domingo, julho 22, 2012

A república de São Bernardo - REVISTA ÉPOCA



O prefeito Luiz Marinho, o ministro Ricardo Lewandowski, o empresário Laerte Demarchi e o ex-presidente Lula fazem parte do mesmo círculo de amigos - e voltaram a ser muito próximos

Alberto Bombig e Vinícius Gorczeski


Em janeiro do ano passado, o município de São Bernardo do Campo, na região metropolita­na de São Paulo, ganhou um morador ilustre: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele ocupa a cobertura de um edifício residencial na Avenida Prestes Maia, no bairro Santa Teresi- nha, próximo ao centro da cidade em que se projetou, nos anos 1980, como líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. De lá para cá, a visibilidade do município - e sua prosperidade - só tem crescido. É de São Bernardo o prefeito Luiz Marinho, escolhido por Lula para ser o articulador político de seu grupo dentro do PT. No dia 5 deste mês, Marinho recebeu a visita de Dilma Rousseff na inauguração de uma unidade de saúde - ele foi o único prefeito petista candidato à reeleição que teve a oportunidade de posar para uma foto com a presidente. Marinho é amigo do ministro Ricardo Lewan- dowski, do Supremo Tribunal Federal, que nasceu no Rio de Janeiro e foi cria­do em São Bernardo. Lewandowski foi o revisor do processo do mensalão e participa do julgamento que mobili­zará o país a partir do dia 2 de agosto. Os três - Marinho, Lewandowski e o próprio Lula - são frequentadores do restaurante São Judas Tadeu e amigos do dono, Laerte Demarchi, um são- bernardense da gema. Laerte se orgu­lha de ter assistido, no nascimento do partido político que há dez anos governa o Brasil.

Marinho, Lewandowski, Demarchi e Lula pertencem a um mesmo círculo de amigos - e o relacionamento dos quatro vem se estreitando nos últimos tempos. O prefeito Marinho é um homem afei­to a celebrações públicas. Nos últimos dois anos, organizou três homenagens a Lewandowski, cuja família fez história em São Bernardo. Lewandowski esteve presente a todas. A mais recente foi no dia 28 de março, na Faculdade de Di­reito de São Bernardo, controlada pelo município. Lewandowski, com Marinho a seu lado, deu uma aula magna a um auditório lotado e foi saudado como o mais ilustre ex-aluno e ex-professor da faculdade. Um mês antes, Marinho inaugurara uma escola de educação infantil com o nome da mãe do mi­nistro, Karolina Zofia Lewandowska, morta em 2010. Em 2011, Marinho já homenageara Lewandowski por ele ter sido o primeiro presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc) do município.

Lewandowski ingressou na vida pública pelas mãos dos Demarchis. Quando Walter Demarchi, irmão de Laerte, era vice-prefeito de São Ber­nardo, entre 1983 e 1988, ele convidou o então advogado a ocupar a Secre­taria de Assuntos Jurídicos. O então prefeito, Aron Galante, mal conhecia Lewandowski. Ele recorda: “Foi a fa­mília Demarchi que indicou o secre­tário jurídico. Disseram: ‘Nós temos o Lewandowski’. Eu respondi: ‘Traz ele aqui’. Nem o conhecia direito”.

As famílias Lewandowski, de origem suíça, e Demarchi, sobrenome italiano, se conheceram em São Bernardo no final do século passado e se estabeleceram no mesmo pedaço de terra que hoje abriga o bairro Demarchi. Os Lewandowskis tinham um sítio onde fica hoje o con­domínio de alto padrão Swiss Park, ao lado do restaurante e onde os Lewan­dowskis mantêm uma casa. A família Demarchi se orgulha de ter sugerido o nome de Lewandowski quando surgiu uma vaga no Supremo. “O único favor que pedimos ao Lula, que foi meu ir­mão Laerte quem pediu, foi para que ele colocasse o Ricardo como ministro, porque não sei que ministro ia se apo­sentar (era Carlos Velloso). O Lula falou: ‘Tudo bem”’, afirmou Walter Demarchi a ÉPOCA. E Lewandowski se tornou ministro em 2006.

Quis o destino que ele fosse o revi­sor do processo do mensalão, o maior escândalo político do governo Lula.

ÉPOCA passou quase um mês vi­sitando a cidade e conversando com interlocutores do presidente, do pre­feito e de seus amigos. Todos reverbe­ram a “preocupação do Lula e do Mari­nho com o uso político” do julgamento - e relatam a pressão, de forma direta ou indireta, sobre Lewandowski. Laerte Demarchi diz que a família do ministro anda preocupada com a pressão sobre “Ricardo”. Ele relatou uma conversa que teve com Anita Lewandowski no dia 30 de junho, quatro dias depois de o minis­tro ter apresentado seu voto revisor do mensalão após uma reprimenda pública do presidente do Supremo, Carlos Ayres Brito. Anita desabafou: “Vocês viram o que estão fazendo com o Ricardo?”. Laerte respondeu: “Mas não é isso o que ele queria, ser ministro do Supremo? Agora, aguenta. Por que ele está preocu­pado? Se não tem nada (para condenar os réus), então não tem nada. Não vai ter problema”. A conversa foi relatada por Laerte a ÉPOCA numa mesa do res­taurante. Ele torce pela absolvição do ex-deputado José Dirceu, um dos réus no processo: “Podem falar o que quise­rem, mas eu realmente acredito nesse homem”. Sobre o julgamento, Walter Demarchi afirmou: “Lewandowski não passará um réu no moedor de carne sem ter certeza de sua culpa”. ÉPOCA perguntou aos irmãos Laerte e Walter se haviam conversado com o amigo Lewandowski sobre o assunto. Os dois disseram que não. Apesar de as famílias se frequentarem e os Lula da Silva tam­bém serem próximos de Lewandowski e de sua irmã. Lula e Laerte Demarchi também passaram juntos parte das fé­rias de julho numa chácara.

PROSPERIDADE


O município de São Bernardo, que ostenta em sua bandeira a figura de um bandeirante e de um indígena, vive um bom momento não apenas pelo pro- tagonismo de seus filhos e moradores ilustres na vida pública brasileira. Há também prosperi­dade na área das verbas públicas. No primeiro semestre deste ano, São Ber­nardo ganhou R$ 79,3 milhões em transferências da União, R$ 20 mi­lhões a mais que Guarulhos, cidade também adminis­trada pelo PT, porém com quase 500 mil habitantes a mais que o município comandado por Marinho.

Além de dinheiro, Marinho tem poder. Ele foi encarregado por Lula de cuidar das costuras políticas com os di­retórios do PT e aliados. Foi ele quem ajudou a convencer Lula a posar para a já famosa foto ao lado do deputado federal Paulo Maluf em São Paulo. Ma­rinho também negociou a aproximação do PT com Gilberto Kassab (PSD), seu parceiro em São Bernardo. Segundo um dirigente do PSD ouvido por ÉPOCA, Marinho “aproximou” Kassab a Lewan­dowski no momento em que o STF ana­lisava o pedido do partido de Kassab para ter direito ao tempo gratuito de TV nas eleições neste ano - a causa foi vito­riosa. Transformar Marinho num líder nacional do PT é hoje uma obsessão de Lula. Foi ele quem pediu a Dilma que ela participasse da inauguração de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no dia 5 deste mês. O evento conferiu o prestígio que faltava a Marinho, hoje identificado dentro do partido como “o homem que conversa com o Lula”. À medida que ele, ex-sindicalista como Lula, se fortalece como administrador e articulador, o ex-presidente ganha um ator fiel a seu projeto de não perder o controle do PT para o grupo rival - aquele que começa a se formar em torno de Dilma e tem como estrelas os minis­tros mais próximos da presidente, como Gleisi Hoffmann (Casa Civil) e Aloizio Mercadante (Educação). Marinho tam­bém é uma opção de Lula para a disputa do governo de São Paulo em 2014.

A aliança entre Lula e Marinho causa desconforto em petistas paulis­tanos, que não aceitam a intromissão de Marinho no comando da candida­tura de Fernando Haddad a prefeito de São Paulo. Segundo eles, Lula quer impor um líder assim como impôs Haddad candidato. A confiança de Marinho na própria reeleição é tama­nha, e seus projetos tão mais amplos, que ele diz: “Abro mão da presença dele, Lula (na minha campanha), para que ele possa ir a Santo André, Mauá e São Paulo”. Se o projeto de Lula e Marinho der certo - e se o voto de Lewandowski acompanhar os vaticí­nios dos irmãos Demarchi -, a vitó­ria poderá ser creditada à “República de São Bernardo”.

Pequenas felicidades - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA

- Cachorro-quente. 

- Na esteira de bagagens do aeroporto, sua mala estar entre as primeiras a aparecer.

- Receber notícias de um amigo de que você gosta muito e que andava sumido.

- Ter recebido de presente a série inteira de Mad Men para assistir atirada no sofá.

- Numa loja de CDs usados, por um preço irrisório, encontrar discos de Keith Jarret, Tom Waits, Chet Baker e Miles Davis que você já teve em vinil e estupidamente se desfez.

- Livros. Encantar-se por um autor que você não conhecia.

- Num restaurante com os amigos, a última rodada ser brinde da casa.

- Dentro do cinema, não haver ninguém conversando e fazendo barulho com papel de bala e saco de pipoca.

- Revistas TPM, Lola, Bravo, Elle, Vogue, Joyce Pascowitch – revistas de moda, cultura, entretenimento e decoração são sempre um luxo acessível, uma fantasia necessária.

- Lareira.

- Sair bem na foto.

- Passar um fim de semana no Rio.

- Um bom programa de entrevistas na tevê.

- Uma consulta altamente proveitosa na terapia.

- Flores, folhagens, jardins, árvores, montanha.

- Acertarem no presente.

- Taxista que não corre.

- Prazos de validade bem visíveis nos produtos perecíveis.

- Banho quente. Sem pressa pra sair.

- Declaração de amor de filho.

- Declaração de amor do seu amor.

- Conversar longamente com sua melhor amiga. Tomando um vinho tinto, melhor ainda.

- Alguém encontrou e devolveu a carteira que você havia perdido com todos os documentos dentro.

- Barulho de chuva antes de dormir.

- Dia de sol ao acordar.

- Massagem.

- Receber um elogio profissional de alguém que você admira muito.

- Subir na balança e descobrir que emagreceu.

- Check-up que não acusa nenhum distúrbio de saúde.

- Lembrar detalhes de um sonho bom.

- A vibrante pulsação de um show ao vivo.

- Biografias bem escritas de personalidades interessantes.

- Praia com mar de cartão postal.

- Festa boa.

- A luz voltar.

- Um dinheiro extra que você não estava esperando.

- Beijo.

- Sair do dentista ouvindo a recomendação de voltar só dali a um ano.

- Uma noite bem dormida.

- Ter concluído satisfatoriamente todas as pendências da semana.

- Seu time fazer o gol decisivo no último minuto do jogo – é preciso sofrer um pouquinho na vida.

- Coca-Cola. Bombom. Pão com manteiga. Queijo.

- Chorar de rir.

- Quitar uma dívida.

- Rever as obras de um pintor de que você gosta muito.

