terça-feira, março 31, 2020

O ganha-ganha de Bolsonaro - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 31/03

Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama


Vi muita gente boa, não faz tanto tempo, dizer que o perfil de louco rompedor, de irresponsável trombador, era o necessário — finalmente o gatilho — para dar um tranco no Brasil e fazer o país avançar para as reformas liberais de que o Estado precisaria. Nunca acreditei nisso. Reformas estruturais dependem de estabilidade, de um chão de previsibilidade. Condições impossíveis se é — se sempre foi — o próprio presidente da República, de resto um líder sindical da ativa, com histórico golpista, a principal usina de traumas, de cismas.

Jair Bolsonaro é Jair Bolsonaro. Sempre foi. Por três décadas expôs sua natureza no Parlamento, não raro se comportando como um sociopata. Ai está. Ninguém se pode dizer surpreso.

De toda maneira, o tempo — a chance — de reformar o Estado passou. O perfil do presidente, no entanto, continua o mesmo. E não é o de um mero maluco beleza que abriria caminhos ao liberalismo econômico; mas o de um populista autoritário, centralizador, cujo reacionarismo tem por ar a forja artificial de conflitos, e cuja a natureza rompedora, inegável, só abre picadas para desguarnecer progressivamente a democracia liberal. Repito: um golpista em busca da (de fazer a) ocasião. Uma real ameaça em tempos excepcionais.

Aqueles românticos que acreditaram que esse sujeito — alguém que reage, tanto mais se acuado, cindindo e radicalizando — poderia liderar o país num amplo e profundo programa reformista agora decerto são os que creem que esse elemento poderá dirigir os esforços brasileiros de enfrentamento de uma crise mundial sem precedentes. Este sujeito: o que há três semanas — atacando a Justiça Eleitoral —afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada.

Chega de ilusão. Bolsonaro é parte — grande — do problema; um agente para o agravamento do drama. Jamais será solução. Dá mostras disso diariamente, como quando ameaça a ordem pública — investindo num choque de desobediências civis — ao aventar um decreto que desmobilizaria trabalhadores da quarentena determinada por governadores e recomendada pelo seu Ministério da Saúde. Choque de desobediências civis — resultando em caos social: uma possível ocasião para o golpista.

Atenção ao jogo de Bolsonaro. O que temos hoje mais proximamente do que se esperaria de um estadista no comando da empreitada contra a Covid-19 senão o ministro Mandetta? E o que faz o presidente ante a gestão técnica segura — referencial — do auxiliar senão desqualificá-lo e desautorizá-lo pública e seguidamente? É investimento na confusão absoluta, em estímulos de comunicação contraditórios — que geram insegurança.

Coisa alguma exemplifica melhor a mentalidade bolsonarista do que, num momento de crise, o presidente fabricar uma oposição dentro do próprio gabinete de crise. Ou alguém tem dúvida de que é isso que Bolsonaro faz? É um jogo, assim ele crê, de ganha-ganha: faz de seu ministro — que prega o distanciamento social — um oponente, uma escada para que possa apontar histerias e mostrar sua preocupação com a economia popular; mas o mantém no governo de modo a capitalizar-lhe os feitos caso a atuação do Ministério da Saúde, em parceria com os governadores, resulte no controle da epidemia.

O presidente da República é um — a palavra é esta — covarde: enquanto desdenha da gravidade da doença e dinamita todos os indicativos de responsabilidade sanitária, empurrando os desprovidos de plano de saúde às ruas justamente para respirarem o pico de contágio, aposta em que as ações restritivas dos governadores deem certo para que então possa bradar que estava correto e que a Covid-19 fora mesmo superdimensionada. Isso é Jair Bolsonaro; e esse, o seu ganha-ganha caso a epidemia seja domada.

Para dar vazão à guerra cultural absoluta que lhe dá discurso, conseguiu plantar entre nós — num triunfo da linguagem populista — a existência da oposição saúde pública (que seria valor elitista) versus saúde econômica (valor popular).É a armadilha à qual nos atraiu. A vida das pessoas contra, ora, a vida das pessoas. Um novo confronto artificial, nova arapuca para colisão institucional, que estabelece como antagônicas demandas complementares. De um lado, os alarmistas da prevenção que evitaria o colapso dos SUS, representados pelos governadores. De outro, ele, Bolsonaro, preocupado com o sustentodo pobre. Tudo somente narrativa — para o fim autocrático.

O presidente se move mesmo, se espalha, em todas as direções — e assim se move a favor do estado de anomia. O jogo de ganha-ganha na versão em que a tragédia se impõe. Muitos mortos. Muitos desempregados. Corpos empilhados. Falta de alimentos. Saques. Ingovernabilidade. Radicalização. O acirramento de uma crise — para cujo agravamento concorreu —como justificativa para medidas de exceção.

Bolsonaro foi para o all-in. As fichas somos nós. O vírus não joga.

Mandetta encara Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

UOL - 31/03

Mandetta encara Bolsonaro: não se demite; chefe que faça besteira por conta




Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta durante conversa com a Frente Nacional de Prefeitos sobre o combate ao coronavírus. Presidente não conseguiu arrastar ministro para a sua tese tresloucadaImagem: Foto: Isac Nóbrega/PR


O ministro Luiz Henrique Mandetta caiu em desgraça do coração de Jair Bolsonaro. O presidente exigia dele que endossasse a sua tese tresloucada, e única no mundo, de fim de qualquer quarentena para impedir a expansão do coronavírus, com o confinamento, sabe-se lá como, apenas dos idosos. O ministro, obviamente, recusou o "brasilicídio" defendido por Bolsonaro, o que destruiria, adicionalmente, se sobrevivesse ao vírus, a sua carreira de político e sua reputação de médico. Mandettra continua a defender o isolamento social. Mais: já disse a Bolsonaro que não vai pedir demissão. Se o chefe quiser, que o demita.

Aquele a quem alguns ainda chamam "Mito" decidiu, então, submeter o ministro da Saúde a rituais de humilhação a que já havia exposto auxiliares diretos e fieis que caíram em desgraça, como Gustavo Bebianno e general Santos Cruz, ambos demitidos, respectivamente, da Secretaria-Geral da Presidência e da Secretaria do Governo, depois de fritura vergonhosa e de prova escancarada de deslealdade... do chefe. Eram dois neófitos da política, sem traquejo

Não é o caso de Mandetta. Pessoa experimentada, com trânsito no Congresso, conexões com o empresariado e apreço da bancada ruralista, ele não depende da vontade de Bolsonaro para existir politicamente. E tem se comportado de maneira correta na crise, fazendo a articulação, que Bolsonaro se nega a fazer, com pesquisadores, médicos, governadores e parlamentares. Sua abordagem técnica do problema rendeu-lhe, por óbvio, espaço no noticiário. Condescendeu com o chefe e fez uma crítica abjeta à imprensa no sábado. Desculpou-se nesta segunda. Sigamos.

Mandetta não pôs em prática a orientação de Bolsonaro, que corresponderia a uma espécie de homicídio em massa. O "capitão", como alguns o chamam, não gosta de ser contrariado. Alimenta, parece, um sentimento pelo seu auxiliar que fica num território muito perigoso entre o ciúme e a inveja. Tudo indica que vê surgir não uma resposta técnica para o coronavírus, mas uma ameaça à sua própria liderança. Aí cabe a pergunta: qual liderança? Só se for aquela do tresloucado que sai pregando bobagens por Ceilândia e Taguatinga e que ameaça os governadores com um decreto de volta à normalidade que, se baixado, seria fulminado pela Justiça.


Mas Bolsonaro quis mostrar quem manda. Determinou que as coletivas diárias sobre o combate ao coronavírus sejam feitas agora no Palácio do Planalto, não mais no ministério da Saúde. E assim se fez. Mandetta será apenas um dos ministros a falar. Outros estarão presentes. Nesta segunda, antecederam-no os titulares da Casa Civil, Infraestrutura, AGU, Defesa e Cidadania. Ninguém tinha nada de novo a falar. Só então a palavra foi concedida ao titular da Saúde.

Como não nasceu ontem, o ministro teve de mandar os devidos recados: a Bolsonaro, aos presentes, à imprensa e ao conjunto dos brasileiros. Não vai mudar a sua abordagem. Mais de uma vez, defendeu a necessidade da quarentena, apoiando explicitamente o trabalho dos governadores e da imprensa. Disse:
"A Saúde é um norte, um farol. Enquanto não temos uma resposta mais cientificamente comprovada, a Saúde vai falar 'para e vamos evitar contágio'. Isso não é a Saúde ser boa ou má, estar certa ou estar errada. Isso é nosso instinto de preservação".

O mal-estar se explicitou quando lhe dirigiram uma pergunta sobre sua eventual demissão. Para espanto de todos, o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, tomou o microfone e se antecipou: "[Quero] deixar claro para vocês: não existe essa ideia de demissão do ministro Mandetta. Isso está fora da cogitação no momento".

Espirituoso, mas ciente do que se passava ali, o próprio ministro emendou, de modo irônico: "Vamos lá, em política, quando a gente fala 'não existe', a pessoa já fala 'existe'."

Estavam previstas oito perguntas. Ao ouvir a quarta, sobre as andanças de Bolsonaro pelo Distrito Federal, a mesa imediatamente se levantou e deu a coletiva por encerrada. Assim trabalha o presidente da República. Ele já confessou estar com "o saco cheio de Mandetta". O que o leva a se indispor com o seu ministro da Saúde, que vem fazendo um trabalho correto, do qual ele próprio poderia ser um beneficiário político? Já explicitei aqui a alma profunda de Bolsonaro: o seu prazer em ser odiado — e, pois, em odiar também — é muito superior ao seu eventual prazer de ser amado. E cada vez menos pessoas o amam. Eis aí o que pode ser um eventual traço de recuperação da saúde, mental ao menos, em meio a tanta morbidade...

A pedra no caminho - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/03

Graças a seu comportamento irresponsável, Jair Bolsonaro começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro, o de vilão internacional

O presidente Jair Bolsonaro foi reconhecido pela revista norte-americana The Atlantic como “o líder mundial do movimento de negação do coronavírus”. Já a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de “BolsoNero”, numa alusão à lenda de que o imperador Nero tocava harpa enquanto Roma ardia em chamas. E o presidente brasileiro foi o único chefe de Estado citado nominalmente pela The Lancet, uma das principais publicações científicas do mundo, em editorial crítico às respostas de muitos governos à pandemia, especialmente aqueles que “ainda precisam levar a ameaça da covid-19 a sério”.

Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.

Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.

O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.

Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.

Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.

segunda-feira, março 30, 2020

A pandemia, o sentido da vida e a política - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 30/03

Discursos demagógicos não têm efeito sobre os cidadãos, que sentem a ameaça próxima


A pandemia, o isolamento e o medo põem questões que vão mais além das relativas a como levar uma vida “normal”, por produzirem indagações sobre o próprio sentido da vida.

