ESTADÃO - 30/03
Acusações e alegações não deviam vir a público antes da certeza jurídica do crime praticado
Dias atrás, sem o merecido destaque, os jornais, rádios e televisões veicularam a notícia de que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito que investigava o senador José Serra. Em casos como esse, quando o próprio Ministério Público desiste de formular a denúncia, pode-se concluir que a acusação era infundada e o acusado sofreu prejuízo irreparável, uma vez que foi enorme a publicidade da acusação e bastante discreta a divulgação da ausência de culpa.
Aquela acusação, partida do malfeitor Joesley Batista, relatava irregularidades que envolveriam a prestação de contas à Justiça Eleitoral durante campanha do senador à Presidência da República. Serve o episódio para demonstrar o risco de lançar na fogueira pessoas acusadas de delitos que dependem de comprovações futuras, as quais podem ser confirmadas ou não.
Espera-se uma reflexão mais apurada das autoridades encarregadas das acusações de crimes de colarinho-branco, os quais provocam justificado repúdio da população. A divulgação desses crimes (que ainda serão apurados) acende os refletores e projeta os acusadores, vistos muitas vezes como exemplo. Mas tal conduta merece ponderação, porque não deveriam ser tornadas públicas acusações envolvendo pessoas quando a comprovação dos fatos no inquérito depende da obtenção de provas que nem sempre estão à mão.
A rigor, acusações e alegações não constituem meios de prova e não deveriam, portanto, vir a público antes de haver certeza jurídica do crime praticado pelo acusado. Isso, infelizmente, vem se verificando e causando prejuízos irreparáveis, como o sofrido pelo senador José Serra.
O objetivo de investigar e apontar o autor de um delito sempre teve por base, em nosso país, a segurança da ação da Justiça e do próprio acusado. Mas nos últimos tempos tal atividade acabou assumida, de forma misturada, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, de tal sorte que com frequência vazam informações que parecem de encomenda, ou seja, aparentam ser destinadas a atingir esta ou aquela pessoa. Não se pode perder de vista que a polícia judiciária tem o dever de reunir as provas preliminares e suficientes para apontar, com a necessária segurança, a ocorrência do crime e o seu autor.
Essa atividade é regulamentada por leis penais e pela Constituição federal, motivo suficiente para que seja exercida com equilíbrio e moderação, uma vez que o eventual ajuizamento de ação penal contra alguém provoca um dano, muitas vezes irreparável, à pessoa. Não se deve aceitar essa conduta leviana, talvez estimulada por vaidades ou inconformismos pessoais, que resulte no lançamento de denúncias e mais denúncias, que podem ser comprovadas ou não.
A investigação realizada pela polícia judiciária não pode correr o caminho equivocado de basear-se em exame pré-constituído de legalidade e permitir que os fatos ali em apuração se tornem públicos e atinjam a moralidade de uma pessoa, mesmo em se tratando de uma espécie de seres hoje em baixa – os políticos.
Da mesma forma como José Serra foi acusado e praticamente absolvido, imagine-se como ficará o Ministério Público Federal caso a quebra do sigilo bancário do presidente Michel Temer chegue ao mesmo desfecho, ou seja, que a denúncia seja considerada um erro. Não se devem nunca imaginar desfechos para inquéritos em curso, mas é forçoso reconhecer que Michel Temer, após longa carreira na política e como jurista, provavelmente não teria a ingenuidade de deixar em suas contas bancárias evidências de conduta inadequada e até mesmo criminosa.
A denúncia provocou-lhe forte abalo, mas não somente ele sofreu com sua divulgação: também o País acabou atingido, com reflexos negativos na economia. É possível imaginar que nem mesmo provas seguras, irrefutáveis, seriam suficientes para permitir a quebra do sigilo nos autos e o enxovalhamento prévio de um presidente da República. Será que existem essas provas? E se existem, tratando-se de assunto de tanta relevância, por que não foram claramente expostas?
A rigor, os juízes, e também os ministros dos tribunais superiores, confiam nas provas produzidas em juízo porque o inquérito policial, não estando submetido ao contraditório, presta-se muitas vezes a concluir por acusações injustas e temerárias, ao gosto de quem o está presidindo. Já perante o juiz o panorama é outro, porque as provas são produzidas à sua frente, de conformidade com o devido processo legal e a ampla defesa. Essas as razões pelas quais os juízes, fundados no contraditório, não deixam vazar informações tão relevantes como a quebra de sigilo bancário, sobretudo quando o vazamento incompleto não permite à população saber o que realmente acontece, além de causar prejuízo moral a quem é atingido.
O Supremo Tribunal Federal sempre entendeu que a ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário em situações excepcionais. Mas, como implica a restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar previamente a necessidade das informações solicitadas, com o estrito cumprimento das condições legais autorizadoras.
A Constituição federal acolheu o princípio da vedação da dupla punição pelo mesmo fato – enfim, não se pode impor ao mesmo réu uma segunda condenação. No caso da denúncia feita contra o presidente Michel Temer, a ofensa moral representada por tornar pública a quebra de seu sigilo bancário, assunto que por sua natureza deveria ser reservado aos olhos apenas do juiz, equivale a uma condenação das mais graves, dada a enorme repercussão pública.
*DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.
sexta-feira, março 30, 2018
Quando cessa o diálogo com as forças de conservação, sobram paus, pedras, ovos e tiros - REINALDO AZEVEDO
FOLHA DE SP - 30/03
Estamos à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando nos conduza a uma tragédia catártica
Na vida pública, a violência se torna protagonista quando se interditam os caminhos da interlocução política ou quando atores beligerantes não reconhecem a legitimidade do Estado legal e de seus agentes, ainda que se viva num regime democrático. Nos “Anos de Chumbo”, na Itália, por exemplo, extrema esquerda e extrema direita mataram a esmo. Não é que o statu quo recusasse o diálogo. Os extremistas é que não admitiam como interlocutores os que falavam em nome da ordem. Ou por outra: cada bando armado, à sua moda, via na democracia a tibieza e a inutilidade de uma força procrastinadora, incapaz de responder aos anseios de sua particularíssima visão de justiça.
Também a França e a então Alemanha Ocidental assistiram ao surgimento dessas virulências, que um porra-louca como Slavoj Zizek, hoje, chama de “disruptivas”. Não por acaso, ao cantar em livro as glórias do jacobinismo, a despeito de sua tara homicida, o doutor nos convida a considerar uma tradição da esquerda que remonta, com efeito, ao tempo em que a guilhotina se tornou o melhor argumento: a construção de um novo homem implica a amoralidade da utopia.
Como esquecer o Trótski de “A Nossa Moral e a Deles” a indagar, ainda que de modo oblíquo, se a luta contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola poderia poupar mulheres, velhos e crianças. Não lhe ocorreu que se pode enfrentar o inimigo de modo escrupuloso.
Falemos do ambiente nativo. Ainda hoje, boa parte da “intelligentsia” universitária brasileira, de esquerda, entende que o padrão necessariamente conservador de um regime democrático —conservador de instituições, não de iniquidades— trapaceia como elemento de coesão a abrigar as diferenças. Ela o vê como força dissuasiva da disposição de luta dos deserdados, que, na escatologia desses bambas, ainda herdarão a Terra. É uma mistura de marxismo com cristianismo, de Lênin com água benta.
A extrema direita, por sua vez, repudia as forças de coesão, pespegando-lhes a pecha de tolerantes com a desordem, com os bandidos, com os agressores dos “valores da família”, com os corruptos.
Apelo a momentos um tanto dramáticos e a alguma literatura política porque a vulgaridade ágrafa ameaça sufocar qualquer pensamento complexo. Estamos, para ainda continuar nas alturas, vivendo dias de sonâmbulos, aqueles de Christopher Clark, à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando qualquer, nos recônditos de uma Sarajevo qualquer, nos conduza a uma tragédia catártica. E, depois de tudo, talvez então nos perguntemos: “Como foi que fizemos isso?”
A Lava Jato poderia ter sido a frente saneadora do sistema, combatendo os elementos patogênicos nele infiltrados, de tal sorte que a força coatora do Estado atuasse em favor do que chamo de “elemento de coesão”.
Em vez disso, procuradores e policiais federais deixaram de produzir provas —e juízes deixaram de exigi-las— e passaram a produzir teoria política, ainda que seu projeto de poder não alcance além das cercanias das forças de repressão. E, nessa perspectiva, o Estado de Direito se tornou a sua principal vítima. Os bandidos até podem sobreviver sob a nova ordem que se pretende implementar —sobretudo se fizerem delação —, mas não a presunção de inocência, o habeas corpus e o devido processo legal.
À esquerda, o PT e seus satélites repetem o mantra mentiroso de que está em curso uma conspiração para obstar as tais forças disruptivas. À direita, uma miríade de oportunistas e de grupelhos de pressão —são tão estranhos ao liberalismo como é o carvão ao diamante—reivindicam o Estado Leviatã, pouco importando o direito de defesa e as garantias legais, tomados como atentados aos anseios da maioria e à segurança da sociedade. Temos uma direita impregnada de coletivismo tóxico.
O diálogo com as forças de conservação de instituições e de coesão está interditado, e o único protagonista reconhecido como legítimo, inclusive por amplos setores da imprensa, é o “Partido da Polícia”.
Quando isso acontece, desaparecem as categorias políticas. Em seu lugar, entram paus, pedras, ovos. E tiros.
Reinaldo Azevedo
Jornalista, escreveu, entre outros, 'O País dos Petralhas' e 'Máximas de um País Mínimo'.
Estamos à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando nos conduza a uma tragédia catártica
Na vida pública, a violência se torna protagonista quando se interditam os caminhos da interlocução política ou quando atores beligerantes não reconhecem a legitimidade do Estado legal e de seus agentes, ainda que se viva num regime democrático. Nos “Anos de Chumbo”, na Itália, por exemplo, extrema esquerda e extrema direita mataram a esmo. Não é que o statu quo recusasse o diálogo. Os extremistas é que não admitiam como interlocutores os que falavam em nome da ordem. Ou por outra: cada bando armado, à sua moda, via na democracia a tibieza e a inutilidade de uma força procrastinadora, incapaz de responder aos anseios de sua particularíssima visão de justiça.
Também a França e a então Alemanha Ocidental assistiram ao surgimento dessas virulências, que um porra-louca como Slavoj Zizek, hoje, chama de “disruptivas”. Não por acaso, ao cantar em livro as glórias do jacobinismo, a despeito de sua tara homicida, o doutor nos convida a considerar uma tradição da esquerda que remonta, com efeito, ao tempo em que a guilhotina se tornou o melhor argumento: a construção de um novo homem implica a amoralidade da utopia.
Como esquecer o Trótski de “A Nossa Moral e a Deles” a indagar, ainda que de modo oblíquo, se a luta contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola poderia poupar mulheres, velhos e crianças. Não lhe ocorreu que se pode enfrentar o inimigo de modo escrupuloso.
Falemos do ambiente nativo. Ainda hoje, boa parte da “intelligentsia” universitária brasileira, de esquerda, entende que o padrão necessariamente conservador de um regime democrático —conservador de instituições, não de iniquidades— trapaceia como elemento de coesão a abrigar as diferenças. Ela o vê como força dissuasiva da disposição de luta dos deserdados, que, na escatologia desses bambas, ainda herdarão a Terra. É uma mistura de marxismo com cristianismo, de Lênin com água benta.
A extrema direita, por sua vez, repudia as forças de coesão, pespegando-lhes a pecha de tolerantes com a desordem, com os bandidos, com os agressores dos “valores da família”, com os corruptos.
Apelo a momentos um tanto dramáticos e a alguma literatura política porque a vulgaridade ágrafa ameaça sufocar qualquer pensamento complexo. Estamos, para ainda continuar nas alturas, vivendo dias de sonâmbulos, aqueles de Christopher Clark, à espera de que a morte de um Francisco Ferdinando qualquer, nos recônditos de uma Sarajevo qualquer, nos conduza a uma tragédia catártica. E, depois de tudo, talvez então nos perguntemos: “Como foi que fizemos isso?”
A Lava Jato poderia ter sido a frente saneadora do sistema, combatendo os elementos patogênicos nele infiltrados, de tal sorte que a força coatora do Estado atuasse em favor do que chamo de “elemento de coesão”.
Em vez disso, procuradores e policiais federais deixaram de produzir provas —e juízes deixaram de exigi-las— e passaram a produzir teoria política, ainda que seu projeto de poder não alcance além das cercanias das forças de repressão. E, nessa perspectiva, o Estado de Direito se tornou a sua principal vítima. Os bandidos até podem sobreviver sob a nova ordem que se pretende implementar —sobretudo se fizerem delação —, mas não a presunção de inocência, o habeas corpus e o devido processo legal.
À esquerda, o PT e seus satélites repetem o mantra mentiroso de que está em curso uma conspiração para obstar as tais forças disruptivas. À direita, uma miríade de oportunistas e de grupelhos de pressão —são tão estranhos ao liberalismo como é o carvão ao diamante—reivindicam o Estado Leviatã, pouco importando o direito de defesa e as garantias legais, tomados como atentados aos anseios da maioria e à segurança da sociedade. Temos uma direita impregnada de coletivismo tóxico.
O diálogo com as forças de conservação de instituições e de coesão está interditado, e o único protagonista reconhecido como legítimo, inclusive por amplos setores da imprensa, é o “Partido da Polícia”.
Quando isso acontece, desaparecem as categorias políticas. Em seu lugar, entram paus, pedras, ovos. E tiros.
Reinaldo Azevedo
Jornalista, escreveu, entre outros, 'O País dos Petralhas' e 'Máximas de um País Mínimo'.
quinta-feira, março 29, 2018
Morrer na praia - WILLIAN WAACK
ESTADÃO - 29/03
O sinal que mais se levanta hoje no Brasil é o sinal de interrogação. Para onde vai?
Não tem nada mais difícil para quem está envolvido com o noticiário do dia a dia político do que entender o rumo de mudanças à medida que elas ocorrem. Já passei por isso, entre outras ocasiões, cobrindo a queda do Muro de Berlim, em 1989. Quarenta dias antes do evento eu estava lá, na Alemanha Oriental, reportando sobre as manifestações e fugas em massa do regime comunista. E não imaginava que faltava só pouco mais de um mês para aquele mundo todo acabar de vez. Foi só depois do muro derrubado que tudo aquilo que já era visível ficou tão claro, tão óbvio, como o caminho que levava a uma revolução.
Crises graves, e o Brasil vive uma, têm características em comum: a velocidade dos acontecimentos é uma delas (no nosso caso, a rapidez com que fomos de escândalo em escândalo, de delação em delação e, agora, de decepção em decepção). Outro aspecto em comum é a desorientação de elites pensantes (políticas, econômicas ou ambas) – para não falar de vastas parcelas da população – que passam a sofrer de perda de capacidade de “leitura” da realidade, ou seja, de antecipar fatos e suas consequências (bastante evidente nos dirigentes do PT antes do impeachment).
Mas a mais grave característica em comum a grandes crises é a deterioração daquilo que numa sociedade até certo ponto se aceitava, bem ou mal, como algum tipo de autoridade – sobretudo a moral. Avança um fenômeno de percepção negativa, e de perda de confiança, que chegou também a órgãos da Lava Jato, a conglomerados econômicos, à imprensa (especialmente os mais poderosos), a instituições religiosas e, recentemente, de maneira espetacular, ao Supremo Tribunal Federal. O sinal que mais se levanta hoje no Brasil é o sinal de interrogação. Para onde vai?
No Brasil é palpável, embora bastante subjetivo, o generalizado desejo de mudança, a indignação com a corrupção, o clamor por algo diferente – e eu me arrisco a dizer, a vontade também de enxergar alguma ordem (no sentido de direção e estabilidade). Sou obrigado a reconhecer, porém, que nossa história recente exige uma tremenda dose de paciência de todos os que ardem por mudanças. Pois temos o costume (cada um julgue se é positivo ou negativo) da “acomodação”.
Na saída da ditadura queríamos Diretas-Já, mas nos acomodamos a esperar o voto direto para cinco anos depois. Nos acomodamos à inflação, que domamos depois de uma década perdida. Nos acomodamos a uma reforma de Estado feita apenas em parte e, com gosto, nos acomodamos ao populismo fiscal irresponsável – e aos encantos de seu marketing executado com dinheiro publico desviado – que precisou de um desastre para ser tirado do poder.
Às vezes parece que para nós, brasileiros, o insustentável (como a violência) é o nosso jeito de ser. Ocorre que esse grande e caudaloso rio querendo mudanças vai se chocar nas eleições em outubro com grandes obstáculos formados por um eleitorado em boa medida apático e desanimado, pelo domínio do aparelho de Estado por grupos corporativos públicos e privados (empresas e partidos), pela percepção de que, no filme de faroeste brasileiro, até o mocinho às vezes só parece querer cuidar do dele. A imagem de grandes quantidades de água em movimento, como algo ao qual ninguém resiste, é uma das mais usadas para descrever mudanças desde que historiadores existem.
Mas morrer na praia é um grande provérbio popular.
O sinal que mais se levanta hoje no Brasil é o sinal de interrogação. Para onde vai?
Não tem nada mais difícil para quem está envolvido com o noticiário do dia a dia político do que entender o rumo de mudanças à medida que elas ocorrem. Já passei por isso, entre outras ocasiões, cobrindo a queda do Muro de Berlim, em 1989. Quarenta dias antes do evento eu estava lá, na Alemanha Oriental, reportando sobre as manifestações e fugas em massa do regime comunista. E não imaginava que faltava só pouco mais de um mês para aquele mundo todo acabar de vez. Foi só depois do muro derrubado que tudo aquilo que já era visível ficou tão claro, tão óbvio, como o caminho que levava a uma revolução.
Crises graves, e o Brasil vive uma, têm características em comum: a velocidade dos acontecimentos é uma delas (no nosso caso, a rapidez com que fomos de escândalo em escândalo, de delação em delação e, agora, de decepção em decepção). Outro aspecto em comum é a desorientação de elites pensantes (políticas, econômicas ou ambas) – para não falar de vastas parcelas da população – que passam a sofrer de perda de capacidade de “leitura” da realidade, ou seja, de antecipar fatos e suas consequências (bastante evidente nos dirigentes do PT antes do impeachment).
Mas a mais grave característica em comum a grandes crises é a deterioração daquilo que numa sociedade até certo ponto se aceitava, bem ou mal, como algum tipo de autoridade – sobretudo a moral. Avança um fenômeno de percepção negativa, e de perda de confiança, que chegou também a órgãos da Lava Jato, a conglomerados econômicos, à imprensa (especialmente os mais poderosos), a instituições religiosas e, recentemente, de maneira espetacular, ao Supremo Tribunal Federal. O sinal que mais se levanta hoje no Brasil é o sinal de interrogação. Para onde vai?
No Brasil é palpável, embora bastante subjetivo, o generalizado desejo de mudança, a indignação com a corrupção, o clamor por algo diferente – e eu me arrisco a dizer, a vontade também de enxergar alguma ordem (no sentido de direção e estabilidade). Sou obrigado a reconhecer, porém, que nossa história recente exige uma tremenda dose de paciência de todos os que ardem por mudanças. Pois temos o costume (cada um julgue se é positivo ou negativo) da “acomodação”.
Na saída da ditadura queríamos Diretas-Já, mas nos acomodamos a esperar o voto direto para cinco anos depois. Nos acomodamos à inflação, que domamos depois de uma década perdida. Nos acomodamos a uma reforma de Estado feita apenas em parte e, com gosto, nos acomodamos ao populismo fiscal irresponsável – e aos encantos de seu marketing executado com dinheiro publico desviado – que precisou de um desastre para ser tirado do poder.
Às vezes parece que para nós, brasileiros, o insustentável (como a violência) é o nosso jeito de ser. Ocorre que esse grande e caudaloso rio querendo mudanças vai se chocar nas eleições em outubro com grandes obstáculos formados por um eleitorado em boa medida apático e desanimado, pelo domínio do aparelho de Estado por grupos corporativos públicos e privados (empresas e partidos), pela percepção de que, no filme de faroeste brasileiro, até o mocinho às vezes só parece querer cuidar do dele. A imagem de grandes quantidades de água em movimento, como algo ao qual ninguém resiste, é uma das mais usadas para descrever mudanças desde que historiadores existem.
Mas morrer na praia é um grande provérbio popular.
Tesouro, confiança e juros - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 29/03
O Tesouro Nacional, um dos campeões de endividamento na categoria dos emergentes, já se beneficia da redução de juros. Com dinheiro mais barato, tem sido possível baixar o custo médio da dívida federal e melhorar sua trajetória. A dívida continua em crescimento, naturalmente, e assim continuará enquanto o governo for incapaz de gerar superávit suficiente para pagar a conta anual de juros e, em seguida, amortizar o principal. Para isso será necessário um esforço considerável de ajustes e reformas. Quanto mais adiado e retardado esse esforço, tanto pior para as finanças públicas, para os programas de governo, para o crescimento econômico e para o bem-estar da maior parte dos brasileiros. Por enquanto, as boas notícias podem ser muito limitadas, mas sua mensagem mais importante é bastante clara: a seriedade compensa e ninguém deveria levar a sério as promessas de delícias sem custo do populismo.