- Seu cachorro de estimação. Seu gato aninhado em seu colo.

- Identificar suas próprias pequenas felicidades e, mesmo nem tudo dando certo, gostar da vida que leva.

Ter um passado é fundamental - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP


Quem está apaixonado se transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais


Uma paixão é a melhor coisa do mundo -para quem a está vivendo. Mas para as testemunhas desse sentimento inigualável, tema de inspiração dos poetas, o assunto é discutível.

Por mais que se torça para que as pessoas de quem gostamos se apaixonem e sejam muito felizes, quando isso acontece, a tendência é guardar uma certa distância; com o tempo, essa distância vai ficando cada vez maior, pois quem está apaixonado se transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais.

Aquela amiga divertida que tinha opiniões engraçadas sobre as coisas e contava histórias escabrosas do passado -dos outros e dela própria- cessa de existir.

Como vai poder falar sobre o fim de semana que passou em Salvador quando, depois de umas oito caipirinhas, foi dar um mergulho, perdeu o sutiã no mar e teve que voltar para a praia mal conseguindo esconder os seios? Todo mundo viu, claro, e até ela achou muito divertido, mas sinceramente: uma mulher pode contar isso diante de um homem profundamente apaixonado? Claro que não.

Como também não pode falar sobre coisas mais calmas, digamos assim: que adorava seu ex-marido, que sofreu muito quando se separou, que andou tendo uns namoros que não deram certo e resolveu nunca mais gostar de ninguém, até que o encontrou etc. e tal. É lindo, mas um homem apaixonado pode ouvir isso numa boa? Difícil.

É da troca de experiências passadas que nascem as amizades, e como nada disso vai poder mais ser falado, os amigos começam a se afastar -os dela e os dele.

Passar horas com duas pessoas se olhando olho no olho, mão na mão, sem poder mencionar noites divertidas e loucas vividas em outros tempos, quando saíam da pista de dança às 5h da manhã e ainda iam a um botequim comer um sanduíche de mortadela e beber cerveja, fica difícil.

Amigos de apaixonados têm que tomar o maior cuidado com o que dizem, para não cometer aquelas indiscrições horrendas -e ninguém quer ficar mudo, quer? Eu, não.

As coisas acontecem naturalmente: os amigos se afastam, eles se afastam dos amigos e se tornam pessoas sem passado -e uma pessoa sem passado não é ninguém; aliás, não é nada. Ninguém pode abrir mão do seu, e olha que cada um de nós tem pelo menos uma coisa -ou várias- que preferia que não tivesse acontecido ou que pelo menos ninguém jamais soubesse.

Tem mais: uma mulher apaixonada costuma não ter opinião sobre nada: dependendo do parceiro, deixa de fumar, passa a não comer carne vermelha, a só gostar de música clássica -ou pagode ou rock-, a acordar às 3h da manhã para ver a seleção jogar, mesmo odiando futebol -e ainda fazer um café no intervalo do jogo-, e só vota no candidato que seja o mesmo do seu amado. Estar apaixonado e conservar alguma personalidade é praticamente impossível.

Ah, a paixão. É muito boa enquanto dura, mas impede que se viva qualquer outra coisa, a não ser ela mesma.

Um dia -que me perdoem os que estão apaixonados- cansa. Cansa, não: exaure.

Mas acho que estou falando de coisas de um passado muito, mas muito remoto. Há quanto tempo você não ouve alguém declarar, com todas as letras, que está perdidamente apaixonado?

Eu, há séculos.

PS - Duas semaninhas de férias, estou de volta no dia 12 de agosto, até.

Luz, câmera, esculhambação - JOÃO UBALDO RIBEIRO


O Estado de S.Paulo 


Meu avô de Itaparica, o inderrotável Coronel Ubaldo Osório, não era muito dado a novas tecnologias e à modernidade em geral. Jamais tocou em nada elétrico, inclusive interruptores e pilhas. Quando queria acender a luz, chamava alguém e mantinha uma distância prudente do procedimento. Tampouco conheceu televisão, recusava-se. A gente explicava a ele o que era, com pormenores tão fartos quanto o que julgávamos necessário para convencê-lo, mas não adiantava. Ele ouvia tudo por trás de um sorriso indecifrável, assentia com a cabeça e periodicamente repetia "creio, creio", mas, assim que alguém ligava o aparelho, desviava o rosto e se retirava. "Mais tarde eu vejo", despedia-se com um aceno de costas.

O único remédio que admitia em sua presença era leite de magnésia Phillips, assim mesmo somente para olhar, enquanto passava um raro mal-estar. Acho que ele concluiu que, depois de bastante olhado, o leite de magnésia fazia efeito sem que fosse necessário ingeri-lo. Considerava injeção um castigo severo e, depois que as vitaminas começaram a ser muito divulgadas, diz o povo que, quando queria justiçar alguma malfeitoria, apontava o culpado a um preposto e determinava: "Dê uma injeção de vitamina B nesse infeliz." Dizem também que não se apiedava diante das súplicas dos sentenciados à injeção de vitamina, enquanto eram arrastados para o patíbulo, na saleta junto à cozinha, onde o temido carcereiro Joaquim Ovo Grande já estava fervendo a seringa. (Naquele tempo, as seringas eram de vidro e esterilizadas em água fervente, vinha tudo num estojinho, sério mesmo.)

- Amoleça a bunda, senão vai ser pior! - dizia Ovo Grande, de sorriso viperino, olhos faiscantes e agulha em riste, numa cena a que nunca assisti, mas que não devia ser para espíritos fracos.

- Sim, mas acabo fazendo a biografia de meu avô e não chego ao assunto, que, pelo menos quando me sentei faz pouco para escrever, tinha a ver com fotografia. O coronel não evitava codaques, nome por que chamava indistintamente qualquer máquina fotográfica, mas só admitia ser fotografado se houvesse a preparação que ele considerava essencial. Nada do que então se chamava "instantâneo". Ele fazia a barba, tomava banho, vestia paletó e gravata, botava perfume e posava imóvel como uma rocha, diante da codaque. Daí a um mês, mais ou menos, as fotos voltavam, reveladas e copiadas, de um laboratório da cidade - e sua chegada era uma espécie de festa, que reunia parentes, amigos e correligionários.

Se o coronel estivesse vivo hoje, acho que acabaria tomando o leite de magnésia. Aproxima-se o dia em que seremos filmados, fotografados e monitorados em absolutamente todas as circunstâncias, inclusive no banheiro. Claro, reconheço que deliro um pouco, mas somente um pouco, quando imagino que, num futuro em que a água será escassa, cada morador terá cotas para todo tipo de uso da água e sofrerá penalidades diversas, se ultrapassá-las. Facilmente, a monitorização saberia quantas vezes e com que finalidade o freguês usou o vaso, estatística talvez considerada indispensável para a formulação de políticas sanitárias e de saneamento básico. Não saberemos como teremos vivido sem isso, até então.

Entrando em elevadores, dei para perceber gente olhando para as câmeras e se ajeitando como se fosse entrar no ar dentro de alguns instantes. Algumas moças chegam mesmo a passar a mão na nuca e ajeitar faceiramente os cabelos com um movimento de cabeça, como nos comerciais de xampus. Foi-se a manobra, tão praticada em gerações pretéritas, em que, tendo-se a sorte de encontrar no elevador a dadivosa e adrede acumpliciada vizinha do 703, apertava-se o botão de emergência, parava-se a cabine entre dois andares e davam-se os dois a um furtivo e inesquecível pecadilho da carne. O clipe já estaria no YouTube assim que ambos chegassem em casa, com dezenas de "visualizações", inclusive do marido e da família da vizinha.

Antigamente, a gente só tinha que dizer "que gracinha", "que beleza" ou "muito interessante" umas duas ou três vezes por amigo de boteco, no máximo. Era quando ele mostrava a foto da última neta, o retrato de toda a família junta ou um documento velho. Hoje a gente assiste a várias dezenas de clipes de celulares e sucessões de slides por dia, enquanto todo mundo fotografa e filma todo mundo, o tempo todo.

E outro dia, num noticiário de tevê, apareceu a notícia de um sequestro relâmpago em que um dos sequestradores filmou tudo com seu celular. Fico querendo adivinhar qual a razão para isso e me ocorre que, em muitos criminosos, suas ações talvez despertem um certo orgulho autoral e eles agora têm muitos recursos para documentar seus feitos para a História. De qualquer maneira, presenciamos o primeiro making of de um ato criminoso e espero somente que algum filósofo francês não saiba disso e publique um livro designando essa atividade como uma nova forma de arte, para que depois um porreta de uma agência governamental qualquer ache isso científico e premie com absoluta impunidade qualquer assalto, ou semelhantes, para o qual o seu autor haja preparado um making of de qualidade, gerando empregos e estimulando a arte. É bom viver onde o seguinte diálogo pode ocorrer:

- Então, como se foi de assalto hoje?

- Ah, legal. Só faltou me levar as calças, mas em compensação a crítica considera esse cara o melhor diretor de filmagem de assalto do Brasil, tablete de 12 megapixels, tudo muito profissional. Desta vez eu saio no Fantástico com certeza.

Gravata prateada - LUIS FERNANDO VERISSIMO


O Estado de S.Paulo - 22/07


Belinha e Saul tinham 15 anos de namoro e cinco morando juntos quando decidiram se casar a pedido do pai da Belinha, dr. Haroldo. O dr. Haroldo possuía uma gravata prateada que usara só três vezes na vida: na sua formatura, no seu próprio casamento e nos 15 anos da Belinha. Queria usá-la só mais uma vez, levando Belinha ao altar. Queria um casamento completo - igreja, recepção, tudo - e pagaria o que fosse preciso para ter aquela alegria, levar a Belinha ao altar com sua gravata prateada.

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O próprio dr. Haroldo não confessaria, mas havia um toque de vaidade no seu pedido. Ele ficara com os cabelos grisalhos nas têmporas, o que combinaria bem com a gravata prateada. Mas não era só isso. O fato de Belinha e Saul morarem juntos não o incomodava. Aceitava os novos tempos, sempre fora um homem sem preconceitos. Mas também acreditava que deveria haver uma certa cerimônia , um certo ritual - uma liturgia, era esse o termo que procurava - em ocasiões como um casamento, que marcavam a vida das pessoas para sempre. Se demorara tanto tempo para pedir aquilo à Belinha era porque suas têmporas ainda não estavam suficientemente prateadas para acompanhar a gravata na sua última aparição em público. Pagaria pelo vestido da noiva, pagaria pela recepção, pagaria por tudo para que o casamento de Belinha fosse inesquecível. E a data do casamento foi marcada.

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O engraçado é que, à medida que se aproximava a data, Saul, o noivo, ia ficando cada vez mais nervoso. Os amigos tentavam acalmá-lo.

- Que é isso, cara? Casados vocês já estão. Esse casamento não muda nada.

- É só uma pantomima.

- É só uma formalidade.

- Isso é que me assusta - dizia Saul. - Essa palavra. Formalidade. Não sei se eu estou preparado para a formalidade.

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A verdade era que Saul ficara impressionado com os argumentos do futuro sogro. Era importante a liturgia. Eram importantes o respeito à tradição e às convenções sociais, era importante a formalidade. Enfim, era importante tudo que a gravata prateada representava. Casamento era coisa séria.

