Um final feliz, dentro do possível
DANUZA LEÃO
FOLHA DE SÃO PAULO - 18/04/10
Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi
O QUE SERÁ menos pior: ter uma morte relativamente em paz, com o auxílio de todos os procedimentos para evitar a dor, ou passar dias, semanas, talvez meses, rodeado de médicos e enfermeiras, cheio de tubos, com estranhos aparelhos em volta, lúcido, talvez -o que é bem pior-, para poder viver por mais alguns dias, semanas, talvez meses? Difícil, a resposta.
Mesmo assim, merece palmas o novo Código de Ética Médica, que dá ao paciente o direito de decidir se o médico deve ou não continuar o tratamento para prolongar sua vida.
Esse paciente, em caso de impossibilidade, pode registrar em cartório o "testamento vital", delegando poderes a alguém para decidir quais os procedimentos que autoriza (ou não), sobretudo para cessar esforços inúteis para ter mais algum tempo de vida, sabe-se lá de que maneira.
A ideia é boa, mas não imagino alguém, em boa saúde, indo ao cartório para fazer esse testamento. Se já estiver mal, a ideia de levar o tabelião ao hospital é terrível. E afinal, delegar a alguém o direito de decisão sobre nossa vida é muito sério. E essa pessoa, será que aceita tal responsabilidade? É aí que começam os problemas, sobretudo se o doente for rico, pois deve ser alguém de total confiança, que não deixe a menor dúvida quanto à sua decisão. E, de preferência, que não seja herdeiro.
Ainda vai haver muita briga em torno desse Código de Ética. Os médicos, para cessarem com os procedimentos, vão querer ver o tal testamento (com firma reconhecida), e se o próprio doente disser que não quer que prolonguem sua vida, já que não existem esperanças, vão querer isso por escrito, para evitar um processo futuro.
Quem ainda não botou sua colher torta no assunto foi a Igreja. É bem verdade que no momento ela está mal na foto, mas é claro que vai dar seus palpites e dizer que a vida é sagrada etc. e tal. Tão sagrada que não é permitido aos católicos o uso de nenhum contraceptivo, mesmo em caso de risco de morte. E a igreja está perdoando tanto -sem nem precisar pedir- que perdoou os Beatles pela blasfêmia ("somos mais famosos do que Jesus") e anos de sexo, drogas e rock and roll; já já estará perdoando os padres pedófilos.
A verdade é que essa história de morte é muito malfeita, e as pessoas não deveriam morrer, apenas tomar um avião e nunca mais dar notícias.
Os amigos poderiam até reclamar, "poxa, nem um telefonema, nem um e-mail com uma foto", mas com o tempo iriam se esquecendo.
Eu tinha um amigo que ficou longo tempo no hospital sofrendo por um monte de coisas. Num determinado momento de um determinado dia, ele percebeu que estava chegando a hora -ou apenas cansou, nunca vamos saber. Fez um sinal para a mulher, com quem já tinha combinado tudo, ela ligou o iPod com as músicas de que ele mais gostava, tirou da bolsa uma garrafa de uísque, serviu dois, um para cada um, em copos que havia trazido de casa, com gelo e soda, que vieram em um pequeno isopor. Enquanto tomavam a primeira dose, ela, que o havia obrigado a deixar o vício de fumar há anos e que nem fumante era, abriu um maço de cigarros, tirou um, acendeu e pôs na mão dele, que sorriu como não fazia há tempos. Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi; ela, quase feliz, por terem usufruído, juntos, algumas horas de bem-estar. Houve quem dissesse que eram dois loucos.
Algum tempo depois foi sua vez; passou por todos os sofrimentos de praxe dentro de um hospital, e imagino que tenha pensado em como seria bom ter alguém que lhe oferecesse uma bebida que a ajudasse a ficar levemente eufórica, só que num hospital essas coisas não existem.
Uma pena, aliás. E essa história é verdadeira.
Mesmo assim, merece palmas o novo Código de Ética Médica, que dá ao paciente o direito de decidir se o médico deve ou não continuar o tratamento para prolongar sua vida.
Esse paciente, em caso de impossibilidade, pode registrar em cartório o "testamento vital", delegando poderes a alguém para decidir quais os procedimentos que autoriza (ou não), sobretudo para cessar esforços inúteis para ter mais algum tempo de vida, sabe-se lá de que maneira.
A ideia é boa, mas não imagino alguém, em boa saúde, indo ao cartório para fazer esse testamento. Se já estiver mal, a ideia de levar o tabelião ao hospital é terrível. E afinal, delegar a alguém o direito de decisão sobre nossa vida é muito sério. E essa pessoa, será que aceita tal responsabilidade? É aí que começam os problemas, sobretudo se o doente for rico, pois deve ser alguém de total confiança, que não deixe a menor dúvida quanto à sua decisão. E, de preferência, que não seja herdeiro.
Ainda vai haver muita briga em torno desse Código de Ética. Os médicos, para cessarem com os procedimentos, vão querer ver o tal testamento (com firma reconhecida), e se o próprio doente disser que não quer que prolonguem sua vida, já que não existem esperanças, vão querer isso por escrito, para evitar um processo futuro.
Quem ainda não botou sua colher torta no assunto foi a Igreja. É bem verdade que no momento ela está mal na foto, mas é claro que vai dar seus palpites e dizer que a vida é sagrada etc. e tal. Tão sagrada que não é permitido aos católicos o uso de nenhum contraceptivo, mesmo em caso de risco de morte. E a igreja está perdoando tanto -sem nem precisar pedir- que perdoou os Beatles pela blasfêmia ("somos mais famosos do que Jesus") e anos de sexo, drogas e rock and roll; já já estará perdoando os padres pedófilos.
A verdade é que essa história de morte é muito malfeita, e as pessoas não deveriam morrer, apenas tomar um avião e nunca mais dar notícias.
Os amigos poderiam até reclamar, "poxa, nem um telefonema, nem um e-mail com uma foto", mas com o tempo iriam se esquecendo.
Eu tinha um amigo que ficou longo tempo no hospital sofrendo por um monte de coisas. Num determinado momento de um determinado dia, ele percebeu que estava chegando a hora -ou apenas cansou, nunca vamos saber. Fez um sinal para a mulher, com quem já tinha combinado tudo, ela ligou o iPod com as músicas de que ele mais gostava, tirou da bolsa uma garrafa de uísque, serviu dois, um para cada um, em copos que havia trazido de casa, com gelo e soda, que vieram em um pequeno isopor. Enquanto tomavam a primeira dose, ela, que o havia obrigado a deixar o vício de fumar há anos e que nem fumante era, abriu um maço de cigarros, tirou um, acendeu e pôs na mão dele, que sorriu como não fazia há tempos. Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi; ela, quase feliz, por terem usufruído, juntos, algumas horas de bem-estar. Houve quem dissesse que eram dois loucos.
Algum tempo depois foi sua vez; passou por todos os sofrimentos de praxe dentro de um hospital, e imagino que tenha pensado em como seria bom ter alguém que lhe oferecesse uma bebida que a ajudasse a ficar levemente eufórica, só que num hospital essas coisas não existem.
Uma pena, aliás. E essa história é verdadeira.