Em situações normais, as pessoas estão preocupadas com as atividades profissionais e domésticas, tal como acontecem no dia a dia. Preocupações básicas são as que regem este tipo de condição: a renda, a escola das crianças, a sociabilidade profissional e a familiar, o amor, a amizade, o ir às compras. Já em situações como esta que estamos vivendo, as preocupações são de outra ordem: a doença, o medo da morte, a possível falta de mantimentos, a manutenção do emprego, a redução da renda, o isolamento, a pergunta pelo amanhã.

Uma analogia possível é com a condição de guerra. Nesta, a saída abrupta da normalidade é imediatamente sentida: a existência humana é mostrada em sua fragilidade, a emergência toma conta do dia a dia. A morte abrupta surge para cada um como uma realidade, seja ela militar, seja civil. No entanto, os sentimentos e emoções daí resultantes não são necessariamente os mesmos, pois as pessoas não se isolam, mas vêm a cumprir uma função social junto ao Estado, sob a forma da defesa da pátria. A morte ganha, nesse aspecto, sentido.

A morte é uma questão existencial primeira da condição humana, essa que coloca o homem diante do nada, do limite da condição humana. Ela é o horizonte de cada um, por mais que pensemos nela ou não. A significação da morte no fim da vida faz com que as pessoas se preparem para isso, tanto individual quanto familiarmente. Retiram-se progressivamente, planejam pelo testamento a sucessão dos bens, acostumam-se à ideia. Alguns recorrem à religião, acreditando em outra vida. No caso de a morte acontecer numa guerra, ela adquire a significação de que o indivíduo é membro de uma comunidade, sendo assim compreendida pelo Estado e pelos seus próximos. No momento, porém, em que a redução do ciclo natural se dá sob a forma de uma doença coletiva, é como se o sem sentido ganhasse a forma do absurdo.

Uma significação que surge no contexto de pandemia é a de a pessoa sentir-se abandonada pela vida, abandonada por aqueles que com ela conviviam, salvo os que terminam compartilhando a mesma reclusão. Uma expressão do abandono é a solitude e a introspecção. O mundo torna-se uma ameaça. Há formas de mitigação, como o telefone e as redes sociais, que tornam viável um modo de substituição da presença física. Mas há algo aqui que faz enorme diferença: a presença física do outro, o olhar, o toque, a expressão física do sentimento. O beijo e o abraço desaparecem.

As pessoas reclusas sentem necessidade dos seus. Algumas ficam mais vulneráveis por viverem sozinhas, outras se agrupam em seus núcleos familiares mais próximos, em todo caso o seu número deve ser necessariamente reduzido. Outras que vivem na miséria têm esses sentimentos ainda mais potencializados. O contato presencial das pessoas, para além desses núcleos, é rompido. Em seu lugar surgem outros instrumentos de comunicação, as redes sociais obtendo aí protagonismo maior. Acontece, contudo, que a comunicação virtual entre as pessoas passa a ser mediada por outro tipo de comunicação, a social/digital, que se faz por notícias e informações.

Do ponto de vista da informação, tudo vale nas redes sociais, notícias verídicas como falsas. As redes podem, assim, tornar-se instrumentos poderosos de desinformação, divulgando o que se denomina fake news, tendo como objetivo aumentar a insegurança das pessoas, tornando-as ainda mais vulneráveis. O descontrole pode adquirir uma conotação política, alheia à saúde pública.

A faceta política do medo da morte e do abandono consiste numa presença maior do Estado como provedor da segurança perdida, enquanto possível solução de uma morte prematura e do abandono. Numa situação de epidemia, as pessoas tendem a pedir a intervenção do Estado, fornecendo-lhes condições de existência. Na guerra, o Estado toma a decisão de atacar outro país ou de se defender; na epidemia, a sociedade é atacada por um inimigo invisível, sem que o Estado nada tenha podido fazer.

O coronavírus, nova versão, é um inimigo que se expande, se infiltra e ameaça a vida de cada um. Desconhece fronteiras e não aceita nenhum controle estatal. Não tem medo de nada, embora faça medo a todos. Tem a forma do invisível, que só é sentido quando toma conta do corpo das pessoas. Palavras não têm sobre ele nenhum efeito, apenas medidas concretas.

Eis por que discursos demagógicos não têm sobre ele nenhum efeito, tampouco sobre os cidadãos, que sentem a sua ameaça próxima. Leem e escutam sobre o número crescente de mortos, de infectados, e se perguntam se não serão eles os próximos. Não podem, evidentemente, compreender que se possa tratar de uma “histeria”, de uma “fantasia”, pois a presença do inimigo invisível é real. Discursos técnicos, sensatos, de combate à doença tomam o lugar da demagogia, por serem eficazes nesta luta, os cidadãos podendo neles se reconhecer.

*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.

Mandetta à equipe: ‘No meio do caminho, uma pedra’ - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 30/03

Bolsonaro nas ruas foi forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha, e enviou poema de Drummond a sua equipe


O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para exercitar sua birra contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que na véspera alertou: “Se o sr. for para metrô ou ônibus em São Paulo (como chegou a dizer em entrevista), vou ser obrigado a criticá-lo”. Ao que o presidente rebateu: “E eu vou ter que te demitir”.

Como não havia logística para ir a São Paulo ontem, Bolsonaro decidiu fazer o teste no Distrito Federal mesmo, indo a padarias, mercadinhos, fazendo até fotos com criança. Evidentemente, uma forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha.

A atitude do presidente foi considerada “óbvia”, um pretexto para a exoneração – que, aliás, provocaria um efeito dominó no Ministério da Saúde. Assim, Mandetta se recolheu, pedindo paciência à equipe com um poema de Carlos Drummond de Andrade: No Meio do Caminho. Resta saber o que o ministro dirá na coletiva de hoje à tarde, além de pedir desculpas à mídia. Na guerra contra o coronavírus e a morte, ela é a sua grande aliada.

Outra grande expectativa hoje é se Bolsonaro vai mesmo editar um decreto para liberar todas as profissões para trabalhar em meio à pandemia ou se foi só mais uma ideia jogada ao ar, enquanto confrontava Mandetta nas ruas.

Se não sair decreto nenhum, essa história é mais uma para a longa lista de coisas que o presidente diz e ninguém leva a sério, nem lembra depois. Se sair, a coisa vai ficar muito grave. Além da crise sanitária, teremos uma crise federativa: a União contra os Estados, o presidente contra governadores e prefeitos.

Como o ministro do STF Gilmar Mendes alertou Bolsonaro no sábado, basta que São Paulo, Rio e Minas desobedeçam uma medida legal tomada pelo Planalto para essa medida virar pó, letra morta. Os três Estados reúnem quase cem milhões de pessoas e os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) não parecem interessados nem em quebrar a quarentena nem em cumprir decretos e maluquices de Bolsonaro numa hora de vida ou morte.

Quem tem juízo e quem não tem - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 30/03

Para Bolsonaro, não importa preservar a economia ou as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem


Os líderes do G-20, grupo das principais economias do mundo, anunciaram uma injeção da ordem de US$ 5 trilhões na economia global para enfrentar os impactos da pandemia de covid-19. “O G-20 se compromete a fazer o que for necessário para superar a pandemia”, informou o grupo em nota oficial. No comunicado, o G-20 se diz “determinado a não poupar esforços, individual e coletivamente, para proteger vidas; salvaguardar empregos e a renda das pessoas; restaurar a confiança, preservar a estabilidade financeira, estimular a recuperação e o crescimento econômico; impedir a interrupção do comércio e da cadeia global de suprimentos; ajudar todos os países carentes de assistência; coordenar ações nas áreas financeira e de saúde pública; e combater a pandemia”.

Na reunião, feita por teleconferência, todos os líderes do G-20 tiveram alguns minutos para comentários. O presidente Jair Bolsonaro usou seu tempo para defender medidas para estimular a economia e destacar os supostos progressos no desenvolvimento de uma droga à base de hidroxicloroquina para conter o novo coronavírus – cujas pesquisas, a despeito do otimismo de Bolsonaro, estão ainda longe de ser conclusivas.

Deve ter ficado claro para os demais chefes de governo do G-20 que não podem contar com o colega brasileiro, perdido em seus devaneios sobre uma cura milagrosa que viria a tempo de salvar milhares de vidas e, o que lhe parece mais importante, evitar o colapso econômico do Brasil – pois, segundo suas próprias palavras, “se afundar a economia, acaba com meu governo”.

Assim, para Bolsonaro, não importa nem preservar a economia nem as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem, com vista à próxima eleição. Por isso, insurge-se contra todos aqueles que – governadores à frente, mas também seu ministro da Saúde – propõem ou ministram remédios amargos, mas imprescindíveis, para conter a epidemia.

Como mostrou o G-20 ao se propor a gastar US$ 5 trilhões (mais que o dobro do PIB brasileiro) contra a pandemia, o que o mundo está enfrentando não se cura com licor de cacau Xavier. Graças à liderança caótica e hesitante de Bolsonaro, a equipe econômica até agora apresentou medidas tímidas que representam menos de 4% do PIB, segundo cálculo da Fundação Getúlio Vargas, enquanto os Estados Unidos poderão despender até 11% do PIB e o Reino Unido, 17%, para ficar apenas em países governados por políticos que Bolsonaro admira. O Reino Unido vai bancar até 80% da renda dos trabalhadores cujos salários forem suspensos, dentro de um limite de 2.500 libras mensais, bem acima do salário mínimo de 1.300 libras. Já Bolsonaro dará um “voucher” de R$ 600 (60% do salário mínimo) para trabalhadores informais – lembrando que, inicialmente, o presidente havia proposto R$ 200, e só bancou um valor maior depois que o Congresso propôs R$ 500.

Para Bolsonaro, contudo, tudo vai se resolver se as medidas de isolamento social forem imediatamente suspensas. Tornou a atacar os governadores, dizendo que estes terão de arcar com encargos trabalhistas de quem for obrigado a fechar seu estabelecimento comercial. Para ampliar a pressão, seu governo, contrariando diretrizes do próprio Ministério da Saúde e o apelo de todas as principais entidades médicas do País, lançou nas redes sociais uma demagógica campanha intitulada “O Brasil não pode parar”, que minimiza a epidemia e defende “voltar à normalidade”. Com isso, irresponsavelmente, estimula os brasileiros a desobedecerem à determinação de governos estaduais para manter o isolamento social, única forma de impedir que a epidemia cause o colapso do sistema de saúde – que, se ocorrer, ampliará de modo exponencial o número de mortos e, consequentemente, o desastre econômico, pois mortos não trabalham.