- Que nada, cara - diziam os amigos. - Você e a Belinha se dão bem sem casamento. A formalidade vai ser só pra agradar ao velho. Não muda nada.

- Muda - insistia Saul. - Agora tudo vai ter outro significado. E eu não sei se estou pronto pra isso.

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O casamento foi tudo que o dr. Haroldo sonhava. A igreja decorada com flores, o órgão, Belinha linda no seu vestido de noiva e o pai da noiva resplandecente com suas têmporas grisalhas e sua gravata prateada. Saul não pode conter as lagrimas quando viu Belinha entrar na Igreja de braços dados com o pai. Aquele era mesmo um momento sublime que marcaria sua vida para sempre. A recepção não ficou atrás da cerimônia e também foi perfeita. E inesquecível.

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Semanas depois do casamento Saul confidenciou aos amigos que tinha falhado. Como, falhado? Na lua de mel. Não conseguira. E continuava não conseguindo. Ele e Belinha não tinham relações desde o casamento, e a culpa era dele.

- É que eu nunca transei com uma mulher casada - explicou Saul.

Minério, petróleo e os novos inconfidentes - ANTONIO ANASTÁSIA


FOLHA DE S.PAULO - 22/07

Petróleo dá bem mais royalties do que minério. Em 2011, o RJ levou R$ 6,9 bi; MG, só R$ 181 milhões. Mas minério também é finito, também é "safra única"



A Inconfidência Mineira legou aos brasileiros um dos mais vigorosos pilares na formação da nacionalidade. Seus líderes tornaram-se ícones da luta pela liberdade e pela independência. Dessa maneira, é muito apropriado buscar inspiração em 1789 para o movimento Justiça Ainda que Tardia, que lançamos recentemente e cujo nome homenageia a bandeira dos inconfidentes.
Nosso combate de hoje busca maior compensação financeira pela exploração de recursos minerais.
Há, atualmente, uma grande disparidade entre os royalties do petróleo e do minério, o que prejudica Estados como Minas Gerais e Pará, com atividade mineradora intensa.
Enquanto, em 2011, os royalties e participações especiais referentes ao petróleo alcançaram a soma de R$ 25,8 bilhões, o valor arrecadado com a Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) foi de apenas R$ 1,54 bilhão.
Queremos mudanças na legislação brasileira que define os royalties sobre as atividades de mineração. Não se justifica a disparidade existente entre a CFEM e os royalties do petróleo. Por mais que se rejeite a comparação, não há como negar tão grande distorção.
No caso do minério de ferro, principal produto da pauta das exportações brasileiras, nossa proposta é que o percentual da CFEM seja, em média, de 4% sobre o faturamento bruto das empresas mineradoras.
Em 2011, verificamos que enquanto a CFEM destinou aos cofres de Minas Gerais cerca de R$ 181,4 milhões, o Rio de Janeiro foi destinatário do significativo montante de R$ 6,9 bilhões relativo aos royalties e à participação especial (valor 38 vezes maior do que Minas).
Essa gritante distorção se repete em relação aos municípios. Enquanto todos os municípios mineiros produtores de minério receberam R$ 512 milhões, os municípios fluminenses produtores de petróleo receberam R$ 3,7 bilhões (sete vezes mais).
As atividades de exploração de petróleo e de minérios, produtos primários não renováveis, têm, ambas, alto impacto ambiental. Entretanto, são tratadas de forma muito desigual. Enquanto os royalties do petróleo chegam a até 10% do faturamento bruto, no caso dos minérios são de, no máximo, 3% do faturamento líquido (faturamento bruto menos despesas).
A arrecadação estatal em relação ao minério de ferro teve uma redução expressiva nas últimas décadas. Em 1988, era de US$ 1,30 por tonelada explorada. Hoje, equivale a apenas a US$ 0,26 por tonelada de minério de ferro.
O aumento do valor dos royalties da mineração é necessário para financiar projetos de desenvolvimento sustentável de longo prazo, pois trata-se de uma riqueza finita -como dizia o ex-presidente Arthur Bernardes, o minério só dá uma safra.
Esta é uma discussão mundial. Muitos países têm proposto um aumento de alíquota que pode chegar, em alguns casos, a 15% do faturamento bruto.
Na Austrália, por exemplo, a alíquota é de 7,5% sobre o faturamento bruto no caso do minério de ferro, e está sendo discutida uma participação especial de 30% sobre o lucro. Na Índia, a alíquota está em 10%.
O debate nacional sobre os royalties dos minérios não pode mais ser postergado. O clamor de Tiradentes e seus contemporâneos de rebeldia ajudou a formar o nosso Brasil. Esse é o exemplo de civismo que nos inspira.

Quente e frio - ELIANE CANTANHÊDE

Folha de S.Paulo - 22/07


BRASÍLIA - Há uma corrida desenfreada por concursos e vagas públicas. Simultaneamente, uma onda de greves e protestos de servidores. Afinal, é bom ou não é?
Direito é o curso mais procurado do país, mas não significa uma vocação coletiva, ou que todos os vestibulandos queiram ser advogados, juízes, delegados. A maioria quer usar a faculdade como "cursinho" para fazer concurso -não importa o setor.
Essa corrida ocorre pelo aumento de vagas no serviço público na era Lula, com um festival de concursos em todas as áreas, todos os Poderes, todos os Estados. E, claro, é estimulada pela estabilidade, pela aposentadoria, pela ascensão funcional. É botar o pé dentro e subir degraus.
É uma contradição: se tudo parece tão bacana e a turma estuda tanto para entrar, é preciso explicar as greves em mais de 20 setores da administração e os 10 mil servidores que pararam o trânsito em Brasília na última quarta, pichando um ministério, ameaçando invadir outro.
Talvez seja tão bom que os funcionários se sentem fortes o suficiente para confrontar Dilma Rousseff e exigir o impossível: R$ 92 bilhões de aumentos, 50% a mais na folha de pagamentos. Nenhum patrão do mundo faria isso. Muito menos um patrão, ou patroa, que apenas gerencia o dinheiro dos outros -os contribuintes.
Dilma argumenta com a crise internacional e joga duro, mas os grevistas também. Ela só cedeu para os professores das universidades, focando o top da carreira (doutores com dedicação exclusiva) e dando até 45% de reajuste em três anos. A categoria rejeitou, porque só a "elite" seria beneficiada. E os dois lados têm razão: nem o salário dos docentes é justo nem há dinheiro para tudo.
Que o impasse entre governo e servidores sirva para que essa obsessão "concurseira" recue para a normalidade. Para isso, porém, Dilma precisa garantir crescimento e investimentos na economia. O setor público está quente, a indústria, esfriando.

A praça é da tropa - DORA KRAMER

O Estado de S.Paulo 22/07


A partir de 2 de agosto e enquanto durar o julgamento do mensalão, a Praça dos Três Poderes ganhará desenho diferente do original vão aberto ao horizonte.

Haverá policiamento ostensivo constante com tropas da Polícia Militar do Distrito Federal, da Força de Segurança Nacional e dos agentes do Supremo Tribunal Federal, impedindo o acesso direto do público ao prédio do STF.

A montagem dessa logística vem sendo tratada pelo presidente do Tribunal, Carlos Ayres Britto, com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública do DF.

Será reforçada a segurança individual dos ministros, cujos trajetos de chegada, entrada e saída do tribunal serão alterados diariamente.

Por mais que os ministros digam que será um julgamento como outro qualquer, há o entendimento de que a realidade não é assim tão simples: querendo ou não, o Judiciário será protagonista de ocasião especialíssima.

Ao mesmo tempo em que examinará um processo inédito na forma e no conteúdo, terá de lidar com outras duas situações senão mais, tão polêmicas quanto.

Eventualmente decidirá sobre temas relativos à CPI do Cachoeira e ainda julgará questões sobre as eleições municipais no Tribunal Superior Eleitoral, integrado por parte dos ministros do Supremo.

Embora o Brasil já tenha assistido ao julgamento na esfera penal de um presidente cassado no Parlamento, a circunstância atual é diversa. Fernando Collor não tinha defensores na sociedade, seu caso não despertava emoções populares, o grupo político em xeque já não estava no poder e, sobretudo, o STF não desempenhava o papel ativo de hoje nem as sessões eram transmitidas pela televisão.

Desta vez é inegável que de alguma forma o Judiciário estará submetido a julgamento. E isso pode dar margem a manifestações até violentas à medida que forem sendo conhecidos os votos dos ministros, seja se houver tendência para absolvição ou condenação dos réus.

A ideia do policiamento ostensivo é evitar tanto o acesso ao STF quanto o assédio aos ministros para inibir cercos inoportunos.

Advogados, imprensa e todos os interessados devidamente credenciados terão garantido seus lugares, mas ao público em geral chegou-se à conclusão de que é melhor impor limitações de caráter preventivo.

Nesses dias que antecedem o julgamento que internamente no Supremo é tido como "diferenciado", os ministros têm recebido advogados dos réus, sistemática vista não como pressão, mas como o exercício do pleno direito de defesa de cada um.

Diferente é a interpretação a respeito de gestos mais contundentes - como aquele em que José Dirceu convocou movimentos sociais a saírem às ruas ou declarações que lançam suspeições sobre a lisura dos métodos de exame do processo - vistos como inconvenientes tentativas de coação. A elas os juízes acham melhor não reagir.

Se a cada uma correspondesse uma representação ao Ministério Público contra os autores, a avaliação é a de que acabariam contribuindo para tumultuar ainda mais o já conturbado ambiente.

Diante da pressão, a decisão do colegiado é de "engolir em seco" e deixar que as coisas se resolvam no devido tempo.

Ou seja, a partir de 2 de agosto, quando se inicia a primeira fase dos trabalhos com a apresentação de um resumo do processo na voz no relator Joaquim Barbosa, seguida das sustentações orais.

Primeiro fala a Procuradoria-Geral da República pela acusação e depois os advogados de defesa de cada um dos réus. Os trabalhos irão de segunda a sexta-feira, das 14h às 19h.

Essa etapa está prevista para se encerrar em 15 de agosto, quando, então, votam os ministros em sessões às segundas, quartas e sextas, na seguinte ordem: o relator, depois o revisor Ricardo Lewandowski e, em seguida, os demais do mais novo (Rosa Weber) ao decano (Celso de Mello).

Se a maioria for pela condenação, a etapa final será a da definição das penas. A previsão é a de que o julgamento entre pelo mês de setembro e esteja concluído antes das eleições de outubro.

O dentro sem fora - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 22/07


Como surgiu a energia que fez surgir o bóson que fez surgir a massa que constitui o universo, ninguém sabe


Se há uma pessoa fascinada pelo Universo e ao mesmo tempo grilada com ele, sou eu. Isso começou no dia em que, num curso particular, o professor me revelou a existência da Terra e do Sistema Solar. Saí da aula atordoado.

E era natural, uma vez que, até então, o mundo para mim eram as ruas de São Luís com seus sobrados e, sobretudo, o trecho em que eu morava, com as árvores da Quinta dos Medeiros, o bananal do sítio do Fiquene e, lá longe, o Matadouro e o Areal, por onde às vezes vagabundava.