A dívida pública federal atingiu R$ 3,53 trilhões, com crescimento nominal de 1,53% em um mês. O aumento decorreu da emissão líquida de R$ 28,51 bilhões e da apropriação de juros no valor de R$ 25,55 bilhões. Os novos títulos foram emitidos com o custo de 10,01% ao ano, o menor desde abril de 2010, quando a taxa média ficou em 9,79%.
A parcela correspondente à dívida mobiliária interna foi emitida com juros de 9,1% ao ano, os menores desde o início da série em dezembro de 2005. O custo médio de emissão da dívida mobiliária interna caiu pelo sétimo mês consecutivo. Há razões para esperar quedas adicionais do custo financeiro suportado pelo Tesouro.
Com a inflação abaixo das previsões, o Banco Central (BC) voltou a reduzir a taxa básica de juros, a Selic, na última reunião. Nessa ocasião, a taxa passou de 6,75% para 6,50% ao ano, um piso histórico. Ao anunciar esse corte, o Comitê de Política Monetária do BC, o Copom, indicou a possibilidade de uma nova diminuição em maio. Nesse caso, os juros básicos deverão chegar a 6,25%.
Os cortes da taxa básica foram iniciados em outubro de 2016, quando a Selic estava em 14,25%. Os juros atuais correspondem a menos de metade daqueles em vigor naquele momento. Os novos dirigentes do BC, nomeados depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, continuaram elevando a taxa durante algum tempo para derrubar com segurança a inflação. No começo daquele ano os preços ao consumidor acumulavam alta superior a 10% em 12 meses.
Essa alta refletia uma ampla desorganização da economia, com as contas públicas em frangalhos e sem perspectiva de recuperação, oferta de bens industriais comprometida pela recessão, contas externas em mau estado e insegurança disseminada em todos os setores. O aperto monetário, iniciado na gestão anterior, continuou indispensável por algum tempo, mas o recuo da inflação é explicável também pelo início da política de arrumação fiscal. A nova atitude do governo favoreceu o ressurgimento da confiança no futuro da economia.
A ampla mudança no cenário de inflação e de juros, a partir daquele momento, reflete-se tanto nos custos quanto na composição da dívida. De janeiro para fevereiro a parcela com remuneração prefixada aumentou de 33,80% para 34,33%. A participação dos títulos corrigidos com base em índices de preços diminuiu de 30,17% para 29,66%. O resto corresponde essencialmente aos papéis com juros flutuantes. Os efeitos da inflação contida e ainda com perspectiva de baixa e dos juros diminuídos têm sido visíveis, há algum tempo, nas escolhas dos compradores de títulos federais.
A disposição dos financiadores do governo pode mudar, no entanto, se aumentarem as dúvidas quanto à continuidade dos ajustes e reformas. A advertência, formulada por técnicos do Tesouro, é quase redundante. Assim como as boas expectativas do mercado têm facilitado a gestão da dívida pública, a redução da confiança produzirá em pouco tempo o efeito oposto. Desnecessária para o mercado, a mensagem vale para os políticos e, muito especialmente, para os candidatos às eleições deste ano.
O Tesouro Nacional, um dos campeões de endividamento na categoria dos emergentes, já se beneficia da redução de juros. Com dinheiro mais barato, tem sido possível baixar o custo médio da dívida federal e melhorar sua trajetória. A dívida continua em crescimento, naturalmente, e assim continuará enquanto o governo for incapaz de gerar superávit suficiente para pagar a conta anual de juros e, em seguida, amortizar o principal. Para isso será necessário um esforço considerável de ajustes e reformas. Quanto mais adiado e retardado esse esforço, tanto pior para as finanças públicas, para os programas de governo, para o crescimento econômico e para o bem-estar da maior parte dos brasileiros. Por enquanto, as boas notícias podem ser muito limitadas, mas sua mensagem mais importante é bastante clara: a seriedade compensa e ninguém deveria levar a sério as promessas de delícias sem custo do populismo.
A dívida pública federal atingiu R$ 3,53 trilhões, com crescimento nominal de 1,53% em um mês. O aumento decorreu da emissão líquida de R$ 28,51 bilhões e da apropriação de juros no valor de R$ 25,55 bilhões. Os novos títulos foram emitidos com o custo de 10,01% ao ano, o menor desde abril de 2010, quando a taxa média ficou em 9,79%.
A parcela correspondente à dívida mobiliária interna foi emitida com juros de 9,1% ao ano, os menores desde o início da série em dezembro de 2005. O custo médio de emissão da dívida mobiliária interna caiu pelo sétimo mês consecutivo. Há razões para esperar quedas adicionais do custo financeiro suportado pelo Tesouro.
Com a inflação abaixo das previsões, o Banco Central (BC) voltou a reduzir a taxa básica de juros, a Selic, na última reunião. Nessa ocasião, a taxa passou de 6,75% para 6,50% ao ano, um piso histórico. Ao anunciar esse corte, o Comitê de Política Monetária do BC, o Copom, indicou a possibilidade de uma nova diminuição em maio. Nesse caso, os juros básicos deverão chegar a 6,25%.
Os cortes da taxa básica foram iniciados em outubro de 2016, quando a Selic estava em 14,25%. Os juros atuais correspondem a menos de metade daqueles em vigor naquele momento. Os novos dirigentes do BC, nomeados depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, continuaram elevando a taxa durante algum tempo para derrubar com segurança a inflação. No começo daquele ano os preços ao consumidor acumulavam alta superior a 10% em 12 meses.
Essa alta refletia uma ampla desorganização da economia, com as contas públicas em frangalhos e sem perspectiva de recuperação, oferta de bens industriais comprometida pela recessão, contas externas em mau estado e insegurança disseminada em todos os setores. O aperto monetário, iniciado na gestão anterior, continuou indispensável por algum tempo, mas o recuo da inflação é explicável também pelo início da política de arrumação fiscal. A nova atitude do governo favoreceu o ressurgimento da confiança no futuro da economia.
A ampla mudança no cenário de inflação e de juros, a partir daquele momento, reflete-se tanto nos custos quanto na composição da dívida. De janeiro para fevereiro a parcela com remuneração prefixada aumentou de 33,80% para 34,33%. A participação dos títulos corrigidos com base em índices de preços diminuiu de 30,17% para 29,66%. O resto corresponde essencialmente aos papéis com juros flutuantes. Os efeitos da inflação contida e ainda com perspectiva de baixa e dos juros diminuídos têm sido visíveis, há algum tempo, nas escolhas dos compradores de títulos federais.
A disposição dos financiadores do governo pode mudar, no entanto, se aumentarem as dúvidas quanto à continuidade dos ajustes e reformas. A advertência, formulada por técnicos do Tesouro, é quase redundante. Assim como as boas expectativas do mercado têm facilitado a gestão da dívida pública, a redução da confiança produzirá em pouco tempo o efeito oposto. Desnecessária para o mercado, a mensagem vale para os políticos e, muito especialmente, para os candidatos às eleições deste ano.
quarta-feira, março 28, 2018
O protecionismo é um fiasco, ajuda o protegido, mas a um custo enorme para o país - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 28/03
Suspeitos de sempre já começam a se movimentar para barrar redução de tarifas de importação
Por qualquer métrica que se escolha o Brasil permanece como uma das economias mais fechadas do mundo no que se refere ao comércio global.
Em que pesem características como a dimensão continental do país e custos de transporte, resta pouca dúvida de que a baixa integração comercial com o resto do mundo decorre de uma posição protecionista há muito enraizada.
É verdade que as tarifas médias de importação caíram bastante entre 1990 e 1995 (de 40% para 15% no que se refere a manufaturas) e um pouco mais até 2003 (para os atuais 10%, ante cerca de 3% na média global), mas depois disso não demos nenhum passo adicional no sentido de liberalizar o comércio exterior. Pelo contrário, foram tomadas medidas de proteção, como exigências de conteúdo nacionalpara equipamentos destinados à exploração de petróleo, para citar apenas o caso mais gritante.
Existem evidências de que a redução da proteção nos anos 1990 resultou em crescimento expressivo da produtividade no país, como registrado por Marcos Lisboa, Naércio Menezes Filho e Adriana Schor. Por outro lado, a produtividade estagnou no período mais recente, fenômeno que, se não pode ser integralmente atribuído ao fechamento da economia, deve ter nele ao menos parcela relevante da responsabilidade.
Há, contudo, iniciativas para começar a reverter essse quadro desolador, em particular a proposta de redução das tarifas de importação de bens de capital, informática e telecomunicações de 14% para 4% em média.
Tal medida, se levada a termo, deveria reduzir o custo do investimento, não apenas colaborando para a retomada da economia mas também para aumento da produtividade de trabalho e, provavelmente, ainda para a produtividade geral, pela incorporação de tecnologia mais avançada a custos mais baixos.
Como seria de esperar, contudo, os suspeitos de sempre já começaram a se movimentar para barrar a ideia, apresentando dois argumentos.
Um deles é de política comercial: a redução unilateral de tarifas nos deixaria com menos “fichas” para trocar no caso de uma negociação com a União Europeia. Melhor seria, segue a toada, guardá-la para a negociação mais à frente.
Além de velho, trata-se de um falso argumento. A começar porque quem o formula jamais apoiou a negociação com a UE; trata-se apenas de chicana, para usar um termo em voga. Mais importante, porém, é que o beneficiário principal da redução de tarifas não será o exportador europeu, mas o importador brasileiro, assim como o perdedor no caso de a UE não reduzir as tarifas para o produto brasileiro será o consumidor europeu.
O outro argumento, quase tão antigo quanto o primeiro, é o “custo Brasil”, ou seja, o encarecimento do produto nacional por problemas que se originam desde a logística até a tributação. Ora, é precisamente esse o motivo pelo qual se defende a liberalização comercial: dar ao usuário nacional a opção de produtos mais baratos.
Se o problema da falta de competitividade do produto doméstico resulta da tributação (parcial, mas não inteiramente verdade), a solução virá da reforma tributária, não da restrição às importações.
À luz da nossa própria experiência, deveria ficar claro que o protecionismo é um extraordinário fiasco: ajuda o protegido, mas a um custo enorme para o país.
Alexandre Schwartsman - Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
Suspeitos de sempre já começam a se movimentar para barrar redução de tarifas de importação
Por qualquer métrica que se escolha o Brasil permanece como uma das economias mais fechadas do mundo no que se refere ao comércio global.
Em que pesem características como a dimensão continental do país e custos de transporte, resta pouca dúvida de que a baixa integração comercial com o resto do mundo decorre de uma posição protecionista há muito enraizada.
É verdade que as tarifas médias de importação caíram bastante entre 1990 e 1995 (de 40% para 15% no que se refere a manufaturas) e um pouco mais até 2003 (para os atuais 10%, ante cerca de 3% na média global), mas depois disso não demos nenhum passo adicional no sentido de liberalizar o comércio exterior. Pelo contrário, foram tomadas medidas de proteção, como exigências de conteúdo nacionalpara equipamentos destinados à exploração de petróleo, para citar apenas o caso mais gritante.
Existem evidências de que a redução da proteção nos anos 1990 resultou em crescimento expressivo da produtividade no país, como registrado por Marcos Lisboa, Naércio Menezes Filho e Adriana Schor. Por outro lado, a produtividade estagnou no período mais recente, fenômeno que, se não pode ser integralmente atribuído ao fechamento da economia, deve ter nele ao menos parcela relevante da responsabilidade.
Há, contudo, iniciativas para começar a reverter essse quadro desolador, em particular a proposta de redução das tarifas de importação de bens de capital, informática e telecomunicações de 14% para 4% em média.
Tal medida, se levada a termo, deveria reduzir o custo do investimento, não apenas colaborando para a retomada da economia mas também para aumento da produtividade de trabalho e, provavelmente, ainda para a produtividade geral, pela incorporação de tecnologia mais avançada a custos mais baixos.
Como seria de esperar, contudo, os suspeitos de sempre já começaram a se movimentar para barrar a ideia, apresentando dois argumentos.
Um deles é de política comercial: a redução unilateral de tarifas nos deixaria com menos “fichas” para trocar no caso de uma negociação com a União Europeia. Melhor seria, segue a toada, guardá-la para a negociação mais à frente.
Além de velho, trata-se de um falso argumento. A começar porque quem o formula jamais apoiou a negociação com a UE; trata-se apenas de chicana, para usar um termo em voga. Mais importante, porém, é que o beneficiário principal da redução de tarifas não será o exportador europeu, mas o importador brasileiro, assim como o perdedor no caso de a UE não reduzir as tarifas para o produto brasileiro será o consumidor europeu.
O outro argumento, quase tão antigo quanto o primeiro, é o “custo Brasil”, ou seja, o encarecimento do produto nacional por problemas que se originam desde a logística até a tributação. Ora, é precisamente esse o motivo pelo qual se defende a liberalização comercial: dar ao usuário nacional a opção de produtos mais baratos.
Se o problema da falta de competitividade do produto doméstico resulta da tributação (parcial, mas não inteiramente verdade), a solução virá da reforma tributária, não da restrição às importações.
À luz da nossa própria experiência, deveria ficar claro que o protecionismo é um extraordinário fiasco: ajuda o protegido, mas a um custo enorme para o país.
Alexandre Schwartsman - Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
Abrir é preciso - MONICA DE BOLLE
ESTADÃO - 28/03
Quanto mais se investe, mais se aumenta a capacidade produtiva e, portanto, mais é possível crescer
A imprensa brasileira noticiou, mas a repercussão também foi grande entre os jornais internacionais de grande circulação. O New York Times e o Wall Street Journal, entre outros, fizeram excelentes matérias sobre o igualmente excelente estudo produzido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) intitulado “Abertura Comercial para o Desenvolvimento Econômico”. Trata-se de relatório com evidências conclusivas sobre os benefícios que a maior abertura do comércio trariam ao País.
É certo que, de um lado, discutir abertura comercial em momento de rompantes protecionistas mundo afora, sobretudo na maior economia do planeta, os EUA, não é fácil. Por outro lado, como mostraram os países integrantes do repaginado Acordo Transpacífico (TPP), agora conhecido por sua nova sigla, CPTPP, é possível avançar na integração do comércio e do investimento sem a liderança dos Estados Unidos.
Mais do que isso, neste momento em que o governo Trump prepara medidas duras contra a China, e a China finca posição, é importante que países se protejam dos projéteis não fugindo do comércio, mas aderindo a ele. Afinal, a verdade é que ainda que ocorra algo da guerra comercial que todos hoje temem, o mundo e a indústria já não funcionam mais com peças isoladas. Ao contrário, a simbiose é completa. Não à toa, multinacionais americanas que dependem do comércio com empresas chinesas fabricantes de partes, componentes, e tecnologia, tão assustadas estão com a perspectiva de que a quixotesca guerra de Trump acabe tendo inúmeras consequências indesejáveis para os empregos, para o investimento, para o crescimento dos EUA.
Voltando ao Brasil, o relatório da SAE traz dados e números reveladores da extensão do isolamento brasileiro. Traz, também, análise lúcida sobre os efeitos que teria uma redução horizontal de nossas barreiras comerciais sobre a economia brasileira. Pode-se discutir uma ou outra hipótese, mas os resultados falam por si: tirar o Brasil do autoisolamento criaria empregos, traria investimentos, melhoraria as perspectivas de crescimento e desenvolvimento do País.
Basta olhar para todos os países asiáticos que souberam usar a abertura comercial a seu favor – o Japão nos anos 50, a Coreia e Taiwan nos anos 60 e 70, a China nos anos 90 e 2000. Durante as diferentes fases em que essas economias se abriram, o crescimento veio de forma rápida, forte, e sustentável. Na contramão, o Brasil e outros países latino-americanos, amarrados ao velho modelo de substituição de importações e de reserva de mercado, jamais obtiveram sucesso que chegasse aos pés do que se viu do outro lado do mundo.
Ainda cambaleante após a recessão de 2015-2016 e sem grandes perspectivas pela frente, o momento é particularmente oportuno para discutir a abertura brasileira. Há poucas semanas, a Camex reduziu temporariamente para zero as alíquotas sobre mais de 780 produtos que não têm equivalente nacional. A medida é bem-vinda, mas há que se fazer mais. O governo cogita a adoção de uma ampla redução de tarifas de importação de bens de capital mais abrangente e de caráter permanente, afetando não apenas produtos que não possuem equivalente nacional, mas também aqueles que o Brasil hoje produz. Evidentemente, há quem não tenha gostado da ideia, chamando-a de polêmica.
Mas para além dos interesses desses grupos, para os quais as tarifas reduzidas levariam ao enfrentamento de problemas de falta de competitividade, estão os interesses do País. É bem conhecida a relação entre importações de bens de capital e investimento: quanto maior a capacidade de importar esses produtos, mais se investe. E quanto mais se investe, mais se aumenta a capacidade produtiva e, portanto, mais é possível crescer.
A taxa de investimento do Brasil, hoje, é de míseros 15,6% – muitos pontos porcentuais aquém dos almejados 20% a 25% compatíveis com altas do PIB de 4% a 5%. A ambiciosa redução de tarifas proposta pelo governo tornaria mais barato importar máquinas e equipamentos, incentivando o investimento, além de ajudar a promover transferências de tecnologia de que tanto necessitamos para aumentar a produtividade.
Abrir é preciso. Lutar contra o óbvio não é preciso.
* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY
Quanto mais se investe, mais se aumenta a capacidade produtiva e, portanto, mais é possível crescer
A imprensa brasileira noticiou, mas a repercussão também foi grande entre os jornais internacionais de grande circulação. O New York Times e o Wall Street Journal, entre outros, fizeram excelentes matérias sobre o igualmente excelente estudo produzido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) intitulado “Abertura Comercial para o Desenvolvimento Econômico”. Trata-se de relatório com evidências conclusivas sobre os benefícios que a maior abertura do comércio trariam ao País.
É certo que, de um lado, discutir abertura comercial em momento de rompantes protecionistas mundo afora, sobretudo na maior economia do planeta, os EUA, não é fácil. Por outro lado, como mostraram os países integrantes do repaginado Acordo Transpacífico (TPP), agora conhecido por sua nova sigla, CPTPP, é possível avançar na integração do comércio e do investimento sem a liderança dos Estados Unidos.
Mais do que isso, neste momento em que o governo Trump prepara medidas duras contra a China, e a China finca posição, é importante que países se protejam dos projéteis não fugindo do comércio, mas aderindo a ele. Afinal, a verdade é que ainda que ocorra algo da guerra comercial que todos hoje temem, o mundo e a indústria já não funcionam mais com peças isoladas. Ao contrário, a simbiose é completa. Não à toa, multinacionais americanas que dependem do comércio com empresas chinesas fabricantes de partes, componentes, e tecnologia, tão assustadas estão com a perspectiva de que a quixotesca guerra de Trump acabe tendo inúmeras consequências indesejáveis para os empregos, para o investimento, para o crescimento dos EUA.
Voltando ao Brasil, o relatório da SAE traz dados e números reveladores da extensão do isolamento brasileiro. Traz, também, análise lúcida sobre os efeitos que teria uma redução horizontal de nossas barreiras comerciais sobre a economia brasileira. Pode-se discutir uma ou outra hipótese, mas os resultados falam por si: tirar o Brasil do autoisolamento criaria empregos, traria investimentos, melhoraria as perspectivas de crescimento e desenvolvimento do País.
Basta olhar para todos os países asiáticos que souberam usar a abertura comercial a seu favor – o Japão nos anos 50, a Coreia e Taiwan nos anos 60 e 70, a China nos anos 90 e 2000. Durante as diferentes fases em que essas economias se abriram, o crescimento veio de forma rápida, forte, e sustentável. Na contramão, o Brasil e outros países latino-americanos, amarrados ao velho modelo de substituição de importações e de reserva de mercado, jamais obtiveram sucesso que chegasse aos pés do que se viu do outro lado do mundo.
Ainda cambaleante após a recessão de 2015-2016 e sem grandes perspectivas pela frente, o momento é particularmente oportuno para discutir a abertura brasileira. Há poucas semanas, a Camex reduziu temporariamente para zero as alíquotas sobre mais de 780 produtos que não têm equivalente nacional. A medida é bem-vinda, mas há que se fazer mais. O governo cogita a adoção de uma ampla redução de tarifas de importação de bens de capital mais abrangente e de caráter permanente, afetando não apenas produtos que não possuem equivalente nacional, mas também aqueles que o Brasil hoje produz. Evidentemente, há quem não tenha gostado da ideia, chamando-a de polêmica.
Mas para além dos interesses desses grupos, para os quais as tarifas reduzidas levariam ao enfrentamento de problemas de falta de competitividade, estão os interesses do País. É bem conhecida a relação entre importações de bens de capital e investimento: quanto maior a capacidade de importar esses produtos, mais se investe. E quanto mais se investe, mais se aumenta a capacidade produtiva e, portanto, mais é possível crescer.
A taxa de investimento do Brasil, hoje, é de míseros 15,6% – muitos pontos porcentuais aquém dos almejados 20% a 25% compatíveis com altas do PIB de 4% a 5%. A ambiciosa redução de tarifas proposta pelo governo tornaria mais barato importar máquinas e equipamentos, incentivando o investimento, além de ajudar a promover transferências de tecnologia de que tanto necessitamos para aumentar a produtividade.
Abrir é preciso. Lutar contra o óbvio não é preciso.
* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY
Uma foto da ruína para o novo presidente - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 28/03
Discussão econômica quase sai da conversa pública, mas problema graves perduram
NO PAÍS que desceu ao fundo do maior buraco recessivo em mais de 30 anos e ainda se arrasta para sair das profundezas desse inferno, não houve revoltas de sentido socioeconômico. Depois da falação de reformas de 2016-17, a economia está quase ausente do debate público.