Mas Bolsonaro não está nem um pouco preocupado. “Eu acho que não vai chegar a esse ponto”, disse o presidente. “Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele.” Caramba!

domingo, março 29, 2020

Muitos treinadores do país têm dificuldade em seguir a evolução do futebol - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 29/03

O futebol brasileiro piorou porque não aproveitou a evolução técnica e científica das últimas décadas


Existem treinadores que acreditam muito mais no que acham, no que fizeram e que um dia deu certo, do que na evolução do futebol e da ciência esportiva. Além disso, muitas coisas no futebol dão certo, mesmo erradas, já que há inúmeros fatores envolvidos no resultado e na atuação das equipes.

A mesma postura ocorre com políticos, dirigentes e profissionais de diversas áreas. É uma mistura de superstição, prepotência, ignorância, fanatismo e negação psicológica.

Por isso e por vários outros motivos, muitos treinadores brasileiros têm tido grande dificuldade em acompanhar a evolução do futebol, que foi marcante nos últimos 20 anos.

É uma das causas do 7 a 1, de o Brasil não ganhar o Mundial desde 2002 e de os times terem enormes problemas contra adversários sul-americanos mais fracos e/ou com muito menos investimentos.

O futebol brasileiro não piorou porque perdeu sua essência, o brilho, o jogo irreverente, surpreendente, dos anos 1960. Isso tudo é importante, mas o futebol brasileiro piorou porque não aproveitou a evolução técnica, tática e científica das últimas décadas.

Isso contribuiu também para a diminuição do número de grandes craques. Não se deve confundir os fenomenais atletas, que são poucos, com os bons, ótimos. Estes continuam sendo formados em grande quantidade no Brasil.

De vez em quando, ouço alguém dizer que um treinador precisa optar entre ter um forte conjunto ou ter muitos craques, como se estes atrapalhassem o coletivo da equipe. Nada a ver.

Retorno à seleção de 1970, assunto da coluna anterior, que, 50 anos atrás, em junho, ganhou o terceiro título mundial. Era uma equipe que tinha o melhor de todos os tempos, além de vários craques, que estão entre os grandes da história. Tinha ainda um excepcional conjunto, além de praticar um jogo revolucionário para a época.

Parreira, em 1970, era uma mistura de auxiliar da preparação física e observador. Ele assistiu, no estádio, à semifinal entre Itália e Alemanha.

Parreira bateu dezenas de fotos e as colocou em sequência, para mostrar a marcação individual da equipe italiana e o posicionamento do zagueiro que ficava na cobertura, atrás dos quatro outros defensores.

Zagallo e todos nós decidimos que eu jogaria entre os quatro defensores e o zagueiro da sobra, para evitar que ele saísse na cobertura. Resolvemos ainda que, quando Jairzinho entrasse em diagonal e fosse acompanhado pelo lateral-esquerdo Fachetti, Carlos Alberto avançaria e ocuparia esse espaço no ataque.

Assim, saiu o quarto gol. Neste e no gol de Gérson, o zagueiro da sobra não saiu na cobertura, porque eu estava à sua frente. Foi também uma vitória tática.

No vestiário, logo após a conquista, dei ao dr. Roberto Abdalla Moura minha medalha de campeão e a camisa com que joguei o primeiro tempo. Guardei, porque sabia que a do segundo tempo seria arrancada de meu corpo após a conquista do título, como ocorreu. Dr. Roberto foi o médico que me operou do olho nos Estados Unidos, oito meses antes da Copa.

Ele, convidado pela comissão técnica, viajava de Houston até o México, dormia no hotel da concentração com os jogadores e acompanhava as partidas da seleção no estádio.

Horas depois da final, houve um jantar, uma festa da Fifa para o time campeão. Antes da sobremesa, saí de fininho, peguei uma carona com um mexicano e fui para o hotel, onde encontrei meus pais. Choramos, abraçados.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.

Despreparados para a guerra** - PERSIO ARIDA

Folha de S.Paulo - 29/03

A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. Muitas propostas já deviam ter sido postas em prática, como devolver aos trabalhadores até mesmo 100% do saldo de suas contas no FGTS.

Diante da perspectiva de queda sem precedentes do PIB, economista propõe achatamento da curva de juros, defende que governo complemente salários e sugere mudança institucional para permitir que BC possa comprar títulos do Tesouro em mercado. Neste momento só lunático veria risco inflacionário, afirma


A história vai mostrar que ideia de que o coronavírus é uma gripezinha causou uma tragédia humana e social. Tivemos sorte porque o vírus demorou para chegar aqui, mas a desperdiçamos com a inépcia governamental.

Se o governo tivesse levado a sério a epidemia, poderia ter testado desde o começo do ano todos os viajantes que entraram no Brasil, como a China testa até hoje todos os que chegam do exterior. Poderia ter se preparado aumentando o número de leitos, estocando equipamentos médicos e de proteção para os profissionais da saúde. Poderia ter providenciado um grande estoque de kits de testagem do coronavírus.

Se o Brasil tivesse um sistema de saúde com grande capacidade ociosa, teríamos a opção de um tratamento social verticalizado, isolando os mais fragilizados e fazendo uma grande campanha de prevenção para o restante da população que iria trabalhar normalmente, mas não é esse o nosso caso.

O fato é que nenhuma sociedade tolera continuar a vida econômica como se nada estivesse acontecendo enquanto pessoas morrem na fila de espera do pronto-socorro ou do hospital porque não há vagas para internação. Nas nossas circunstâncias, as medidas de distanciamento social ou quarentena estão corretas —o resto é terraplanismo, oportunismo político ou lobby de empresários insatisfeitos.

Do ponto de vista econômico, há dois desafios. O primeiro é como responder à recessão. O segundo é como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavírus.

Começo pela recessão. As estimativas do PIB de 2020 variam muito, até porque dependem da duração da quarentena, da amplitude da rede de sustentação social que vier a ser implementada e também do que acontecerá no resto do mundo. No entanto, a julgar pelo que acontece, teremos uma queda sem precedentes em nossa história.

A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. A garantia de que não faltará dinheiro para a saúde foi importante, mas muitas medidas anunciadas com pompa e circunstância não saíram do papel. E muito mais deve ser feito, tanto para pessoas físicas quanto para empresas, no intuito de reduzir ao mínimo o impacto da crise.

Várias propostas já foram escritas pelos economistas para assegurar uma rede de proteção social efetiva —e muitas delas já deveriam ter sido postas em prática. São medidas de caráter temporário e com foco nos mais necessitados. Segue uma lista, com alguns acréscimos meus:

(a) O Tesouro deve pagar parte substancial dos salários dos trabalhadores. No Reino Unido, o governo vai desembolsar 80% dos salários, até determinado limite, para evitar demissões.

(b) Usando dados do Cadastro Único, Bolsa Família, BPC e CPFs nas companhias telefônicas, é possível ter um cadastro-base para um programa de transferência direta aos autônomos e desempregados, uma renda mínima para aqueles que comprovadamente não tenham nenhuma outra fonte de renda.

(c) Ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS. Isso poderia ser viabilizado através de um empréstimo do Banco Central para a Caixa, tendo como lastro os créditos hoje financiados pelo FGTS.

(d) Empréstimos a pessoas físicas com base no histórico do Imposto de Renda.

(e) Diferir por lei parte do pagamento de prestações da casa própria, independentemente do banco que financiou a aquisição do imóvel.

Do ponto de vista das empresas, devemos postergar o pagamento de impostos e dívidas tributárias para preservar o caixa. O Tesouro deveria conceder empréstimos para pequenas e médias empresas, além de programas de apoio específicos a setores particularmente atingidos.

Obviamente tudo isso vai impactar a dívida pública. Uma coisa, no entanto, é a dívida que cresce por irresponsabilidade populista dos governantes ou por força dos interesses privados incrustados na Orçamento; outra é um aumento excepcional de dívida diante de circunstâncias excepcionais.

O Banco Central tem respondido bem e agressivamente ao desafio de manter a liquidez do sistema financeiro. Faz sentido agora reduzir as taxas de juros, de curto e longo prazo. O preço dos empréstimos de liquidez importa mais que nunca em uma recessão. O Tesouro precisa encurtar o perfil da dívida pública, e o quadro institucional deve ser alterado para permitir ao Banco Central comprar títulos do Tesouro em mercado.

É importante diferenciar o que não deve ser feito do que pode ser feito dependendo da evolução da crise. Aumentar investimentos públicos ou comprar ações para fazer a Bolsa subir são exemplos de mau uso dos recursos públicos. Comprar debêntures e cotas de fundos de crédito, como faz o Banco Central Europeu, ou o Tesouro conceder empréstimos sem exigência de colateral são passos que podem vir a fazer sentido.

Deveríamos nos preocupar com a solvência do governo quando a dívida pública chegar a 85% ou 90% do PIB? E se o governo não conseguir mais vender papéis de dívida e tiver que pagar os credores em moeda?

Há uma enorme confusão nessa matéria. Bancos centrais imprimem papel-moeda, mas no mundo digital em que vivemos os pagamentos feitos em notas impressas são irrelevantes. O grosso das transações ocorre através de cartões de crédito e débito, transferências bancárias ou aplicativos de pagamento digital. Exceto pelo papel-moeda, a “moeda” que o Banco Central cria é um depósito remunerado na conta de alguma instituição financeira.

A dívida pública, qualquer que seja seu tamanho, sempre pode ser paga. No limite, o Banco Central pode creditar os valores devidos na conta dos detentores dos papéis da dívida.

Disso não decorre que seu tamanho não faça diferença. Um estoque muito grande de dívida pública pode gerar pressões inflacionárias, mas só um lunático acharia que corremos um risco inflacionário nas circunstâncias atuais.

Além das medidas para minorar o efeito da recessão, temos que pensar na saída da quarentena. Todos sabemos que quarentenas por períodos longos de tempo são insustentáveis. O problema é que, por despreparo do governo, estamos às cegas.

É fácil pensar o ideal. Testagem em massa para poder diferenciar áreas em que o problema foi equacionado de outras onde o vírus ainda está se disseminando. Testar os que estão com febre, testar os que foram a hospitais, mas não precisaram ser internados, testar aleatória e maciçamente para detectar os assintomáticos.

Uma boa base de dados de contaminação pelo vírus, revisada diariamente, combinada com uma análise dos padrões de conectividade e da disponibilidade de leitos nos permitiria saber, com razoável segurança, quais cidades ou regiões poderiam reativar as atividades econômicas suspensas na quarentena.

Conhecemos a disponibilidade de leitos, e há estudos sobre conectividade disponíveis. Podemos mobilizar programadores que utilizem algoritmos de inteligência artificial para lidar com grande quantidade de dados.

O drama está na testagem em massa. O governo não se preocupou em ter a quantidade de kits necessários. Sem dados de testes abrangentes, a reativação da economia, muito provavelmente, levará a repiques do coronavírus.