E vinha agora o professor me dizer que a Terra era redonda, coberta de oceanos e que o Sol era uma estrela em torno da qual ela girava. A Terra é que gira e não o Sol? Mas eu via o Sol surgir por detrás da Camboa, passar por cima de nossa casa e ir descendo em direção ao rio Bacanga. Cansei de vê-lo -uma bola de fogo- desaparecer atrás do manguezal.

Agora, vem esse professor e me garante que é a Terra que gira em torno do Sol e que, como ele, é redonda -uma bola. Ou seja, nada batia com o que eu percebia. Por isso fiquei atordoado, mas, com o tempo, me habituei. Desde que o bananal continuasse lá onde sempre esteve, que eu pudesse ir tomar banho na praia do Olho d'Água e jogar bola no Campo do Ourique, pouco se me dava se a Terra fosse redonda e girasse.

Foi o que disse a mim mesmo, mas o problema estava criado. De vez em quando, olhava o Sol e imaginava a Terra girando em volta dele, com seus oceanos. E a água não derrama?! Pior: a Terra girava numa velocidade de 107 mil quilômetros por hora -cem vezes mais veloz que um jato- e, no entanto, para mim, ela estava parada! Tive que ir atrás de livros que me explicassem melhor essas coisas.

E desse modo, com as leituras e a reflexão, aprendi a distinguir entre a experiência que os sentidos nos oferecem e o conhecimento científico. O resultado foi que, em lugar da desconfiança, vieram a aceitação e o fascínio.

À medida que me informava melhor, entendia as leis cósmicas que regem o funcionamento do Universo, que foi se tornando uma realidade assustadora e deslumbrante.

Aprendi que os planetas alteram a forma do espaço em volta deles e que isso influi na propagação da luz, e soube dos buracos negros, onde tudo some, sugado por uma força inimaginável. Até a luz é engolida. Some e vai para onde? Não sei nem me informaram.

Mas estes são detalhes, pois o fundamental é responder à questão que intriga a todos: como foi que tudo começou? A resposta é conhecida com o Big Bang, ou seja, a explosão que deu origem ao universo. Bem, para mim, o Big Bang pode ter dado origem às galáxias e a tudo o mais; porém, como o nada não explode, havia antes alguma coisa que explodiu.

E não é que agora, com a notícia de que foi afinal confirmada a tal partícula bóson de Higgs -apelidada de "partícula de Deus"- minha suspeita se confirma? O que nasceu da tal explosão foi só o universo atual, ou seja, o Big Bang não é a origem de tudo. Isso se entendi bem o que significa o bóson de Higgs.

Os cientistas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) é que detectaram essa nova partícula subatômica, a que faltava para completar o Modelo Padrão da Física.

A teoria de Higgs, formulada em 1964, previa a existência de 32 partículas fundamentais, das quais 31 já tinham sido detectadas, menos uma, o bóson, responsável, logo após o Big Bang, pelo surgimento da massa, que viria constituir tudo o que existe, das galáxias aos planetas, das estrelas ao seres vivos.

Noutras palavras, não é que antes do Universo não existisse nada: existia apenas a energia que, por alguma razão, explodiu, gerando os prótons, elétrons etc., que formam os átomos e formariam a matéria cósmica. O que possibilitou a agregação dessas partículas, criando assim a massa, foi o bóson, conforme a teoria de Higgs.

Agora, como surgiu a energia que fez surgir o bóson que fez surgir a massa que constitui o universo, ninguém sabe. Disso os cientistas não falam, e com toda a razão. Mas disso sobra-me uma certeza: por ser infinito, o universo não tem fora, só dentro. Como já dissera Parmênides (século 5º a.C.), o um é um e não é dois.

Suor, noitadas e peixeira na Capadócia - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 22/07


Globais vão à Turquia gravar a próxima novela das nove, "Salve Jorge"; no verão escaldante, maquiadores fazem elenco suar de mentira, cavalos ralam de verdade e turcos ficam eriçados por atrizes

O sol da Capadócia já subiu às seis da manhã e levou para cima com ele a sensação térmica de 34ºC. Ainda assim, a maquiadora espirra uma solução aquosa nas axilas de Rodrigo Lombardi, para fingir que ele está suado, minutos antes de gravar. É que o suor real não parece ser de verdade na tela, ela diz.

A arte da telenovela imita a vida nesse caso: transpirar é o verbo mais conjugado pela equipe de "Salve Jorge", durante as gravações no auge do verão da Turquia. O segundo mais conjugado é madrugar. A próxima novela das nove da Globo tem estreia prevista para 22 de outubro.

Às 5h da quinta-feira da semana passada, Lombardi e seu cigarro aceso se encontram com o repórter Chico Felitti. O ator, que virou galã em "Caminho das Índias" (2009), segura a posição em outro texto de Gloria Perez. Seu personagem, Theo, trabalha na cavalaria das Forças Armadas do Brasil e, por amor, vai parar nas formações rochosas da região turca, onde naquele dia gravaria com cavalos e o colega Domingos Montagner.

Em meio à música romântica que toca no set para inspirar emoção nos atores, salta o barulho de um pum. "Foi o Domingos ou o pangaré?", pergunta um dos assistentes. Risos.

Montagner interpreta um galã aos 50 anos. Ele é Zyah, guia turístico local que "usa o charme para ajudar no ganha-pão", como define o ator e palhaço do Circo Zanni. A caracterização de turco inclui um amuleto usado pelos curdos, minoria étnica que sofreu décadas de discriminação por parte do governo da Turquia. "Se eu sou curdo? Não, não sou, até onde eu saiba." Seria causa social demais uma só novela? "É, uma de cada vez."

O engajamento da vez é pelo tráfico de seres humanos. Morena, a protagonista, vivida por Nanda Costa, 25, é vítima de um golpe que a leva trabalhar como escrava na Espanha. Depois vai parar na Turquia e acaba no Morro do Alemão pós-pacificação, os núcleos da trama.

"O roteiro não foi escrito por inteiro. Estamos filmando cenas que poderão ser encaixadas mais para a frente", explica o diretor Marcos Schechtman. A equipe comandada por ele começa a gravar às 4h e só termina quando o trabalho acabar.

Não são só os humanos que labutam em doses cavalares. "Os cavalos estão cansados. Pode parar de correr, eles estão esgotados", diz o treinador Ekrem Ilhan, de volta à cena de Lombardi e seus equinos. Foi Ilham que fez as cenas mais perigosas, em que Montagner não podia cavalgar. "Só a Cléo não precisa de dublê. Ela é a melhor de nós na montaria", reconhece o ator.

"Montar em pelo? Adoro!", diz Cléo Pires, 29, que agora está loira por escolha própria. "Dependendo do jeito que você senta é mais confortável do que com estribo." A montaria veio de casa. "Meu pai, Fábio [Júnior], tinha haras. Então sempre tive familiaridade com cavalo."

O gosto por galopar não é a única característica espartana de Cléo. Na novela, ela vive a brasileira rica Bianca, que se apaixona pelo turco Zyah. "Adoro acordar às 3h para gravar", diz. "Um dia me liberaram às 11h e eu não sabia o que fazer!"

Fazer compras estava fora de cogitação. "As pessoas daqui têm uma relação mais oriental com o dinheiro. Ele é importante, mas não um fim." Ela diz que a viagem a ensinou a cochilar à tarde, "uma ou duas horas". A pestana permite sair à noite.

A trupe adotou o bar Fat Boys para confraternizações, com tacos, cerveja e sinuca. No fim de uma das noitadas, dois locais brigaram por ciúme das brasileiras, que nem mais no bar estavam. Um puxou a peixeira, e a polícia foi chamada. "É bom tê-las aqui, mas os homens ficaram meio eriçados", diz a hoteleira Gülsin Demirören, que viu a peleja. "Bem eriçados."

É o caso do agricultor Ahmet Arnavut. Ele mora ao lado de um dos sets usados nos 20 dias de gravação. Ele olha as atrizes e diz: "Lindas". Perguntado de quem gostava mais, aponta para Nanda. "Por ela eu daria três cavalos Mas só três porque não é loira. Valeria mais loira."

O novo corte de cabelo, mais volumoso, aliás, não é a única coisa na cabeça da protagonista. A Turquia pode a qualquer momento começar uma guerra com a Síria, que há um mês derrubou um jato turco e matou seus dois tripulantes. "Se tiver guerra, ótimo: a gente coloca também na novela", afirma a atriz. "Mas São Jorge nos protege, nada vai acontecer!"

Às vezes parece que o padroeiro da trama é outro santo: Antônio. Tiago Abravanel e Nanda se encontram no saguão do hotel. O ator, sentado, dá um beijinho na coxa da protagonista, em pé. Ela repousa no braço da poltrona dele e coloca uma de suas pernas entre as de Abravanel.

O neto de Silvio Santos discute a relação: "É amizade. Tive sorte muito grande de conhecer uma pessoa fantástica como ela", diz. Ele estreia na Globo depois de ter feito "metade de 'Amor e Revolução'" na emissora do vovô e ganhado fama como Tim Maia em um musical.

Mas Tiago parece conhecer a equipe de longa data. Imita o maquiador que, irritado ao receber uma ligação, atende ao telefone falando "Quem me incomoda?". Quando vai gravar, coloca o celular entre os seios da maquiadora. Ela diz "vou cuidar, que é do patrão Silvio", enquanto o Abravanel neto sai gritando "mashallah!".

É que "mashallah" (graças a Deus!) é o novo "inshallah" (o que Deus quis, usado em "O Clone"), na categoria dito local da vez.

"As expressões servem para dar sabor local", afirma Schechtman. "Falamos com sotaque brasileiro mesmo", diz Betty Gofman, que será a tia ciumenta do personagem de Montagner, uma mina de jargões. "Tem um que todo mundo daqui ri quando eu digo, que é o 'orospu'." Pudera: "orospu" nunca seria pronunciado na TV turca. É o xingamento de calão mais baixo para uma profissional de sexo. "Nosso público é o brasileiro", diz Gofman.

Mesmo a bailarina de dança do ventre da trama é nacional: Clara Sussekind está há seis anos em Göreme, mas veio do Brasil e sabe sambar. Foi com ela que os atores dançaram nas cenas que fecham a novela.

Começo e final estão prontos. Falta só a Gloria Perez e ao diretor achar meios que justifiquem esse fim em oito meses de folhetim. Se a curiosidade for grande, é só perguntar a Lombardi: "Sabia do final de 'Caminho das Índias' no primeiro dia de filmagem, e agora é a mesma coisa com 'Salve Jorge'. Sou um cofre de finais", diz, empapado de suor cenográfico.

Bordões turcos que vêm por aí

Aprenda pronúncia e significado das expressões em turco que vão dar o que ouvir em "Salve Jorge"

Allah Allah! (alarralá!)
Interjeição de surpresa, negativa ou positiva, parecida com "nossa!"

Mashallah! (maxalá!)
Expressão para comemorar graça alcançada, tipo "graças a Deus!"

