quinta-feira, outubro 27, 2016

Dreyfus e Proust vão a Curitiba - MIGUEL DE ALMEIDA

O Globo - 27/10


O nós e eles, na gramática lulista e inspirada em Goebbels, evoca facilmente a luta entre os dreyfusistas e os antidreyfusistas. Ou o embate entre o bem e o mal


Ao longo dos volumes de “Em busca do tempo perdido”, mergulho na alma feito por Marcel Proust, um fato político real plasma suas páginas: a divisão provocada na sociedade francesa nos anos finais do século XIX pelo controvertido caso Dreyfus. O autor observa como o processo envolvendo o militar dividiu as amizades, os grupos, os convivas e até os amantes, deixando dúvidas nas alcovas escusas.

De repente, os bares, bulevares e salões com suas madeleines ficam radicalmente divididos entre dreyfusistas e antidreyfusistas. Uns odeiam os outros. Ao leitor, alguma coisa lhe parece familiar?

Em 1894, o oficial de artilharia Alfred Dreyfus, acusado de alta traição por passar segredos militares da França à arquirrival Alemanha, é condenado; perde sua patente, sua espada é quebrada em público. Expulso do Exército, é degredado para a Ilha do Diabo, coitado. Ocorre que o processo se encontra recheado de erros maledicentes. Logo se inicia toda uma movimentação para libertá-lo. Porém, o que dividia os franceses não era tão somente o episódio militar, mas sim o fato de Dreyfus ser judeu: assim, todo um ódio antissemita permeia as discussões e alimenta as suspeitas de praxe. Antes um problema de incompetência gerencial militar, vendida como conspiração de folhetim bem banal, logo se avoluma numa campanha de ódio contra os judeus, alimentada por ciúmes, desconfianças e intrigas racistas. Ao final, depois de muitas reviravoltas, degredos, suicídios e dilapidação de biografias (familiar, professora Chauí?), Dreyfus é inocentado, recupera seu uniforme, espada, e o Exército reconhece seu erro brutal. Mas é tarde demais. Meu herói Émile Zola, responsável por denunciar a farsa e nomear os reais traidores no lendário artigo “Eu acuso”, no jornal “L’Aurore”, já se encontra morto, e não vê a redenção de Dreyfus. Muitas amizades também estariam rompidas para sempre.

Marcel Proust, que andou por Paris recolhendo assinaturas para uma petição pedindo a revisão do processo, assinada por Claude Monet e Anatole France, entre outros, coloca seu personagem Charles Swann, antes um dândi, colecionador e amante infatigável, ao final como alguém a ser evitado nos principais salões por ser… judeu. Uma cruel cena mostra o risca-faca entre o Duque de Guermantes e Swann: amigos de troca-troca (Proust gostaria da minha suspeita?) se separam de maneira irreconciliável.

A clivagem tramada pelo marketing politico de João Santana e corroborada ad nauseam por Lula ao longo da eleição de 2014 agravou-se com a eclosão da Lava-Jato e a dispensa constitucional de Dilma Rousseff da Presidência da República. O nós e eles, na gramática lulista e inspirada em Goebbels, evoca facilmente a luta entre os dreyfusistas e os antidreyfusistas. Ou o embate entre o bem e o mal forjado pela protoesquerda francesa após seguidas derrotas nas urnas no início do século passado. Velhos ressentimentos, antissemitismo, panfletos apócrifos, imprensa sensacionalista em busca de sangue, no caso Dreyfus, se travestem hoje no falso ódio contra a elite (Marcelo Odebrecht que me desminta), no fantasma da luta de classes, nos cães digitais e na insistência em destruir a reputação do adversário como estratégia política: somos todos ladrões.

A manipulação no caso Dreyfus, longamente estudada, inclusive por Hannah Arendt, mostra como se criam falsas realidades, por meio de ódios velados, para se camuflar a verdade e não serem apuradas as suspeitas. À época, Zola denunciou o silêncio obsequioso de ocasião de boa parte dos intelectuais. O leitor por certo achará a história bastante familiar, não?

Miguel De Almeida é editor e escritor

Covardia com os jovens - RODRIGO CONSTANTINO

GAZETA DO POVO - PR - 27/10

Os partidos de esquerda que defendem as “ocupações” nas escolas, que querem substituir a educação pela doutrinação ideológica, enxergam os jovens como massa de manobra


O ser humano nasce “prematuro”, ao contrário dos animais, que já nascem prontos para repetir por instinto aquilo que sua espécie vem fazendo há séculos. É o mais complexo dos animais, com sua incrível ferramenta que é a razão, mas totalmente despreparado ao nascimento. Cheio de potencialidades, mas que precisam ser fomentadas.

Eis o grande papel da educação: formar o homem. Extrair de dentro dele tudo aquilo que ele pode ser, ajudá-lo a alcançar sua plenitude num voo solo, independente, nutrido pelo estoque de conhecimento acumulado por nossa espécie ao longo dos séculos. Nem anjo nem besta, mas com possibilidade de aperfeiçoamento.

Civilizar é justamente domesticar o animal homem, transmitir-lhe os valores incrustados nas tradições, que sobreviveram ao longo dos tempos. É criar freios aos seus apetites, para que suas ações possam ser refletidas, conscientes, e não apenas uma válvula de escape aos seus instintos mais selvagens.