Uma vacina vai demorar a surgir, mas a invenção de um teste rápido e barato ou uma combinação eficaz de remédios poderiam nos ajudar muito no curto prazo. São, no entanto, esperanças no momento. A triste realidade atual é que teremos de conviver com o vírus por mais tempo do que se imagina.

Em um discurso de estadista, o presidente francês, Emmanuel Macron comparou a epidemia do coronavírus a uma guerra. Ganhar uma guerra, como bem sabem os generais, depende em boa medida do preparo prévio na logística, nos armamentos, nos planos de contingência e nos cenários de risco. Por incúria ou ignorância, entramos em uma guerra sem preparo algum.

Do ponto de vista econômico, o desafio agora é como responder à recessão e como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavirus

É possível ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS


**Este artigo foi escrito a partir de perguntas elaboradas pelos jornalistas Vinicius Torres Freire e Marcos Augusto Gonçalves.

Persio Arida
Economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso

O risco duplo para o país - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 29/03

Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato


Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a cadeira que ocupa, mas agora revela em cada ato, palavra e decisão que conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje é um obstáculo a que o país supere a turbulência, minimizando perdas humanas e econômicas.

Nas últimas semanas, foram sucessivos episódios completamente desviantes. Açulou manifestação contra o Congresso, foi cumprimentar manifestantes em época de pandemia e que carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e mal informadas sobre assunto da maior gravidade. Estimulou brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que ficou no governo, depois de “adaptar” suas opiniões, para usar a expressão da ex-ministra Marina Silva. É o soldado que marcha errado no batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida dos seus concidadãos.

Bolsonaro não faz o que faz por incompreensão do problema e dos riscos. Ele não se importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções está apenas nele próprio e nos seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma conspiração contra o seu poder.

Além dessa mentalidade , o presidente Bolsonaro também está fazendo um cálculo político. Ele acha que depois que o coronavírus passar -“algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, como disse em seu português claudicante - ficará o amargo gosto da crise econômica. E ele poderá jogar todo o peso dela sobre os seus adversários políticos. Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato.

Mas renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se aprofunda nas decisões que serão tomadas, não tem o gosto de estudar as soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala: sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais capaz de entender o país que ele governa ele teve. Foi de uma das melhores escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, em que há excelentes técnicos sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em agressões aos colegas e à história, em defesas corporativas, em miudezas.

Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que disse e fez é inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus modos. Foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro? Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se na mesa com ministros e dá ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, deputado, ofende o maior parceiro comercial, o chanceler o defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, ele tem feito muito mais do que quebrar normas de condutas. Ele hoje representa uma ameaça concreta à saúde pública.

O país está lidando com um inimigo que ameaça, adoece, sufoca e mata. É da vida de pessoas que se trata. E Bolsonaro sistemática e reiteradamente subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo os brasileiros.

Quando as instituições brasileiras não reagem a tantos abusos, a democracia começa a morrer, o que sempre foi no fundo o seu grande projeto. Admirador confesso de ditadura e torturadores, Bolsonaro não acredita, nem respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que esse tempo deixará na democracia brasileira.

Não repetir 2009 - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 29/03

É importante que as medidas para sustentar renda e emprego sejam transitórias


Em 2009, como resposta à grande crise financeira internacional, o governo expandiu o gasto público e os empréstimos do BNDES, entre outras medidas. Era política contracíclica para estimular a economia.

A política, correta em 2009, perenizou-se. Os excessos já estavam claros na virada de 2009 para 2010. Começamos a cavar o buraco que terminou na grande crise brasileira de 2014-2016.

Assim, é muito importante que sejam transitórias todas as medidas que têm sido desenhadas para sustentar a renda e o emprego formal durante a crise produzida pela parada súbita da economia em consequência do enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Não podemos repetir os erros de um passado tão próximo.
Presidente Jair Bolsonaro durante pronunciamento à imprensa no Palácio do Planalto para falar sobre a crise do Coronavírus - Pedro Ladeira/Folhapress

Além de recursos adicionais para a saúde, que o Tesouro tem transferido às secretarias, o pacote mínimo inclui: alguma ação para sustentação de renda dos trabalhadores informais; um programa de financiamento, com risco do Tesouro, para a sustentação do emprego formal; e algum programa de sustentação da receita dos estados e municípios.

Na quinta-feira (26), a Câmara aprovou auxílio de R$ 600 mensais por três meses aos trabalhadores do setor informal.

Para os trabalhadores do setor formal, será necessário cortar os custos das empresas e compartilhar a queda do produto ao longo do período de calamidade entre empregados, empregadores e governo.

O ideal é que os salários dos setores parados sejam reduzidos à metade e que o seguro-desemprego pague metade dessa queda. O trabalhador terá queda de 25% do salário, fato permitido pelo artigo 503 da CLT nas atuais circunstâncias.

A queda de 25% do salário pode ser compensada pela liberação do FGTS, como sugeriu Persio Arida nesta Folha.

Evidentemente os servidores públicos devem ser incluídos no esforço fiscal dos atuais tempos de guerra. Os salários do serviço público, como do setor privado, deveriam ser reduzidos em 25%.

Ecoando a proposta de Nelson Barbosa no Blog do Ibre (bit.ly/2JhrPAW), o governo enviou ao Congresso Nacional um projeto de emenda à Constituição (PEC) que permite ao Banco Central, em momentos de calamidade, a compra de títulos públicos e privados. Prepara o caminho para uma operação de sustentação da folha de pagamento de empresas.

Finalmente o tema mais delicado: algum programa de sustentação da renda dos estados e municípios.

Se o Tesouro sustentar a renda dos estados e municípios —por exemplo, garantir a receita de ICMS, ISS e o FPE nos níveis de 2019—, o custo do programa será muito elevado. A receita total de ICMS, ISS, FPE e FPM é da ordem de 11% do PIB. Uma frustração de receita por três meses de 75% tem custo fiscal de 2,1% do PIB ou R$ 150 bilhões.

Com todos os programas somados, incluindo a queda de receita da União, teríamos um déficit primário de uns 8% do PIB. É um pouco menor do que países desenvolvidos têm feito, mas parece excessivo para uma economia emergente que já parte de um nível excessivo de dívida.

Ou seja, temos o seguinte dilema: o pacote que parece razoável para enfrentarmos a crise nos legará um nível de dívida muito elevado.

Penso que não escaparemos de, conjuntamente com o pacote fiscal temporário, aprovar medidas que sinalizem construção de um equilíbrio fiscal a longo prazo.

O melhor candidato é a aprovação, conjuntamente com o pacote fiscal emergencial, da emenda constitucional emergencial para vigorar pelos próximos cinco anos, ao menos, para permitir a reconstrução da estabilidade fiscal.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Isolamento sim! - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 29/03

Governo emite sinais trocados e Brasil começa a se dividir. Coronavírus agradece



Eta gripezinha que está custando caro! O presidente da República fala para um lado e os ministérios agem para o outro, anunciando montanhas de dinheiro para enfrentar o abandono dos miseráveis que precisam do Bolsa Família, a insegurança dos informais e a dramática ameaça aos empregos. Isolamento, sim, para salvar vidas. E medidas emergenciais para reduzir os danos na economia.

É a realidade se impondo, com as lições vindo assustadoramente de fora. Se não quer ouvir a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, a ciência e as estatísticas, o presidente deve ao menos se informar sobre o que aconteceu nos dois países mais afetados pelo Covid-19 no mundo. Nos Estados Unidos, seu tão amado Trump foi obrigado a recuar e agora clama para os americanos ficarem em casa. Na Itália, o mea culpa do prefeito de Milão é um grito de alerta.

Trump, como o “amigo” brasileiro, minimizou o coronavírus até que os EUA passaram a ser o epicentro da doença, ultrapassando os cem mil infectados e beirando 1.500 mortos. Só aí ele se rendeu à única “vacina” contra a pandemia: o isolamento social. Na Itália, o prefeito de Milão desdenhou do tsunami, animando as pessoas a saírem. Agora admite: “Errei”. Tarde demais. Os italianos já contabilizam mais de 9 mil mortes, 919 só na sexta-feira.

“Infelizmente, algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, conformava-se o presidente brasileiro no mesmo dia, ignorando alertas e estatísticas, a lógica, o bom senso, a humanidade. Pior: a responsabilidade. Tudo em nome do seu novo slogan político: “O Brasil não pode parar”. O problema é que, se milhões são contaminados e milhares morrem, aí é que o Brasil vai parar. Só não vê quem põe sua visão pessoal acima das evidências.

Num país dividido, com um governo que emite sinais trocados, governadores e prefeitos, em maioria, decidem deixar o capitão falando sozinho e se articulam para enfrentar a pandemia, acolher os infectados e evitar mortes, enquanto os do Nordeste lançam manifesto “pela vida”. Mas o efeito do comando do presidente contra o isolamento já se faz sentir, com governadores aliados de Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Roraima se assanhando para flexibilizar o isolamento.

Na sociedade, o mesmo. CNBB (bispos), OAB (advogados), ABI (imprensa), SBPC (ciência), ABC (ciência) e Comissão de Direitos Humanos de São Paulo fazem alerta “em defesa da vida” e conclamam a população a “ficar em casa”, em respeito à ciência, aos profissionais de saúde e à experiência internacional.

Do outro lado, as falas e a campanha do presidente produzem aumento de pessoas nas ruas, shoppings de Minas reabrindo, a ofertazinha bacana da CNI em tempos de gripezinha: testes rápidos de coronavírus, de 15 em 15 dias, para 9,4 milhões de trabalhadores industriais. Isolamento social? “Só para pessoas com exame positivo.”

Bolsonaristas vão alegremente às ruas contra o isolamento. Mas de carro, que ninguém é besta, enquanto defendem que seus empregados se exponham ao vírus em ônibus e metrôs e garantam seu lucro. Só não entenderam ainda, e vão entender na marra, que, se os trabalhadores se contaminarem, eles também vão se contaminar, depois contaminar seus amores, famílias, amigos. E, “infelizmente, algumas mortes virão...”, lembram?

É profundamente importante, sim, reduzir os danos na economia, nos empregos, na pobreza. E é por isso que o Estado está devidamente flexibilizando a prioridade fiscal para tomar as medidas necessárias. O que não pode é desdenhar da morte em nome da economia. Até porque nada comprova a eficácia desse método ignorante e desumano (para não buscar adjetivos e referências pavorosas na história).

Oportunismo - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 29/03

Disputas miúdas na política dificultam o diálogo



O Brasil entrou enfraquecido nesta crise. As disputas miúdas na política dificultam o diálogo e a construção de soluções coordenadas.

A mediocridade da economia reflete as muitas dificuldades que as empresas enfrentam há anos, o que agrava o impacto da parada súbita da atividade.

O setor público encontra-se engessado pelas despesas obrigatórias. Como resultado, estados e municípios pedem novos esforços da população e recursos do Tesouro Nacional, em parte para pagar a sua folha de pessoal nestes tempos de queda de receita.