Merhaba (merabá)
Oi

Abi (abi)
Irmão, amigo

Orospu (orospú)
Prostituta

Sillik (Chilik)
Vagabunda

A Grande Extinção e o aquecimento - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 22/07




Obviamente não estamos no período Permiano, mas a lição do passado sobre a mudança ambiental é clara 

A extinção em massa mais famosa da história do nosso planeta é, sem dúvida, a que acabou com os dinossauros e cerca de 50% da vida na Terra, em torno de 65 milhões de anos atrás. O principal culpado, ao que tudo indica, foi um asteroide de 10 km de diâmetro que caiu na península de Yucatán, no México.
Mas essa catástrofe mal se compara à Grande Extinção, que ocorreu cerca de 252 milhões de anos atrás, no final do Permiano.
Cientistas estimam que cerca de 95% de todas as espécies marinhas, e uma fração desconhecida -mas provavelmente comparável- das espécies terrestres encontraram o seu fim em alguns milhões de anos, o que não passa de um piscar de olhos em termos geológicos.
Embora outro impacto de um objeto vindo do espaço tenha sido proposto como causa, pesquisa recente sugere que a mortandade se deveu à falta de oxigênio na água, acoplada a um excesso de gás carbônico, que aumentou a acidez e a temperatura do oceano. (Só havia um oceano na época.) Uma amplificação não linear desses efeitos aumentou os danos; esponjas e corais foram devastados.
Em um artigo recente para a revista científica "Annual Reviews of Earth and Planetary Sciences", Jonathan Payne, da Universidade Stanford, e Matthew Clapham, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, propõem que a catástrofe coincidiu com uma das maiores erupções vulcânicas da história e consequente dilúvio de basalto, que formou grande parte da Sibéria. Essa erupção lançou quantidades enormes de gases na atmosfera, comprometendo a química oceânica e causando uma mudança climática global incluindo, possivelmente, a destruição da camada de ozônio, o que explicaria a extinção das espécies terrestres. No estudo das mudanças climáticas do passado ou na que ocorre atualmente, a ligação entre a dinâmica dos oceanos e a da atmosfera é essencial.
Essa extinção serve de laboratório para o que anda ocorrendo hoje, quando quantidades muito elevadas de gás carbônico vêm sendo lançadas na atmosfera, causando a rápida acidificação e aquecimento dos oceanos. Em 1996, Andrew Knoll, um geólogo da Universidade de Harvard, sugeriu que o aumento da concentração de CO2 na atmosfera teve consequências severas para a vida marinha no período Permiano. "Hoje, nós humanos somos tão ou mais eficazes do que os vulcões permianos no ato de despejar gás carbônico na atmosfera", disse Knoll à repórter Alanna Mitchell, do "New York Times".
Obviamente, não estamos no período Permiano, quando a Terra era muito diferente do que é hoje. Por exemplo, existia apenas um continente, Pangeia, e a química oceânica era bem diferente. Porém, a lição é bastante clara, para aqueles que se dispõem a escutá-la: o aumento da concentração de CO2 na atmosfera causa a acidificação dos oceanos, tendo severas consequências para a vida marinha.
A grande diferença é que, agora, somos nós os culpados principais dessa transformação global. E somos nós, também, os únicos que têm a possibilidade de fazer algo para atenuar as mudanças que já ocorrem no nosso planeta. Ignorar as lições da história nos leva a repetir os erros do passado.

Uma decisão polêmica - JOÃO BOSCO RABELLO


O Estado de S.Paulo - 22/07


Houve um tempo em que o ex-presidente Lula entrou em campanha aberta contra o Tribunal de Contas da União (TCU), por considerá-lo contaminado pelos interesses políticos dos partidos a que pertencem - ou pertenceram -, seus ministros, dada a vinculação formal do órgão com o Poder Legislativo.

Lula reagia, à época, à paralisia das obras de governo flagradas pelo TCU em irregularidades - a maioria delas por superfaturamento. Defendia um mecanismo que não evitasse a penalização dos responsáveis pelos danos ao erário, mas que, ao mesmo tempo, garantisse a continuidade dos projetos.

Considerava o ex-presidente que à constatação dos desvios não deveria corresponder a suspensão das obras, sob pena de punição não ao infrator, mas ao contribuinte. Ainda que possa merecer contestação, o raciocínio cumpriu o objetivo de levantar a discussão sobre a influência política nas decisões do TCU.

Sem entrar no mérito da causa - se às agências de publicidade cabe o bônus de volume, gratificação paga pelos meios de comunicação por propaganda veiculada -, a decisão da ministra Ana Arraes nesse sentido, aplicada em favor do publicitário Marcos Valério, reacende com ampla repercussão o possível conflito.

Seria apenas isso se não coincidisse com o julgamento do mensalão, que teve no fundo Visanet, via Banco do Brasil, uma fonte de abastecimento do chamado "valerioduto, para o qual contribuiu com R$ 73 milhões repassados a Marcos Valério, condenado em decisão anterior TCU a devolver R$ 4,5 milhões retidos a título de 'bônus de volume'".

Técnico 
ou político?

Legislação posterior à que sustentou a condenação de Marcos Valério pela apropriação do "bônus de volume" permitiu à ministra Ana Arraes emprestar à sua decisão o caráter técnico que o PT cobra antecipadamente ao STF no julgamento do mensalão. Mas a nova regra tem origem na bancada do PT, em 2008, já visando a legitimar a operação, revogando norma de 2003 que determinara a condenação de Valério. Não fosse seu vínculo partidário com o PSB, aliado do PT -, pelo qual se elegeu e de cujo líder mais expressivo, o governador Eduardo Campos, vem a ser mãe -, a ministra estaria livre da suspeição em que Lula, quando presidente, colocou o TCU. Afinal, o efeito retroativo da nova legislação, aplicado em benefício de Valério, pode merecer reparo, se considerado que retroagiu em desfavor do contribuinte.

Balanço

A CPI do Cachoeira aprovou 480 requerimentos e rejeitou cinco. Um deles, a convocação do tesoureiro da campanha de Dilma, o deputado Tadeu de Fillipi (PT-SP).

Caso pensado

No rol de convocados já aprovados pela CPI para depor na volta do recesso parlamentar, o diretor da Dersa, Paulo Preto, é o último: virá depois do ex-presidente da Delta, Fernando Cavendish, e do ex-diretor do Dnit, Antonio Pagot. Para a oposição, é caso pensado do relator Odair Cunha (PT-MG), que pretenderia expor o PSDB na reta final da campanha eleitoral, explorando a suposta arrecadação ilegal de Preto para as campanhas do tucano José Serra.

Se fosse antes...


Integrantes da CPI do Cachoeira lembram que, se adotado em CPIs anteriores, o direito dos depoentes ao silêncio teria mudado a história: PC Farias, o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, jamais incorreria em contradições e o publicitário Duda Mendonça jamais confessaria que recebeu dinheiro do PT no exterior.

O que há de nacional na sucessão municipal - LUIZ WERNECK VIANNA


O Estado de S.Paulo - 22/07


De toda parte surgem sinais que testemunham a existência de vida ativa na política brasileira em busca de mudanças e de novos repertórios. Os mais visíveis são os que apontam para o processo terminal de passagem, após longa e penosa maturação, da nossa vetusta tradição de principado para a República, exemplar na autonomia com que a sociedade e as suas instituições jurídico-políticas se vêm conduzindo diante do poder político no chamado processo do mensalão, que leva a julgamento altos dirigentes do partido hegemônico na coalizão governamental.

Em outro registro, mas igualmente importante, já se pode constatar, no processo em curso das eleições municipais, que a pluralidade efetiva reinante na sociedade vem encontrando seus caminhos ao largo do dirigismo com que a fórmula do presidencialismo de coalizão, com seu estilo centralizador e vertical, tem esterilizado a prática política no País.

Não à toa, tal pluralidade, como é da tradição brasileira, se afirma melhor quando é escorada em questões federativas, como se verifica nos Estados de Pernambuco e de Minas Gerais, onde o PSB, um antigo esteio das candidaturas presidenciais do PT, se apresenta na competição eleitoral, que ora se abre, com candidaturas forjadas à margem do vértice que articula o sistema do presidencialismo de coalizão - em Minas Gerais, em aliança inusitada com o PSDB, partido de oposição.

No caso, são relevantes tanto o fato de o governador Eduardo Campos (PSB-PE) como o senador Aécio Neves (PSDB-MG) serem políticos com luz própria, netos e herdeiros de robusto capital político - de Miguel Arraes, o primeiro, e de Tancredo Neves, o segundo -, quanto o de serem aspirantes declarados à Presidência da República; Aécio na próxima sucessão e Campos logo que puder.

Não importa a nomenclatura, essas duas eleições (em Minas e em Pernambuco), atrás da singela fachada de locais, são, a rigor, nacionais, como o será, por definição, a da Prefeitura da capital de São Paulo, além de apontarem para o fato sensível de que se está diante de uma troca de gerações na política brasileira. A política - durante tanto tempo um monopólio, em estado prático, do vértice da coalizão presidencial com o ex-presidente Lula como o seu principal articulador - dá mostra, afinal, de que se descentra, com a emergência de focos de formação de vontade com origem em outros lugares que não os palácios do Planalto.

Esse descentramento, na verdade, tem um dos seus pontos de partida na dualidade manifesta na própria natureza da investidura presidencial da presidente Dilma Rousseff, que apenas encarna a parte material do corpo do "rei", uma vez que sua representação simbólica, sobretudo para o seu partido, se encontra na pessoa do seu antecessor, posto em relação metafísica com os seus militantes e a sua imensa legião de simpatizantes. A sucessão presidencial, na forma como foi operada, criando a expectativa de que caberia à presidente o exercício de um mandato-tampão, sublinhou a noção de que entre governo e poder havia uma distância que ela não poderia, ou deveria, encurtar.

Os males de saúde que acometeram o ex-presidente puseram entre parênteses a promessa sebastianista do seu retorno triunfal em 2014, assim como já dificultam a sua comunicação com seu partido, seus quadros e simples militantes, desde sempre dependente do seu envolvimento pessoal, mais pelo exercício de seus reconhecidos dons carismáticos do que pela persuasão de um argumento logicamente articulado. O partido, uma confederação de tendências soldada por trabalhos de Hércules da sua principal liderança, à falta destes, ao menos sem a onipresença pertinaz a que estava habituado, ensaia movimentos de autonomia quanto a vigas mestras do lulismo, como o da CUT em sua adesão à reforma da legislação trabalhista, que ameaça de divisão a sólida base sindical dos dois mandatos de Lula.

Assim, se Dilma, por estilo pessoal e vocação, começou o seu mandato com o perfil de gestora do governo, apontada como uma estranha no ninho da política, viu-se movida à assunção de papéis políticos, quer na remontagem do seu governo, caso forte da indicação da engenheira Maria das Graças Foster para a estratégica Petrobrás, uma técnica de sua estrita confiança, quer na constituição do que já se pode designar como o núcleo duro do seu comando político, a esta altura formado por quadros de sua escolha pessoal, em geral distantes da rede paulista que antes caracterizava os mandatos de Lula.

É da ocasião, até mesmo pela crise econômica que ronda o País, com independência das motivações dos atores envolvidos, que se tente encaminhar a fusão na mesma representação dos dois corpos do "rei", a material e a simbólica, processo a que setores do partido e muitos movimentos sociais não deverão assistir com indiferença, já amargando a lenta passagem do tempo enquanto não chega a hora - talvez não chegue - de devolver o cetro a quem entendem ser o seu legítimo dono.