As manobras de sobrevivência da elite política, a multiplicação de candidaturas aventureiras, arremedos de acordão e mumunhas da casta burocrática em geral ocupam a conversa, além das batalhas culturais nas redes insociáveis.
Os números deste início de 2018, que confirmam a lerdeza da retomada, tampouco causam maiores protestos. Na verdade, não servem de mote nem para campanhas políticas ou ataques da oposição, na prática morta.
Um balanço rápido da economia no primeiro trimestre, no entanto, dá pano para a manga dos problemas que o próximo governo vai enfrentar daqui a nove meses ou menos, pois espera-se que os eleitos comecem a tomar conta da casa caída já em novembro.
Neste início do ano vê-se que o emprego formal reage em velocidade abaixo da crítica, mau sinal para o aumento da renda e para a arrecadação de impostos. O crédito bancário continua a encolher, como ocorre desde setembro de 2015 (em bases anuais).
A arrecadação do governo federal dá sinais de vida, embora um tanto inflada por receitas extraordinárias, depois de baixar desde novembro de 2014 (em bases anuais também). A despesa com investimento parece se estabilizar, mas caiu à metade do que era em 2014. O pessoal da Fazenda fez um esforço considerável de arrumar e explicitar as contas públicas arruinadas, mas o gasto com Previdência e pessoal ainda cresce a quase 6% ao ano acima da inflação, em termos reais, enquanto os demais gastos do governo encolhem 14%.
Trocando em miúdos. Em um ano, a despesa com Previdência e pessoal cresceu cerca de R$ 45 bilhões, o equivalente a tudo o que o governo despende, por ano, em obras e outros investimentos.
Desde o pico da crise, o país perdeu uns 2,8 milhões de empregos formais (para nem contar uns mais de 2 milhões que deixaram de ser criados). No ritmo em que por ora vamos neste 2018, vão-se recuperar uns 700 mil com carteira. Ainda teremos anos de precarização do trabalho.
Mesmo descontado o efeito do enxugamento dos bancos públicos, o crédito mal cresce. As taxas de juros, que desciam lentamente dos Himalaias, pararam de cair mais ou menos desde novembro do ano passado.
Além dos defeitos sistêmicos do crédito no Brasil (garantias, cadastros de crédito etc.), há algum problema grave nos bancos, assunto para outro dia, mas um rolo grande o bastante para figuras insuspeitas do mercado começarem a chiar em público sobre a concentração bancária, nome bonito para oligopólio daninho.
É um país em crise de emprego formal, precarização ainda crescente do trabalho, aumento real de salários que parece desacelerar, estoque de crédito em baixa de quase três anos e juros congelados nos picos altos. O Orçamento federal é progressivamente comido por gastos com Previdência e pessoal; ao final de 2019, por aí, mal haverá tostões para reparar a infraestrutura que, sempre escassa, agora vai sendo arruinada sem limite.
Onde estamos com a cabeça?
Discussão econômica quase sai da conversa pública, mas problema graves perduram
NO PAÍS que desceu ao fundo do maior buraco recessivo em mais de 30 anos e ainda se arrasta para sair das profundezas desse inferno, não houve revoltas de sentido socioeconômico. Depois da falação de reformas de 2016-17, a economia está quase ausente do debate público.
As manobras de sobrevivência da elite política, a multiplicação de candidaturas aventureiras, arremedos de acordão e mumunhas da casta burocrática em geral ocupam a conversa, além das batalhas culturais nas redes insociáveis.
Os números deste início de 2018, que confirmam a lerdeza da retomada, tampouco causam maiores protestos. Na verdade, não servem de mote nem para campanhas políticas ou ataques da oposição, na prática morta.
Um balanço rápido da economia no primeiro trimestre, no entanto, dá pano para a manga dos problemas que o próximo governo vai enfrentar daqui a nove meses ou menos, pois espera-se que os eleitos comecem a tomar conta da casa caída já em novembro.
Neste início do ano vê-se que o emprego formal reage em velocidade abaixo da crítica, mau sinal para o aumento da renda e para a arrecadação de impostos. O crédito bancário continua a encolher, como ocorre desde setembro de 2015 (em bases anuais).
A arrecadação do governo federal dá sinais de vida, embora um tanto inflada por receitas extraordinárias, depois de baixar desde novembro de 2014 (em bases anuais também). A despesa com investimento parece se estabilizar, mas caiu à metade do que era em 2014. O pessoal da Fazenda fez um esforço considerável de arrumar e explicitar as contas públicas arruinadas, mas o gasto com Previdência e pessoal ainda cresce a quase 6% ao ano acima da inflação, em termos reais, enquanto os demais gastos do governo encolhem 14%.
Trocando em miúdos. Em um ano, a despesa com Previdência e pessoal cresceu cerca de R$ 45 bilhões, o equivalente a tudo o que o governo despende, por ano, em obras e outros investimentos.
Desde o pico da crise, o país perdeu uns 2,8 milhões de empregos formais (para nem contar uns mais de 2 milhões que deixaram de ser criados). No ritmo em que por ora vamos neste 2018, vão-se recuperar uns 700 mil com carteira. Ainda teremos anos de precarização do trabalho.
Mesmo descontado o efeito do enxugamento dos bancos públicos, o crédito mal cresce. As taxas de juros, que desciam lentamente dos Himalaias, pararam de cair mais ou menos desde novembro do ano passado.
Além dos defeitos sistêmicos do crédito no Brasil (garantias, cadastros de crédito etc.), há algum problema grave nos bancos, assunto para outro dia, mas um rolo grande o bastante para figuras insuspeitas do mercado começarem a chiar em público sobre a concentração bancária, nome bonito para oligopólio daninho.
É um país em crise de emprego formal, precarização ainda crescente do trabalho, aumento real de salários que parece desacelerar, estoque de crédito em baixa de quase três anos e juros congelados nos picos altos. O Orçamento federal é progressivamente comido por gastos com Previdência e pessoal; ao final de 2019, por aí, mal haverá tostões para reparar a infraestrutura que, sempre escassa, agora vai sendo arruinada sem limite.
Onde estamos com a cabeça?
Democracia e controle do Judiciário - FERNÃO LARA MESQUITA
ESTADÃO - 28/03
No modelo de ‘eleições de retenção’, juiz só se mantém na função se o povo se disser satisfeito
Teve Atenas e teve Roma. Uma fracassou porque não chegou a inventar o recurso à representação, a outra porque inventou a democracia representativa, mas não a fórmula para submeter de fato o representante à vontade dos seus representados. É nesse mesmo “brejo” que nós chafurdamos com 1.500 anos de atraso. Brasília não enxerga os confins do “império”. Os confins do “império” não enxergam Brasília, que só age e legisla em causa própria. E assim os “bárbaros”, de caneta ou de fuzil na mão, nos vão mergulhando na barbárie.
A democracia.3.1 fechou o século 18 afirmando que quem devia mandar era o povo e nenhum poder e nenhum dinheiro poderiam, mais, ser outorgados por um homem a outro homem. Só o que fosse consequência do esforço individual e do merecimento seria aceito. Sendo assim, passaram a eleger diretamente a maioria dos funcionários antes nomeados por políticos de modo a torná-los mais suscetíveis aos destinatários finais dos seus serviços e sujeitos a cobranças e demissões ainda que blindados contra a politicagem.
Mas logo descobriram que quatro anos podiam ser muito, muito tempo. A democracia.3.2 abriu o século 20 estendendo os poderes do cidadão-eleitor para antes e para depois do momento das eleições de modo a dar ampla efetividade ao controle por ele exercido sobre os atos dos seus representantes e funcionários eleitos. Afirmou também, em paralelo, que a liberdade individual é exercida na nossa dimensão de produtores e consumidores e não pode ser garantida senão pela competição entre patrões e fornecedores pela nossa preferência e que, portanto, este devia ser o limite da recompensa econômica ao desempenho individual.
O controle do Judiciário foi sempre o passo mais difícil em cada etapa dessas reformas. Apesar de todas as razões que tornam desejável a independência desse Poder, durou pouco mais de 50 anos, nos Estados Unidos, o sistema de nomeação de juízes que copiava o sistema dos reis europeus (o nosso). Ainda que essa nomeação fosse para uma função vitalícia “enquanto (o agraciado) se comportasse bem”, faltava inventar uma maneira de dar consequência prática a essa ressalva retórica. Na falta dela, a corrupção pegou forte no Poder que podia decidir sobre a liberdade e os bens alheios.
Em 1832 o Estado do Mississippi passou a eleger diretamente os seus juízes. O argumento dos que são contra esse sistema é que obrigá-los a fazer campanha eleitoral deixa os juízes “sujeitos ao poder econômico”. O argumento dos a favor é que “sujeito ao poder econômico todo mundo está” e que, com todos os inconvenientes considerados, eles preferiam que os seus juízes sujeitos ao poder econômico pudessem ser “deseleitos” se dessem sinais dessa sujeição. Até 1861, quando começou a guerra civil, 24 dos 34 Estados da União da época já tinham aderido a esse sistema.
Houve um momento também em que eles consideraram seriamente sujeitar à cassação por referendo apenas as sentenças judiciais que revertessem reformas políticas. O país estava vivendo a sua mais profunda crise, em tudo semelhante à do Brasil de hoje. Tinha passado por um processo de urbanização violento, as cidades estavam à beira do caos, mergulhadas na miséria e no crime, a industrialização tinha dado um poder de corrupção gigantesco a empresários que, mancomunados com juízes e políticos que controlavam havia décadas as máquinas partidárias, impediam a renovação da política e revertiam toda reforma que se conseguia nos Estados e municípios. A campanha de Theodore Roosevelt por um terceiro mandato, em 1912, que abraçava essa bandeira, resumia o sentido da reforma que o ex-presidente empurrara durante dois mandatos anteriores e vinha conquistando o país, cidade por cidade, Estado por Estado, desde a virada do século 19 para o 20: voto distrital puro para amarrar cada representante aos seus representados, eleições primárias diretas para abrir a política à renovação, recall de políticos e funcionários a qualquer momento, referendo das leis dos Legislativos, abertura às leis de iniciativa popular. Começando por Los Angeles em 1903, as inovações vinham do Oeste, onde se estavam fixando os novos self-made men, para o Leste, onde os “interesses especiais” de velhas curriolas estavam enraizados havia mais tempo. A base dessa proposta era que o povo tem o direito de escolher o regime político sob o qual quer viver e, portanto, esse tipo de decisão não devia ser revogável por juízes sem mais apelação.
Eles só conseguiram uma solução intermediária satisfatória a partir de 1940, quando o Estado do Missouri instituiu as “eleições de retenção” de juízes (retention elections). Nesse modelo os juízes continuam a ser selecionados, seja por conselhos especialmente constituídos, seja pelos governadores com confirmação dos Legislativos. Mas só se mantêm na função enquanto o povo, destinatário da justiça que fornecem, se disser satisfeito com o que recebe. Hoje 20 Estados, a cada quatro anos, incluem nas cédulas das eleições majoritárias, ao lado de tudo mais em que se vota diretamente lá (leis de iniciava popular, referendos de leis dos Legislativos, mudanças em impostos, emissão de dívida pública, recall de funcionários, etc.), o nome de todos os juízes da jurisdição de cada eleitor (cíveis e criminais, de primeira instância ou das Supremas Cortes estaduais, equivalentes aos nossos STJs) a pergunta: “O juiz fulano de tal deve permanecer mais quatro anos no cargo”? “Sim” ou “não”. Se vencer o “não”, o juiz é destituído e o sistema põe outro no lugar. Um terço dos juízes americanos ainda são diretamente eleitos e muitos Estados combinam esse sistema ou o de nomeações com as retention elections. Mas juiz onipotente não existe mais em lugar nenhum.
Como na vida real manda quem tem o poder de DEMITIR, nas democracias de verdade quem tem o poder de demitir todo e qualquer servidor público a qualquer momento é o povo. Sem esse direito elementar, todo o resto da conversarada sobre “democracia” é pura tapeação.
*JORNALISTA
No modelo de ‘eleições de retenção’, juiz só se mantém na função se o povo se disser satisfeito
Teve Atenas e teve Roma. Uma fracassou porque não chegou a inventar o recurso à representação, a outra porque inventou a democracia representativa, mas não a fórmula para submeter de fato o representante à vontade dos seus representados. É nesse mesmo “brejo” que nós chafurdamos com 1.500 anos de atraso. Brasília não enxerga os confins do “império”. Os confins do “império” não enxergam Brasília, que só age e legisla em causa própria. E assim os “bárbaros”, de caneta ou de fuzil na mão, nos vão mergulhando na barbárie.
A democracia.3.1 fechou o século 18 afirmando que quem devia mandar era o povo e nenhum poder e nenhum dinheiro poderiam, mais, ser outorgados por um homem a outro homem. Só o que fosse consequência do esforço individual e do merecimento seria aceito. Sendo assim, passaram a eleger diretamente a maioria dos funcionários antes nomeados por políticos de modo a torná-los mais suscetíveis aos destinatários finais dos seus serviços e sujeitos a cobranças e demissões ainda que blindados contra a politicagem.
Mas logo descobriram que quatro anos podiam ser muito, muito tempo. A democracia.3.2 abriu o século 20 estendendo os poderes do cidadão-eleitor para antes e para depois do momento das eleições de modo a dar ampla efetividade ao controle por ele exercido sobre os atos dos seus representantes e funcionários eleitos. Afirmou também, em paralelo, que a liberdade individual é exercida na nossa dimensão de produtores e consumidores e não pode ser garantida senão pela competição entre patrões e fornecedores pela nossa preferência e que, portanto, este devia ser o limite da recompensa econômica ao desempenho individual.
O controle do Judiciário foi sempre o passo mais difícil em cada etapa dessas reformas. Apesar de todas as razões que tornam desejável a independência desse Poder, durou pouco mais de 50 anos, nos Estados Unidos, o sistema de nomeação de juízes que copiava o sistema dos reis europeus (o nosso). Ainda que essa nomeação fosse para uma função vitalícia “enquanto (o agraciado) se comportasse bem”, faltava inventar uma maneira de dar consequência prática a essa ressalva retórica. Na falta dela, a corrupção pegou forte no Poder que podia decidir sobre a liberdade e os bens alheios.
Em 1832 o Estado do Mississippi passou a eleger diretamente os seus juízes. O argumento dos que são contra esse sistema é que obrigá-los a fazer campanha eleitoral deixa os juízes “sujeitos ao poder econômico”. O argumento dos a favor é que “sujeito ao poder econômico todo mundo está” e que, com todos os inconvenientes considerados, eles preferiam que os seus juízes sujeitos ao poder econômico pudessem ser “deseleitos” se dessem sinais dessa sujeição. Até 1861, quando começou a guerra civil, 24 dos 34 Estados da União da época já tinham aderido a esse sistema.
Houve um momento também em que eles consideraram seriamente sujeitar à cassação por referendo apenas as sentenças judiciais que revertessem reformas políticas. O país estava vivendo a sua mais profunda crise, em tudo semelhante à do Brasil de hoje. Tinha passado por um processo de urbanização violento, as cidades estavam à beira do caos, mergulhadas na miséria e no crime, a industrialização tinha dado um poder de corrupção gigantesco a empresários que, mancomunados com juízes e políticos que controlavam havia décadas as máquinas partidárias, impediam a renovação da política e revertiam toda reforma que se conseguia nos Estados e municípios. A campanha de Theodore Roosevelt por um terceiro mandato, em 1912, que abraçava essa bandeira, resumia o sentido da reforma que o ex-presidente empurrara durante dois mandatos anteriores e vinha conquistando o país, cidade por cidade, Estado por Estado, desde a virada do século 19 para o 20: voto distrital puro para amarrar cada representante aos seus representados, eleições primárias diretas para abrir a política à renovação, recall de políticos e funcionários a qualquer momento, referendo das leis dos Legislativos, abertura às leis de iniciativa popular. Começando por Los Angeles em 1903, as inovações vinham do Oeste, onde se estavam fixando os novos self-made men, para o Leste, onde os “interesses especiais” de velhas curriolas estavam enraizados havia mais tempo. A base dessa proposta era que o povo tem o direito de escolher o regime político sob o qual quer viver e, portanto, esse tipo de decisão não devia ser revogável por juízes sem mais apelação.
Eles só conseguiram uma solução intermediária satisfatória a partir de 1940, quando o Estado do Missouri instituiu as “eleições de retenção” de juízes (retention elections). Nesse modelo os juízes continuam a ser selecionados, seja por conselhos especialmente constituídos, seja pelos governadores com confirmação dos Legislativos. Mas só se mantêm na função enquanto o povo, destinatário da justiça que fornecem, se disser satisfeito com o que recebe. Hoje 20 Estados, a cada quatro anos, incluem nas cédulas das eleições majoritárias, ao lado de tudo mais em que se vota diretamente lá (leis de iniciava popular, referendos de leis dos Legislativos, mudanças em impostos, emissão de dívida pública, recall de funcionários, etc.), o nome de todos os juízes da jurisdição de cada eleitor (cíveis e criminais, de primeira instância ou das Supremas Cortes estaduais, equivalentes aos nossos STJs) a pergunta: “O juiz fulano de tal deve permanecer mais quatro anos no cargo”? “Sim” ou “não”. Se vencer o “não”, o juiz é destituído e o sistema põe outro no lugar. Um terço dos juízes americanos ainda são diretamente eleitos e muitos Estados combinam esse sistema ou o de nomeações com as retention elections. Mas juiz onipotente não existe mais em lugar nenhum.
Como na vida real manda quem tem o poder de DEMITIR, nas democracias de verdade quem tem o poder de demitir todo e qualquer servidor público a qualquer momento é o povo. Sem esse direito elementar, todo o resto da conversarada sobre “democracia” é pura tapeação.
*JORNALISTA
Marcha da insensatez está em curso; polícia para quem precisa e ordem na corte! - REINALDO AZEVEDO
REDE TV/UOL - 28/03
Tiros atingem ônibus da caravana de Lula no PR; marcha da insensatez está em curso; polícia para quem precisa e ordem na corte!
A marcha da irresponsabilidade está em curso no país. Atinge o Poder Judiciário, que está na raiz de conflitos de rua, os políticos e setores da imprensa. O episódio mais grave se deu nesta terça feira. Tiros atingiram um dos ônibus da caravana de Lula no Sul do país. Aconteceu na estrada entre Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul, no interior do Paraná. O veículo conduzia blogueiros ligados ao PT e alguns repórteres estrangeiros. Um argentino e um alemão estavam no veículo.
Quem atirou? Será preciso apurar, claro!, mas todos sabem que dificilmente se chegará à autoria. Dia desses afirmei neste blog e também no programa “O É da Coisa”, na BandNews FM, que o capeta escuta as más orações, mesmo que dirigidas a Deus. É claro que se trata de linguagem figurada. O que quero dizer com isso? A retórica violenta, exacerbada, irresponsável mesmo, pode ter consequências.
Canalhas que hoje incentivam a violência com seu discurso asqueroso em blogs, sites, redes sociais e programas de rádio têm de se lembrar que existem malucos dispostos a levar as suas perorações às ultimas consequências. Sempre me opus aos métodos violentos adotados por movimentos como o MST e o MTST. Meu blog vai completar 12 anos no dia 24 de junho. Basta recorrer ao arquivo. E lembrei isso aqui ao censurar as manifestações violentas de adversários do PT contra a caravana liderada por Lula.
Há uma grande diferença entre organizar um grupo para vocalizar palavras de protesto contra o ex-presidente — e isso é parte do jogo democrático — e atacar os ônibus que conduzem petistas com paus, pedras e ovos, tentando impedir a passagem dos veículos. Isso é pra´tica fascistoide. Como sempre foi a dos movimentos citados, que serviam e servem de esbirros do petismo.
As teorias conspiratórias estão à solta, não é? Daqui a pouco recomeça o debate para saber se quem incendiou Roma foi Nero ou se foram os cristãos, para depois botar a culpa no imperador. Ou por outra: aqueles que estavam aplaudindo a violência contra a caravana agora levantam a hipótese — sempre no bueiro do capeta em que se transformaram as redes sociais — de que os próprios petistas atiraram nos veículos para jogar a culpa nos adversários.
Que se investigue. Parece-me que a hipótese não passa de mais um discurso aloprado no meio da insanidade que toma conta do debate público. Até porque os petistas estão, desta feita, verdadeiramente assustados, o que não quer dizer que não vão buscar obter dividendos políticos e até eleitorais com o episódio. Segundo um dirigente, pela primeira vez, a cúpula do partido considera que pode haver pessoas dispostas a matar Lula. E, dadas a forma das caravanas e a violência retórica que tomou conta do ambiente, não seria necessária uma conspiração para esse fim; bastaria o ato tresloucado de um extremista embalado pela onda de sectarismo.
Há tempos tenho chamado a atenção, voz quase solitária até na grande imprensa, para a estupidez em curso no Brasil, que consiste em fazer pouco caso do aparato legal e das regras do jogo. Na manhã desta terça, no dia do ataque a tiros contra o ônibus, escrevi um texto cujo título é este: “Cármen Lúcia, a Toda-Pura do Supremo, não se deu conta de que suas omissões podem ter versão em confrontos de rua. Voto já!”.
No segunda, havia escrito um outro. Título: “Populismo de ministros do STF que deixam pra lá Constituição e bom senso colabora para a intolerância de paus, pedras e ovos”.