É urgente cuidar da saúde, mesmo que implique aumento da dívida pública. Os novos meios de pagamento ("maquininhas") podem ser utilizados para transferir recursos públicos para os micro e pequenos empreendedores.

É preciso, porém, separar o joio do trigo. Existem muitos pedidos justificados, mas também há casos de oportunismo.

O Tesouro Nacional não é um manancial inesgotável. Sem gestão adequada, a dívida crescente, já uma das maiores entre os países emergentes, pode resultar em prolongada depressão.

O país empobreceu. Os acionistas perderam metade ou mais do seu patrimônio, pequenos comerciantes devem quebrar, trabalhadores informais estão sem renda.

A queda da arrecadação é o efeito colateral de uma sociedade mais pobre e que, portanto, pode pagar menos tributos. O setor público deveria saber que precisa fazer a sua parte, cortando gastos obrigatórios para contribuir com as despesas emergenciais.

Não é o que está acontecendo. Governadores pedem ao Tesouro, isto é, à sociedade, que compense a queda de receita, com estimativas que parecem superestimadas. Além disso, ficam a inventar novas formas de onerar as empresas. Parecem dizer: "setor privado, você paga pela política social enquanto eu aumento a dívida pública para preservar a renda dos servidores".

Enquanto isso, os Legislativos e Judiciários dos estados têm fundos com bilhões em caixa. Não seria o caso de utilizar esses recursos, que foram arrecadados da sociedade, para auxiliar no combate à pandemia?

Se o Estado brasileiro não é capaz de se ajustar à realidade, então há algo de muito errado com as nossas regras. Como defender o direito adquirido dos servidores em um país que recorrentemente aumenta a carga tributária, onerando cada vez mais o setor privado, ainda mais em uma crise desta proporção? Quem ganha mais de R$ 30 mil está entre o 1% com maior renda.

O poder público deveria, como o resto do Brasil, contribuir com sua cota de sacrifício e cuidar dos grupos de riscos e das famílias mais vulneráveis, que são as vítimas principais deste cataclismo, e não compactuar com o corporativismo.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia
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Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas - ARMÍNIO FRAGA

FOLHA DE SP - 29/03

Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas
Para o futuro, necessidade de reforçar e aprimorar SUS precisa voltar à tona


A crise humana, social e econômica causada pelo novo coronavírus está arrasando o planeta. A economia global já caminhava para um fim de ciclo de crescimento, após uma década de dinheiro barato e suas previsíveis consequências. O Brasil, ainda muito próximo do fundo do poço, tentava sem sucesso acelerar seu crescimento. A promessa de ideias liberais na economia gerou entusiasmo na bolsa, mas predominou o clima iliberal na política, que inibiu os “espíritos animais” do investimento. Isso antes da calamidade.

Neste contexto, chegou aqui o vírus, já comprovadamente espaçoso e perigoso. A reação inicial foi de minimizar o potencial do dano. Precioso tempo de resposta foi assim perdido. Desde então o número de casos reportados exibe tendência explosiva. Temendo o colapso do sistema de saúde, estados e municípios buscaram um isolamento social formal e extenso, como se fez mundo afora, uns de chofre, outros tardia e tragicamente.
O ministro da Economia, Paulo Gudes, durante coletiva de imprensa para falar sobre medidas do governo pra conter a epidemia de Coronavírus, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira /Folhapress

Empresas em vários setores vivem hoje um colapso em suas receitas. As pessoas vivem em estado permanente de alta ansiedade quanto a sua saúde e seu emprego. As empresas se veem forçadas a demitir, para garantir sua sobrevivência. Um quadro de terror.

Em função da real ameaça de colapso econômico, o presidente da República quer ainda adotar uma estratégia de “isolamento vertical”. Nessa estratégia, o primeiro passo seria o isolamento social radical e completo por duas semanas, prazo suficiente para identificar e isolar portadores do vírus. Os mais idosos e vulneráveis permaneceriam isolados, e os demais voltariam a trabalhar normalmente.

Mas o primeiro passo já não ocorreu, nem ocorrerá, por várias razões geográficas e sociais. Além disso, o grupo vulnerável aqui é enorme: cerca de 38% da população é idosa e/ou portadora de doenças crônicas. Uma tentativa prematura de liberação geral teria como consequência uma inaceitável mortandade. O Reino Unido foi o único país que apontou para esse caminho, mas desistiu rapidamente face à escalada do contágio.

Nos resta, portanto, uma estratégia a partir de ações em quatro grandes frentes: médica (sobretudo equipamento e hábitos), logística (que garanta o suprimento, sobretudo de alimentos, para acalmar a população), assistencial (amparando os mais pobres, agora perdendo seu ganha pão) e das empresas (ameaçadas de falência). O isolamento seria flexibilizado aos poucos, na medida em que se tenha sucesso no controle da pandemia. Assim seriam minimizados os custos humanitários e econômicos.

Houve progresso na semana que passou. Listo alguns destaques. O país vive um mutirão emergencial de preparação para o pico de demanda por leitos e equipamentos. Sociedade civil engajada aqui. Declarou-se formalmente estado de calamidade, o que permite gastos acima das metas e tetos existentes. O Banco Central tomou inúmeras providências para estimular o crédito, inclusive a criação em conjunto com o Tesouro de uma linha de crédito de R$ 45 bilhões para as pequenas e médias empresas, muitas fatalmente atingidas pela crise. O Congresso aprovou com a concordância do Executivo a distribuição R$ 600 por mês para trabalhadores do setor informal, com base em informações do Cadastro Único. Em todas essas áreas há que se zelar para que os recursos atinjam seus objetivos, pois há muita pressa.

É necessário que mais recursos sejam canalizados para a população através dos canais do Bolsa Família e de um amplo programa para cadastrar as novas vítimas da crise econômica. Enquanto isso não ocorre, transferências adicionais podem ser feitas com a necessária urgência em bases provisórias, a partir de dados do Imposto de Renda e do INSS.

Cabe mencionar a possibilidade de se criar com recursos públicos uma nova linha de crédito para as PMEs que fluiria a partir dos canais dos cartões de crédito, a um custo bem baixo e amortização apenas quando as receitas das empresas se recuperassem. Essa linha seria crucial para atingir as menores empresas, muitas informais e não cobertas pela linha já anunciada. Levo muita fé nesta alternativa que entendo está sendo explorada pelas autoridades.

Urge a definição de uma estratégia compartilhada pelas três esferas do governo. Faz muita falta um gabinete focado exclusivamente na gestão da crise no governo federal, capaz de planejar, executar e comunicar para a nação os resultados de seu trabalho.

Concluo com dois temas onde identifico mais duas lições, voltadas para o futuro. Em primeiro lugar, o papel do SUS. Antes da crise já era clara a necessidade de se reforçar e aprimorar o SUS. Agora mais do que nunca o tema precisa voltar à tona assim que possível.

Em segundo lugar, embora haja bastante espaço fiscal para responder à crise, este espaço não é infinito. Portanto, as medidas devem ser adotadas a partir de uma estratégia bem definida e transparente, para que prioridades sejam respeitadas. Uma vez adotadas as medidas urgentes, a recuperação da saúde fiscal da nação deve voltar a ser uma prioridade, dado que infelizmente nosso histórico nesse terreno é fonte de preocupação. A continuidade do processo de construção de um Estado eficaz e financeiramente equilibrado apontaria para um futuro mais próspero e justo, e daria mais espaço para as respostas à crise.

Arminio Fraga
Sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

O que você fez durante a epidemia? - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 29/03

Quando a crise passar, veremos quem fez o quê


A Gerdau, a Ambev e o hospital Albert Einstein deram uma lição ao grande empresariado nacional. Anunciaram a doação de um centro de tratamento de Covid-19 com cem leitos à prefeitura de São Paulo. Em duas semanas entregarão 40 leitos e, até o fim de abril, estarão prontos os outros 60. A unidade atenderá pacientes do SUS.

O pavilhão ficará anexo ao hospital M’Boi Mirim, na periferia da cidade. A Gerdau doará a estrutura do prédio, a Ambev bancará o custo, e o Einstein cuidará dos pacientes. Nenhum grande acionista da Gerdau ou da Ambev ficará mais pobre com a doação. Nas últimas semanas nenhum deles saiu por aí dizendo tolices demófobas em eventos teatrais. Sem espetáculo, fizeram o que acharam que deviam.

O Albert Einstein, nascido da filantropia da comunidade judaica de São Paulo aderiu à iniciativa num momento em que as grandes empresas de medicina privada (inclusive algumas que se dizem filantrópicas) oferecem aos brasileiros um virótico silêncio. Quando celebridades e ministros adoecem, é comum ver-se o logotipo desses hospitais na telinha. Agora que a emergência sanitária chegou ao andar de baixo, sumiram. (O ministro Luiz Henrique Mandetta queixou-se de que um desses potentados sequer devolveu seu telefonema.)

Coisas boas também acontecem. O colégio Miguel de Cervantes, situado nas proximidades do Einstein, abriu 300 vagas para filhos de enfermeiros, técnicos e médicos do hospital. A escola ocupa uma área de 60 mil metros quadrados e as crianças ficarão lá durante os turnos dos pais, assistidos por voluntários, sem contato físico. O hospital fornecerá a alimentação da garotada. Outro colégio da cidade, o Porto Seguro, aderiu à iniciativa.

Em Manaus, uma rede de lojas Bemol doou ao governo do estado seu estoque de mil colchões e máscaras. (Repetindo, doou o estoque.) No Rio de Janeiro, pizzarias continuam mandando refeições aos profissionais de saúde da cidade. Alguns deles trabalham em turnos de 24 horas.

Coisas assim parecem gotas d’água, mas como dizia Madre Teresa de Calcutá, “toda vez que eu ponho minha gota no oceano, ele fica maior”.

Um dia isso tudo terá passado e uma pergunta haverá de alegrar muita gente, encabulando outros: “O que você fez durante a epidemia do Covid?”

Bolsonaro atrapalha
Passará o tempo e ficará a lembrança de que, durante a epidemia do Covid, o presidente da República fez confusões, gracinhas e provocações com delírios autoritários.

Brincando com a crise sanitária, Bolsonaro causou estragos, mas os governadores e as lideranças parlamentares contiveram a ruína. Resta a crise econômica, paralela e duradoura. Nela, não haverá lugar para gracinhas, fantasias ou teatrinhos como que se organizou com amigos da Federação das Indústrias de São Paulo.

Em tempos saudáveis, durante a negociação da reforma de Previdência, sua ekipekonômica tentou tungar o Benefício de Prestação Continuada dos miseráveis. Depois decidiram taxar os desempregados. Com a epidemia, inventaram uma Medida Provisória de garantia ao desemprego sem contrapartida. Exposta a demofobia da iniciativa, veio a história de que acontecera um êrro de redação. Contem outra, doutores.