A ambiguidade resultante dessa configuração dual na cadeia de comando, como seria de esperar, tem estimulado, no Parlamento e fora dele, uma movimentação desalinhada, especialmente no PT, quanto a tópicos importantes da política do governo, tal como ocorre na iniciativa de parlamentares petistas a fim de extinguir a cláusula do fator previdenciário. Nas bases, em particular no sindicalismo dos servidores públicos e na militância dos movimentos sociais, registram-se sinais com a mesma direção - no Rio de Janeiro, desavindos com a direção do seu partido, militantes vão às ruas em apoio a um candidato de oposição à coalizão governamental.

Sob esses novos augúrios, a política desmente as cassandras e se refaz para quem tem olhos para ver.

Mensalão à vista - JANIO DE FREITAS

FOLHA DE SP - 22/07

Para a acusação e para os réus, chega a hora em que o escândalo político não substitui mais as provas


A dez dias de iniciar-se o julgamento do mensalão, forma-se, entre os que têm acompanhado o caso, o consenso de que o Supremo Tribunal Federal e a opinião pública tendem a chocar-se em muitos dos 38 julgamentos individuais. Para a acusação e para os réus, chega a hora em que o escândalo político não substitui mais as provas, e cobra dos julgadores o máximo de verdade dos fatos e de si mesmos.

O pasmo causado pelo tráfico de dinheiro entre o PT e seus aliados, e os objetivos políticos daí surgidos contra o iniciante governo de Lula, levaram a um tumulto de deduções tanto verdadeiras quanto infundadas. A começar do nome -mensalão- criado pela eloquência metafórica do denunciante Roberto Jefferson, dando a ideia de pagamentos sistemáticos e mensais que não constavam do negócio.

A acusação lida no Supremo pelo ex-procurador-geral Antonio Fernando de Souza, de virulência só usual nos tribunais de júri, submeteu-se bastante ao clima emocional da CPI. Mas não levou mais além as provas de transações financeiras e de ações pessoais obtidas pela Polícia Federal, pela CPI ou por imprensa e TV.

Com isso, muitas acusações ficaram penduradas em deduções que também poderiam ser o contrário do que foram: havia a intuição, mas faltava a comprovação, a evidência. É assim, num dos exemplos mais fortes, a afirmação de que José Dirceu comandava as operações financeiras efetivadas por Delúbio Soares e outros.

Não há dúvida de que Dirceu foi o estrategista político da eleição e da linha programática do governo Lula. Disso há comprovações. Mas de que, depois, chefiasse "a quadrilha" que montou as artimanhas financeiras, não há evidência. Por que não teria sido Antonio Palocci, o braço do governo que transacionava com os bancos, e que já na campanha lidara com os interessados na política financeira futura e, no governo, lidava com o setor privado respectivo? Palocci não foi cogitado só por ser útil ao sistema financeiro privado? Do qual hoje é o veloz multimilionário "consultor"? Dedução por dedução, sem evidência, uma valeria o mesmo que a outra.

Não se sabe o que vai surgir, no decorrer do julgamento, em fatos e acréscimos esclarecedores. Muitos depoimentos foram tomados no processo judicial, por diferentes juízes, para o trabalho de relator do ministro Joaquim Barbosa. É possível que daí venham provas ainda sigilosas. Ou que venham as respostas não dadas nos depoimentos à CPI. O que Roberto Jefferson fez dos R$ 4 milhões que, disse, sobraram do dinheiro -o "mensalão"- dado pelo PT para deputados do PTB pagarem dívidas de campanha? E que fez o deputado Valdemar Costa Neto do dinheiro recebido com o mesmo fim?

E, mais importante, quem vai repor o dinheirão do Banco do Brasil, proveniente dos descontos no valor de sua maciça publicidade, não repassados ao banco pela agência de Marcos Valério, como obrigado em contrato? A propósito, o Tribunal de Contas da União, com parecer da recém-ministra Ana Arraes, acaba de anular a responsabilidade dos dirigentes do BB comprometidos com aquele desvio. Decisão estranha, por vários aspectos.

O mensalão ainda guarda emoções. Muitas delas, é a previsão mais difundida sobre o julgamento, o Supremo não poderia evitar. Apenas lamentar. Mas talvez venha daí a grandeza de um julgamento digno do nome.

Ueba! Voto na Sonia Perereca! - JOSÉ SIMÂO

FOLHA DE SP - 22/07


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Ereções 2012! Mais um partido pra encher a nossa paciência: "TSE acata criação do Partido Ecológico Nacional, o PEN". PENtelho! Rarará! E o número é 51! Cachaça Orgânica!

Quem é do PT é petista, quem é do PMDB é peemedebista e, quem é do PEN, é o quê? Pentelho, Pendurado, Penetra e Pen Drive! Rarará! O PDMD tá lançando um aplicativo pra celular e anunciou no site: "Agora você pode levar o PMDB no seu bolso". Pra ficar mais perto do nosso dinheiro. Rarará!

Eu tenho medo da Carminha. Muito medo! Ela parece a Noiva do Chucky! Carrie, a Estranha! Avenida Terror! E a Adriana Esteves está estupenda. Achou o papel da sua vida!

E OBA! Começou a gandaia. Adoro os candidatos a vereador! A Volta da Galera Medonha! A Turma da Tarja Preta! Em Juazeiro do Norte, no Ceará: Bixa Muda! Com o slogan: "Juazeiro Muda! É só votar na Bixa Muda". Eu votaria. A bixa é muda, mas dubla até Whitney Houston. É verdade. Tem no YouTube!

E esse de Piraquara, Paraná: Dísney! Pros patetas! Adorei o acento no "i": Dísney! Devia ser candidato em Orlando, na Flórida! Em Orlando, na Flórida, tem mais brasileiros do que em Piraquara. Isso eu garanto!

Os candidatos de Teresina: Cobra Choca, Fátima Zumbi, Gabigabriela e Pela Égua! Fátima Zumbi é nome de panicat. Ela devia ser candidata a panicat. E o Pela Égua? Tem candidato pelo PT, pelo PSDB e esse candidato: pela égua!

Direto do Rio, um candidato que vai mudar toda a história da politica brasileira: LULA DO PSDB! Rarará! Vai fazer aliança com o Serra?! E de Curitiba: Linguiça do Circo! Essa linguiça deve fazer cada coisa. Linguiça acrobática! E direto de Mogi: Sonia Perereca! Agora não sei se vou de Linguiça ou de Perereca! Rarará!

Votem em mim! Sou candidato pelo PGN. Partido da Genitália Nacional! Com o slogan: "Chega de hipocrisia! Sexo de noite e sexo de dia". Prometo criar vaga de corno em estacionamento de shopping! Prometo legalizar a profissão de Ricardão. E prometo abolir a lei da gravidade. Que ainda nos prende ao chão! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Saindo do armário - ELENA LANDAU


O GLOBO - 22/07

Primeiro foram os aeroportos, depois os portos e refinarias. Agora vem um pacote para aprofundar o processo de concessões para o setor privado e ressuscitar o PAC. Depois de um surto intervencionista, o governo percebeu que é impossível crescer de forma sustentada sem investimentos em infraestrutura e muito menos sem capital privado. Finalmente o PT rendeu-se ao óbvio e abraçou a agenda das privatizações de vez. O problema é que o faz de forma encabulada, tentando fingir que não faz o que faz, e nisso acaba fazendo malfeito.

A verdade é que a privatização nunca foi abandonada. Mudou de forma e foi redesenhada, refletindo circunstâncias econômicas e preferências governamentais, mas nunca deixou de acontecer ao longo dos últimos 20 anos.

A desestatização começou em setores industriais, para depois incluir concessões públicas possibilitando o país cumprir uma agenda de investimentos que o Estado, por falta de recursos e restrições institucionais e políticas, não podia fazer sozinho. As formas de venda também variaram ao longo do tempo: moedas de privatização foram aceitas no início, depois veio a participação do BNDES e dos fundos de pensão. Em muitos casos a privatização foi integral, em outros, empresas estatais mantiveram participações minoritárias nas empresas privatizadas. O fato é que, de Collor a Dilma, o reposicionamento do Estado na atividade econômica nunca parou.

Acontece que o governo petista ficou por muito tempo aprisionado por um discurso eleitoral que satanizava as privatizações. Demorou a sair do armário e mesmo assim continua envergonhado de um processo que só traz benefícios ao país. O grave, no entanto, não é a retórica da política, mas as falhas efetivas da privatização petista.

Primeiro, o processo de privatização petista peca por falta de planejamento. Vende concessões isoladamente sem pensar no setor, como nos aeroportos. Não há um plano de setor aeroportuário, apenas uma venda de ativos premida pela necessidade de melhorar a infraestrutura até a Copa do Mundo. Processo oposto ao das telecomunicações, quando toda a prestação do serviço foi redesenhada através de uma Lei Geral e uma agência reguladora específica foi criada. O setor de petróleo foi redefinido sem a análise e o debate necessários, embarcando em um modelo de exploração do pré-sal que, combinado com a política de conteúdo local, deixa a Petrobras numa armadilha e paralisada.

Segundo, erra na falta de critérios para qualificar os participantes dos leilões. O próprio governo tentou pressionar pela mudança dos consórcios já nos dias seguintes à privatização em Belo Monte. Se o consórcio não era sólido o suficiente para ganhar o leilão, por que não foi impedido de participar na pré-qualificação?

Terceiro, ficou refém do populismo. Muitas concessões de rodovias feitas no governo Lula não tiveram seus compromissos de edital realizados porque o pedágio não cobre os custos. E aí volta a velha prática de aditivos e ajustes no contrato. No setor elétrico, o baixo custo obtido nos leilões, apregoado como vitória política, é compensado por um elevado financiamento público, cujos critérios mudam a cada leilão, para não falar de mudanças do combustível original e dos titulares dos contratos, em completo desacordo do que se espera de um processo de licitação impessoal e transparente. Aos poucos este governo vai tomando consciência que o barato sai caro. Não há almoço grátis: ou paga o usuário ou paga o contribuinte.

Quarto, o governo petista politizou as agências reguladoras e tirou do Cade o poder de avaliar riscos à competição nas licitações públicas. Por fim, a expressiva participação de estatais para disfarçar a privatização, como a Infraero, não permite um choque na gestão nem ganhos fiscais.

Para dar mais competitividade à indústria o melhor a fazer, além de redução de impostos e juros, é melhorar a infraestrutura do país. Para isso, é preciso sair do armário de vez: planejar a privatização dos setores de infraestrutura, aprimorar os critérios de qualificação dos consórcios e fortalecer as agências reguladoras. E claro, governar com a realidade e não com a ideologia dos palanques. Ou seja, acabar com os malfeitos.