Eu tenho, sim, um remédio para pôr ordem na casa. Polícia para quem precisa de polícia. E cumprimento estrito no que está na Constituição. É preciso conter a desordem nas ruas e nos tribunais.
Uma brecha a menos - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 28/03
Exigência de crivo do BC a diretores de bancos federais reduz risco de indicações políticas
O governo decidiu que indicações para cargos de direção em bancos federais passarão a ser submetidas ao crivo do Banco Central. Assim já determina a lei para as demais instituições financeiras, incluindo as privadas e as controladas por governos estaduais.
Fecha-se assim, ao que parece, uma brecha para a nomeação de políticos e seus apadrinhados em postos-chave da máquina estatal, que resulta em desvios e desperdício de recursos públicos.
A lei que criou o BC em 1964 estabelece que diretores de bancos devem ter conhecimento técnico e reputação ilibada —e que os indicados para a função precisam do aval da autoridade monetária antes de começar a trabalhar.
No caso das instituições controladas pelo Tesouro Nacional, porém, basta informar os nomes escolhidos. O Banco Central não tem nenhum poder de veto.
A decisão de mudar esse estado de coisas foi tomada pelo presidente Michel Temer (MDB), em conversa com seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Falta definir se ela será formalizada por decreto ou projeto de lei.
De certa forma, a alteração é uma decorrência natural da aprovação da Lei das Estatais, que foi sancionada pelo presidente há dois anos e impôs critérios mais rigorosos para as nomeações de dirigentes de empresas públicas.
Nesse sentido, a opção do governo deve ser celebrada como um importante reforço nos mecanismos de controle aos quais os bancos federais devem se submeter.
Mas a medida é também uma resposta a problemas mais imediatos que o presidente enfrenta na Caixa Econômica Federal, que podem levar em breve a várias mudanças na cúpula da instituição.
Em janeiro, sob pressão do BC e do Ministério Público, Temer concordou com o afastamento de 4 dos 12 vice-presidentes. Eles são investigados por suspeita de corrupção, e suas funções passaram a ser exercidas por interinos.
Agora, o mandatário cogita substituir o próprio presidente da Caixa, Gilberto Occhi. Funcionário de carreira, deve a indicação ao PP e é cotado para assumir o Ministério da Saúde com a saída de Ricardo Barros, que se demitiu para disputar um mandato de deputado.
Temer e Meirelles deixaram claro nos últimos dias que também têm pretensões eleitorais, e as negociações em andamento com o PP são essenciais para o projeto do presidente de manter a seu lado os partidos da coalizão governista.
Serão necessárias máxima presteza e transparência, portanto, para que o ambiente eleitoral não contamine a discussão essencial sobre as novas normas a serem adotadas nos bancos públicos.
Exigência de crivo do BC a diretores de bancos federais reduz risco de indicações políticas
O governo decidiu que indicações para cargos de direção em bancos federais passarão a ser submetidas ao crivo do Banco Central. Assim já determina a lei para as demais instituições financeiras, incluindo as privadas e as controladas por governos estaduais.
Fecha-se assim, ao que parece, uma brecha para a nomeação de políticos e seus apadrinhados em postos-chave da máquina estatal, que resulta em desvios e desperdício de recursos públicos.
A lei que criou o BC em 1964 estabelece que diretores de bancos devem ter conhecimento técnico e reputação ilibada —e que os indicados para a função precisam do aval da autoridade monetária antes de começar a trabalhar.
No caso das instituições controladas pelo Tesouro Nacional, porém, basta informar os nomes escolhidos. O Banco Central não tem nenhum poder de veto.
A decisão de mudar esse estado de coisas foi tomada pelo presidente Michel Temer (MDB), em conversa com seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Falta definir se ela será formalizada por decreto ou projeto de lei.
De certa forma, a alteração é uma decorrência natural da aprovação da Lei das Estatais, que foi sancionada pelo presidente há dois anos e impôs critérios mais rigorosos para as nomeações de dirigentes de empresas públicas.
Nesse sentido, a opção do governo deve ser celebrada como um importante reforço nos mecanismos de controle aos quais os bancos federais devem se submeter.
Mas a medida é também uma resposta a problemas mais imediatos que o presidente enfrenta na Caixa Econômica Federal, que podem levar em breve a várias mudanças na cúpula da instituição.
Em janeiro, sob pressão do BC e do Ministério Público, Temer concordou com o afastamento de 4 dos 12 vice-presidentes. Eles são investigados por suspeita de corrupção, e suas funções passaram a ser exercidas por interinos.
Agora, o mandatário cogita substituir o próprio presidente da Caixa, Gilberto Occhi. Funcionário de carreira, deve a indicação ao PP e é cotado para assumir o Ministério da Saúde com a saída de Ricardo Barros, que se demitiu para disputar um mandato de deputado.
Temer e Meirelles deixaram claro nos últimos dias que também têm pretensões eleitorais, e as negociações em andamento com o PP são essenciais para o projeto do presidente de manter a seu lado os partidos da coalizão governista.
Serão necessárias máxima presteza e transparência, portanto, para que o ambiente eleitoral não contamine a discussão essencial sobre as novas normas a serem adotadas nos bancos públicos.
Lula, o 'ficha-suja' - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 28/03
Se a Lei da Ficha Limpa vale o papel em que está escrita, o ex-presidente Lula da Silva tornou-se na segunda-feira passada, oficialmente, um “ficha-suja” – isto é, não pode ter sua candidatura a qualquer cargo eletivo aceita pela Justiça Eleitoral, em razão de condenação judicial em duas instâncias.
A ressalva sobre a validade da lei é necessária porque, diante do atual comportamento errático do Judiciário, muitas vezes contrário à própria Constituição, pode ser que a Lei da Ficha Limpa acabe sendo ignorada nos tribunais superiores em favor do poderoso demiurgo de Garanhuns.
Em situação normal, a decisão da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) de negar o derradeiro recurso da defesa de Lula contra a condenação a 12 anos e 1 mês de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, enquadra o ex-presidente na Lei da Ficha Limpa, sem qualquer sombra de dúvida. Conforme o texto da lei, são considerados “ficha suja”, ou seja, inelegíveis, os que, como Lula, forem condenados por corrupção e lavagem de dinheiro “em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”. O órgão judicial colegiado, neste caso, é a 8.ª Turma do TRF-4, composta por três desembargadores, que impuseram a Lula uma nova derrota por 3 a 0.
Mas o País não vive uma situação normal. Nada garante que criativos luminares da hermenêutica jurídica nos tribunais superiores permitam que prevaleça uma interpretação marota da Lei da Ficha Limpa, sob medida para Lula, tornando-a letra morta. Não é difícil imaginar tal desfecho. Basta lembrar que o ex-presidente já poderia estar preso, mas continua livre e verboso graças a uma heterodoxa decisão do Supremo Tribunal Federal, que lhe concedeu generoso salvo-conduto, válido pelo menos até o julgamento de seu pedido de habeas corpus, marcado para o próximo dia 4 – isso se nenhum ministro pedir vista, postergando a conclusão do processo para as calendas.
É claro que os rábulas petistas apostam que os tribunais superiores vão acabar se dobrando às suas chicanas, não apenas para manter Lula fora da cadeia, mas também para viabilizar sua candidatura. A estratégia, explícita, é embaralhar a interpretação da legislação de tal modo que o debate jurídico se arraste até depois das eleições, quando então, imaginam os petistas, haverá o fato consumado da vitória de Lula. “Tecnicamente, ele (Lula) não está inelegível”, disse ao Valor o deputado e advogado petista Wadih Damous (RJ), um dos protagonistas da defesa da presidente cassada Dilma Rousseff no processo de impeachment. “Quem decreta (a inelegibilidade) é o Tribunal Superior Eleitoral. Será uma situação muito interessante, com Lula vencedor no primeiro turno, com milhões de votos, e o Poder Judiciário tendo de decidir se impede a vontade popular.”
Mais uma vez, como já se tornou comum em sua história, o PT lança um repto às instituições, em particular ao Judiciário. E essa provocação é ainda mais escandalosa porque se dá no mesmo momento em que Lula da Silva desfila pelo País a desafiar os juízes e promotores que ousam condená-lo – um deles já foi qualificado de “moleque” pelo ex-presidente, que se considera, nada mais, nada menos, que um “perseguido político”.
Como tudo o que tem envolvido essa epopeia burlesca de Lula da Silva para se safar da Justiça, a tal “caravana” do ex-presidente – oficialmente destinada a “perscrutar a realidade brasileira”, a celebrar “as grandes transformações pelas quais o País passou nos governos petistas” e a denunciar “o deliberado desmonte dos programas e políticas públicas de desenvolvimento e inclusão social, que vem sendo operado pelo governo golpista desde 2016” – não passa de uma farsa destinada a manter o condenado Lula em evidência.
Como demonstração de força, contudo, a “caravana” tem sido até aqui um completo fiasco, ganhando o noticiário apenas em razão dos episódios de violência protagonizados tanto por petistas quanto por seus antípodas. Assim, sem o povo ao seu lado, Lula joga todas as suas fichas na fragilidade das instituições. Para o bem do País, ele não pode ganhar.
Se a Lei da Ficha Limpa vale o papel em que está escrita, o ex-presidente Lula da Silva tornou-se na segunda-feira passada, oficialmente, um “ficha-suja” – isto é, não pode ter sua candidatura a qualquer cargo eletivo aceita pela Justiça Eleitoral, em razão de condenação judicial em duas instâncias.
A ressalva sobre a validade da lei é necessária porque, diante do atual comportamento errático do Judiciário, muitas vezes contrário à própria Constituição, pode ser que a Lei da Ficha Limpa acabe sendo ignorada nos tribunais superiores em favor do poderoso demiurgo de Garanhuns.
Em situação normal, a decisão da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) de negar o derradeiro recurso da defesa de Lula contra a condenação a 12 anos e 1 mês de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, enquadra o ex-presidente na Lei da Ficha Limpa, sem qualquer sombra de dúvida. Conforme o texto da lei, são considerados “ficha suja”, ou seja, inelegíveis, os que, como Lula, forem condenados por corrupção e lavagem de dinheiro “em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”. O órgão judicial colegiado, neste caso, é a 8.ª Turma do TRF-4, composta por três desembargadores, que impuseram a Lula uma nova derrota por 3 a 0.
Mas o País não vive uma situação normal. Nada garante que criativos luminares da hermenêutica jurídica nos tribunais superiores permitam que prevaleça uma interpretação marota da Lei da Ficha Limpa, sob medida para Lula, tornando-a letra morta. Não é difícil imaginar tal desfecho. Basta lembrar que o ex-presidente já poderia estar preso, mas continua livre e verboso graças a uma heterodoxa decisão do Supremo Tribunal Federal, que lhe concedeu generoso salvo-conduto, válido pelo menos até o julgamento de seu pedido de habeas corpus, marcado para o próximo dia 4 – isso se nenhum ministro pedir vista, postergando a conclusão do processo para as calendas.
É claro que os rábulas petistas apostam que os tribunais superiores vão acabar se dobrando às suas chicanas, não apenas para manter Lula fora da cadeia, mas também para viabilizar sua candidatura. A estratégia, explícita, é embaralhar a interpretação da legislação de tal modo que o debate jurídico se arraste até depois das eleições, quando então, imaginam os petistas, haverá o fato consumado da vitória de Lula. “Tecnicamente, ele (Lula) não está inelegível”, disse ao Valor o deputado e advogado petista Wadih Damous (RJ), um dos protagonistas da defesa da presidente cassada Dilma Rousseff no processo de impeachment. “Quem decreta (a inelegibilidade) é o Tribunal Superior Eleitoral. Será uma situação muito interessante, com Lula vencedor no primeiro turno, com milhões de votos, e o Poder Judiciário tendo de decidir se impede a vontade popular.”
Mais uma vez, como já se tornou comum em sua história, o PT lança um repto às instituições, em particular ao Judiciário. E essa provocação é ainda mais escandalosa porque se dá no mesmo momento em que Lula da Silva desfila pelo País a desafiar os juízes e promotores que ousam condená-lo – um deles já foi qualificado de “moleque” pelo ex-presidente, que se considera, nada mais, nada menos, que um “perseguido político”.
Como tudo o que tem envolvido essa epopeia burlesca de Lula da Silva para se safar da Justiça, a tal “caravana” do ex-presidente – oficialmente destinada a “perscrutar a realidade brasileira”, a celebrar “as grandes transformações pelas quais o País passou nos governos petistas” e a denunciar “o deliberado desmonte dos programas e políticas públicas de desenvolvimento e inclusão social, que vem sendo operado pelo governo golpista desde 2016” – não passa de uma farsa destinada a manter o condenado Lula em evidência.
Como demonstração de força, contudo, a “caravana” tem sido até aqui um completo fiasco, ganhando o noticiário apenas em razão dos episódios de violência protagonizados tanto por petistas quanto por seus antípodas. Assim, sem o povo ao seu lado, Lula joga todas as suas fichas na fragilidade das instituições. Para o bem do País, ele não pode ganhar.
terça-feira, março 27, 2018
A República desnuda - HÉLIO GOMES COELHO JUNIOR
GAZETA DO POVO - PR - 27/03
Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado
As águas de março fizeram o Judiciário navegar e encalhar no mesmo brejal em que já estavam metidos e atolados o Executivo e o Legislativo, na medida em que aquele desvelou ser exatamente como os dois outros poderes. Isso se mostra quando o assunto é manter privilégios e criar benesses com o dinheiro dos cidadãos, contemporizar com os seus e condescender com alguns.
No último dia 15, um bom número de juízes federais e um punhado de juízes do Trabalho resolveram simplesmente não cumprir com seus ofícios, dando as costas aos cidadãos e advogados, para pressionar os juízes da suprema corte. Juízes a constranger juízes. Inaceitável é pouco. Intolerável é o menos.
A sonegação da judicatura por um dia, sem rodeios, foi o meio e o modo que as associações dos magistrados encontraram à advertência do seus superiores, lá do Supremo Tribunal Federal, para que não cortassem (na sessão de julgamento designada para o dia 22) o “auxílio-moradia”. Em 2014, ato isolado de um seu ministro, Luiz Fux, “universalizou” a todos os magistrados (federais, trabalhistas, estaduais e militares) um pagamento mensal de R$ 4.377 limpinhos, sem impostos, com fundamento em uma lei complementar de 1979.
É dizer, em clara prestidigitação – nome chique para ilusionismo –, uma liminar (sempre precária) do ministro Fux logrou ver, na balzaquiana lei, o que a míope sociedade não percebera desde 1979 e, abracadabra, pôs no bolso de cada magistrado brasileiro mais de R$ 4 mil, mês a mês e desde 2014. Passou a espetar no dinheiro público uma conta de mais de R$ 5 bilhões, desde então, quando desde é igual a 2014, e então é 2018.
A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram no passado, como a ABI, a CNBB e a OAB
E, como tudo o que é bom para os juízes também é bom para os procuradores, sob o elegante nome de “simetria” que, na boa lógica, equivale à “propriedade da relação que, afirmada entre A e B, pode ser afirmada entre B e A, sem transformação”. O que uma categoria pega a outra se apega.
E o que aconteceu? No dia 22, o ministro Fux, em seu fluente “carioquês”, ao ser interpelado pelo ministro Gilmar Mendes, comunicou à corte que, por conta própria, retirara de pauta o assunto do auxílio-moradia, ante um pedido das associações de classe (de juízes e procuradores) e da Advocacia-Geral da União – que insinuaram manejar o assunto em uma arbitragem –, antecipando o ministro Fux, na sua mambembe justificativa, que há “um débito constitucional da União para com os juízes”. Em um português bem inteligível, quer dizer: fica minha liminar (dada em 2014) até que os interesses corporativos sejam atendidos...
Dinheiro público, precisa ser dito e redito, vem do público privado, pessoas e empresas, que produzem riquezas e pagam impostos para sustentar o Estado e seus servidores.
Deu-se um “jeitinho” de continuar a gastança, que passa de R$ 5 bilhões, por mais alguns meses ou anos. Melhor contar estes em pencas de 12...
Em 21 de março, um dia antes de o Supremo empurrar para baixo do tapete o seu dever de julgar o auxílio-moradia, que queima bilhões e está pendurado em uma liminar dada em 2014, os brasileiros viram e ouviram um diálogo entre pares até então inédito nos quase 200 anos de história do STF (originalmente denominado Supremo Tribunal de Justiça). Durante o embate, veio a revelação de que, entre os 11 membros, há um ministro psicopata e outro ministro advogado militante.
Ou seja, alguns componentes da mais alta corte de Justiça, o secular Supremo Tribunal Federal, não se submetem à serenidade e à urbanidade. Afinal, são comportamentos comezinhos para quem exerce a mais proeminente função judicial, a de bem interpretar a Constituição Federal e a de assegurar a incolumidade do Estado Democrático de Direito.
Fique claríssimo aos cidadãos brasileiros: todos os juízes estão submetidos à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. E ela lhes impõe e exige, além de sereno e urbano agir, o conduzir-se de modo irrepreensível, na vida pública e particular, seja um juiz substituto, seja um ministro.
Não fosse bastante e muito, na mesma sessão do dia 22, quando o auxílio-moradia não foi julgado e sim “negociado”, como fruto de uma paralisação de serviços inexpressiva por parte de alguns juízes, e um dia depois de os brasileiros saberem que há ministros adoentados e advogando administrativamente, o Judiciário fez outra à sociedade.
Em meio a uma sessão longa, o que é absolutamente comum em todos os tribunais brasileiros, e quando tratava de questão singela – aplicar o precedente da própria corte e que houvera sido adotado com o prestígio de “repercussão geral” –, eis que um ministro, exibindo um reles cartão de embarque, despede-se da sessão, pois tinha compromisso importante a cumprir no dia seguinte. A internet expõe a agenda: palestrar às 10h30 do dia seguinte no Rio de Janeiro, em um evento que duraria o dia todo. Não é inadequado supor, para quem frequenta congressos, as naturais acomodações de horários quando um palestrante – ainda mais tão ilustre quanto um ministro – não chega a tempo. Fala mais tarde e o auditório fica cheio, sempre.
O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade
Com a sua saída, a corte descontinuou a sessão, fundada no cansaço, e concedeu um “salvo-conduto”, com prazo de validade até o dia 4 de abril, para um paciente que impetrara um habeas corpus. Fez a corte muito bem, pois, se ela tem cansaço, o paciente não tem culpa, e assim deve ficar a salvo de tribunais quasímodos. Parafraseio o ministro Marco Aurélio: “processo não tem capa, tem conteúdo”. Assim, na lata.
O ministro que voa e a corte que se cansa com as lidas, como costuma acontecer, fez o imaginário social também viajar e deitar olhos críticos à magistratura brasileira, com ênfase em suas sinecuras e benesses: férias de 60 dias; recesso de 18 dias (de 20 de dezembro a 6 de janeiro) aos juízes federais e mais 30 dias (em janeiro) aos ministros das cortes federais (em janeiro, as cortes federais em Brasília ficam em recesso); e um sem-número de penduricalhos como auxílios-moradia, alimentação, transporte, escola e quejandos.
No Paraná, nas águas de março, o Tribunal de Justiça encaminhou à Assembleia Legislativa um anteprojeto que pretende gratificar os juízes que integrem comissões, dirijam fóruns e quetais. Voltando às associações de classe (magistrados, procuradores e afins), em regra, quem as dirige não exerce o ofício, pois são pagos – com todos os benefícios – pelo dinheiro público que advém dos impostos tomados dos particulares, como se “fazendo justiça” estivessem.
Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado.
A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram nos tempos da ditadura militar, dentre eles a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Eram outros tempos, eram outros os condutores. Quem não se recorda, por ter vivido ou estudado, da autoridade intelectual e moral de um Barbosa Lima Sobrinho, um Ivo Lorscheiter e um Raymundo Faoro? Também foram bons coadjuvantes os conselhos de profissões, os sindicatos e as universidades, sem dúvida.
O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade.
As águas de março ficaram mais turvas, sim, mas não será “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, como poetava Tom Jobim.
Constituição debaixo do braço, vamos à liça, para que saiamos o quanto antes do estabelecido “finge que me engana que eu finjo que acredito”.
A república está nua e, pior, feia, com a devida vênia.
Hélio Gomes Coelho Júnior, advogado e professor da Escola de Direito da PUCPR, é presidente do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e vice-presidente do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados Brasileiros.
Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado
As águas de março fizeram o Judiciário navegar e encalhar no mesmo brejal em que já estavam metidos e atolados o Executivo e o Legislativo, na medida em que aquele desvelou ser exatamente como os dois outros poderes. Isso se mostra quando o assunto é manter privilégios e criar benesses com o dinheiro dos cidadãos, contemporizar com os seus e condescender com alguns.
No último dia 15, um bom número de juízes federais e um punhado de juízes do Trabalho resolveram simplesmente não cumprir com seus ofícios, dando as costas aos cidadãos e advogados, para pressionar os juízes da suprema corte. Juízes a constranger juízes. Inaceitável é pouco. Intolerável é o menos.
A sonegação da judicatura por um dia, sem rodeios, foi o meio e o modo que as associações dos magistrados encontraram à advertência do seus superiores, lá do Supremo Tribunal Federal, para que não cortassem (na sessão de julgamento designada para o dia 22) o “auxílio-moradia”. Em 2014, ato isolado de um seu ministro, Luiz Fux, “universalizou” a todos os magistrados (federais, trabalhistas, estaduais e militares) um pagamento mensal de R$ 4.377 limpinhos, sem impostos, com fundamento em uma lei complementar de 1979.
