ESTADÃO - 17/02
O PT chegou ao limite entre a crítica legítima e a deslealdade às instituições
Há quem acredite que Lula seja vítima de uma trama jurídico-midiática de elites interessadas em impedir sua volta à Presidência. Estariam motivadas por um sentimento de vingança contra o presidente que “mais fez pelos pobres em toda a História do País”. O argumento seria plausível se o ex-presidente tivesse liderado um programa de redistribuição de renda e riqueza que ameaçasse os interesses dos donos do poder político e econômico. Nada mais distante da realidade.
Para as verdadeiras elites econômicas do País, o governo do ex-presidente, no geral, só traz doces lembranças, por boas e más razões: o País cresceu acima da média dos últimos 30 anos, milhões de novos consumidores foram incorporados aos mercados, os juros reais continuaram a remunerar regiamente os “poupadores líquidos”, os contratos com o Estado se multiplicaram e engordaram com generosos superfaturamentos. O mesmo vale para os donos do poder político: apesar da vocação hegemônica do PT, velhos caciques, a maioria deles filiada ao PMDB, encontraram amplo terreno de caça para operar política e negócios tanto com a antiga como com a emergente alta burguesia brasileira, da qual os irmãos Batista são (ou eram) exemplares típicos.
É preciso ser muito crédulo para acreditar na ladainha de que as elites não querem Lula de volta porque não toleram a ideia de que pobres possam frequentar universidades e andar de avião. Perguntem aos donos de faculdades privadas – em particular aos que se ergueram com a alavanca do Fies – e controladores de companhias aéreas o que acham dessa extravagante interpretação.
É verdade que as camadas mais altas e consolidadas das classes médias se sentiram incomodadas com a “invasão” de espaços que antes lhe eram quase privativos. Mas as elites, ora, continuaram a viajar em avião particular e a matricular os filhos nas melhores universidades privadas do País e do exterior. É tola a ideia de que não queiram que os pobres melhorem de vida.
O incômodo de parte das classes médias tornou-se um fenômeno político potente quando o “espetáculo do crescimento” se encerrou, o mensalão foi a julgamento no STF e na sequência a Lava Jato passou a revelar um sistema de corrupção como nunca antes visto neste país (o que não é pouca coisa, tendo em vista o histórico brasileiro nessa matéria). Aí, sim, cresceu em todas as classes médias – emergentes e consolidadas, baixas e altas – um sentimento anti-PT e anti-Lula que criou a atmosfera propícia ao impeachment de Dilma. Nem a mais onisciente e onipotente elite da galáxia teria conseguido alinhar uma sequência tão devastadora de choques negativos sobre um governo.
Em busca das razões da situação vivida pelo partido e por seu líder máximo, o PT deveria abandonar o recurso a bodes expiatórios, teorias da conspiração e estereótipos sobre as elites brasileiras. Melhor faria se reavaliasse por que perdeu as classes médias: fim do boom de commodities, nova matriz econômica, estelionato eleitoral, corrupção e, ainda agora, confronto com as instituições.
Desde que Lula passou a ser investigado pela Lava Jato e outras operações congêneres, o PT decidiu denunciar instituições que seriam representativas dos interesses das elites, em particular a grande imprensa e o Judiciário. Fico imaginando o que pensam os vários empresários condenados à prisão sobre a tese de que juízes representariam os interesses das elites. Só se forem os interesses corporativos dos membros do Judiciário, os quais nenhum governo até aqui, incluídos os do PT, pôs em xeque.
A estratégia de confrontação com as instituições pode até fazer sentido para manter o ânimo da militância partidária, mas enreda o PT nas teias de uma velha e perigosa ambiguidade. Passados quase 40 anos de sua fundação, o partido ainda oscila entre a adesão à democracia representativa e o flerte romântico ou concreto com formas de exercício do poder e governos autoritários, assim como entre o reconhecimento do caráter apartidário das instituições do Estado e a tentação de aparelhá-las.
Logo após o impeachment de Dilma o então presidente do PT, Rui Falcão, lamentou não terem os governos petistas alterado os currículos das academias militares e promovido oficiais com “compromissos democráticos e nacionalistas”. Desse mesmo período é o discurso em que Jaques Wagner, um dos prováveis candidatos do PT à Presidência, explica a militantes do partido que, “por ora”, é preciso respeitar as “regras deles”, porque no Brasil vivemos numa democracia e não fizemos revolução. Não estou certo de que o ex-governador da Bahia acredite no que disse, mas é sintomático que o tenha dito para explicar a militantes a necessidade de alianças partidárias fora do campo da esquerda. E como deixar de mencionar a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que sustenta a tese de perseguição política a Lula quase com o mesmo ardor com que defende o atual governo da Venezuela, onde os políticos opositores são presos arbitrariamente. Não menos ambígua é a defesa da “democratização das comunicações”, que amiúde se confunde com “controle sobre a mídia”.
