O dia seguinte
Roberto Pompeu de Toledo
Revista Veja
Um mistério ronda a sucessão presidencial no Brasil. Não, não se trata de saber o que vai fazer o novo presidente. Trata-se de saber o que vai fazer o ex-presidente. Haverá, para o presidente Lula, existência possível sem os comícios, as inaugurações, os discursos na ONU, as viagens de chefe de estado? Sem o exército de assessores, os ministros, as ordens para as lideranças no Congresso? Ele sobreviverá à subtração dessa exclusividade da Presidência que é o permanente foco dos holofotes? Haverá a possibilidade de, sem graves danos psicológicos, aceitar a transição para a vida no apartamento de São Bernardo? Jamais um presidente chegou ao fim do mandato com tanta energia para gastar.
Falta ao Brasil o instituto da Ex-Presidência. Copiamos dos Estados Unidos o instituto da Presidência. Recentemente, chegamos ainda mais perto do modelo ao instituir a reeleição. Esquecemos de copiar o instituto da Ex-Presidência. Este tem sua base na proibição de o presidente concorrer uma terceira vez ao cargo. Elegeu-se e reelegeu-se, acabou. Não lhe sobra a possibilidade de, passados quatro anos, voltar a candidatar-se. Dada essa premissa, o costume fez o resto. Cabe ao ex-presidente o papel de político aposentado, por isso mesmo de estadista acima do bem e do mal, chamado eventualmente para missões internacionais ou para dar palpites em momentos críticos, e de resto dedicado às conferências, ao livro de memórias e à gestão de sua “Biblioteca”, como é conhecida por lá a instituição que cuidará dos papéis, das fotos, dos filmes e das tralhas diversas que lhe documentam o período presidencial.
No Brasil, a possibilidade de voltar a candidatar-se joga a aposentadoria para seus limites biológicos. Um presidente que deixa o cargo bem avaliado descerá da cadeira candidato à volta. Juscelino Kubitschek entregou a Presidência com a campanha “JK 65” (o ano no qual haveria novas eleições, não fosse o que se sabe) já no ar. Presidentes de menor estatura, como José Sarney e Itamar Franco, continuaram ciscando pelas bordas, no Senado ou nos governos estaduais. Fernando Henrique Cardoso é o único que se enquadrou no bom modelo americano: foi cuidar das conferências e de seu instituto, calcado no exemplo das “Bibliotecas” dos americanos.
Lula é um caso especialíssimo. Há precedentes de presidentes bem avaliados ao fim do mandato, mas não com 80% de aprovação. Há casos de presidentes que se envolveram na campanha para eleger o sucessor, mas não no mesmo nível. Já houve presidentes embevecidos com os próprios méritos, mas não inebriados. Ele completa o mandato como um bólido sem freios. A resposta às perguntas formuladas no início deste artigo é não. Não se concebe Lula entregue à paz de São Bernardo. Se ganha a oposição, dá para adivinhar seu roteiro de conduta: no dia seguinte volta aos comícios e caravanas, já instituído em candidato à próxima eleição. Ganhando sua candidata, abre-se um mar de dúvidas, decorrentes de nunca se ter visto um ex-presidente com tanto potencial (talvez tantas ganas) de atuar no governo seguinte.
As dúvidas começam pelo local que escolherá como base e evoluem para os modos de atuação. Montará ele um gabinete em São Bernardo? Em São Paulo? Brasília? Com que staff, em quantidade e qualidade? Participará de reuniões no governo? Dará algum conteúdo à sua antiga condição de presidente de honra do PT? Pretenderá fazer-se articulador da coligação governamental? Postulará missões de política externa? Essas interrogações têm, todas, implicações na futura relação entre o ex-presidente e a sucessora. A condição de subalterna que Dilma Rousseff aceitou, e nem tinha como deixar de aceitar, ao longo da campanha, não poderá ser mantida sem prejuízo de seu prestígio, de sua autoestima e da envergadura que se espera de um presidente.
Sobram para Dilma, por isso, pesados desafios. Como permitir a interferência do antecessor sem dar a impressão de ser conduzida por ele? Como repeli-la, sem magoá-lo? Como conciliar a afirmação no mais alto cargo com a existência de um patrono que é também potencial candidato à sua sucessão? Como evitar a fragilizadora impressão de estar apenas preservando a cadeira para devolvê-la ao legítimo proprietário? No limite, como equilibrar-se em meio a armadilhas diversas sem romper com o antecessor? E, rompendo, como tantas vezes já ocorreu entre criador e criatura, na política brasileira, como levar a cabo seu governo? O mistério que ronda a sucessão deita sombras sobre uma relação entre sucessor e sucedida potencialmente delicada como nunca se viu na história da Presidência.