É dizer, em clara prestidigitação – nome chique para ilusionismo –, uma liminar (sempre precária) do ministro Fux logrou ver, na balzaquiana lei, o que a míope sociedade não percebera desde 1979 e, abracadabra, pôs no bolso de cada magistrado brasileiro mais de R$ 4 mil, mês a mês e desde 2014. Passou a espetar no dinheiro público uma conta de mais de R$ 5 bilhões, desde então, quando desde é igual a 2014, e então é 2018.
A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram no passado, como a ABI, a CNBB e a OAB
E, como tudo o que é bom para os juízes também é bom para os procuradores, sob o elegante nome de “simetria” que, na boa lógica, equivale à “propriedade da relação que, afirmada entre A e B, pode ser afirmada entre B e A, sem transformação”. O que uma categoria pega a outra se apega.
E o que aconteceu? No dia 22, o ministro Fux, em seu fluente “carioquês”, ao ser interpelado pelo ministro Gilmar Mendes, comunicou à corte que, por conta própria, retirara de pauta o assunto do auxílio-moradia, ante um pedido das associações de classe (de juízes e procuradores) e da Advocacia-Geral da União – que insinuaram manejar o assunto em uma arbitragem –, antecipando o ministro Fux, na sua mambembe justificativa, que há “um débito constitucional da União para com os juízes”. Em um português bem inteligível, quer dizer: fica minha liminar (dada em 2014) até que os interesses corporativos sejam atendidos...
Dinheiro público, precisa ser dito e redito, vem do público privado, pessoas e empresas, que produzem riquezas e pagam impostos para sustentar o Estado e seus servidores.
Deu-se um “jeitinho” de continuar a gastança, que passa de R$ 5 bilhões, por mais alguns meses ou anos. Melhor contar estes em pencas de 12...
Em 21 de março, um dia antes de o Supremo empurrar para baixo do tapete o seu dever de julgar o auxílio-moradia, que queima bilhões e está pendurado em uma liminar dada em 2014, os brasileiros viram e ouviram um diálogo entre pares até então inédito nos quase 200 anos de história do STF (originalmente denominado Supremo Tribunal de Justiça). Durante o embate, veio a revelação de que, entre os 11 membros, há um ministro psicopata e outro ministro advogado militante.
Ou seja, alguns componentes da mais alta corte de Justiça, o secular Supremo Tribunal Federal, não se submetem à serenidade e à urbanidade. Afinal, são comportamentos comezinhos para quem exerce a mais proeminente função judicial, a de bem interpretar a Constituição Federal e a de assegurar a incolumidade do Estado Democrático de Direito.
Fique claríssimo aos cidadãos brasileiros: todos os juízes estão submetidos à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. E ela lhes impõe e exige, além de sereno e urbano agir, o conduzir-se de modo irrepreensível, na vida pública e particular, seja um juiz substituto, seja um ministro.
Não fosse bastante e muito, na mesma sessão do dia 22, quando o auxílio-moradia não foi julgado e sim “negociado”, como fruto de uma paralisação de serviços inexpressiva por parte de alguns juízes, e um dia depois de os brasileiros saberem que há ministros adoentados e advogando administrativamente, o Judiciário fez outra à sociedade.
Em meio a uma sessão longa, o que é absolutamente comum em todos os tribunais brasileiros, e quando tratava de questão singela – aplicar o precedente da própria corte e que houvera sido adotado com o prestígio de “repercussão geral” –, eis que um ministro, exibindo um reles cartão de embarque, despede-se da sessão, pois tinha compromisso importante a cumprir no dia seguinte. A internet expõe a agenda: palestrar às 10h30 do dia seguinte no Rio de Janeiro, em um evento que duraria o dia todo. Não é inadequado supor, para quem frequenta congressos, as naturais acomodações de horários quando um palestrante – ainda mais tão ilustre quanto um ministro – não chega a tempo. Fala mais tarde e o auditório fica cheio, sempre.
O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade
Com a sua saída, a corte descontinuou a sessão, fundada no cansaço, e concedeu um “salvo-conduto”, com prazo de validade até o dia 4 de abril, para um paciente que impetrara um habeas corpus. Fez a corte muito bem, pois, se ela tem cansaço, o paciente não tem culpa, e assim deve ficar a salvo de tribunais quasímodos. Parafraseio o ministro Marco Aurélio: “processo não tem capa, tem conteúdo”. Assim, na lata.
O ministro que voa e a corte que se cansa com as lidas, como costuma acontecer, fez o imaginário social também viajar e deitar olhos críticos à magistratura brasileira, com ênfase em suas sinecuras e benesses: férias de 60 dias; recesso de 18 dias (de 20 de dezembro a 6 de janeiro) aos juízes federais e mais 30 dias (em janeiro) aos ministros das cortes federais (em janeiro, as cortes federais em Brasília ficam em recesso); e um sem-número de penduricalhos como auxílios-moradia, alimentação, transporte, escola e quejandos.
No Paraná, nas águas de março, o Tribunal de Justiça encaminhou à Assembleia Legislativa um anteprojeto que pretende gratificar os juízes que integrem comissões, dirijam fóruns e quetais. Voltando às associações de classe (magistrados, procuradores e afins), em regra, quem as dirige não exerce o ofício, pois são pagos – com todos os benefícios – pelo dinheiro público que advém dos impostos tomados dos particulares, como se “fazendo justiça” estivessem.
Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado.
A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram nos tempos da ditadura militar, dentre eles a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Eram outros tempos, eram outros os condutores. Quem não se recorda, por ter vivido ou estudado, da autoridade intelectual e moral de um Barbosa Lima Sobrinho, um Ivo Lorscheiter e um Raymundo Faoro? Também foram bons coadjuvantes os conselhos de profissões, os sindicatos e as universidades, sem dúvida.
O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade.
As águas de março ficaram mais turvas, sim, mas não será “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, como poetava Tom Jobim.
Constituição debaixo do braço, vamos à liça, para que saiamos o quanto antes do estabelecido “finge que me engana que eu finjo que acredito”.
A república está nua e, pior, feia, com a devida vênia.
Hélio Gomes Coelho Júnior, advogado e professor da Escola de Direito da PUCPR, é presidente do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e vice-presidente do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados Brasileiros.
O indivíduo ausente - CARLOS ANDREAZZA
O GLOBO - 27/03
Nada difere a PUC das universidades públicas aparelhadas por PT, PCdoB, PSOL etc.; nada difere a PUC, por exemplo, da Uerj
Sob a manchete “Distribuição de jornal gera confusão entre estudantes da PUC-RJ”, este O GLOBO noticiou, em 19 de março, o que nem como eufemismo poderia ser compreendido por mero tumulto — salvo se intimidação, restrição ao direito de ir e vir, assalto à liberdade de expressão e agressão física tiverem mudado de sentido.
Sejamos claros: naquela sexta-feira, dois jovens foram empastelados, escarrados, barbaramente impedidos de fazer circular uma publicação e chamados de fascistas por difundirem conteúdo que em nada — absolutamente nada — afronta a lei brasileira, isso enquanto os agressores destruíam exemplares do jornal (com apoio de ao menos um professor) a não mais que 20 metros da porta de uma universidade. Há vídeos.
É difícil contar a quantidade de crimes cometidos ali. Nenhum deles pelos dois estudantes vítimas da blitzkrieg. Ao que se deve somar a miséria moral de a PUC não haver se manifestado — pública e enfaticamente — contra o ato de censura cometido, à porta de seu campus, por seus alunos contra seus alunos; pusilanimidade que entendo como chancela. Não terá sido a primeira vez — mas ainda chegarei lá.
Sim, li a edição violentada de “O Universitário”, publicação do Centro Dom Bosco, para imediatamente, sem surpresa, mapear o que se passara: um jornal que seja católico, que aponte a degradação ideológica da vida universitária, que discuta criticamente a questão de gênero, que trate do projeto de tomada do Estado por um partido político e que, sobretudo, traga uma entrevista com Olavo de Carvalho e fale de Jair Bolsonaro sem histeria — esse jornal simplesmente não pode existir.
A nota asquerosa do Centro Acadêmico de Comunicação Social da PUC a respeito é autoexplicativa porque expõe o triunfo da mentalidade revolucionária em operar transtornos perceptivos como o que autoriza que as práticas verdadeiramente criminosas — as movidas contra os dois estudantes — sejam defendidas como virtuosas, e a expressão divergente, cerne da liberdade, como gesto de intolerância e opressão. A julgar pelo texto, os princípios éticos que fundamentam a formação de comunicadores no Brasil são os mesmos que dissolveram as fronteiras entre jornalismo e militância. Pelo tom do panfleto, entendi também que o diretório fala em nome da universidade. Reproduzo os trechos a seguir conforme publicados no Facebook do centro acadêmico — também para que possamos nos alarmar com o semianalfabetismo em terceiro grau:
“(...) Se atentarem aos textos impressos verão que nenhum deles se tratam de notícias reais — suas informações carecem de fontes —, mas de opiniões próprias com a intenção de confundir e doutrinar a opinião do universitário. Não há a certeza que chegam a ser opiniões, talvez sejam apenas oposições, já que os textos pouco tem a falar sobre política, apenas tem a intenção de ofender e criticar os valores quais eles atribuem ao comunismo. (...) Escrevemos esse texto para deixar claro que NÃO SERÁ ACEITO a divulgação de mensagens do tipo em nossa universidade. A PUC-Rio é uma universidade plural que presta assistência a um número enorme de alunos, a utilização da imagem cristã para a divulgação de preconceitos é uma mancha para todo o trabalho que a universidade se propõe há tantos anos. (...)”
Estudei na PUC. Minha mais insistente lembrança é a do modo sossegado como se comerciava e consumia drogas na vila dos diretórios — enclave controlado por partidos políticos, eficaz centro de doutrinação de jovens dentro de uma instituição privada à qual pais pagam fortunas em troca de instrução independente aos filhos. Nada, porém, difere a PUC das universidades públicas aparelhadas por PT, PCdoB, PSOL etc.; nada difere a PUC, por exemplo, da Uerj, igualmente anticristãs, matrizes do pensamento único. Sinto-me à vontade para falar sobre “o trabalho que a universidade se propõe há tantos anos”, seguramente não plural, naturalmente hostil ao contraditório — e que não poderia ter melhor representação que o silêncio cúmplice ante a interdição de um jornal católico à porta de uma instituição católica. Isso, repito, tem história. Ou já nos teremos esquecido de “O indivíduo”?
Em 1997, seus editores foram grotescamente proibidos de distribuí-lo na PUC, cercados por dezenas de bandidos infiltrados entre os alunos (estudantes profissionais bancados por partidos), agredidos e submetidos ao espetáculo nazista de assistirem à queima de exemplares do jornal numa fogueira. E o que fez, então, a reitoria? Nada de punição aos bárbaros; mas um serviço a eles: comandou a apreensão do que sobrara da publicação. Uma afronta à memória de seus fundadores, os monumentais Cardeal Leme e Padre Leonel Franca, e — já que nada mudou em 20 anos — um convite à pergunta: quando a Pontifícia Universidade Católica voltará a ser católica?
Carlos Andreazza é editor de livros
Humor de perdição - JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 27/03
Será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?
1. Até quando teremos Ricky Gervais? Sim, falo do humorista britânico, autor e ator de uma das grandes comédias da história da TV (a série "The Office"), e que regressou aos palcos, sete anos depois, para um novo espetáculo de standy-up comedy.
O resultado, disponível na Netflix, é "Humanity". E, se eu pergunto até quando teremos Ricky Gervais com liberdade absoluta para fazer humor, é por duas razões fundamentais.
A primeira lida com os temas que Ricky Gervais escolhe. Hoje, é fácil fazer piadas politicamente corretas com alvos politicamente corretos —como a religião cristã ou qualquer político conservador. Nesse quesito, Ricky Gervais não é exceção: haverá coisa mais divertida do que o criacionismo fanático?
Mas o humorista vai mais longe, ao tocar nas vacas sagrados do momento --como os direitos das minorias (sobre os transexuais, como a famosa Caitlyn Jenner, Ricky confessa: "Se eu resolvesse mudar quem sou, era mais fácil para mim ser gorila do que mulher") ou o sentimentalismo dos adultos com as crianças ("Por favor, não me mostre mais fotos dos seus filhos, exceto se eles forem sequestrados").
Sem falar da maior vaca sagrada de todas —a ideia delirante de que o povo é puro e sábio nas suas decisões ou opiniões ("Vamos remover os avisos de 'Não beba' das garrafas de lixívia e, dois anos depois, fazemos um novo referendo sobre o brexit, ok?").
Para cabeças simples, Gervais é transfóbico, homofóbico, antihumanista e antidemocrata. Mas será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?
Esse é o segundo motivo para assistirmos a "Humanity": as piadas são boas, mas o melhor do espectáculo está nas reflexões sérias que Gervais vai fazendo sobre o clima de "indignação automática" que define o nosso tempo.
O leitor conhece: alguém diz algo; alguém se ofende com algo; alguém tenta proibir o que foi dito.
Antigamente, os adultos seguiam em frente quando viam algo de que não gostavam. Hoje, acrescenta Gervais, são incapazes de lidar com isso porque imaginam que as suas "identidades" —políticas, sexuais, religiosas etc.— são a coisa mais importante do mundo. Quando foi que nos tornamos tão infantis e narcísicos?
Não sei. Mas sei que assistir a "Humanity", sentirmos as nossas crenças atacadas e ainda rirmos com isso é um verdadeiro teste de maturidade.
2. Fazer uma piada com distúrbios psíquicos não é para qualquer um. Mas Ruben Östlund não é qualquer um.
Em "The Square - A Arte da Discórdia", temos um personagem que sofre de síndrome de Tourette. Ele está sentado na audiência, escutando uma conversa no palco entre uma curadora de arte pretensiosa e um artista pretensioso.
E, quando escuta as frases de ambos, a sua coprolalia é mais forte do que ele: há comentários em voz alta com obscenidades à mistura.
O artista fala da sua obra e ele dispara: "Lixo!" A curadora faz uma nova pergunta ao artista —e o homem vai metralhando a donzela com considerações anatômicas que podemos facilmente imaginar na boca do sr. Harvey Weinstein (quando usava robe).
A audiência está incomodada. A curadora e o artista também. Mas, quando alguém se atreve a criticar a atitude do homem, há sempre um benemérito que pede respeito e tolerância. Aquilo é doença.
É o melhor momento do filme. Não apenas por razões literais —o contraste insólito entre a seriedade do diálogo e o despropósito daquelas frases— mas porque Östlund consegue, metaforicamente falando, resumir o espírito do filme em uma única cena: uma crítica à arte conceitual contemporânea, aos seus promotores e aos seus artistas (o artista pretensioso, vestindo blazer e pijama, é uma óbvia paródia a Julian Schnabel).
O homem com Tourette é uma espécie de bobo moderno. Não no sentido pejorativo do termo; no sentido histórico, cultural, medieval. Tal como os bobos antigos, que diziam as verdades ao rei em clima de farsa, o "bobo" do filme também diz as suas verdades —aquelas que o nosso superego reprime— mostrando à audiência que o rei, na verdade, está nu.
Confesso: "The Square - A Arte da Discórdia" não está ao mesmo nível da obra anterior de Östlund ("Força Maior", uma história sutil sobre o animal escondido e amedrontado que existe em nós).
Mas brindo a um diretor "progressista" que prefere perder vários amigos a perder a piada.
João Pereira Coutinho - É escritor português e doutor em ciência política.
Será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?
1. Até quando teremos Ricky Gervais? Sim, falo do humorista britânico, autor e ator de uma das grandes comédias da história da TV (a série "The Office"), e que regressou aos palcos, sete anos depois, para um novo espetáculo de standy-up comedy.
O resultado, disponível na Netflix, é "Humanity". E, se eu pergunto até quando teremos Ricky Gervais com liberdade absoluta para fazer humor, é por duas razões fundamentais.
A primeira lida com os temas que Ricky Gervais escolhe. Hoje, é fácil fazer piadas politicamente corretas com alvos politicamente corretos —como a religião cristã ou qualquer político conservador. Nesse quesito, Ricky Gervais não é exceção: haverá coisa mais divertida do que o criacionismo fanático?
Mas o humorista vai mais longe, ao tocar nas vacas sagrados do momento --como os direitos das minorias (sobre os transexuais, como a famosa Caitlyn Jenner, Ricky confessa: "Se eu resolvesse mudar quem sou, era mais fácil para mim ser gorila do que mulher") ou o sentimentalismo dos adultos com as crianças ("Por favor, não me mostre mais fotos dos seus filhos, exceto se eles forem sequestrados").
Sem falar da maior vaca sagrada de todas —a ideia delirante de que o povo é puro e sábio nas suas decisões ou opiniões ("Vamos remover os avisos de 'Não beba' das garrafas de lixívia e, dois anos depois, fazemos um novo referendo sobre o brexit, ok?").
Para cabeças simples, Gervais é transfóbico, homofóbico, antihumanista e antidemocrata. Mas será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?
Esse é o segundo motivo para assistirmos a "Humanity": as piadas são boas, mas o melhor do espectáculo está nas reflexões sérias que Gervais vai fazendo sobre o clima de "indignação automática" que define o nosso tempo.
O leitor conhece: alguém diz algo; alguém se ofende com algo; alguém tenta proibir o que foi dito.
Antigamente, os adultos seguiam em frente quando viam algo de que não gostavam. Hoje, acrescenta Gervais, são incapazes de lidar com isso porque imaginam que as suas "identidades" —políticas, sexuais, religiosas etc.— são a coisa mais importante do mundo. Quando foi que nos tornamos tão infantis e narcísicos?
Não sei. Mas sei que assistir a "Humanity", sentirmos as nossas crenças atacadas e ainda rirmos com isso é um verdadeiro teste de maturidade.
2. Fazer uma piada com distúrbios psíquicos não é para qualquer um. Mas Ruben Östlund não é qualquer um.
Em "The Square - A Arte da Discórdia", temos um personagem que sofre de síndrome de Tourette. Ele está sentado na audiência, escutando uma conversa no palco entre uma curadora de arte pretensiosa e um artista pretensioso.
E, quando escuta as frases de ambos, a sua coprolalia é mais forte do que ele: há comentários em voz alta com obscenidades à mistura.
O artista fala da sua obra e ele dispara: "Lixo!" A curadora faz uma nova pergunta ao artista —e o homem vai metralhando a donzela com considerações anatômicas que podemos facilmente imaginar na boca do sr. Harvey Weinstein (quando usava robe).
A audiência está incomodada. A curadora e o artista também. Mas, quando alguém se atreve a criticar a atitude do homem, há sempre um benemérito que pede respeito e tolerância. Aquilo é doença.
É o melhor momento do filme. Não apenas por razões literais —o contraste insólito entre a seriedade do diálogo e o despropósito daquelas frases— mas porque Östlund consegue, metaforicamente falando, resumir o espírito do filme em uma única cena: uma crítica à arte conceitual contemporânea, aos seus promotores e aos seus artistas (o artista pretensioso, vestindo blazer e pijama, é uma óbvia paródia a Julian Schnabel).
O homem com Tourette é uma espécie de bobo moderno. Não no sentido pejorativo do termo; no sentido histórico, cultural, medieval. Tal como os bobos antigos, que diziam as verdades ao rei em clima de farsa, o "bobo" do filme também diz as suas verdades —aquelas que o nosso superego reprime— mostrando à audiência que o rei, na verdade, está nu.
Confesso: "The Square - A Arte da Discórdia" não está ao mesmo nível da obra anterior de Östlund ("Força Maior", uma história sutil sobre o animal escondido e amedrontado que existe em nós).
Mas brindo a um diretor "progressista" que prefere perder vários amigos a perder a piada.
João Pereira Coutinho - É escritor português e doutor em ciência política.
As saúvas, a política e o corporativismo - NATHAN BLANCHE
ESTADÃO - 27/03
Eventual afrouxamento das amarras fiscais na Constituição é ameaça à expansão econômica
Como venho alertando desde o ano passado, o caminho que trilham as contas públicas do Brasil é muito perigoso. O risco de os gastos federais romperem o teto constitucional, principalmente a partir de 2019, alimenta as suspeitas de descontrole das despesas públicas e a retomada da discussão sobre a solvência fiscal do País.
O fracasso da reforma da Previdência foi o tiro de misericórdia do Congresso Nacional, pois ela é condição necessária, ainda que insuficiente, para evitar a ruptura das normas constitucionais já a partir do ano que vem. Em 2016, ano anterior à vigência do teto dos gastos, as despesas previdenciárias do Regime Geral representavam 41% do Orçamento da União, tendo subido para 44% em 2017, o primeiro ano de vigência do teto. Sem uma dura reforma da Previdência essa tendência crescente deve fazer com que esses gastos superem pouco mais da metade do Orçamento entre 2021 e 2022.
O crescimento explosivo dos dispêndios da Previdência tem sido o maior responsável pelo aumento do déficit da Seguridade Social, que em 2017 atingiu 4,4% do produto interno bruto (PIB) – R$ 292,4 bilhões –, ante um déficit de 4,1% do PIB em 2016, apresentando, portanto, piora, mesmo com o PIB tendo crescido 1% no ano passado.