As esfumaçadas greves federais - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 22/07


Quantas voltas o mundo dá... O Brasil que o diga! Há 32 anos o ABC paulista, sob os braços cruzados de 100 mil metalúrgicos, acendia a mais alta fogueira do movimento grevista nacional. Em 1.º de abril de 1980, Lula emergia como o maior líder operário ao comandar movimento paredista que resistiu por mais de um mês e abriria um dos mais gloriosos capítulos no livro das greves. Eram tempos heroicos, plenos de risco e medo. Lula e outros 14 líderes acabaram presos. Hoje, sob fogo baixo e muita fumaça, a peça ganha novo enredo.

O chão das fábricas do ABC abriga mãos e braços agora não cruzados, mas movendo máquinas. Os antigos fogueteiros trocaram o casacão suado de metalúrgico e a camiseta do furioso João Ferrador por paletó e gravata. O ex-operário Luiz Inácio, depois de passar oito anos no posto mais alto da República, continua a ter papel central na região (e em outras praças), desta feita patrocinando a reeleição do prefeito de São Bernardo do Campo, Luiz Marinho, também ex-metalúrgico e protagonista daquele ciclo. Hoje, como ontem, bastiões grevistas são montados. A diferença é que agora fustigam o Estado, como se vê na paralisação em sete ministérios (Saúde, Trabalho, Planejamento, Integração Nacional, Desenvolvimento Agrário, Agricultura e Justiça), em agências reguladoras, universidades federais, no sistema Eletrobrás e outros setores.

Uma observação se faz pertinente: a teia de greves que cobrem alguns vãos da administração federal é pouco percebida, sugerindo que a sensação de normalidade se explica por não haver plena adesão aos movimentos. Avoca-se outra razão: a máquina é tão inchada que dispensa alguns parafusos para se mover. Argumenta-se ainda que há greves com forte impacto nos consumidores, como as que afetam o abastecimento de alimentos (leite, carne, arroz, feijão) e serviços essenciais (energia, transportes, saúde) e congêneres. Vamos ao ponto: as greves que envolvem 135 mil funcionários públicos federais causam, sim, prejuízos ao País e à sociedade, seja pelo efeito retardado que provocam nas prateleiras da burocracia, seja por prejuízos aos sistemas produtivos, usuários e consumidores.

São irrecuperáveis os danos ao universo estudantil com a greve nos institutos e universidades federais. Medidas como o prolongamento do ano letivo não atenuarão os impactos sobre a estrutura educacional.

Pior é achar que a vida institucional do País flui naturalmente. A aparente harmonia social tem o condão de esconder os percalços do governo na frente de articulação junto aos setores grevistas. O efeito concêntrico de uma onda de greves poderá abalar a confiança que a sociedade deposita no governo.

Chama a atenção a mudança de foco dos movimentos, agora o adversário é o Estado. Lembre-se que, desde o século 19, na esteira da industrialização, o sindicalismo elegia como alvo preferencial os nichos produtivos da iniciativa privada.

Os ciclos de greves no País ganharam volume nos períodos de transição política, quando o discurso da inclusão social e da justiça para todos atingiu seu ponto máximo. Escolhiam-se adversários principalmente em espaços de intensa concentração operária, como o ABC, com uso da artilharia nas datas-chave de reajuste salarial.

O Estado getulista propiciou a construção da base sindicalista. De lá para cá o sindicalismo, sob a proteção estatal, aprofundou raízes, em particular no Sudeste. Em 1963, às vésperas do golpe de 64, a pauta sindical abrigou 200 greves, alimentando-se da instabilidade política. Dados coletados por Eduardo G. Noronha, em seu estudo sobre Ciclo de Greves, Transição Política e Estabilização: Brasil - 1978/2007, revelam a natureza das passagens: entre 1965 e 1968 (Castelo Branco-Costa e Silva), a média anual foi de 13 greves; entre 1969 e 1977 (linha dura dos militares), nenhuma; entre 1978 e 1984 (abertura política e início do primeiro grande ciclo grevista), a média foi de 214. A greve da Scania em 1978 foi simbólica por demonstrar que as paralisações eram viáveis.

A era Sarney foi memorável: a média anual foi de 1.102 greves. No primeiro semestre de 1989, a ausência de regras para reajustes salariais, a proximidade das eleições presidenciais e a ameaça da hiperinflação elevaram os conflitos trabalhistas a níveis inéditos: mais de 2 mil greves. O pico chegou nos tempos tumultuados de Collor, quando a média atingiu 1.126 paralisações.

A partir daí, entrou-se na fase de declínio, com a média de 865 greves por ano no primeiro governo FHC (1995-1998) e 440 no segundo (1998-2002). A primeira fase do ciclo Lula (2003-2007), já com as centrais sindicais entrando nas malhas do governo e com o programa Bolsa-Família, amorteceu a onda. A média anual caiu para 322.

Como se pode aferir, a cadeia grevista no Brasil foi rompida. Os sindicatos passaram a enfrentar novas realidades, a começar da garantia do emprego. A cabeça do planeta sindical - formada pelas estrelas brilhantes (e sonantes) das centrais - decidiu manter e ampliar "feudos" dentro do poder central. Ademais, encheram seus cofres - em 2011 centrais e federações receberam cerca de R$ 110 milhões do governo. E sem a obrigação de prestar contas.

A convocação à greve - é também a leitura que se faz - torna-se dever artificial de ofício para as estruturas. Como convocar, por exemplo, servidores do Ministério do Trabalho à paralisação, se ali estão braços de entidades que formam a constelação sindical? Seria incongruência. O pleito atual dos servidores dos três Poderes custaria, segundo o governo, R$ 92 bilhões. Bancar tal conta em cenário de desaceleração econômica seria mortal para o Tesouro.

Último ato da peça: bancários, comerciários, metalúrgicos, químicos e petroleiros têm encontro marcado no segundo semestre com os patrões. Pauta: reajuste de planilhas salariais. Haverá mais fumaça ou mais fogo?

Conto de realismo fantástico - MAC MARGOLIS


O Estado de S.Paulo - 22/07


O jornalismo reporta e analisa fatos e não especula. Mas há irresistíveis tintas de ficção no enredo recente no Cone Sul, onde um ex-bispo que se tornou presidente foi deposto em uma ação entre amigos e as nações vizinhas revidaram, expulsando Assunção do Mercosul para depois efetivar a adesão da Venezuela ao bloco. Tudo em nome da democracia incondicional.

Segue-se uma breve fantasia latino-americana:

Em cerimônia pomposa a ser realizada no Rio de Janeiro, Hugo Chávez foi o convidado de honra. O país anfitrião caprichou na festa. Não é todo dia que o Mercosul, o bloco latino-americano dedicado a liberalizar o comércio internacional, ganha não só um novo sócio pleno, senão um expoente do socialismo do século 21.

No palanque, estavam os chefes de Estado dos países fundadores do bloco, menos o Federico Franco, do Paraguai - representante do governo postiço, enxerto de um "golpe parlamentar" contra o presidente Fernando Lugo. E todos estavam unidos em execrar esse fato e defender o compromisso democrático das Américas, "com unhas e dentes", como disse a presidente argentina Cristina Kirchner.

"Viva Chávez", saudava o público no Rio.

Até lá, tudo corria conforme o protocolo. A presidente brasileira, Dilma Rousseff, fez o discurso de boas-vindas. Sem tocar no nome daquela nação delinquente, afirmou no entanto que não havia nas Américas mais espaço para democracia contrabandeada.

De terno e "guaiabera", Rafael Correa, presidente do Equador, bradou contra golpes disfarçados com legalismos. "Nunca mais permitiremos golpes suaves que, sob o verniz de legalidade, estilhaçam as instituições", ecoou Cristina Kirchner, de tailleur preto e salto Christian Loboutin.

Os comentaristas saudaram uma nova alvorada para a região. "Venezuela ganhou o dia, com acesso ao Mercosul, mas o maior vencedor é a democracia", anunciou a união de cientistas políticos latino-americanos, em declaração escrita. "O continente disse não à 'democradura'", arrematou, em referência ao neologismo para a mistura de democracia com ditadura, cunhado por um eminente sociólogo brasileiro.

'Nova transparêncioa'. O dia seguinte raiou fulgurante no hemisfério. De volta a Buenos Aires, Cristina Kirchner anunciou reformas em sua nova campanha, "transparência e liberdade".

De noite para o dia, o Instituto de Estatísticas começou a divulgar os números reais de inflação (a taxa imediatamente dobrou).

A Casa Rosada arquivou processos contra jornalistas que a desafiavam, publicando análises independentes, e imediatamente anulou o seu decreto restringindo a importação de bobinas de papel de jornal, e ainda chamou os jornais Clarín e La Nación - dois dos maiores diários de Buenos Aires - de "parceiros da democracia argentina".

Havia quem falasse até em acordo histórico com Grã-Bretanha para coadministração das Ilhas Malvinas (Falklands, para os britânicos).

No Equador, não foi diferente. Mal chegou a Quito e Rafael Correa telefonou para o jornal El Universo, pedindo desculpas públicas pelo processo de US$ 40 milhões que havia movido contra os editores e convidou Emilio Palacio, ex-editor do jornal, para assumir o novo cargo de ombudsman nacional.

De Miami, para onde fugiu por temer sua prisão em Equador, Palacio declinou do convite, mas mandou agradecer por meio de sua advogada, Sandra Grossman, que está pleiteando o seu pedido de asilo político dos Estados Unidos.

Em La Paz, Evo Morales pediu a Justiça que arquivase todos os processo contra ex-presidentes e ministros de governos passados.

E pediu que soltasse prefeitos e governadores opositores presos, uma incumbência que causou alvoroço nos tribunais pelo volume de autos envolvidos.

Em reconhecimento ao gesto de La Paz, o senador Roger Pinto desistiu do asilo político concedido pelo Brasil - após meses de confinamento na embaixada brasileira na cidade.

O juiz Juan Antonio Morales, sob prisão domiciliar desde o ano passado, comemorou, passeando com seu cachorro samoyed.

Prêmio Cuba 500. O único desfalque foi Raúl Castro que pedia dispensa da cerimônia no Rio de Janeiro por um conflito de agenda. O líder supremo cubano teve de presidir a premiação do Havana 500, a lista dos 500 mais ricos do novo sistema de capitalismo cubano.

Mais notável foi Hugo Chávez. Na cerimonia no Rio, o sócio debutante no Mercosul estava irreconhecível. Sorridente e bem disposto, apesar do evidente inchaço e fadiga da longa batalha com o câncer, fez um discurso enxuto. Não disparou os até aqui fulminantes impropérios contra o império ianque nem os petits inaquis latinos.

Fez nenhuma referencia ao "viagra social", sua outrora receita bolivariana para o "neoliberalismo" do Mercosul. Meses depois, Hugo Chávez admitiria derrota na eleição presidencial.

Mandou tirar os fuzis Kalashnikov da mão dos três milhões de milicianos populares e devolveu à iniciativa privada dezenas concessões de rádio e televisão cassadas.

Os venezuelanos assistiam a tudo pela Rádio Caracas Televisão (RCTV) - que um dia teve seu pedido de concessão não acatado pelo presidente bolivariano.