No calor da luta política, qualquer partido, quando se vê em desvantagem, tende a forçar os argumentos para se defender e atacar os adversários. Não raro, esse tensionamento pode produzir frutos positivos para a qualidade da democracia. Dou como exemplo a acusação que o PT faz de haver tratamento diferenciado para os casos de corrupção envolvendo governos e políticos do PSDB. É bom debater e apurar se tal acusação tem ou não fundamento. O problema surge quando um partido apela à mistificação para atacar a legitimidade do regime democrático. O PT chegou ao limite entre a crítica legítima a decisões judiciais e a deslealdade com as instituições.
Tomara que as lideranças mais sensatas do partido não permitam a fatal ultrapassagem dessa fronteira.
*Superintendente executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
sábado, fevereiro 17, 2018
Empulhação - J.R. GUZZO
REVISTA VEJA
Não adianta chamar o Exército e deixar a lei ao lado dos criminosos
O Comandante Militar do Leste, General Braga Netto, durante entrevista coletiva sobre o decreto de intervenção no Estado do Rio de Janeiro - 16/02/2018 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
As Forças Armadas, com o Exército à frente, são a organização mais respeitada do Brasil. Dão de 10 a 0 no Supremo Tribunal Federal, no Ministério Público, nos juízes que ganham o “auxílio-moradia”, na mídia e no Congresso Nacional. Ganham de longe de qualquer organização civil ─ sindicatos, empresas estatais ou privadas, confederações disso ou daquilo, clubes de futebol, OABs e similares. É melhor nem falar, então, da Igreja Católica e das CNBBs da vida ─ e muito menos desses lúgubres “movimentos sociais”, entidades de “minorias” e outros parasitas que vivem às custas do Tesouro Nacional. Enfim, as Forças Armadas têm mais prestigio que qualquer outra coisa organizada que exista neste país. Militar não rouba. Militar não falta ao serviço. Militar não é nomeado por político. É exatamente por essas razões ─ por ter nome limpo na praça, e valer mais aos olhos do público do que todos os três poderes juntos ─ que o Exército foi chamado para defender um Rio de Janeiro invadido, tomado e governado na prática por um exército de ocupação de criminosos. Mas é só por isso, e por nada mais: o governo chamou os militares, porque esta é a única maneira de tentar mostrar à população que está “fazendo alguma coisa” contra a derrota humilhante que lhe foi imposta pelos bandidos. O Exército não pode derrotar o crime no Rio de Janeiro. Nenhum exército foi feito para isso, em nenhum lugar do mundo. Pode haver algum alívio durante um certo tempo, mas depois a tropa tem de sair ─ e aí o crime volta a mandar, porque é o crime, e não o governo e sua polícia, quem manda no Rio de Janeiro.
O governo Michel Temer, no caso, é culpado por empulhação ─ mas só por empulhação. Pela situação do crime no Brasil, com seus 60.000 assassinatos por ano, recordes de roubos, estupros e violência em massa, e a entrega da segunda maior cidade do país à bandidagem, as responsabilidades vão muito além. A culpa pelo desastre, na verdade, é conjunta ─ o que não quer dizer, de jeito nenhum, que ela é dos cidadãos. Ela é de todos os que têm algum meio concreto de influir na questão e não fazem o seu dever. Como é possível enfrentar a sério o crime se temos leis, um sistema Judiciário e agentes do Estado que protegem ativamente os criminosos? Afinal, do jeito em que está a ordem pública no Brasil, eles têm praticamente o direito de cometer crimes. A maior parte da mídia mantém uma postura de hostilidade aberta à polícia ─ nada parece excitar tanto o fervor do noticiário do que as denúncias contra a “violência policial”. Obedece, ao mesmo tempo, a mandamentos de simpatia e compreensão perante os criminosos, sempre tratados apenas como “suspeitos”, vítimas da situação “social” e portadores prioritários de direitos. A maior parte dos 800.000 advogados do país é contra qualquer alteração que torne menos escandalosa a proteção e garantias fornecidas ao crime pelas leis atualmente em vigor. Policiais são assassinados em meio à mais completa indiferença ─ policial bom é policial morto, parecem pensar governo, oposição e quem está no meio dos dois. Os bispos, as ONGs, as entidades de defesa dos direitos humanos, as variadas “anistias” internacionais que andam por aí, as classes intelectuais, procuradores, juízes, políticos e mais uma manada de gente boa são terminantemente contra a repressão ao crime. Punição, segundo eles, “não resolve”. Sua proposta é esperarmos até o Brasil atingir o nível educacional, cultural e social da Noruega ─ aí sim, o problema estará resolvido.