Nesse período, as despesas discricionárias, que incluem o custeio dos serviços públicos (excluindo pessoal) e os investimentos em capital, foram reduzidas de 22,7% para 19,7% das despesas totais do governo. Na ausência da reforma da Previdência e sendo a única variável de ajuste, essas despesas sofrerão cortes sucessivos para sustentar o teto do gasto, encolhendo para 13% em 2022 (supondo queda real anual de 10% desse gasto). A retração dos investimentos públicos teve impacto decisivo para a queda da formação bruta de capital fixo, que sofreu retração da ordem de 30% no período de 2014 a 2017.
Infelizmente, há sinais de que políticos e assessores de possíveis presidenciáveis estudam formas de driblar os mandamentos fiscais, com a possível flexibilização da regra de ouro e do teto do gasto, o que seria uma forma de proteger o próximo presidente de eventual crime de responsabilidade. Um eventual afrouxamento das amarras fiscais presentes na Constituição, especialmente antes de reformas essenciais, deve elevar a percepção de risco dos agentes com relação à questão fiscal, ameaçando a consolidação do ciclo de expansão econômica.
A era das escolhas fáceis ficou para trás. Ou o Brasil acaba com a “saúva” ou a “saúva” acaba com o Brasil. A classe política deve incorporar de uma vez por todas o conceito econômico de restrição orçamentária e sinalizar para a sociedade brasileira que os recursos são escassos e devem ser, portanto, alvo de escolhas alocativas. Cada real gasto com a Previdência, por exemplo, significará menos real gasto em educação, saúde e segurança ou em infraestrutura. Cabe à política intermediar essa disputa por recursos. A responsabilidade fiscal deve ser, portanto, um valor de toda a sociedade, independentemente de ideologias ou de preferências alocativas.
Daí a importância de se mobilizar o apoio dos mais variados segmentos à continuidade da atual agenda reformista, desde classes representativas dos trabalhadores e empresários até demais organizações da sociedade civil e impressa. A economia política brasileira no pós-Constituição de 1988 gerou um desequilíbrio perverso para o desenvolvimento sustentável. A crescente demanda pela presença do Estado nas mais diversas searas resultou em aumento do endividamento público e da carga tributária. Essas duas saídas não têm viabilidade no futuro.
O risco fiscal latente, em conjunto com a falta de legitimidade da classe política para exigir maior esforço da sociedade para fechar as contas, aponta para a necessidade de eleger prioridades.
A solução para a crise fiscal não se encontra apenas no plano econômico. Na verdade, a restauração da normalidade democrática e a recuperação da legitimidade da classe política são essenciais para o debate em torno das prioridades da sociedade brasileira no futuro.
A “bagunça” no âmbito institucional, resultado do desentendimento entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a corrupção sistêmica e a tentativa do funcionalismo público e do Judiciário de frear mudanças para manutenção de seus privilégios e interesses corporativos resultam na total falta de credibilidade, perante a sociedade, não somente do Congresso Nacional, mas também da capacidade das lideranças políticas de fazerem uma boa gestão dos recursos públicos. Em meio a esse complicado cenário socioeconômico temos as eleições presidenciais e legislativas deste ano.
É imperativo o surgimento de uma coalizão político-partidária que apresente um programa de governo baseado em diagnóstico que combine reformas econômicas necessárias para garantir não apenas o crescimento econômico sustentável, mas o aumento da eficiência do Estado na provisão de serviços públicos essenciais para uma sociedade civilizada.
A eventual eleição de populistas de esquerda ou de direita deve ter um custo econômico muito elevado. Não se trata de escolher o novo messias, mas de criar mecanismos para superar a herança maldita de 13 anos de poder dos ditos socialistas populistas da América latina.
A calmaria com a economia brasileira pode ser pontual. Se o caminho da política econômica responsável e a agenda de reformas forem abandonados, o País voltará a trilhar o caminho da bancarrota, da estagnação e da inflação, com elevados custos sociais.
O jogo presidencial é o divisor de águas. Uma escolha equivocada deixará um legado amargo por muito tempo. Que a sociedade, formadores de opinião e líderes políticos estejam à altura dos desafios impostos por esse momento-chave da História brasileira.
*SÓCIO-DIRETOR DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA INTEGRADA
Eventual afrouxamento das amarras fiscais na Constituição é ameaça à expansão econômica
Como venho alertando desde o ano passado, o caminho que trilham as contas públicas do Brasil é muito perigoso. O risco de os gastos federais romperem o teto constitucional, principalmente a partir de 2019, alimenta as suspeitas de descontrole das despesas públicas e a retomada da discussão sobre a solvência fiscal do País.
O fracasso da reforma da Previdência foi o tiro de misericórdia do Congresso Nacional, pois ela é condição necessária, ainda que insuficiente, para evitar a ruptura das normas constitucionais já a partir do ano que vem. Em 2016, ano anterior à vigência do teto dos gastos, as despesas previdenciárias do Regime Geral representavam 41% do Orçamento da União, tendo subido para 44% em 2017, o primeiro ano de vigência do teto. Sem uma dura reforma da Previdência essa tendência crescente deve fazer com que esses gastos superem pouco mais da metade do Orçamento entre 2021 e 2022.
O crescimento explosivo dos dispêndios da Previdência tem sido o maior responsável pelo aumento do déficit da Seguridade Social, que em 2017 atingiu 4,4% do produto interno bruto (PIB) – R$ 292,4 bilhões –, ante um déficit de 4,1% do PIB em 2016, apresentando, portanto, piora, mesmo com o PIB tendo crescido 1% no ano passado.
Nesse período, as despesas discricionárias, que incluem o custeio dos serviços públicos (excluindo pessoal) e os investimentos em capital, foram reduzidas de 22,7% para 19,7% das despesas totais do governo. Na ausência da reforma da Previdência e sendo a única variável de ajuste, essas despesas sofrerão cortes sucessivos para sustentar o teto do gasto, encolhendo para 13% em 2022 (supondo queda real anual de 10% desse gasto). A retração dos investimentos públicos teve impacto decisivo para a queda da formação bruta de capital fixo, que sofreu retração da ordem de 30% no período de 2014 a 2017.
Infelizmente, há sinais de que políticos e assessores de possíveis presidenciáveis estudam formas de driblar os mandamentos fiscais, com a possível flexibilização da regra de ouro e do teto do gasto, o que seria uma forma de proteger o próximo presidente de eventual crime de responsabilidade. Um eventual afrouxamento das amarras fiscais presentes na Constituição, especialmente antes de reformas essenciais, deve elevar a percepção de risco dos agentes com relação à questão fiscal, ameaçando a consolidação do ciclo de expansão econômica.
A era das escolhas fáceis ficou para trás. Ou o Brasil acaba com a “saúva” ou a “saúva” acaba com o Brasil. A classe política deve incorporar de uma vez por todas o conceito econômico de restrição orçamentária e sinalizar para a sociedade brasileira que os recursos são escassos e devem ser, portanto, alvo de escolhas alocativas. Cada real gasto com a Previdência, por exemplo, significará menos real gasto em educação, saúde e segurança ou em infraestrutura. Cabe à política intermediar essa disputa por recursos. A responsabilidade fiscal deve ser, portanto, um valor de toda a sociedade, independentemente de ideologias ou de preferências alocativas.
Daí a importância de se mobilizar o apoio dos mais variados segmentos à continuidade da atual agenda reformista, desde classes representativas dos trabalhadores e empresários até demais organizações da sociedade civil e impressa. A economia política brasileira no pós-Constituição de 1988 gerou um desequilíbrio perverso para o desenvolvimento sustentável. A crescente demanda pela presença do Estado nas mais diversas searas resultou em aumento do endividamento público e da carga tributária. Essas duas saídas não têm viabilidade no futuro.
O risco fiscal latente, em conjunto com a falta de legitimidade da classe política para exigir maior esforço da sociedade para fechar as contas, aponta para a necessidade de eleger prioridades.
A solução para a crise fiscal não se encontra apenas no plano econômico. Na verdade, a restauração da normalidade democrática e a recuperação da legitimidade da classe política são essenciais para o debate em torno das prioridades da sociedade brasileira no futuro.
A “bagunça” no âmbito institucional, resultado do desentendimento entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a corrupção sistêmica e a tentativa do funcionalismo público e do Judiciário de frear mudanças para manutenção de seus privilégios e interesses corporativos resultam na total falta de credibilidade, perante a sociedade, não somente do Congresso Nacional, mas também da capacidade das lideranças políticas de fazerem uma boa gestão dos recursos públicos. Em meio a esse complicado cenário socioeconômico temos as eleições presidenciais e legislativas deste ano.
É imperativo o surgimento de uma coalizão político-partidária que apresente um programa de governo baseado em diagnóstico que combine reformas econômicas necessárias para garantir não apenas o crescimento econômico sustentável, mas o aumento da eficiência do Estado na provisão de serviços públicos essenciais para uma sociedade civilizada.
A eventual eleição de populistas de esquerda ou de direita deve ter um custo econômico muito elevado. Não se trata de escolher o novo messias, mas de criar mecanismos para superar a herança maldita de 13 anos de poder dos ditos socialistas populistas da América latina.
A calmaria com a economia brasileira pode ser pontual. Se o caminho da política econômica responsável e a agenda de reformas forem abandonados, o País voltará a trilhar o caminho da bancarrota, da estagnação e da inflação, com elevados custos sociais.
O jogo presidencial é o divisor de águas. Uma escolha equivocada deixará um legado amargo por muito tempo. Que a sociedade, formadores de opinião e líderes políticos estejam à altura dos desafios impostos por esse momento-chave da História brasileira.
*SÓCIO-DIRETOR DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA INTEGRADA
O preço do desastre petista - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 27/03
Se tivessem sido geridos de acordo com as regras e os critérios observados por instituições vinculadas a empresas privadas, os fundos de pensão que atendem empregados de estatais federais poderiam ter obtido rendimento muito maior do que registraram. Só em 2016, os ganhos poderiam ter sido R$ 85 bilhões maiores do que os efetivamente alcançados pelos fundos das estatais; apenas três deles – Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), Petros (da Petrobrás) e Funcef (da Caixa Econômica Federal) – poderiam ter auferido rendimento adicional estimado em R$ 75 bilhões.
Os cálculos resultam de auditoria realizada por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), cujas conclusões foram aprovadas pelo plenário da Corte de Contas. Além disso, o TCU exigiu dos conselhos deliberativos dos fundos de pensão vinculados a empresas estatais que tiveram os piores desempenhos o envio do cálculo das perdas, que afetaram tanto as patrocinadoras como os empregados participantes dessas instituições de previdência complementar.
O relatório do TCU se baseou num método racional e de grande simplicidade: a comparação da evolução do patrimônio de todos os fundos de pensão em operação no País entre julho de 2006 e maio de 2017, pois todos operam no mesmo mercado, dispõem das mesmas opções de investimentos e estão sujeitos às mesmas regras e restrições administrativas e financeiras. Os auditores do TCU aferiram o rendimento alcançado por instituições vinculadas a estatais e o obtido por fundos de empresas privadas. Obviamente, haverá diferenças entre o rendimento alcançado por um fundo e outro, por causa da diferente composição de suas carteiras e do poder de negociação de cada um. O que se verificou, porém, foi uma diferença gritante de resultados.
Em 2016, enquanto o patrimônio dos 305 fundos privados aumentou 4%, o dos 88 fundos de estatais teve perda de 15%. Aquele foi o ano em que, por meio do impeachment de Dilma Rousseff, o País se livrou da aventura lulopetista, mas ainda sofria as consequências de decisões irresponsáveis do longo período em que o Estado brasileiro foi tomado por organizações criminosas a serviço de partidos políticos e suas ideologias. Como a Petrobrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros órgãos vinculados à administra pública federal, os fundos de pensão foram transformados em instrumentos financeiros e políticos para atender aos objetivos da gestão lulopetista.
Por sua grande capacidade financeira, os fundos das estatais serviram primeiro como alavanca e depois como esteio de projetos de interesse ideológico. Dominados pelo PT e aliados, que indicavam os ocupantes de seus principais cargos deliberativos e executivos, os fundos das estatais, sobretudo os maiores, foram forçados a investir maciçamente em empresas e programas de nítido viés político e de rentabilidade no mínimo duvidosa. Tiveram de participar de consórcios que disputaram as concessões de serviços públicos e investir em empresas escolhidas pelo governo do PT. O resultado concreto dessa irresponsabilidade com o uso de dinheiro destinado a assegurar a aposentadoria dos empregados das estatais é o que foi apontado pelo relatório do TCU.
Entre os investimentos feitos por esses fundos estão os destinados à empresa Sete Brasil, criada no governo Lula como parte de seu projeto megalômano de exploração do petróleo do pré-sal. Citada na Operação Lava Jato, a Sete Brasil entrou com pedido de recuperação judicial em abril de 2016, ocasião em que a empresa listou dívidas de R$ 18 bilhões, sendo cerca de R$ 12 bilhões concentrados em bancos estatais e fundos de pensão de empresas estatais. Outras empresas investigadas em operações policiais por suspeitas de fraude – além da Lava Jato, elas são alvo das operações Greenfield, Sépsis e Cui Bono? –, como empreiteiras e estaleiros, fazem parte da lista daquelas em que, a mando do governo do PT, os fundos estatais investiram. E perderam.
Se tivessem sido geridos de acordo com as regras e os critérios observados por instituições vinculadas a empresas privadas, os fundos de pensão que atendem empregados de estatais federais poderiam ter obtido rendimento muito maior do que registraram. Só em 2016, os ganhos poderiam ter sido R$ 85 bilhões maiores do que os efetivamente alcançados pelos fundos das estatais; apenas três deles – Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), Petros (da Petrobrás) e Funcef (da Caixa Econômica Federal) – poderiam ter auferido rendimento adicional estimado em R$ 75 bilhões.
Os cálculos resultam de auditoria realizada por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), cujas conclusões foram aprovadas pelo plenário da Corte de Contas. Além disso, o TCU exigiu dos conselhos deliberativos dos fundos de pensão vinculados a empresas estatais que tiveram os piores desempenhos o envio do cálculo das perdas, que afetaram tanto as patrocinadoras como os empregados participantes dessas instituições de previdência complementar.
O relatório do TCU se baseou num método racional e de grande simplicidade: a comparação da evolução do patrimônio de todos os fundos de pensão em operação no País entre julho de 2006 e maio de 2017, pois todos operam no mesmo mercado, dispõem das mesmas opções de investimentos e estão sujeitos às mesmas regras e restrições administrativas e financeiras. Os auditores do TCU aferiram o rendimento alcançado por instituições vinculadas a estatais e o obtido por fundos de empresas privadas. Obviamente, haverá diferenças entre o rendimento alcançado por um fundo e outro, por causa da diferente composição de suas carteiras e do poder de negociação de cada um. O que se verificou, porém, foi uma diferença gritante de resultados.
Em 2016, enquanto o patrimônio dos 305 fundos privados aumentou 4%, o dos 88 fundos de estatais teve perda de 15%. Aquele foi o ano em que, por meio do impeachment de Dilma Rousseff, o País se livrou da aventura lulopetista, mas ainda sofria as consequências de decisões irresponsáveis do longo período em que o Estado brasileiro foi tomado por organizações criminosas a serviço de partidos políticos e suas ideologias. Como a Petrobrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros órgãos vinculados à administra pública federal, os fundos de pensão foram transformados em instrumentos financeiros e políticos para atender aos objetivos da gestão lulopetista.
Por sua grande capacidade financeira, os fundos das estatais serviram primeiro como alavanca e depois como esteio de projetos de interesse ideológico. Dominados pelo PT e aliados, que indicavam os ocupantes de seus principais cargos deliberativos e executivos, os fundos das estatais, sobretudo os maiores, foram forçados a investir maciçamente em empresas e programas de nítido viés político e de rentabilidade no mínimo duvidosa. Tiveram de participar de consórcios que disputaram as concessões de serviços públicos e investir em empresas escolhidas pelo governo do PT. O resultado concreto dessa irresponsabilidade com o uso de dinheiro destinado a assegurar a aposentadoria dos empregados das estatais é o que foi apontado pelo relatório do TCU.
Entre os investimentos feitos por esses fundos estão os destinados à empresa Sete Brasil, criada no governo Lula como parte de seu projeto megalômano de exploração do petróleo do pré-sal. Citada na Operação Lava Jato, a Sete Brasil entrou com pedido de recuperação judicial em abril de 2016, ocasião em que a empresa listou dívidas de R$ 18 bilhões, sendo cerca de R$ 12 bilhões concentrados em bancos estatais e fundos de pensão de empresas estatais. Outras empresas investigadas em operações policiais por suspeitas de fraude – além da Lava Jato, elas são alvo das operações Greenfield, Sépsis e Cui Bono? –, como empreiteiras e estaleiros, fazem parte da lista daquelas em que, a mando do governo do PT, os fundos estatais investiram. E perderam.
segunda-feira, março 26, 2018
Juventude interrompida - CARLOS ALBERTO DI FRANCO
ESTADÃO - 26/03
Ativo precioso, ela não pode ser sequestrada. Dos jovens depende o futuro do Brasil
O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo transmito uma experiência recorrente: família, ética, empreendedorismo e valores aumentam o índice de leitura. Dão ibope. Num de meus últimos artigos tratei da crise da família. Recebi muitos e-mails, sem dúvida uma bela amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.
Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Falar com a sociedade real. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática.
Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito do descaso com os jovens, da perversa interrupção da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. O título deste artigo está inspirado em recente reportagem especial do jornal O Estado de S. Paulo: Juventude interrompida.
Juliana Diógenes, enviada especial do jornal a Codó e Timbiras (Maranhão), conta algumas histórias dramaticamente rotineiras. Raquel (nome fictício) observa a massinha de modelar entre as mãos e brinca de criar formas enquanto fala sobre o dia em que foi estuprada, aos 10 anos, em Cajazeiras, distrito onde mora na zonal rural de Codó. O rapaz, então com 19 anos, fugiu. Aos 13, foi morar com Raimundo, um pedreiro de 35 anos que conheceu na casa vizinha. E engravidou novamente. E a vida segue.
Pobreza, desorientação e gravidez precoce interrompem a infância e sequestram a juventude. A gravidez precoce é hoje no Brasil a maior causa da evasão escolar de garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez precoce afeta até quem mal saiu da infância.
O senador José Serra, quando ministro da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, foi curto e grosso ao analisar as principais causas da gravidez precoce: “É um absurdo acreditar que a criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser careta, mas responsável”. O então ministro responsabilizou a programação das TVs, considerando absurdas as cenas de sexo. “Já morei em dez países e em nenhum deles vi tanta exploração de sexo”, concluiu Serra. A preocupação do então ministro, cuja trajetória pessoal e política não combina com histerias conservadoras, era compreensível e lógica. Apoiava-se, afinal, no bom senso e na força dos fatos. De lá para cá, infelizmente, as coisas não melhoraram.
A culpa, no entanto, não é só da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País seja definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.
O governo, assustado com o aumento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.
Atualmente, graças ao impacto da televisão e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Com o apoio das próprias mães, fascinadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida “adulta” e sórdida. Promovidas a modelos, e privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultas. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.
As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com inúmeras novelas e com programas de auditório que fazem da exaltação do sexo bizarro uma alavanca de audiência. A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento e de investir em programação de qualidade.
A juventude é um ativo precioso. Não pode ser interrompida e sequestrada. Dela depende o futuro do Brasil.
* Jornalista.
Ativo precioso, ela não pode ser sequestrada. Dos jovens depende o futuro do Brasil
O leitor é o melhor termômetro para medir a temperatura do cidadão comum. Tomar o seu pulso equivale a uma pesquisa qualitativa informal. Aos que há anos me honram com sua leitura neste espaço opinativo transmito uma experiência recorrente: família, ética, empreendedorismo e valores aumentam o índice de leitura. Dão ibope. Num de meus últimos artigos tratei da crise da família. Recebi muitos e-mails, sem dúvida uma bela amostragem de opinião pública, sobretudo considerando o rico mosaico etário, profissional e social dos remetentes.
Neste Brasil sacudido por uma brutal crise ética, alimentada pelo cinismo e pela mentira dos que deveriam dar exemplo de integridade, há, felizmente, uma ampla classe média sintonizada com valores e princípios que podem fazer a diferença. E nós, jornalistas, devemos escrever para a classe média. Falar com a sociedade real. Nela reside o alicerce da estabilidade democrática.
Escreva algo, sublinhavam alguns dos e-mails que recebi, a respeito do descaso com os jovens, da perversa interrupção da juventude. Meu artigo de hoje, caro leitor, foi pautado por você. O título deste artigo está inspirado em recente reportagem especial do jornal O Estado de S. Paulo: Juventude interrompida.
Juliana Diógenes, enviada especial do jornal a Codó e Timbiras (Maranhão), conta algumas histórias dramaticamente rotineiras. Raquel (nome fictício) observa a massinha de modelar entre as mãos e brinca de criar formas enquanto fala sobre o dia em que foi estuprada, aos 10 anos, em Cajazeiras, distrito onde mora na zonal rural de Codó. O rapaz, então com 19 anos, fugiu. Aos 13, foi morar com Raimundo, um pedreiro de 35 anos que conheceu na casa vizinha. E engravidou novamente. E a vida segue.