Mundo obscuro - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 22/07
A Petrobras sozinha investe mais do que todo o governo federal. E ela é apenas uma das estatais brasileiras. Seus investimentos não são informados através de nenhum portal, mas sim, de uma portaria, que sai sempre com atraso. Uma zona de sombra também cobre as decisões do BNDES, que virou uma espécie de orçamento paralelo sem transparência e que não passa pelo Congresso. É mais fácil acompanhar gastos do governo do que de suas empresas.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias vinha informando, nos últimos anos, que a sociedade civil tinha direito de ter acesso ao Siafi, Sicomv e Siest. Essas três siglas cobrem as despesas da administração direta, os convênios feitos e os gastos das estatais. Apesar dessa declaração, os que buscavam informações não tinham acesso fácil, mas, pelo menos, estava lá escrito na LDO. Este ano, a frase sumiu. O governo argumentou que a Lei de Acesso à Informação dá automaticamente esse direito.
Parece retrocesso. E é. Por isso, o senador Cristovam Buarque incluiu, de novo, a frase que tinha sido suprimida. Segundo Gil Castello Branco, do site Contas Abertas, ela é fundamental, porque o acesso a determinados dados tem sido difícil. Sem a frase, seria pior.
Com base na Lei de Acesso à Informação, Castello Branco pediu dados do Programa de Dispêndios Globais da Petrobras até abril. Por escrito, a estatal respondeu que essa informação não está dentro do rol do que ela tem que informar pela lei. Curiosamente, o Ministério do Planejamento forneceu o PDG da Petrobras, quando foi acionado. A cultura da obscuridade sobre os gastos feitos pelos vários braços do Estado é antiga e vai demorar a mudar.
- Eu posso saber o que a presidência da República comprou ontem, mas não sei, no fim de julho, quanto as estatais investiram durante o primeiro semestre - disse Gil.
O BNDES vive hoje de dinheiro do governo, fruto do endividamento. Por isso, a preocupação da transparência e do cuidado no uso dos recursos deveriam ser dobrados. O jornal "Valor Econômico" mostrou quanto seria a perda do banco, se vendesse hoje suas participações em três frigoríficos: R$ 2,5 bilhões. As ações da BR Foods se valorizaram, as quedas foram no JBS e na Marfrig, sendo que o primeiro abocanhou 80% dos R$ 10 bilhões usados pelo banco na compra das ações. Isso sem falar nos empréstimos. Na conta feita pelo "Valor" não entrou o que o banco perdeu ao virar sócio do Independência, que faliu meses depois.
A perda calculada pelo jornal é hipotética, claro, porque só se realizaria se as ações fossem vendidas hoje, mas o prejuízo pode até ser maior se calcularmos o custo de oportunidade. E se esses R$ 10 bilhões, em vez de serem usados para comprar participação em frigorífico ou financiar compra de frigoríficos no exterior, fossem usados em projetos com retorno para toda a sociedade?
Mesmo quando investe em infraestrutura, pairam dúvidas sobre as escolhas e a forma de comunicar as liberações. Dias atrás escrevi que só com a invocação da Lei de Acesso, apresentada pela International Rivers, o BNDES contou que havia dado um segundo empréstimo-ponte para a Norte Energia, construtora de Belo Monte, de R$ 1,8 bilhão. Publiquei o fac símile de um trecho do documento do Ministério Público ao Banco Central sobre esse crédito, no qual o MP considera que não foi feita a devida análise de risco.

A Norte Energia enviou uma carta ao jornal, protestando contra a coluna. A carta foi publicada. Nela, a empresa dizia que as concessões dos empréstimos "seguiram as boas práticas de transparência e publicidade e foram, oportunamente, divulgadas em jornal de grande circulação nacional". E que isso talvez "pudesse eliminar a necessidade de a jornalista se pautar por informação de uma ONG internacional". A propósito, como esclareci abaixo da carta, recebi as informações de autoridades brasileiras.

O curioso é que o empréstimo foi concedido em fevereiro, mas o "oportunamente" da Norte Energia só ocorreu em 7 de julho, num comunicado publicado no "Valor Econômico" em letra miúda de quebrar olhos. Quem for, com lupa, encontrará escondida na linha 71 do comunicado a informação de que a empresa recebeu "colaboração financeira" do BNDES de R$ 1,8 bilhão.

É fundamental uma mudança de atitude das estatais e de suas sócias que usam dinheiro público. Para completar o quadro de opacidade, esta coluna perguntou ao IBAMA na segunda-feira sobre a multa, de R$ 7 milhões, aplicada em fevereiro à Norte Energia por descumprimento do Projeto Básico Ambiental. O BNDES afirma ter por norma só emprestar para quem está com suas obrigações ambientais em dia. O IBAMA não respondeu. Insistimos por escrito na quinta-feira pela manhã. Queríamos saber se a empresa havia sanado o problema ambiental que levou à aplicação da multa. Eles disseram que a "solicitação estava com a área técnica". E até sexta, nenhuma resposta.

O BNDES dá uma "colaboração financeira" de R$ 1,8 bilhão a uma empresa multada pelo IBAMA por descumprimento de projeto ambiental, e o IBAMA não consegue dizer se o problema foi resolvido ou não. É um mundo obscuro.

A busca da produtividade - JOSÉ ROBERTO DE MENDONÇA BARROS

FOLHA DE SP - 22/07
Em pelo menos uma área o debate econômico avançou. Existe hoje um consenso que, embora o Brasil tenha melhorado muito nos últimos vinte anos, não vivemos "um momento mágico" e que não é hora de um triunfalismo algo vazio.
É hora de reconhecer que a redução do crescimento decorre, em boa medida, de sé- rios problemas na oferta. O Brasil perdeu competitividade nos anos recentes, especialmente na indústria. A evidência é avassaladora, revelando estagnação na produtividade, custos elevados, inclusive na área de serviços, e baixo dinamismo tecnológico.


Os diversos rankings internacionais mostram isso claramente: embora as metodologias sempre possam sofrer certas críticas, os resultados são consistentes e sistemáticos. Por exemplo, na última edição do Índice de Competitividade Global, do World Economic Forum, nosso país aparece na 53.ª posição. Mais sério, nossa posição vem piorando nos anos recentes. É o que mostra o conhecido Doing Business, do Banco Mundial: caímos seis lugares, para um lamentável número 126.


No Índice Global de Inovação, calculado pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual, aparecemos na 58.ª posição em 2012, resultado de uma queda de oito lugares. Em todos esses índices, um conjunto grande de indicadores é persistentemente avaliado. Por exemplo, os salários descolaram-se da produtividade, especialmente na indústria, elevando muito o custo.


Ora,isto não acaba bem,como mostra o caso atual do sul da Europa: na última década, os custos unitários do trabalho explodiram, ao contrário da Alemanha, onde rendimentos nominais subiram moderadamente e a produtividade nunca parou de melhorar. O resultado está à vista de todos.


O crescimento da produtividade depende de muitas coisas e é uma construção penosamente realizada ao longo do tempo. Já mencionei aqui, por mais de uma vez, o engano que muitos embalaram que bastaria desvalorizar o real e baixar a Selic para a coisa andar. Hoje, é visível que dependemos de muito mais.


Felizmente, em vários setores industriais começa a prevalecer a ideia de se desenvolver programas de recuperação da competitividade. Este foi o tema central do último congresso da indústria do aço, ocorrido em junho. A indústria química, petroquímica e de fertilizantes acabou de montar o Conselho de Competitividade Química.


Acredito que a observação de um caso claro de sucesso serve bem para ilustrar o ponto acima mencionado. Falo aqui na soja, item tratado com certo descuido por muitos economistas urbanos, como apenas uma simples matéria-prima ou commodity.


Como se sabe, a soja começou a se espalhar pelo Brasil a partir do Rio Grande do Sul e do Paraná,ao longo dos anos60.O intenso desenvolvimento tecnológico permitiu que ela fosse se "tropicalizando" e hoje, importante produção existe nos Estados de Mato Grosso do Sul,Mato Grosso, Bahia, Goiás e até no Piauí e Maranhão, entre outros.


No início do período, a produtividade brasileira era bem inferior à americana. Em 1990/92 , mesmo com a soja já firmemente estabelecida, nossa produção por área era 20% inferior à dos Estados Unidos. Entretanto, nosso progresso foi mais rápido, de sorte que, entre 2009 e 2011, produzimos virtualmente a mesma coisa,2,9 toneladas por hectare. Como gostam de dizer as grandes consultorias internacionais de estratégia, a produção brasileira atende às melhores práticas. É também interessante observar que o padrão técnico do setor é bastante uniforme entre os produtores,independentemente do tamanho da produção.


Tecnologia. A trajetória acima descrita só foi possível a partir de um forte avanço tecnológico. Para descrevê-lo, bem como outros impactos da soja, utilizo aqui um excelente trabalho do pesquisador da Embrapa, D. L.


Gazzoni,apresentado no VI Congresso Brasileiro de Soja, recentemente realizado em Cuiabá.Gazzoni relaciona os principais elementos do progresso tecnológico, desenvolvidos no Brasil, e que explicam a trajetória da produtividade acima descrita: cultivares adequados às condições brasileiras; correção e adubação do solo; fixação biológica do nitrogênio (que permite redução de custos de algo como US$ 1 bilhão anuais);manejo de pragas (que possibilitou o uso 70% menor de defensivos);manejo de ervas daninhas; mecanização; desenvolvimento da revolução que foi o plantio direto, técnica que permite mais de uma safra por ano na mesma terra, o que dilui custos, especialmente de capital (por exemplo,a segunda safra de milho, a safrinha, caminha para ser mais importante que a de verão) e, mais recentemente, o desenvolvimento de sistemas de integração lavoura, pecuária e florestas, que, como aponta o autor, "representa o grau máximo na escala da sustentabilidade da exploração agropecuária". Tem muita ciência por trás desta evolução.


Os resultados da expansão da soja são bastante conhecidos:caminhamos para produzir 80 milhões de toneladas e ser o maior exportador mundial.A soja é parte de uma cadeia muito longa, querem termos de indústrias fornecedoras, quer em termos das processadoras. Do seu grão saem algumas centenas de produtos, alimentares e outros, como o biodiesel. A soja é a principal fonte de proteína vegetal para a produção de carnes.Além da relevância do valor da produção na cadeia e da exportação, estima-se que sejam gerados mais de dois milhões de empregos diretos e outro tanto de indiretos.


Finalmente,merece ser destacado o avanço na sustentabilidade da atividade, a começar da integração lavoura, pecuária e floresta, já mencionada. O plantio direto permite reduzir a erosão e melhorar a qualidade do solo. Permitiu também elevar o sequestro de carbono: estimas e que cada hectare de soja retenha, com o plantio direto, algo como duas toneladas de carbono.O número de aplicações de inseticidas caiu de cinco para duas. A utilização de variedades transgênicas e outras diminuiu muito o uso de fungicidas e herbicidas.


Mesmo com todo este sucesso, e num período de preços excepcionalmente remuneradores, a preocupação básica do já mencionado 6.º Congresso Brasileiro de Soja foi o desafio de continuar a explorar novos limites para maior produtividade e sustentabilidade. Esses temas estavam presentes nas Aulas Magnas e nos 423 trabalhos científicos apresentados.


É impressionante notar que um setor já líder no mercado internacional busque obsessivamente caminhos para elevar a produtividade através de grande esforço de ampliação do conhecimento.Onde está a pesquisa tecnológica e a inovação da indústria brasileira?