A jornalista Dora Kramer, na sua coluna da última edição de VEJA, escreveu o que está para ser dito há muito tempo e ninguém diz: a cidade do Rio de Janeiro vive, hoje em dia, como se estivesse ocupada por uma tropa de invasão nazista. Nem mais nem menos. Um invasor do país tem de ser combatido com guerra, e não com decretos, criação de “ministérios de segurança” e a intervenção de um Exército que é mandado à frente de combate com as mãos amarradas. Não tem estratégia clara. Não tem missão definida. Não tem a proteção da lei. Não tem o direito de usar suas armas dentro da finalidade para a qual elas foram projetadas e construídas. Não tem meios adequados sequer para proteger os seus próprios soldados ─ muito menos, então, para atacar o inimigo. Enquanto for assim, o Rio continuará entregue aos invasores.
O Comandante Militar do Leste, General Braga Netto, durante entrevista coletiva sobre o decreto de intervenção no Estado do Rio de Janeiro - 16/02/2018 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
As Forças Armadas, com o Exército à frente, são a organização mais respeitada do Brasil. Dão de 10 a 0 no Supremo Tribunal Federal, no Ministério Público, nos juízes que ganham o “auxílio-moradia”, na mídia e no Congresso Nacional. Ganham de longe de qualquer organização civil ─ sindicatos, empresas estatais ou privadas, confederações disso ou daquilo, clubes de futebol, OABs e similares. É melhor nem falar, então, da Igreja Católica e das CNBBs da vida ─ e muito menos desses lúgubres “movimentos sociais”, entidades de “minorias” e outros parasitas que vivem às custas do Tesouro Nacional. Enfim, as Forças Armadas têm mais prestigio que qualquer outra coisa organizada que exista neste país. Militar não rouba. Militar não falta ao serviço. Militar não é nomeado por político. É exatamente por essas razões ─ por ter nome limpo na praça, e valer mais aos olhos do público do que todos os três poderes juntos ─ que o Exército foi chamado para defender um Rio de Janeiro invadido, tomado e governado na prática por um exército de ocupação de criminosos. Mas é só por isso, e por nada mais: o governo chamou os militares, porque esta é a única maneira de tentar mostrar à população que está “fazendo alguma coisa” contra a derrota humilhante que lhe foi imposta pelos bandidos. O Exército não pode derrotar o crime no Rio de Janeiro. Nenhum exército foi feito para isso, em nenhum lugar do mundo. Pode haver algum alívio durante um certo tempo, mas depois a tropa tem de sair ─ e aí o crime volta a mandar, porque é o crime, e não o governo e sua polícia, quem manda no Rio de Janeiro.
O governo Michel Temer, no caso, é culpado por empulhação ─ mas só por empulhação. Pela situação do crime no Brasil, com seus 60.000 assassinatos por ano, recordes de roubos, estupros e violência em massa, e a entrega da segunda maior cidade do país à bandidagem, as responsabilidades vão muito além. A culpa pelo desastre, na verdade, é conjunta ─ o que não quer dizer, de jeito nenhum, que ela é dos cidadãos. Ela é de todos os que têm algum meio concreto de influir na questão e não fazem o seu dever. Como é possível enfrentar a sério o crime se temos leis, um sistema Judiciário e agentes do Estado que protegem ativamente os criminosos? Afinal, do jeito em que está a ordem pública no Brasil, eles têm praticamente o direito de cometer crimes. A maior parte da mídia mantém uma postura de hostilidade aberta à polícia ─ nada parece excitar tanto o fervor do noticiário do que as denúncias contra a “violência policial”. Obedece, ao mesmo tempo, a mandamentos de simpatia e compreensão perante os criminosos, sempre tratados apenas como “suspeitos”, vítimas da situação “social” e portadores prioritários de direitos. A maior parte dos 800.000 advogados do país é contra qualquer alteração que torne menos escandalosa a proteção e garantias fornecidas ao crime pelas leis atualmente em vigor. Policiais são assassinados em meio à mais completa indiferença ─ policial bom é policial morto, parecem pensar governo, oposição e quem está no meio dos dois. Os bispos, as ONGs, as entidades de defesa dos direitos humanos, as variadas “anistias” internacionais que andam por aí, as classes intelectuais, procuradores, juízes, políticos e mais uma manada de gente boa são terminantemente contra a repressão ao crime. Punição, segundo eles, “não resolve”. Sua proposta é esperarmos até o Brasil atingir o nível educacional, cultural e social da Noruega ─ aí sim, o problema estará resolvido.
A jornalista Dora Kramer, na sua coluna da última edição de VEJA, escreveu o que está para ser dito há muito tempo e ninguém diz: a cidade do Rio de Janeiro vive, hoje em dia, como se estivesse ocupada por uma tropa de invasão nazista. Nem mais nem menos. Um invasor do país tem de ser combatido com guerra, e não com decretos, criação de “ministérios de segurança” e a intervenção de um Exército que é mandado à frente de combate com as mãos amarradas. Não tem estratégia clara. Não tem missão definida. Não tem a proteção da lei. Não tem o direito de usar suas armas dentro da finalidade para a qual elas foram projetadas e construídas. Não tem meios adequados sequer para proteger os seus próprios soldados ─ muito menos, então, para atacar o inimigo. Enquanto for assim, o Rio continuará entregue aos invasores.
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