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O discurso de estreia avisou que um fora-da-lei se fantasiara de inocente
Em 12 de março de 2007, publiquei no Jornal do Brasil um artigo sobre o discurso de estreia do senador Fernando Collor. A obscena sessão desta segunda-feira informou que o prazo de validade do texto está longe de expirar. Confira:
Durou três horas a reapresentação do artista, agora no papel de representante de Alagoas naquilo que é chamado de “a mais alta Casa do Legislativo”. Terminado o discurso de estreia no Senado, abrilhantado por intervenções do coral multipartidário, Fernando Collor proporcionara aos brasileiros um espetáculo pouco edificante, mas muito pedagógico para osd que se animam a examinar, sem lentes deformadoras, as profundezas da alma nacional.
O desempenho demonstrou que o artista quando jovem era um pouco pior. Agora utiliza com mais parcimônia trechos que recomendam voz embargada. Troca o pranto exagerado e inconvincente pela lágrima furtiva, pelo soluço quase represado. Tenta reprimir esgares que traem a arrogância uterina. Até consegue fingir que estende a mão que perdoa a supostos carrascos. Louvado o esforço do ator, reafirme-se que a encenação nada teve de edificante.
Com a ajuda dos figurantes, Collor demonstrou que, no Brasil, um culpado não demora a reencarnar como vítima sem ter purgado os muitos pecados cometidos. Os acusadores de ontem são os espectadores cúmplices de hoje, prontos para juntar-se, amanhã, às testemunhas de defesa. O conteúdo do discurso, somado à reação amistosa de alguns senadores, à mudez de outros, ao sumiço da voz das ruas, sugere que estão prescritos os incontáveis crimes, violências, obscenidades e outros ultrajes ao Brasil decente ocorridos durante o reinado de Collor.
O pesadelo começou em 1º de janeiro de 1990, horas depois da chegada ao poder do homem que, nascido no Rio, fundiu na mocidade todos os defeitos da oligarquia gaúcha e do coronelato nordestino. Terminou formalmente em 28 de dezembro de 1992, com a renúncia de Collor, que apenas consumou a morte anunciada meses antes. Collor não deixou a vida política por vontade própria. Sangrava havia meses com os sucessivos escândalos. No dia da capitulação, o Brasil inteiro sabia que, durante dois anos, tivera na Presidência um aventureiro sem compromisso com valores éticos, com a lógica, com a lei.
Na versão exposta no discurso, Collor só cometeu uns poucos pecados veniais. Não deveria ter tungado a poupança dos brasileiros, exemplificou. Poderia ter sido mais clemente com os inimigos e mais generoso com os aliados, sobretudo os infiltrados no Poder Legislativo. Talvez devesse ter sido menos indulgente com alguns auxiliares. “Cometi equívocos”, concedeu. Nada grave. Nada que justificasse a perda do mandato, violência que debitou na conta do Congresso com a placidez dos farsantes, sem que um só dos presentes se atrevesse a exumar cadáveres ainda em decomposição ou insepultos.
E a gastança na Casa da Dinda? E os casos de extorsão promovidos por Paulo César Farias, o tesoureiro do reino? E o assassinato suspeitíssimo do chefe da quadrilha federal? E a história do Fiat Elba? E a fortuna criminosamente acumulada para financiar futuras campanhas? E a roubalheira institucionalizada? E a farsa dolarizada da Operação Uruguai? As perguntas continuam à espera de respostas. Nenhum senador ousou fazê-las.
“O tempo é o senhor da razão”, dizia a inscrição numa camiseta de Collor. O passar dos anos não absolveu o ex-presidente. Só mostrou que os pais-da-pátria conseguiram tornar o Brasil ainda mais cafajeste. Não é pouca coisa.