A matriz demófoba dos Acadêmicos da Economia foi ao vinagre e os doutores descobriram que o andar de baixo existe. Lidando com essa vertente da crise, volta-se ao ponto de partida: a máquina federal precisa funcionar.

A mente tumultuada do capitão produz frases desconexas. Um exemplo: “O povo tem que parar de deixar tudo nas costas do poder público”. Ele nunca recebeu um só centavo que não viesse das arcas do Tesouro, que é sustentado por esse mesmo povo.

Para Bolsonaro, tudo “é uma questão de poder”. Nas suas palavras, “se acabar a economia, acaba qualquer governo, acaba o meu governo”.

Engano, nenhum governo corre o risco de acabar, mas o dele depende de Jair Bolsonaro.

A lição de Bernanke
Durante a crise financeira de 2008 o professor Ben Bernanke (Stanford) estava à frente do Federal Reserve Bank americano. Ele era um verdadeiro economista liberal e fizera carreira estudando a Depressão dos anos 1930.

A situação estava tão braba que o secretário do Tesouro, Henry Paulson, em jejum, trancou-se no banheiro para vomitar.

Ambos decidiram despejar dinheiro no mercado, resgatando empresas que corriam o risco de quebrar, espalhando o pânico. Era o contrário do que havia aprendido, ensinado e praticado. Diante do que parecia uma contradição, ele ensinou ao mundo e a seus pares:

“Não há ateu em trincheira, nem ideólogo em crise financeira”.

Banqueiro doido
Quando ninguém sabe o que fazer, ou quando as rotinas não apontam uma saída, surgem loucos que se revelam gênios.

Em 1906, a cidade de San Francisco foi destroçada por um terremoto, seguido de incêndios. Amadeo Giannini tinha um pequeno banco e sua clientela vivia no andar de baixo. Ele alugou um caminhão de lixo e tirou todo o dinheiro de seu cofre. (Outros banqueiros achavam que deviam deixá-los nas caixas fortes e o calor assou as notas.)

A grande ideia de Giannini foi botar uma mesa na rua. Ele passou a emprestar dinheiro a quem estivesse precisando, confiando nos fios dos bigodes. Ele contava que recebeu de volta tudo o que emprestou e que, no primeiro dia dessa operação maluca, recebeu depósitos equivalentes a 1,5 milhão de dólares em dinheiro de hoje.

Mesmo que tenha exagerado, seu tamborete virou o Bank of America, um dos maiores dos Estados Unidos e ele entrou para a história da banca.

Hoje e ontem
O doutor Rubem Novaes, presidente do Banco do Brasil, ensinou que muita bobagem é feita e dita, inclusive por economistas, por julgarem que a vida tem valor infinito”.

A vida do outros, certamente. De qualquer forma, ele não é o único que pensa assim, nem essa maneira de pensar é nova.

Em 1830, a Santa Casa do Rio de Janeiro colocou um anúncio num jornal pedindo aos senhores de escravos que não mandassem para os cemitérios escravos doentes, mas ainda vivos.

Lembrando esse episódio, a historiadora Mary Karasch ensinou que naquele tempo a marca do comportamento do andar de cima não era e crueldade, mas o “simples descaso”.

Alívio
Na cúpula do Judiciário cozinha-se uma trégua para as empresas que estão em recuperação judicial que, sem malandragens, viram-se obrigadas a atrasar pagamentos por causa da contração da economia.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, venera todos os governantes presentes, passados e futuros. Por isso se aborreceu ao saber que a revista inglesa Economist chamou o capitão de “BolsoNero”.

O cretino acha que o imperador romano ganhou má fama por causa de historiadores marxistas da época. Ele teria tocado violino durante o incêndio de Roma, mas os violinos só apareceram séculos depois.

O mundo pós-corona - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 29/03

Da economia às relações pessoais, passando pela política, nada será como antes


Se há uma única certeza a respeito de como sairemos dessa pandemia que bagunçou o dia a dia das pessoas, as relações interpessoais, a economia e a geopolítica do planeta é que nada, em nenhum desses territórios, voltará a ser como antes quando (e se) tudo isso passar.

Governantes populares até a virada do ano foram solapados pela crise; outros cuja imagem já parecia desgastada renasceram das cinzas; aqueles com uma reeleição certa no horizonte padecem na incerteza, enquanto os casos escalam em seus países; lideranças jovens aparecem em países não centrais do globo, e chamam a atenção pela forma segura com que conduzem seus governados no combate a um inimigo invisível, mas poderoso.

Na economia, na meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, Donald Trump, depois de flertar em ondas com o negacionismo em relação à pandemia, terminou a semana acionando o Ato de Proteção de Defesa, uma lei da época da Guerra da Coreia, para exigir que empresas como as icônicas montadoras de veículos produzam ventiladores para respiradores pulmonares e os forneçam ao Estado.

O Reino Unido, outro país que tentou ser blasé, deu um cavalo de pau e terminou a semana com restrições severas à circulação e o príncipe Charles e o premiê Boris Johnson “coronados”, símbolo imagético dificilmente superável.

Não será possível retornar - depois que o mundo sair de uma quarentena dura, que separa famílias e obriga as pessoas a redescobrirem desde regras de higiene pessoal até técnicas de trabalho e estudo remotos - ao estado em que estávamos, de um mundo polarizado e radicalizado em certezas tão absolutas quanto estúpidas.

Sim, alguns países fecharam mais suas fronteiras e a ideia de um “vírus chinês” infectando o mundo favorece uma sinofobia que campeia pelas purulentas redes sociais, mas a evidência de que a mesma China que iniciou o contágio tem muito a ensinar ao mundo em termos de contenção e continuará a ser imprescindível na hora de “religar" a economia planetária forçam, por exemplo, a que o mesmo Trump teça loas ao amigo “Xi”.

Não será possível imaginar um futuro pós-pandemia sem que a ciência finalmente, na marra, passe a ser levada em conta em decisões políticas e econômicas. Epidemiologistas, sujeitos antes exóticos que podiam ser bons consultores de filmes-catástrofe, viraram consultores de Estado e estrelas televisivas. E será preciso que sejam ouvidos sobre o timing da retomada da normalidade.

O negacionismo científico, essa chaga do século 21, que levou à eleição de néscios aqui e alhures, está cobrando um preço em forma de vidas humanas bem antes de fritarmos graças ao subestimado aquecimento global. Isso é devastador, e não há dogmas econômicos ou narrativa que sejam capazes de dar conta da resposta necessária.

O que nos traz ao momento atual do Brasil. Jair Bolsonaro parece ter resolvido dobrar todas as apostas mundiais em termos de irresponsabilidade. Pode até levar alguns mínions entediados a tirarem suas SUVs blindadas das garagens para um rolê com cafonas bandeiras do Brasil no capô, mas já está claro que não vai calar as panelas, algumas delas nas mesmas varandas gourmet.

E, o que é mais dramático, pode comprometer seriamente nossa resposta a essa pandemia. O preço será cobrado em cadáveres. Quando a irresponsabilidade de um governante é sentida na pele das pessoas e daqueles a quem elas amam, não há rede de robôs na internet que contenha o estrago.

Já não somos os mesmos que éramos em janeiro. Em São Paulo, Nova York, Milão ou Wuhan. Não seremos os de antes quando um dia sairmos de casa. Ou os governantes percebem que o mundo é outro e que deles se exige lucidez, ou serão varridos do mapa.

sábado, março 28, 2020

Envelheça longe daqui - MARCELLA FRANCO

FOLHA DE SP - 28/03


Em “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o Arganaz e a protagonista estão sentados lado a lado na plateia de um tribunal. “Gostaria que você não me apertasse tanto, mal posso respirar”, reclama o mamífero, ao que Alice docilmente responde que não pode evitar. “Estou crescendo”, explica.

Arganaz avisa a amiga: “Você não tem o direito de crescer aqui”. “Não diga tolice”, repreende a menina. “Não sabe que também está crescendo?”. Indignado, ele responde: “É, mas cresço num ritmo razoável, não dessa maneira absurda”.

A atual epidemia de coronavírus no mundo é nossa Alice. Por causa de sua presença e imponência, somos obrigados a lembrar que, queiramos ou não, temos todos o mesmo destino: crescer e envelhecer. E, a depender da etapa em que estamos neste caminho, é possível que a gente se identifique mais ou menos com as dores previstas nele.

Há quem até entenda que a velhice lhe aguarda, mas imagina que seja algo distante. Outros, mais conscientes, percebem desde muito cedo que, quando menos se espera, a terceira idade bate à porta, impiedosa e democrática. Mas, à parte a equipe em que se joga, de maior ou menor negação da realidade, somos unânimes no pânico e no desgosto com o desfecho da trama.

De todo modo, estarmos sob a ameaça de uma doença que mata muito mais idosos do que crianças e adultos expôs o que de pior temos como pessoas. Somos, cada vez mais, uma sociedade obcecada com a juventude, que idolatra conceitos como a beleza, a perfeição e o vigor. Rejeitamos tudo que se opõe a eles.

E, diante de um vírus tão seletivo ao ceifar vidas, também perderam, alguns de nós, o pudor de admitir que, se pudessem, também fariam como ele: ofereceriam os velhos ao sacrifício. Respiram, aliviados, com as baixas taxas de mortalidade daqueles abaixo dos 50, e propõem sugestões esdrúxulas de funcionamento do mundo, travestindo riscos de cuidados.

Em entrevista ao caderno de saúde deste jornal, a antropóloga e também colunista da Folha Mirian Goldenberg explica que, em suas pesquisas com nonagenários, escuta frequentemente a queixa de que, se antes da pandemia eles já se sentiam descartáveis, agora a percepção é de uma morte simbólica. Até porque, muitos deles têm plena consciência do desprezo evidenciado pela doença.

Ele está lá, sublinhado na fala de empresários gananciosos, eles próprios à imagem e semelhança dos “velhinhos” a quem ofendem ao sugerir que, ah vá, tudo bem que morram se o país e os jovens não pararem. Passassem, como Alice, através do espelho, veriam do outro lado a aparência com a qual tanto se enojam, e, mais que as rugas evidentes, o ridículo de quem tenta a qualquer custo camuflar o que todo mundo vê.

Está, sobretudo, emoldurado pela boca infecta daquele que, em vez de pouco ou nada fazer, deveria desempenhar o papel de líder maior de uma nação que, até 2060, estima ter 32% de sua população na faixa acima dos 60 anos – a mesma que ele, sem qualquer honra ou histórico notável, já ocupa.

É um “Cortem-lhe a cabeça” que se ouve quando a decisão superior de um governo, impulsionada pela pressão dos empresários que se acham muito jovens, ordena que se encerre a quarentena. Isolamento, este, que tem por objetivo principal resguardar e tratar de maneira digna os futuros doentes (doentes velhos, é claro, são sempre eles que atrapalham).