Pobreza, desorientação e gravidez precoce interrompem a infância e sequestram a juventude. A gravidez precoce é hoje no Brasil a maior causa da evasão escolar de garotas de 15 a 17 anos. Dados da Unesco mostram que, das jovens dessa faixa etária que abandonaram os estudos, 25% alegaram a gravidez como motivo. Complicações decorrentes da gestação e do parto são a terceira causa de morte entre as adolescentes, atrás apenas de acidentes de trânsito e homicídios. A gravidez precoce afeta até quem mal saiu da infância.
O senador José Serra, quando ministro da Saúde do governo Fernando Henrique Cardoso, foi curto e grosso ao analisar as principais causas da gravidez precoce: “É um absurdo acreditar que a criança vá ter maturidade para ter um filho com essa idade. Pregar a abstinência sexual de meninas de 11 a 14 anos não significa ser careta, mas responsável”. O então ministro responsabilizou a programação das TVs, considerando absurdas as cenas de sexo. “Já morei em dez países e em nenhum deles vi tanta exploração de sexo”, concluiu Serra. A preocupação do então ministro, cuja trajetória pessoal e política não combina com histerias conservadoras, era compreensível e lógica. Apoiava-se, afinal, no bom senso e na força dos fatos. De lá para cá, infelizmente, as coisas não melhoraram.
A culpa, no entanto, não é só da TV, que, frequentemente, apresenta bons programas. É de todos nós – governantes, formadores de opinião e pais de família –, que, num exercício de anticidadania, aceitamos que o País seja definido mundo afora como o paraíso do sexo fácil, barato, descartável. É triste, para não dizer trágico, ver o Brasil ser citado como um oásis excitante para os turistas que querem satisfazer suas taras e fantasias sexuais com crianças e adolescentes. Reportagens denunciando redes de prostituição infantil, algumas promovidas com o conhecimento ou até mesmo com a participação de autoridades públicas, crescem à sombra da impunidade.
O governo, assustado com o aumento da gravidez precoce e com o crescente descaso dos usuários da camisinha, investe pesadamente nas campanhas em defesa do preservativo. A estratégia não funciona. Afinal, milhões de reais já foram gastos num inglório combate aos efeitos. A raiz do problema, independentemente da irritação que eu possa despertar em certas falanges politicamente corretas, está na onda de baixaria e vulgaridade que tomou conta do ambiente nacional. Hoje, diariamente, na televisão, nos outdoors, nas mensagens publicitárias, o sexo foi guindado à condição de produto de primeira necessidade.
Atualmente, graças ao impacto da televisão e da internet, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência e aberrações do qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Com o apoio das próprias mães, fascinadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo prematuramente condenadas a uma vida “adulta” e sórdida. Promovidas a modelos, e privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo, consumindo e falando como adultas. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida. Por isso a multiplicação de descobertas de redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das consequências criminosas da escalada de erotização infantil promovida por alguns setores do negócio do entretenimento.
As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com inúmeras novelas e com programas de auditório que fazem da exaltação do sexo bizarro uma alavanca de audiência. A iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil são, de fato, o resultado da cultura da promiscuidade que está aí. Sem nenhum moralismo, creio que chegou a hora de dar nome aos bois, de repensar o setor de entretenimento e de investir em programação de qualidade.
A juventude é um ativo precioso. Não pode ser interrompida e sequestrada. Dela depende o futuro do Brasil.
* Jornalista.
Algoritmos e idiotas corretos - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 26/03
O politicamente correto destruiu nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual
Tive o prazer de rever alguns episódios da primeira temporada da série "House", realizada em 2004 —portanto, 14 anos trás.
Também tive a oportunidade de participar de uma reunião numa grande produtora de audiovisual, em que analisávamos roteiros de um programa realizado em 2011. Portanto, sete anos atrás.
Em ambos os casos, uma constatação terrível: de lá pra cá, a censura do politicamente correto destruiu em muito nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual. Tanto a primeira temporada de "House" quanto os roteiros discutidos na produtora seriam, hoje, pesadamente censurados ou cairiam na condição de objetos de linchamento público nas mídias sociais e nos espaços institucionais.
Os movimentos sociais, sempre de natureza totalitária, desde sua raiz, destruiriam esses conteúdos e seus criadores.
Fala-se pouco disso porque os agentes dessa destruição foram, em sua maioria, os próprios produtores de conteúdo e suas agências.
Não foi necessário nenhum fascista de fora, bastaram os de dentro mesmo. E um fascista é sempre um bem-intencionado.
Não há espaço mais totalitário do que os equipamentos culturais e seus agentes. E a história falhou feio em trazer à tona um aspecto essencial de todos os projetos totalitários desde a Revolução Francesa de 1789 até hoje.
Que aspecto é esse?
A característica essencial —e escondida— de se achar uma instância produtora do bem.
Toda mente totalitária parte do pressuposto de que ela é um agente do bem de todos.
É impressionante o fato de que ainda hoje seríamos capazes de produzir esquemas de tortura e destruição da liberdade de agir e de pensar da mesma forma que "irmãos" como Lênin, Hitler, Trotsky ou Stálin fizeram.
Intelectuais e agentes políticos pregam, ainda que com certa reserva (manipulando o vocabulário), projetos de "violência criadora", fingindo que não estão propondo um massacre dos "contrarrevolucionários".
Mas voltemos ao fenômeno descrito na abertura desta coluna.
Num espaço de 7 a 14 anos, toda uma gama de temas e formulações argumentativas foi, simplesmente, expulsa do debate público.
Você gostaria que eu reproduzisse alguns deles aqui?
Estamos em 2018, e a censura do politicamente correto caça todo mundo o tempo todo.
A coisa piorou muito nos últimos sete anos. Mesmo agentes do Poder Judiciário se juntaram ao esquema destrutivo da liberdade de pensamento no país. Nos EUA, ainda é pior —basta ver a histeria coletiva em Hollywood. Mas —vamos chegar lá— basta observar o comportamento dos ditos "progressistas" nos espaços institucionais.
Não vou reproduzir as formulações argumentativas malditas.
Quando se atua hoje no debate público, sabe-se muito bem que a malta de censores se traveste de ovelhas por toda parte, sonhando em beber seu sangue.
O mundo sempre foi povoado por canalhas. Mas, hoje, esses canalhas conseguiram fingir que não existem.
O processo de destruição do pensamento e dos gestos pelo politicamente correto avança em direção à pura e simples criminalização destes mesmos pensamentos e gestos.
Eu disse que não iria reproduzir essas formulações argumentativas, mas posso adiantar um dos temas em que regredimos à mais pura e total censura e estupidez —estupidez essa que deixaria os inquisidores medievais impressionados com a decisão contemporânea de mentir sobre a realidade a fim de sustentar uma "doutrina" falsa sobre esta mesma realidade.
Um dos temas que mais sofre ataques dos fascistas de dentro é o universo dos vínculos afetivos entre homens e mulheres.
As mentiras politicamente corretas nessa área são tantas, que os mais jovens crescem num ambiente crescente de desarticulação dos afetos, desarticulação essa patrocinada pela mídia, pela arte, pela publicidade, pela universidade e por muitos praticantes da própria psicologia.
O que pensará alguém do século 22 que venha analisar nossos roteiros de 2018? O futuro pertencerá aos idiotas corretos e aos algoritmos? Serão estes a única esperança de inteligência na face da Terra?
O politicamente correto destruiu nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual
Tive o prazer de rever alguns episódios da primeira temporada da série "House", realizada em 2004 —portanto, 14 anos trás.
Também tive a oportunidade de participar de uma reunião numa grande produtora de audiovisual, em que analisávamos roteiros de um programa realizado em 2011. Portanto, sete anos atrás.
Em ambos os casos, uma constatação terrível: de lá pra cá, a censura do politicamente correto destruiu em muito nossa capacidade de reflexão pública no formato audiovisual. Tanto a primeira temporada de "House" quanto os roteiros discutidos na produtora seriam, hoje, pesadamente censurados ou cairiam na condição de objetos de linchamento público nas mídias sociais e nos espaços institucionais.
Os movimentos sociais, sempre de natureza totalitária, desde sua raiz, destruiriam esses conteúdos e seus criadores.
Fala-se pouco disso porque os agentes dessa destruição foram, em sua maioria, os próprios produtores de conteúdo e suas agências.
Não foi necessário nenhum fascista de fora, bastaram os de dentro mesmo. E um fascista é sempre um bem-intencionado.
Não há espaço mais totalitário do que os equipamentos culturais e seus agentes. E a história falhou feio em trazer à tona um aspecto essencial de todos os projetos totalitários desde a Revolução Francesa de 1789 até hoje.
Que aspecto é esse?
A característica essencial —e escondida— de se achar uma instância produtora do bem.
Toda mente totalitária parte do pressuposto de que ela é um agente do bem de todos.
É impressionante o fato de que ainda hoje seríamos capazes de produzir esquemas de tortura e destruição da liberdade de agir e de pensar da mesma forma que "irmãos" como Lênin, Hitler, Trotsky ou Stálin fizeram.
Intelectuais e agentes políticos pregam, ainda que com certa reserva (manipulando o vocabulário), projetos de "violência criadora", fingindo que não estão propondo um massacre dos "contrarrevolucionários".
Mas voltemos ao fenômeno descrito na abertura desta coluna.
Num espaço de 7 a 14 anos, toda uma gama de temas e formulações argumentativas foi, simplesmente, expulsa do debate público.
Você gostaria que eu reproduzisse alguns deles aqui?
Estamos em 2018, e a censura do politicamente correto caça todo mundo o tempo todo.
A coisa piorou muito nos últimos sete anos. Mesmo agentes do Poder Judiciário se juntaram ao esquema destrutivo da liberdade de pensamento no país. Nos EUA, ainda é pior —basta ver a histeria coletiva em Hollywood. Mas —vamos chegar lá— basta observar o comportamento dos ditos "progressistas" nos espaços institucionais.
Não vou reproduzir as formulações argumentativas malditas.
Quando se atua hoje no debate público, sabe-se muito bem que a malta de censores se traveste de ovelhas por toda parte, sonhando em beber seu sangue.
O mundo sempre foi povoado por canalhas. Mas, hoje, esses canalhas conseguiram fingir que não existem.
O processo de destruição do pensamento e dos gestos pelo politicamente correto avança em direção à pura e simples criminalização destes mesmos pensamentos e gestos.
Eu disse que não iria reproduzir essas formulações argumentativas, mas posso adiantar um dos temas em que regredimos à mais pura e total censura e estupidez —estupidez essa que deixaria os inquisidores medievais impressionados com a decisão contemporânea de mentir sobre a realidade a fim de sustentar uma "doutrina" falsa sobre esta mesma realidade.
Um dos temas que mais sofre ataques dos fascistas de dentro é o universo dos vínculos afetivos entre homens e mulheres.
As mentiras politicamente corretas nessa área são tantas, que os mais jovens crescem num ambiente crescente de desarticulação dos afetos, desarticulação essa patrocinada pela mídia, pela arte, pela publicidade, pela universidade e por muitos praticantes da própria psicologia.
O que pensará alguém do século 22 que venha analisar nossos roteiros de 2018? O futuro pertencerá aos idiotas corretos e aos algoritmos? Serão estes a única esperança de inteligência na face da Terra?
Encontro anual com o leão - MARCIA DESSEN
FOLHA DE SP - 26/03
Aproveite a tarefa da declaração para fazer uma DR consigo mesmo
Ir ao dentista todo ano não é a única coisa chata que precisamos fazer. O encontro forçado com a Receita Federal é outro bom exemplo. O leão, mascote escolhido para representar o trabalho de fiscalização da Receita, sinaliza que o assunto é coisa séria. O respeitado rei dos animais é agressivo, mas não ataca sem avisar.
Conheço muita gente que entrega essa tarefa para um contador e, ao fazer isso, perde a chance de uma excelente reflexão acerca das suas finanças, analisar o que fez com todo o dinheiro que ganhou e
refletir se poderia ter feito melhor.
A declaração anual do Imposto de Renda fotografa nossa situação financeira no dia 31 de dezembro de cada ano e compara com a fotografia tirada na mesma data do ano anterior, apontando se e quanto
cresceu o nosso patrimônio.
Se olharmos além dos números, teremos a chance de analisar o que eles revelam, já que retratam as decisões que tomamos em relação aos rendimentos que ganhamos naquele ano. Se não houve crescimento patrimonial em relação ao ano anterior, é forte o indício de que estamos transferindo para terceiros a riqueza que poderia ser nossa.
Se o patrimônio cresceu, cenário que deixa o leão mais alerta, é preciso explicar de onde vieram os recursos financeiros que patrocinaram o aumento de riqueza e se os impostos, quando devidos, foram pagos.
Omitir informações nunca é boa estratégia quando o interlocutor é a Receita. A rede de “informantes” dela é impressionante! Recebe informação de tudo (quase tudo) o que acontece com cada CPF ou CNPJ, nos âmbitos municipal, estadual e federal.
Conexão com cartórios permite checar as transações de compra e venda de bens imóveis; nos Detrans fica sabendo do registro de veículos, motos, barcos e até jet skis; os bancos, uma das principais fontes de informação da Receita, revelam as transações financeiras em conta-corrente, cartões de débito e crédito, além das aplicações e empréstimos.
Nas empresas em geral rastreia a renda que recebemos (folha de pagamentos, FGTS, INSS, IR retido na fonte) e cruza com transações de compra e venda de mercadorias e serviços em geral, mediante emissão de nota fiscal eletrônica ou digital.
Em resumo, a Receita quer saber se nossos rendimentos assalariados e outras fontes de renda são suficientes para explicar os inúmeros pagamentos feitos ao longo do ano, além de justificar o
crescimento patrimonial declarado.
Para tirar proveito da tarefa obrigatória de juntar toda a papelada e informações necessárias, dedique algum tempo para entender osnúmeros e o que eles revelam.
Os rendimentos auferidos relacionam tudo o que recebemos no exercício fiscal em análise: trabalho assalariado, rendimentos de aplicações financeiras, renda de aluguéis de imóveis, doações recebidas. O número final totaliza a renda auferida num ano inteiro, advindo das diversas fontes de renda. Surpreenda-se com o número, todo esse dinheiro passou por suas mãos! O que foi feito dele? Consumo puro ou aproveitou para engordar seu patrimônio?
A ficha dos bens e direitos revela nosso patrimônio: imóvel residencial, imóveis alugados, veículos, ativos financeiros, planos de previdência. Aproveite para analisar se a rentabilidade dos investimentos foi adequada. A taxa Selic bruta, acumulada em 2017, foi 10,11%, esse foi o custo de oportunidade, parâmetro que deve ser usado para avaliar o retorno dos seus investimentos.
Qual foi o retorno da sua carteira de investimento? Se foi muito abaixo desse parâmetro, mexa-se, avalie o que precisa mudar para melhor a rentabilidade. Das duas uma: ou a rentabilidade está baixa ou o custo está alto. Faça algo para melhorar esse resultado. É o seu patrimônio! Se você não cuidar dele, quem vai? O contador? Acho que não...
Quanto o seu patrimônio cresceu em razão de recursos poupados? Suponha que sua renda anual tenha sido de R$ 100 mil e que R$ 20 mil foram destinados a novos investimentos. Essa foi sua capacidade de poupança (20%) e sinaliza que você se esforçou para ampliar seu patrimônio. Bom trabalho!
Aproveite o encontro com o leão, encontre benefício nessa tarefa mesmo que seja feita com a ajuda de um contador. Reflita sobre o significado do dinheiro na sua vida e avalie se está sendo usado de forma coerente, alinhada aos seus propósitos e valores.
Aproveite a tarefa da declaração para fazer uma DR consigo mesmo
Ir ao dentista todo ano não é a única coisa chata que precisamos fazer. O encontro forçado com a Receita Federal é outro bom exemplo. O leão, mascote escolhido para representar o trabalho de fiscalização da Receita, sinaliza que o assunto é coisa séria. O respeitado rei dos animais é agressivo, mas não ataca sem avisar.
Conheço muita gente que entrega essa tarefa para um contador e, ao fazer isso, perde a chance de uma excelente reflexão acerca das suas finanças, analisar o que fez com todo o dinheiro que ganhou e
refletir se poderia ter feito melhor.
A declaração anual do Imposto de Renda fotografa nossa situação financeira no dia 31 de dezembro de cada ano e compara com a fotografia tirada na mesma data do ano anterior, apontando se e quanto
cresceu o nosso patrimônio.
Se olharmos além dos números, teremos a chance de analisar o que eles revelam, já que retratam as decisões que tomamos em relação aos rendimentos que ganhamos naquele ano. Se não houve crescimento patrimonial em relação ao ano anterior, é forte o indício de que estamos transferindo para terceiros a riqueza que poderia ser nossa.
Se o patrimônio cresceu, cenário que deixa o leão mais alerta, é preciso explicar de onde vieram os recursos financeiros que patrocinaram o aumento de riqueza e se os impostos, quando devidos, foram pagos.
Omitir informações nunca é boa estratégia quando o interlocutor é a Receita. A rede de “informantes” dela é impressionante! Recebe informação de tudo (quase tudo) o que acontece com cada CPF ou CNPJ, nos âmbitos municipal, estadual e federal.
Conexão com cartórios permite checar as transações de compra e venda de bens imóveis; nos Detrans fica sabendo do registro de veículos, motos, barcos e até jet skis; os bancos, uma das principais fontes de informação da Receita, revelam as transações financeiras em conta-corrente, cartões de débito e crédito, além das aplicações e empréstimos.
Nas empresas em geral rastreia a renda que recebemos (folha de pagamentos, FGTS, INSS, IR retido na fonte) e cruza com transações de compra e venda de mercadorias e serviços em geral, mediante emissão de nota fiscal eletrônica ou digital.
Em resumo, a Receita quer saber se nossos rendimentos assalariados e outras fontes de renda são suficientes para explicar os inúmeros pagamentos feitos ao longo do ano, além de justificar o
crescimento patrimonial declarado.
Para tirar proveito da tarefa obrigatória de juntar toda a papelada e informações necessárias, dedique algum tempo para entender osnúmeros e o que eles revelam.
Os rendimentos auferidos relacionam tudo o que recebemos no exercício fiscal em análise: trabalho assalariado, rendimentos de aplicações financeiras, renda de aluguéis de imóveis, doações recebidas. O número final totaliza a renda auferida num ano inteiro, advindo das diversas fontes de renda. Surpreenda-se com o número, todo esse dinheiro passou por suas mãos! O que foi feito dele? Consumo puro ou aproveitou para engordar seu patrimônio?
A ficha dos bens e direitos revela nosso patrimônio: imóvel residencial, imóveis alugados, veículos, ativos financeiros, planos de previdência. Aproveite para analisar se a rentabilidade dos investimentos foi adequada. A taxa Selic bruta, acumulada em 2017, foi 10,11%, esse foi o custo de oportunidade, parâmetro que deve ser usado para avaliar o retorno dos seus investimentos.
Qual foi o retorno da sua carteira de investimento? Se foi muito abaixo desse parâmetro, mexa-se, avalie o que precisa mudar para melhor a rentabilidade. Das duas uma: ou a rentabilidade está baixa ou o custo está alto. Faça algo para melhorar esse resultado. É o seu patrimônio! Se você não cuidar dele, quem vai? O contador? Acho que não...
Quanto o seu patrimônio cresceu em razão de recursos poupados? Suponha que sua renda anual tenha sido de R$ 100 mil e que R$ 20 mil foram destinados a novos investimentos. Essa foi sua capacidade de poupança (20%) e sinaliza que você se esforçou para ampliar seu patrimônio. Bom trabalho!
Aproveite o encontro com o leão, encontre benefício nessa tarefa mesmo que seja feita com a ajuda de um contador. Reflita sobre o significado do dinheiro na sua vida e avalie se está sendo usado de forma coerente, alinhada aos seus propósitos e valores.
O DPVAT nos dias de hoje - ANTONIO PENTEADO MENDONÇA
O Estado de S. Paulo - 26/03
O DPVAT, o seguro obrigatório de veículos, mudou de cara. Está, pelo segundo ano consecutivo, mais barato. Quer dizer então que havia coisa errada? Não necessariamente dentro da Seguradora Líder, mas que havia, havia, tanto que no último ano foram identificadas e bloqueadas 17.550 tentativas de fraude.
O grande problema do DPVAT não é baixar o preço, é aumentar a indenização. Seria mais racional, mais útil e socialmente mais eficiente. Mas para isso acontecer é necessário se votar uma lei no Congresso Nacional e é aí que mora o perigo. Com os deputados e senadores que temos não se sabe o que pode sair e por isso ninguém quer correr o risco de encaminhar o projeto de lei indispensável para a grande mudança que o seguro realmente precisa.
O capital segurado do DPVAT, já faz alguns anos, está ancorado R$ 13,5 mil para morte e para invalidez permanente. Poderia ser mais alto. Se, em vez de abaixar o preço do seguro, fosse possível aumentar o valor das indenizações por meio de medida administrativa da Superintendência de Seguros Privados (Susep), as indenizações poderiam estar próximas de R$ 20 mil.
O DPVAT é consequência do fracasso e da bandalheira que correu solta num seguro de responsabilidade civil obrigatório para veículos, o Recovat. Em 1974, o governo decidiu agir e acabou o Recovat, colocando no seu lugar o DPVAT. Ao longo destes anos o DPVAT atravessou diferentes momentos, tanto no funcionamento, como na forma de comercialização.
No desenho atual, uma seguradora criada para isso administra um consórcio do qual fazem parte várias outras seguradoras, com a finalidade específica de gerenciar o seguro obrigatório de veículos.