Mas, por vários motivos, a vaidade talvez sendo o maior deles, muitos adultos se recusam a educar os mais jovens. Querem ser como eles, trocar de papel, numa esperança vã de não envelhecer. Querem idealizar o jovem como poço de sabedoria, ou usá-lo como massa de manobra para seus próprios anseios. Querem sonhar com a visão romântica do “bom selvagem”.

Rousseau foi o pensador que mais alimentou essa ilusão. Ao mesmo tempo em que abandonou todos os seus filhos, pretendeu ensinar ao mundo como educar as crianças. O “filósofo da vaidade”, como o chamava Burke, transferiu para o Estado a responsabilidade dos pais. E via os jovens como argila a ser moldada aos seus próprios desejos. Foi, em muitos aspectos, o pai do totalitarismo moderno.

Uma visão mais realista dos jovens pode ser encontrada em O Senhor das Moscas, de William Golding. Deixadas à própria sorte, eles não se tornam anjinhos, mas perigosos animais. E, pior ainda, quando são manipulados por oportunistas, podem se transformar num exército fascista. É o que mostra o filme alemão A Onda. Se o professor deixa de ser professor para se tornar guru de seita, ele pode facilmente seduzir os jovens e criar um ambiente coletivista onde as individualidades se anulam, dando lugar a uma massa monolítica e violenta.

Vale citar a descrição que Gustave Le Bon fez do fenômeno: “Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. No caso de tudo pertencer ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência, que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto”.

Os partidos de esquerda que defendem as “ocupações” nas escolas, que querem substituir a educação pela doutrinação ideológica, enxergam os jovens como massa de manobra. Os militantes disfarçados de professores cometem um crime contra a juventude. E os pais que delegam a responsabilidade de educar são negligentes. Todos praticam um ato de covardia com os jovens.

Concluo com dom Lourenço de Almeida Prado: “Do velho se espera a reflexão e a medida, o discernimento mais perfeito entre o certo e o errado, a calma madura na ponderação da coisa a fazer, a sabedoria obtida na sucessão das surpresas e percalços de uma caminhada que já vai longe”.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

Prefeito ou babá? - JOÃO LUIZ MAUAD

O Globo - 27/10

Um candidato a prefeito do Rio tinha como slogan de campanha o seguinte bordão: “Eu sou fulano, e estou pronto para cuidar de você e de sua família”. Esse paternalismo (muitas vezes) bem-intencionado de nossos políticos, para quem o Estado deve tutelar os cidadãos do berço ao túmulo, não é nenhuma novidade, mas esconde alguns perigos, principalmente para a liberdade dos tutelados.

Immanuel Kant, num ensaio de 1784, intitulado “O que é o Iluminismo?”, disse o seguinte, sobre a falta de autonomia individual: “Preguiça e covardia são as razões pelas quais uma parte tão grande da humanidade, de bom grado, permanece tutelada durante toda a vida... Essas são as razões por que é tão fácil para alguns estabelecer-se como guardiões. É tão confortável ser dependente. Se eu tivesse um livro que pensasse por mim, um pastor que atuasse como minha consciência, um médico que prescrevesse toda a minha dieta, e assim por diante — então não teria necessidade de me esforçar. Não teria necessidade nem mesmo de pensar, pois... outros iriam cuidar desses afazeres desagradáveis para mim.” Embora tenha mais de dois séculos, esta passagem soa surpreendentemente contemporânea. Atualmente, somos reféns inermes dos autoproclamados cuidadores a nos dizer como gerir as nossas vidas, desde alimentação saudável até a educação de nossos filhos.

Não seria de todo mau se fossem somente conselhos ou sugestões. O problema é que os “ungidos” não se limitam apenas a isso. Eles querem também nos impor seus hábitos e suas virtudes. Esses “senhores do bem” desenvolveram a mania de regular as vidas das pessoas, de tal forma que nos proíbem não só as práticas universalmente nocivas à vida social, mas também aquelas consideradas, no máximo, de caráter duvidoso. Não raro, confundem crimes e vícios, tachando de ofensivo qualquer comportamento em desacordo com seus gostos pessoais. Pensem, por exemplo, em como nos tornamos reféns de hábitos e discursos politicamente corretos, ao mesmo tempo em que somos proibidos de certas atividades que não trazem prejuízo a ninguém, senão a nós mesmos.

Desde o advento da sociedade civil, dois desejos têm estado em permanente conflito: de um lado, o desejo do indivíduo de controlar e regular sua própria vida, de tal forma a promover o que ele concebe ser o seu próprio bem, a busca da felicidade e, de outro, o desejo de cercear as iniciativas dos demais, de tal sorte a promover o que se convencionou chamar de bem comum.

A prática do primeiro destes desejos é o que chamamos de liberdade, e a do segundo, autoridade. Ao longo de toda a história da humanidade, temos oscilado, como um enorme pêndulo, entre os dois lados.

Atualmente, nossos políticos parecem intoxicados pela plenitude da autoridade, utilizada amiúde em proporção muito superior a que lhes foi confiada. Assim, sempre que visualizam qualquer problema, por menor que seja, resolvem promulgar uma nova norma para tentar saná-lo. De fato, se me pedissem para nomear a característica que, mais do que qualquer outra, distingue nossas instituições políticas atuais, eu diria que é a compulsão por editar novas leis, quase sempre em prejuízo da liberdade alheia.

De minha parte, como cidadão amante da liberdade, acho que precisamos de um bom prefeito, não de uma boa babá.


João Luiz Mauad é administrador e diretor do Instituto Liberal