Na trama de Lewis Carroll, é justamente mirando o Arganaz que a Rainha de Copas aplica seu bordão pela última vez, antes que o livro termine. Aquele que reclamava do curso natural da vida, que negava à protagonista o direito de cumprir com seu ciclo humano, acaba na fila real para ter a cabeça cortada.

Importante lembrar que o Arganaz é o menor personagem de “Alice” – em tamanho, e em relevância. Porque é assim que roedores preguiçosos tendem a entrar para a história.

O bolsonarismo, o presidente e o vírus - MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

ESTADÃO - 28/03

O importante é defender as instituições, apoiar o sistema de saúde, respaldar Doria, Caiado...

Dias de pandemia pedem solidariedade, clareza, entendimento. Alimentar o confronto, a disputa, a politização é contribuir para a disseminação do mal. Exigem-se ações coordenadas, sintonia, orientação. Nenhum cidadão pode deixar de contribuir. Teremos de reaprender a viver e quanto antes desarmarmos os espíritos, melhor.

Jair Bolsonaro permanece alheio aos sinais do tempo. É assustador. Seu último discurso à Nação (24/3) foi uma provocação recheada de platitudes, mentiras e agressões. Nenhuma grandeza, nenhuma generosidade, a mesma falação colérica de sempre. Em vez de passar confiança, provocou insegurança. Continuou a radicalizar, a debochar, a fazer pouco-caso, a atacar. Brigou com as diretrizes sanitárias da própria administração e aumentou o ruído com os governadores estaduais, em detrimento da unidade federativa tão necessária. A reação foi forte, mas não houve recuo.

Sua intervenção não se deve só ao baixo nível e a uma instável condição emocional. Há cálculo nela. O olhar repousa em 2022 e no esforço para recuperar o capital político que, a esta altura, está em franca evaporação. É um cálculo rasteiro, repleto de espasmos de ódio, mesquinharia e paranoia, narrativa e ideologia. Torpedeia o bom senso, esbofeteia a realidade.

Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro. O foco é confundir a população, desorganizar os sistemas, passar por vítima, para que se fomente a expectativa de que apareça a figura sinistra do “salvador”.

O presidente parece acuado e se deixa guiar pelas áreas mais extremadas de seu núcleo principal, o “gabinete do ódio”. Os ministros, salvo uma ou outra exceção isolada, batem-lhe continência. Fecham-se num mutismo incompreensível, covarde. Nos bastidores, muito ruído e informações cruzadas, indício de que o clima ficou pesado.

Há quem o aplauda e reverbere suas ideias. São pessoas encolerizadas, que trafegam pela estrada do irracionalismo. O desleixo e a irresponsabilidade de Bolsonaro são vistos como prova da disposição de não ceder à pressão dos políticos, da imprensa e dos interesses internacionais. Suas falas destrambelhadas e reacionárias são desculpadas em nome da ideia de que “antes dele era pior”. Pelas redes, o “gabinete do ódio” manda: batam nos governadores e prefeitos, que estão a causar recessão e desemprego. Os bumbos soam.

Os eleitores circunstanciais de Bolsonaro, aqueles que nele votaram para derrotar o PT, já devem ter percebido o engodo em que caíram. Mas os bolsonaristas de “raiz” permanecem ativos. Gostam do estilo grosseiro de Bolsonaro, o “mito”. São fanáticos, agressivos, ressentidos, preconceituosos, têm profunda aversão à política e à democracia representativa.

O questionamento da política democrática é uma pérola dos manipuladores do sentimento popular. Está no miolo da extrema direita atual, encontrando sua câmara de eco na figura daqueles “engenheiros do caos” tão bem analisados por Giuliano Da Empoli. Sob a bandeira do iliberalismo e do autoritarismo reúnem-se populistas, nacionalistas, ultraconservadores, neonazistas, uma fila imensa de gente com ódio no coração. Todos falam em combater os políticos, lutar contra a esquerda, fechar a nação, defender a “pátria” e as pessoas comuns.

O bolsonarismo emergiu sem base organizada, liderado por um deputado tosco e inexpressivo. É uma agitação com baixa densidade associativa. Sua reprodução se dá nas redes. Luta para erguer a Aliança pelo Brasil, uma incógnita. Está limitado pela ausência de propostas para o País, pela baixa qualidade de seus quadros, por sua escassa civilidade, pelo uso intensivo da mentira. O bolsonarista-raiz é intolerante, tem instinto persecutório e vê traidores por toda parte, sinal de uma fragilidade psíquica que se traduz em arrogância. Está também desprovido de pensadores com capacidade de elaboração intelectual. Vive do combate a inimigos imaginários. São traços que dificultam a construção partidária e levam ao canibalismo dentro da própria organização.

A pandemia é um repto à humanidade e aos diferentes países. Desafia os democratas, que precisam se articular para agir sobre a vida. Quem chegou ao governo deve mostrar que sabe enfrentar um quadro de calamidade pública. Até agora, o bolsonarismo tem sido um fiasco. Seu líder máximo explora uma crise epidêmica mortífera, indiferente à desgraça da população. Os recorrentes panelaços dos últimos dias indicam que a base bolsonarista se estreitou e muitos cidadãos estão escandalizados com a conduta insensata e insensível de Bolsonaro.

Veremos se essa tendência se confirmará. O importante, agora, é defender as instituições democráticas, apoiar o sistema de saúde e respaldar governadores e prefeitos, de Doria a Caiado, que fazem um trabalho de coordenação que Bolsonaro, na ânsia de tiranete sem preparo, jamais será capaz de fazer.

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

O que fazer quando o presidente não lidera? -- CELSO MING

ESTADÃO - 28/03

Não dá para contar com Bolsonaro para uma ação coordenada para o contra-ataque ao novo coronavírus


O maior equívoco do presidente Bolsonaro não é o de que pense diferentemente da Organização Mundial da Saúde (OMS), da maioria dos infectologistas e da opinião majoritária no País sobre a melhor maneira de enfrentar a pandemia.

É o de não atuar como chefe de governo. Em vez de unir o País, optou pela ruptura. Quando se refere ao vírus, ignora sua gravidade. Classifica-o como agente que não produz mais do que uma “gripezinha”, um “resfriadinho”. E desdenha do sofrimento da legião de infectados e das mortes que tendem agora a aumentar. Prefere dizer que o povo está acostumado a se meter no esgoto sem apanhar doenças.

Mas, ainda assim, poderia defender tratamento diverso do adotado pela maioria dos governadores e prefeitos. Mais do que promover procedimentos recomendados pelos especialistas, teria de tomar a iniciativa de conduzir um debate responsável. Mas preferiu desancar quem não pensa como ele.

Está mais do que na hora de entender que não dá para contar com o presidente para uma ação coordenada para o contra-ataque ao flagelo. Se isso é assim, o que fazer com ele?

Já houve quem sugerisse sua interdição, sem dizer como se faz isso. Não haveria sentido apresentar um atestado subscrito por meia dúzia de especialistas e internar o presidente, sabe-se lá em que condições. Também apareceram propostas de colocar em marcha um processo de impeachment, procedimento normalmente demorado, sujeito a complicados trâmites políticos e judiciais, portanto inviável.

A prática começa a sugerir outro tipo de saída. Sem partir para a truculência, governadores, líderes do Congresso, juízes do Judiciário e até mesmo membros do governo, como no pacote de crédito de sexta-feira, começam a atuar de maneira autônoma. Contra a palavra de ordem de que “o Brasil não pode parar”, governadores e prefeitos, por exemplo, ordenaram o recolhimento da maior parte da população, o fechamento de escolas e do comércio não essencial. E, independentemente de ideologias e de filiação partidária, têm se reunido para coordenar políticas. Autoridades do Judiciário passaram a vetar algumas das decisões descabidas do presidente, como o artigo de medida provisória que restringiu a Lei de Acesso à Informação. E, sem chutar o pau da barraca, o Legislativo e outros setores do governo vêm preparando e aprovando medidas destinadas a reduzir o sofrimento da população e a paradeira das empresas.

A solução de confinar politicamente o presidente, de deixá-lo falando sozinho, entregue à lira de Nero – como aponta a última edição da revista The Economist –, não é evidentemente a ideal. Ele continua pilotando uma caneta poderosa, continua sendo o editor do Diário Oficial e tem lá uns 20% de seguidores que o apoiam ferozmente nas redes sociais.

Vai, também, que não será preciso isolar politicamente o presidente. A pandemia pode acabar por bater tão implacavelmente o Brasil, como preveem especialistas, que não sobrará saída técnica senão o confinamento. Mas se não foi capaz até aqui de liderar o País na guerra contra o vírus, também não será capaz de liderar depois que tudo der errado, como deu errado na Itália e na Espanha.

CONFIRA

Nem sempre o ouro segura


Ouro e imóveis nem sempre garantem segurança e rentabilidade que muita gente pensa. O valor das cotas dos fundos imobiliários, por exemplo, despencou e, mesmo assim, poucos conseguem revendê-las. Os imóveis à venda não têm interessados. E as cotações do ouro estão voláteis. Nos 30 dias terminados nesta sexta-feira caíram 1,4%. Em março, o preço da onça-troy (31,1 g) ainda teve uma valorização de 2,2%. É um pouco daquilo que está no ‘Manifesto’ de 1848: “O que é sólido desmancha no ar”.

O desvario de Bolsonaro - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 28/03

Planalto faz vídeo contra políticas aceitas pela maioria e de impacto consumado


Não satisfeito com seu pronunciamento de terça-feira (24) em cadeia de rádio e TV, o presidente Jair Bolsonaro avançou em sua cruzada para sabotar os esforços de controle da epidemia de Covid-19.

Na mais recente ofensiva contra as recomendações quase unânimes de médicos e estudiosos, o Palácio do Planalto encomendou um vídeo publicitário em que se exorta a população a voltar ao trabalho, às escolas e a outras atividades.

“O Brasil não pode parar” é o mote da peça populista, veiculada de modo experimental nas redes sociais bolsonaristas —o que já seria um escândalo em potencial, tratando-se de comunicação de governo, mesmo se o conteúdo fosse sensato ou bem-intencionado.

Mais que excitar as hordas fanáticas da internet, o que se faz é estimular de modo temerário pressões de empresários e trabalhadores contra as normas de confinamento em suas cidades e regiões.

Se compreendem-se as preocupações com a renda e os empregos, é com fundamentos científicos que se deve travar a discussão. O governo Bolsonaro, entretanto, não apresenta um fiapo de argumento técnico para sustentar a defesa que o presidente faz de isolamento apenas parcial de indivíduos.

Com o mesmo ímpeto demagógico e irresponsável, o chefe de Estado decidiu incluir as atividades religiosas entre aquelas oficialmente consideradas essenciais, permitindo que cultos de qualquer natureza continuem ocorrendo mesmo em situações de quarentena.