Com a criação da Seguradora Líder, o DPVAT passou a ter uma gestão 100% focada nele, o que melhorou muito todos os seus indicadores e, principalmente, a sua transparência.
É assim que, ao longo dos últimos anos, foram aperfeiçoados os sistemas de controle e identificadas irregularidades que, sanadas, permitiram a Susep reduzir o preço do seguro por dois anos seguidos.
O que ninguém levou em conta é que essa redução, indiferente para o proprietário de veículo, causou uma perda de bilhões de reais para milhões de brasileiros que dependem do governo para não morrerem. 45% do faturamento do DPVAT é destinado ao SUS. Com as duas reduções do preço do seguro, em 2017 e 2018, a saúde pública brasileira, que mal e mal se mantém nas pernas, está deixando de faturar mais de R$ 5 bilhões, mas isso não comove os burocratas que tratam do assunto porque eles têm planos de saúde privados abrangentes que os retiram das filas dos hospitais públicos.
Em função da significativa perda de receita, a Seguradora Líder aperfeiçoou suas ferramentas de gestão e, por conta delas, identificou 17.550 tentativas de fraude, economizando R$ 222 milhões, que deixaram de ser indevidamente pagos a quem não tinha direito a recebê-los.
Indenizações. Em 2017, foram pagas 383 mil indenizações, totalizando R$ 1,7 mil para as vítimas de acidentes de trânsito e seus beneficiários. O dado apavorante é que deste total 290 mil indenizações foram pagas em função de acidentes com motocicletas. A maioria aconteceu no Nordeste e o maior número de vítimas foi de jovens do sexo masculino.
Basta ver na televisão a forma como as motocicletas são usadas no Nordeste para se entender a razão dos números acima. Motos transportando três ou quatro pessoas, além de um cachorro, são cenas comuns.
Enquanto essa realidade não for combatida com seriedade é pouco provável que os números da tragédia das ruas brasileiras melhorem. Mas não é só aí que o governo falha. Enquanto as estradas federais forem pistas de prova para veículos fora de estrada, com buracos e crateras se sucedendo por milhares de quilômetros, não há o que fazer, o brasileiro vai continuar morrendo em acidentes de trânsito. E seu único amparo será o DPVAT.
O DPVAT, o seguro obrigatório de veículos, mudou de cara. Está, pelo segundo ano consecutivo, mais barato. Quer dizer então que havia coisa errada? Não necessariamente dentro da Seguradora Líder, mas que havia, havia, tanto que no último ano foram identificadas e bloqueadas 17.550 tentativas de fraude.
O grande problema do DPVAT não é baixar o preço, é aumentar a indenização. Seria mais racional, mais útil e socialmente mais eficiente. Mas para isso acontecer é necessário se votar uma lei no Congresso Nacional e é aí que mora o perigo. Com os deputados e senadores que temos não se sabe o que pode sair e por isso ninguém quer correr o risco de encaminhar o projeto de lei indispensável para a grande mudança que o seguro realmente precisa.
O capital segurado do DPVAT, já faz alguns anos, está ancorado R$ 13,5 mil para morte e para invalidez permanente. Poderia ser mais alto. Se, em vez de abaixar o preço do seguro, fosse possível aumentar o valor das indenizações por meio de medida administrativa da Superintendência de Seguros Privados (Susep), as indenizações poderiam estar próximas de R$ 20 mil.
O DPVAT é consequência do fracasso e da bandalheira que correu solta num seguro de responsabilidade civil obrigatório para veículos, o Recovat. Em 1974, o governo decidiu agir e acabou o Recovat, colocando no seu lugar o DPVAT. Ao longo destes anos o DPVAT atravessou diferentes momentos, tanto no funcionamento, como na forma de comercialização.
No desenho atual, uma seguradora criada para isso administra um consórcio do qual fazem parte várias outras seguradoras, com a finalidade específica de gerenciar o seguro obrigatório de veículos.
Com a criação da Seguradora Líder, o DPVAT passou a ter uma gestão 100% focada nele, o que melhorou muito todos os seus indicadores e, principalmente, a sua transparência.
É assim que, ao longo dos últimos anos, foram aperfeiçoados os sistemas de controle e identificadas irregularidades que, sanadas, permitiram a Susep reduzir o preço do seguro por dois anos seguidos.
O que ninguém levou em conta é que essa redução, indiferente para o proprietário de veículo, causou uma perda de bilhões de reais para milhões de brasileiros que dependem do governo para não morrerem. 45% do faturamento do DPVAT é destinado ao SUS. Com as duas reduções do preço do seguro, em 2017 e 2018, a saúde pública brasileira, que mal e mal se mantém nas pernas, está deixando de faturar mais de R$ 5 bilhões, mas isso não comove os burocratas que tratam do assunto porque eles têm planos de saúde privados abrangentes que os retiram das filas dos hospitais públicos.
Em função da significativa perda de receita, a Seguradora Líder aperfeiçoou suas ferramentas de gestão e, por conta delas, identificou 17.550 tentativas de fraude, economizando R$ 222 milhões, que deixaram de ser indevidamente pagos a quem não tinha direito a recebê-los.
Indenizações. Em 2017, foram pagas 383 mil indenizações, totalizando R$ 1,7 mil para as vítimas de acidentes de trânsito e seus beneficiários. O dado apavorante é que deste total 290 mil indenizações foram pagas em função de acidentes com motocicletas. A maioria aconteceu no Nordeste e o maior número de vítimas foi de jovens do sexo masculino.
Basta ver na televisão a forma como as motocicletas são usadas no Nordeste para se entender a razão dos números acima. Motos transportando três ou quatro pessoas, além de um cachorro, são cenas comuns.
Enquanto essa realidade não for combatida com seriedade é pouco provável que os números da tragédia das ruas brasileiras melhorem. Mas não é só aí que o governo falha. Enquanto as estradas federais forem pistas de prova para veículos fora de estrada, com buracos e crateras se sucedendo por milhares de quilômetros, não há o que fazer, o brasileiro vai continuar morrendo em acidentes de trânsito. E seu único amparo será o DPVAT.
Removendo entulhos - PAULO GUEDES
O Globo - 26/03
O excesso de burocracia, as restrições das práticas trabalhistas e as barreiras impostas por grupos de interesses corporativos são poderosos obstáculos à melhoria das condições de vida da população. “As diferenças de produtividade, de níveis de salário e de padrões de vida entre os países são enormes. Resultam essencialmente de políticas específicas aplicadas por seus governantes que dificultam os negócios, restringem a criação de empregos e o uso mais eficiente dos recursos produtivos pelas empresas. Essas políticas são como barreiras ao enriquecimento, derrubando a produtividade dos fatores de produção e o nível de renda do país”, explica o Prêmio Nobel em Economia Edward Prescott, em “Barriers to riches” (2000).
O milagre do crescimento acelerado do Japão e dos Tigres Asiáticos no passado, bem como o milagre atual de retardatários como a China, a Índia e alguns países do Leste Europeu, revelam essa persistente remoção de obstáculos em busca de um melhor funcionamento dos mercados. “É sempre mais fácil copiar e adaptar técnicas já existentes do que inovar e ampliar as fronteiras do conhecimento, das tecnologias e dos métodos de gestão”, revela Prescott. A excelente notícia para o Brasil é que, quanto mais impeditivas tenham sido as barreiras das regulamentações e por quanto mais tempo tenham prevalecido esses obstáculos burocráticos, mais formidável o milagre econômico possível. Esse foi um lubrificante dos históricos episódios asiáticos de crescimento exuberante.
O Brasil pode dar fôlego extra ao atual fenômeno de recuperação cíclica e acelerar sua retomada de crescimento com reformas de desburocratização, desregulamentação e remoção do lixo legislativo que protege privilégios de grupos corporativos contra os interesses do país. A desestatização do mercado de crédito, as privatizações e as concessões vão aumentar a eficiência na alocação de recursos e contribuir para a aceleração do crescimento. A sinalização de reformas melhorando o ambiente de negócios já colocaria o país em ritmo de crescimento antes mesmo de acelerarmos o ritmo de acumulação de capital físico (máquinas e equipamentos, infraestrutura, instalações industriais) e dos investimentos em capital humano (educação) e pesquisa (inovações tecnológicas).
O excesso de burocracia, as restrições das práticas trabalhistas e as barreiras impostas por grupos de interesses corporativos são poderosos obstáculos à melhoria das condições de vida da população. “As diferenças de produtividade, de níveis de salário e de padrões de vida entre os países são enormes. Resultam essencialmente de políticas específicas aplicadas por seus governantes que dificultam os negócios, restringem a criação de empregos e o uso mais eficiente dos recursos produtivos pelas empresas. Essas políticas são como barreiras ao enriquecimento, derrubando a produtividade dos fatores de produção e o nível de renda do país”, explica o Prêmio Nobel em Economia Edward Prescott, em “Barriers to riches” (2000).
O milagre do crescimento acelerado do Japão e dos Tigres Asiáticos no passado, bem como o milagre atual de retardatários como a China, a Índia e alguns países do Leste Europeu, revelam essa persistente remoção de obstáculos em busca de um melhor funcionamento dos mercados. “É sempre mais fácil copiar e adaptar técnicas já existentes do que inovar e ampliar as fronteiras do conhecimento, das tecnologias e dos métodos de gestão”, revela Prescott. A excelente notícia para o Brasil é que, quanto mais impeditivas tenham sido as barreiras das regulamentações e por quanto mais tempo tenham prevalecido esses obstáculos burocráticos, mais formidável o milagre econômico possível. Esse foi um lubrificante dos históricos episódios asiáticos de crescimento exuberante.
O Brasil pode dar fôlego extra ao atual fenômeno de recuperação cíclica e acelerar sua retomada de crescimento com reformas de desburocratização, desregulamentação e remoção do lixo legislativo que protege privilégios de grupos corporativos contra os interesses do país. A desestatização do mercado de crédito, as privatizações e as concessões vão aumentar a eficiência na alocação de recursos e contribuir para a aceleração do crescimento. A sinalização de reformas melhorando o ambiente de negócios já colocaria o país em ritmo de crescimento antes mesmo de acelerarmos o ritmo de acumulação de capital físico (máquinas e equipamentos, infraestrutura, instalações industriais) e dos investimentos em capital humano (educação) e pesquisa (inovações tecnológicas).
Lipoaspiração constitucional - ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
ESTADÃO - 26/03
Creio ser impossível vingar essa ideia de Jobim, restam-nos as emendas pontuais
O Fórum Estadão, oportuna iniciativa do Estado, cujo tema de fundo é A Reconstrução do Brasil, iniciou-se na manhã de 27/2 com instigante debate em torno da Constituição. Participaram os juristas Eros Grau, Nelson Jobim e Joaquim Falcão, os dois primeiros ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o último, professor da Fundação Getúlio Vargas.
As opiniões foram unânimes: com a Constituição de 1988 é impraticável governar. Além de críticas ao STF pelo excesso de protagonismo, despertou a atenção a proposta feita pelo ministro Nelson Jobim de se “fazer uma lipoaspiração na Constituição” e dela retirar todos os “excessos para reconstruir a harmonia dos Poderes”.
A prolixidade da Lei Fundamental, apontada pelo ministro Eros Grau, teve como uma das causas a força de corporações, associações e sindicatos empenhados em converter em garantias constitucionais todas as expectativas. O professor Joaquim Falcão destacou o tratamento dispensado aos servidores públicos, que “têm 16 vezes mais chances de levar temas para julgamento no Supremo Tribunal Federal em comparação com trabalhadores da iniciativa privada”, os quais, apesar da posição de inferioridade, gozam da proteção de 6 artigos, 42 incisos e 4 parágrafos.
Com 250 artigos, 114 disposições constitucionais transitórias e 99 emendas, a Lei Superior perde em extensão apenas para a da Índia. E me traz à lembrança a frase do jurista espanhol Pablo Lucas Verdú: “La prolijidad de uma Constitución se paga al precio de la dificultad de su interpretación. La dificultad de su interpretación com el fracaso de su aplicación” (Curso de Derecho Politico, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, 440).
Uma das razões da prolixidade reside na manobra política que viciou a eleição dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte. É impossível ignorar que 459 deputados e 72 senadores, eleitos em 15/11/1986, foram beneficiados pela sobrevida assegurada ao Plano Cruzado I, decretado em 28/2/1986, tardiamente substituído pelo Plano Cruzado II, baixado em 21/11/1986, seis dias após o pleito. Anos depois admitiu o presidente José Sarney, sobre o Cruzado II: foi o “maior erro que cometemos no governo e por ele paguei muito caro”.
Com 559 membros na maioria jejunos em técnica legislativa e despreparados em matéria constitucional, os resultados não poderiam ter sido mais desastrosos. O regimento interno teve a relatoria do senador Fernando Henrique Cardoso. Foram criadas 8 comissões temáticas, compostas por 63 membros cada uma, divididas em 3 subcomissões. A tarefa principal ficou reservada à Comissão de Sistematização, integrada por 49 constituintes e presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral, a figura “mais poderosa, com extrema influência política na condução do anteprojeto”.
Em nome da preservação das liberdades democráticas, ao invés de qualificado grupo de constitucionalistas, tivemos anárquica assembleia cujos trabalhos se desenvolveram sem anteprojeto ou projeto. O texto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, ou Comissão de Notáveis, criada pelo presidente Sarney por decreto, foi rebaixado a relatório e enviado ao arquivo do Ministério da Justiça. Quatro vetores orientaram os trabalhos da Constituinte: o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade.
Segundo os professores Yan de Souza Carreirão e Débora Josiane de Carvalho de Melo, da Universidade Federal de Santa Catarina (Representação Política na Assembleia Nacional Constituinte – 1987/1988), “durante o processo foram apresentadas 61.020 emendas e 122 emendas populares”. À Comissão de Sistematização foi enviado 1 milhão de assinaturas favoráveis à reforma agrária e 500 mil pela estabilidade no emprego.
Sendo impossível governar com ela, que destino dar à sétima Constituição republicana? A convocação de assembleia constituinte esbarraria no primeiro obstáculo: quem teria a prerrogativa de fazê-lo? As seis Constituições anteriores resultaram de golpe. A exceção é a atual, cujas raízes se encontram na eleição indireta de 1985, vencida por Tancredo Neves, comprometido com a redemocratização do País. Morto Tancredo, Sarney assume a obrigação e envia ao Congresso Nacional, em junho de 1985, a Emenda n.º 85, aprovada em 26/11, com a determinação de senadores e deputados eleitos em 1986 se reunirem em Assembleia Nacional Constituinte no dia 1.º/2/1987.
Poderia o presidente Michel Temer, ou quem vier a suceder-lhe, redigir e submeter ao Congresso projeto de Constituição, como acabou de fazer no Chile a então presidente Michelle Bachelet (Estado, 7/3). O presidente Castelo Branco o fez mediante o Ato Institucional n.º 4/1966, ao ordenar que o Congresso Nacional se reunisse extraordinariamente, de 12/12/1966 a 24/1/1967, para “discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República” (artigo 1.º). Na data aprazada a Constituição foi promulgada. Os tempos são outros. Ao invés do regime militar, temos o Estado Democrático de Direito. No Congresso escasseiam juristas. Embora impraticável, a Lei Magna será mantida e quando possível e conveniente, obedecida.
Se houver como eleger nova Constituinte, presenciaremos a repetição dos problemas na elaboração da Constituição de 1988. Atores, coadjuvantes e figurantes serão outros, mas o enredo não será diferente. Creio ser impossível vingar a ideia da lipoaspiração, apresentada por Nelson Jobim. A quem competirá determinar quais dispositivos serão sacrificados?
Excluída medida de arbítrio, resta-nos prosseguir no acidentado caminho das emendas pontuais. Quem sabe venhamos a ser governados, em algumas décadas, por Constituição merecedora do nome?
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
Creio ser impossível vingar essa ideia de Jobim, restam-nos as emendas pontuais
O Fórum Estadão, oportuna iniciativa do Estado, cujo tema de fundo é A Reconstrução do Brasil, iniciou-se na manhã de 27/2 com instigante debate em torno da Constituição. Participaram os juristas Eros Grau, Nelson Jobim e Joaquim Falcão, os dois primeiros ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o último, professor da Fundação Getúlio Vargas.
As opiniões foram unânimes: com a Constituição de 1988 é impraticável governar. Além de críticas ao STF pelo excesso de protagonismo, despertou a atenção a proposta feita pelo ministro Nelson Jobim de se “fazer uma lipoaspiração na Constituição” e dela retirar todos os “excessos para reconstruir a harmonia dos Poderes”.
A prolixidade da Lei Fundamental, apontada pelo ministro Eros Grau, teve como uma das causas a força de corporações, associações e sindicatos empenhados em converter em garantias constitucionais todas as expectativas. O professor Joaquim Falcão destacou o tratamento dispensado aos servidores públicos, que “têm 16 vezes mais chances de levar temas para julgamento no Supremo Tribunal Federal em comparação com trabalhadores da iniciativa privada”, os quais, apesar da posição de inferioridade, gozam da proteção de 6 artigos, 42 incisos e 4 parágrafos.
Com 250 artigos, 114 disposições constitucionais transitórias e 99 emendas, a Lei Superior perde em extensão apenas para a da Índia. E me traz à lembrança a frase do jurista espanhol Pablo Lucas Verdú: “La prolijidad de uma Constitución se paga al precio de la dificultad de su interpretación. La dificultad de su interpretación com el fracaso de su aplicación” (Curso de Derecho Politico, Ed. Tecnos, Madrid, 1986, 440).
Uma das razões da prolixidade reside na manobra política que viciou a eleição dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte. É impossível ignorar que 459 deputados e 72 senadores, eleitos em 15/11/1986, foram beneficiados pela sobrevida assegurada ao Plano Cruzado I, decretado em 28/2/1986, tardiamente substituído pelo Plano Cruzado II, baixado em 21/11/1986, seis dias após o pleito. Anos depois admitiu o presidente José Sarney, sobre o Cruzado II: foi o “maior erro que cometemos no governo e por ele paguei muito caro”.
Com 559 membros na maioria jejunos em técnica legislativa e despreparados em matéria constitucional, os resultados não poderiam ter sido mais desastrosos. O regimento interno teve a relatoria do senador Fernando Henrique Cardoso. Foram criadas 8 comissões temáticas, compostas por 63 membros cada uma, divididas em 3 subcomissões. A tarefa principal ficou reservada à Comissão de Sistematização, integrada por 49 constituintes e presidida pelo senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral, a figura “mais poderosa, com extrema influência política na condução do anteprojeto”.
Em nome da preservação das liberdades democráticas, ao invés de qualificado grupo de constitucionalistas, tivemos anárquica assembleia cujos trabalhos se desenvolveram sem anteprojeto ou projeto. O texto da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, ou Comissão de Notáveis, criada pelo presidente Sarney por decreto, foi rebaixado a relatório e enviado ao arquivo do Ministério da Justiça. Quatro vetores orientaram os trabalhos da Constituinte: o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade.
Segundo os professores Yan de Souza Carreirão e Débora Josiane de Carvalho de Melo, da Universidade Federal de Santa Catarina (Representação Política na Assembleia Nacional Constituinte – 1987/1988), “durante o processo foram apresentadas 61.020 emendas e 122 emendas populares”. À Comissão de Sistematização foi enviado 1 milhão de assinaturas favoráveis à reforma agrária e 500 mil pela estabilidade no emprego.
Sendo impossível governar com ela, que destino dar à sétima Constituição republicana? A convocação de assembleia constituinte esbarraria no primeiro obstáculo: quem teria a prerrogativa de fazê-lo? As seis Constituições anteriores resultaram de golpe. A exceção é a atual, cujas raízes se encontram na eleição indireta de 1985, vencida por Tancredo Neves, comprometido com a redemocratização do País. Morto Tancredo, Sarney assume a obrigação e envia ao Congresso Nacional, em junho de 1985, a Emenda n.º 85, aprovada em 26/11, com a determinação de senadores e deputados eleitos em 1986 se reunirem em Assembleia Nacional Constituinte no dia 1.º/2/1987.
Poderia o presidente Michel Temer, ou quem vier a suceder-lhe, redigir e submeter ao Congresso projeto de Constituição, como acabou de fazer no Chile a então presidente Michelle Bachelet (Estado, 7/3). O presidente Castelo Branco o fez mediante o Ato Institucional n.º 4/1966, ao ordenar que o Congresso Nacional se reunisse extraordinariamente, de 12/12/1966 a 24/1/1967, para “discussão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República” (artigo 1.º). Na data aprazada a Constituição foi promulgada. Os tempos são outros. Ao invés do regime militar, temos o Estado Democrático de Direito. No Congresso escasseiam juristas. Embora impraticável, a Lei Magna será mantida e quando possível e conveniente, obedecida.
Se houver como eleger nova Constituinte, presenciaremos a repetição dos problemas na elaboração da Constituição de 1988. Atores, coadjuvantes e figurantes serão outros, mas o enredo não será diferente. Creio ser impossível vingar a ideia da lipoaspiração, apresentada por Nelson Jobim. A quem competirá determinar quais dispositivos serão sacrificados?
Excluída medida de arbítrio, resta-nos prosseguir no acidentado caminho das emendas pontuais. Quem sabe venhamos a ser governados, em algumas décadas, por Constituição merecedora do nome?
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.
Assinar:
Postagens (Atom)