


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, determinou a suspensão da tramitação de todos os processos judiciais em andamento no território nacional que versem sobre o compartilhamento, sem autorização judicial e para fins penais, de dados fiscais e bancários de contribuintes. Trata-se de uma medida elementar de respeito ao Direito. Protegidos sob sigilo, os dados bancários e fiscais não podem ser compartilhados com o Ministério Público sem autorização judicial.

Também foram suspensos, pela decisão do presidente do STF, os inquéritos e os procedimentos de investigação criminal conduzidos pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais que foram instaurados sem a supervisão do Poder Judiciário e nos quais houve compartilhamento, sem autorização judicial, de dados da Receita, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e do Banco Central.

A decisão foi proferida num Recurso Extraordinário, com repercussão geral reconhecida, que avalia a constitucionalidade do compartilhamento de dados da Receita, do Coaf e do Banco Central com o Ministério Público. No caso, o Tribunal Regional Federal da 3.ª Região declarou nula uma ação penal sob o fundamento de que a prova apresentada pelo Ministério Público baseava-se exclusivamente em informações sigilosas da Receita Federal, compartilhadas com o Ministério Público sem a devida autorização da Justiça.

Não deixa de ser estranho que a Corte Constitucional tenha de ser acionada para dizer o óbvio. Num Estado Democrático de Direito, a quebra de sigilo bancário e fiscal para fins de investigação criminal ou instrução processual penal depende de prévia autorização judicial. No entanto, deve-se reconhecer que, nos tempos atuais, até o mais cristalino direito necessita ser lembrado e protegido. Com pequenas e não tão pequenas concessões ao longo do tempo, o que era límpido se torna, aos olhos de alguns, nebuloso.

A relativização do sigilo promovida pelo Ministério Público remete a um caso já julgado pelo STF. Em 2016, o Supremo entendeu, por maioria de votos, que era constitucional a permissão, dada pela Lei Complementar 105/2001, para que a Receita Federal recebesse, sem prévia autorização judicial, dados bancários de contribuintes fornecidos diretamente pelos bancos. O entendimento majoritário foi de que essa autorização legal não representava quebra de sigilo. Seria tão somente uma transferência do sigilo da órbita bancária para a fiscal, e os dados permaneceriam protegidos contra o acesso de terceiros. Uma vez que a Receita continuaria com o dever de preservar o sigilo, não haveria ofensa às garantias constitucionais de proteção da privacidade.

Ainda que seja questionável, a interpretação do Supremo Tribunal Federal de modo algum permitiu o acesso direto do Ministério Público a dados sigilosos para fins penais. Vale lembrar que o Supremo, ao fixar as garantias dessa comunicação de dados com o Fisco, indicou a necessidade de “prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos”.

Além disso, a própria Lei Complementar 105/2001 estabeleceu que eventuais informações dos bancos ao Fisco “restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”. Não poderia ser diferente, pois a lei veio regulamentar – e não abolir – o sigilo das operações financeiras.

É grave que o Ministério Público, instituição responsável pela defesa da ordem jurídica, opte por percorrer caminhos que violam o sigilo bancário e fiscal. As investigações devem ser feitas dentro da lei, que prevê modos de acessar dados financeiros e fiscais, sempre mediante autorização judicial. O sigilo bancário e fiscal é uma garantia constitucional, que deve valer para todos, sem exceções.