Encoraja-se, assim, o comportamento de risco da população, com a formação de aglomerações em espaços fechados —ambiente propício para a propagação do vírus.

Para dizer o óbvio, atividades hieráticas não se revestem, num Estado laico, da essencialidade fundada no interesse público. Conforme o decreto que trata da matéria, serviços essenciais são aqueles que “se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.

Nem mesmo como cálculo político os desmandos de Bolsonaro fazem grande sentido. Ele investe contra políticas já em curso, aceitas pela grande maioria da população e de impacto econômico consumado. Não escapará de responder por uma recessão; tampouco merecerá os créditos se o combate à pandemia for bem-sucedido.

quinta-feira, março 26, 2020

A carta da renúncia - MARIA CRISTINA FERNANDES


VALOR ECONÔMICO - 26/03
A costura de uma renúncia, como saída, passa pela anistia aos filhos

A tese do afastamento do presidente viralizou nas instituições. O combate à pandemia já havia unido o país, do plenário virtual do Congresso Nacional ao toque de recolher das favelas. Com o pronunciamento em rede nacional, o presidente conseguiu convencer os recalcitrantes de que hoje é um empecilho para a batalha pela saúde da nação. Se contorná-lo já não basta, ainda não se sabe como será possível tirá-lo do caminho e, mais ainda, que rumo dar ao poder em tempos de pandemia. A seguir a cartilha do presidiário Eduardo Cunha, seu afastamento apenas se dará quando se encontrar esta solução. E esta não se resume a Hamilton Mourão.

Ao desafiar a unanimidade nacional, no uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, Bolsonaro já sabia que não teria o endosso das Forças Armadas para uma aventura que extrapole a Constituição. Era o que precisaria fazer para flexibilizar as regras de confinamento adotadas nos Estados. Duas horas antes do pronunciamento presidencial, o Exército colocou em suas redes sociais o vídeo do comandante Edson Leal Pujol mostrando que a farda hoje está a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus.

Saída a ser costurada passa pela anistia aos filhos
Pujol falou como comandante de uma corporação que tem a massa de seus recrutas originários das comunidades mais pobres do país, hoje o foco de disseminação mais preocupante para as autoridades sanitárias. Disse que agirá sob a coordenação do Ministério da Defesa. Em nenhum momento pronunciou o presidente. Moveu-se pela percepção de que uma tropa aquartelada hoje é mais segura que uma tropa solta. Na mão inversa do trem desgovernado do discurso presidencial daquela noite.

Quando já estava claro que descartara o papel de guarda pretoriana, Pujol reforçou a importância do combate ao coronavírus: “Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. Vinte e quatro horas depois, o vídeo ultrapassava 500 mil visualizações, mais do que o dobro do efetivo do Exército.

O distanciamento contaminou os ministros militares com assento no Palácio do Planalto. “Não quero ter minha digital nisso”, comentou um deles ao perceber o rumo provocativo que o pronunciamento da noite de quarta-feira teria. Deixou o Palácio antes da gravação, conduzida sob o comando dos filhos e da milícia digital do bolsonarismo.

A insistência do presidente na tese esticou a corda com os governadores e com o Congresso, que amanheceu na quarta-feira colocando pilha na saída do ministro Luiz Henrique Mandetta. A pressão atingiu o pico do dia com o rompimento do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), com o presidente. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, presença mais frequente, entre seus pares, nas solenidades do Palácio do Planalto, Caiado foi um dos principais padrinhos de Mandetta, um deputado do Mato Grosso do Sul que não disputou em outubro de 2018 porque temia não se reeleger.

O ministro negaria a demissão num entrevista em que citou Caiado, mas não Bolsonaro. O Congresso mantinha a aposta na saída de Mandetta como mais um tapume no isolamento do presidente quando João Doria, na reunião de governadores com o presidente, partiu para o confronto. O discurso de palanque do governador de São Paulo não é unanimidade entre os envolvidos em busca de uma solução de consenso, especialmente os da farda, mas sua ação deliberada para levar os governadores a recusar interlocução com o presidente, caiu como uma luva para a estratégia de levar Bolsonaro ao limite do isolamento.

Para viabilizar o enfrentamento dos governadores, o Congresso busca meios de manter o acesso dos Estados a recursos com os quais possam manter suas políticas de combate à doença, hoje confrontadas pelo Planalto. O pronunciamento acabou por frear a proposta de emenda constitucional com a qual se pretendia criar um orçamento paralelo para viabilizar as ações de Bolsonaro no combate à pandemia e calar a tecla com a qual o presidente se diz impedido de agir pelo Congresso. Cogitou-se até incluir nesta PEC instrumentos com os quais Bolsonaro poderia ter mais poderes sobre o confinamento e o confisco de insumos hospitalares, como meio de evitar o Estado de Sítio.

Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa. Se uma caiu sob alegação de que teria infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, o outro teria infrações em série contra uma “lei de responsabilidade social”. Permanece sem solução, porém, o déficit de legitimidade de um impeachment em plenário virtual.

Vem daí a solução que ganha corpo, até nos meios militares, de uma saída do presidente por renúncia. O problema é convencê-lo. A troco de que entregaria um mandato conquistado nas urnas? O bem mais valioso que o presidente tem hoje é a liberdade dos filhos. Esta é a moeda em jogo. Renúncia em troca de anistia à toda tabuada: 01, 02 e 03. Foi assim que Boris Yeltsin, na Rússia, foi convencido a sair, alegam os defensores da solução.

Não faltam pedras no caminho. A primeira é que não há anistia para uma condenação inexistente. A segunda é que ao fazê-lo, a legião de condenados da Lava-Jato entraria na fila da isonomia, sob a alcunha de um “Pacto de Moncloa” tupiniquim. A terceira é que o Judiciário, agastado com o bordão que viabilizou o impeachment de Dilma (“Com Supremo com tudo”), resistiria a embarcar. E finalmente, a quarta: Quem teria hoje autoridade para convencer o presidente? Cogita-se, à sua revelia, dos generais envolvidos na intervenção do Rio, PhDs em milícia.

A única razão para se continuar nesta pedreira é que, por ora, não há outra saída. Na hipótese de se viabilizar, o capitão pode estar a caminho de encerrar sua carreira política como começou. Condenado por ter atentado contra o decoro, a disciplina e a ética da carreira militar, Bolsonaro foi absolvido em segunda instância. Em “O cadete e o capitão” (Todavia, 2019), Luiz Maklouff, esboça a tese de que a absolvição foi a saída encontrada para o capitão deixar a corporação. Em seguida, o Bolsonaro disputaria seu primeiro mandato como vereador no Rio. Trinta e quatro anos depois, a borracha está de volta para esfumaçar o passado. Desta vez, com o intuito de tirá-lo da política.


Maria Cristina Fernandes é jornalista do “Valor”. Escreve às quintas-feiras

A brutalização da verdade - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 26/03

A ameaça representada pelos arroubos de Bolsonaro vai muito além da saúde pública. Ele parece desejar o confronto de modo a criar clima para soluções autoritárias



O presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento absolutamente irresponsável na noite de terça-feira, em cadeia nacional de rádio e TV. Em vez de usar esse recurso poderoso para anunciar alguma medida importante para conter a epidemia de covid-19, ou mesmo para confortar os brasileiros confinados há dias em suas casas, Bolsonaro, sob o argumento de que é preciso reativar a economia, incitou os cidadãos a romper a quarentena e voltar à “normalidade” – contrariando as recomendações de especialistas de todo o mundo e do próprio Ministério da Saúde. Ao fazê-lo, o presidente passou a ser, ele mesmo, uma ameaça à saúde pública. Por incrível que pareça, os brasileiros, para o bem do País, devem desconsiderar totalmente o que disse o chefe de Estado. A que ponto chegamos.

Mas a ameaça representada pelos arroubos de Bolsonaro vai muito além da questão da saúde pública. O presidente parece desejar ardentemente o confronto – com governadores de Estado, com o Congresso, com a imprensa e até com integrantes de seu próprio governo –, de modo a criar um clima favorável a soluções autoritárias. À sua maneira trôpega, Bolsonaro, ao reiterar ontem as alucinadas declarações que dera na noite anterior, disse: “Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. Ninguém sabe o que pode acontecer no Brasil. Sai (da normalidade democrática) porque o caos faz com que a esquerda se aproveite do momento para chegar ao poder. Não é da minha parte, não, fique tranquilo”.

Assim, Bolsonaro usa a epidemia de covid-19, cujas dimensões e letalidade ainda são desconhecidas e que tanta aflição tem causado ao País e ao mundo, para alimentar seu inconfessável projeto de poder – cuja natureza cesarista já deveria ter ficado clara para todos desde o momento em que o admirador confesso de notórios torturadores do regime militar se tornou presidente da República.

Esse projeto se assenta na brutalização da verdade. Para o bolsonarismo, os fatos reais não existem, salvo quando enunciados por Bolsonaro. Assim, se o presidente diz, sem nenhum respaldo na realidade, que a covid-19 é uma “gripezinha” causada por um vírus “que brevemente passará” e que a culpa pelo “pavor” da sociedade é da imprensa, que semeou uma “verdadeira histeria”, então esses passam a ser os “fatos” – em detrimento das inúmeras evidências em contrário. No mesmo dia em que Bolsonaro qualificava a covid-19 de “resfriadinho”, os organizadores da Olimpíada de Tóquio anunciaram o adiamento do evento para o ano que vem – apenas a mais recente das muitas medidas drásticas tomadas mundo afora por dirigentes conscientes de seu papel nessa crise planetária. “É sério. Leve a sério você também”, disse a chanceler alemã, Angela Merkel, em dramático pronunciamento na TV a respeito da necessidade de isolamento social.

O contraste com Bolsonaro é gritante: para o presidente brasileiro, basta manter apenas o “grupo de risco” (pessoas acima de 60 anos) em isolamento, e então será possível reabrir escolas e o comércio. Mas o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é contra esse isolamento parcial, segundo apurou o site BR Político.

Por sorte, os governadores de Estado – acusados por Bolsonaro de praticar política de “terra arrasada” – informaram que vão manter as restrições de movimento para enfrentar a epidemia. Em reunião virtual dos governadores do Sudeste com Bolsonaro, João Doria, de São Paulo, disse lamentar o pronunciamento do presidente, queixou-se da descoordenação do governo federal e declarou que “a prioridade é salvar vidas” – ao que Bolsonaro, que jamais desceu do palanque, respondeu: “Saia do palanque”.

“As decisões do presidente da República em relação ao coronavírus não alcançarão o Estado de Goiás”, informou o governador goiano, Ronaldo Caiado, no que certamente será seguido por seus pares. Ou seja, o presidente Bolsonaro será olimpicamente ignorado pelos governadores. O resto dos brasileiros deveria fazer o mesmo.