FOLHA DE SP - 13/03
Sucesso das redes sociais revela aspectos sombrios da natureza humana
As "redes sociais" são uma selva, diz o bom senso. Mas o que significa realmente a palavra "selva" nesse julgamento severo? Um estudo recente ajuda a perceber.
Foi publicado na revista Science e tomou o Twitter como objeto. Pesquisadores do MIT analisaram todos os tweets publicados entre 2006 e 2017. Selecionaram 126 mil histórias partilhadas. Depois, classificaram esses tweets como verdadeiros ou falsos e seguiram o rastro para medir a velocidade da propagação.
O resultado, que li na The Economist, é funesto: os tweets falsos viajaram seis vezes mais rápido do que os tweets verdadeiros. Por quê?
Uma resposta possível seria apontar para os perfis igualmente falsos que gostam de espalhar mentiras pelo mundo virtual. Pois bem: os pesquisadores analisaram esses perfis falsos —os "bots", para usar a linguagem dos especialistas— mas garantem que o impacto é insignificante. Os tweets falsos viajam mais depressa porque são "retweetados" mais depressa.
Por outras palavras: somos nós, humanos, que contribuímos para a disseminação da mentira. A tecnologia é apenas um instrumento. Sobra, porém, a questão fundamental: por que motivo gostamos de espalhar mentiras?
Os pesquisadores também respondem: essa opção pode não ser consciente. Acontece que os tweets falsos, precisamente porque são falsos, oferecem um sabor de novidade a que ninguém resiste.
Perante essa novidade, os nossos sentimentos são sempre mais fortes do que os sentimentos que experimentamos com as notícias verdadeiras. Sentimos medo, ou náusea, ou surpresa intensa. Com histórias verdadeiras, a simples alegria ou tristeza chegam e sobram.
O estudo é interessante porque confirma as minhas intuições: o sucesso das redes sociais —como o Twitter ou o Facebook— está diretamente relacionado com os aspectos mais sombrios da natureza humana.
No caso do Twitter, o seu sucesso é alimentado pelo símio primitivo que habita em nós e que pula de excitação ou rancor quando vê uma notícia fora da caixa.
Mas se assim é com o Twitter, suspeito que não será muito diferente com o Facebook. Os especialistas gostam de afirmar que o Facebook é uma ameaça para a salubridade das democracias ao organizar a discussão política em tribos de ódio mútuo.
Difícil discordar. Mas é preciso não esquecer o outro lado do diagnóstico: os filtros do Facebook apenas organizam sentimentos humanos que são anteriores, e até superiores, a qualquer rede social.
O primeiro sentimento é um certo gosto pela violência que a sociedade civilizada sempre tentou reprimir. O segundo é uma covardia igualmente primitiva que nos leva a procurar o conforto da nossa tribo para atacar sem temor a tribo inimiga. Nelson Rodrigues, que nunca assistiu ao dilúvio das "redes sociais", tinha razão quando temia as multidões. Elas são burras, violentas e covardes.
Ou, então, são pateticamente narcisistas —como as "redes sociais" amplamente demonstram. Entenda, leitor: o narcisismo sempre fez parte do nosso software. A esse respeito, vale a pena ler "Selfie", um estudo de Will Storr sobre a forma como a ideia do "ser" emergiu no Ocidente 2.500 anos atrás.
A noção de que eu sou diferente —dotado de uma "essência", digamos, que me distingue dos outros e do mundo— é o grande contributo da filosofia grega para a humanidade.
Porém, esse individualismo sempre foi temperado por outros elementos sociais: pela família, pela religião, pelas necessidades da comunidade que nos obrigam a "sair de nós próprios". No fundo, a primeira pessoa do singular teve que acomodar a primeira pessoa do plural.
Não mais. As "redes sociais" potenciam o "ser digital" (expressão de Will Storr): um ser narcisista, exibicionista —e, sem surpresas, permanentemente insatisfeito. Como no mito de Narciso, todos estamos apaixonados pelo reflexo da nossa imagem.
Só que, ao contrário do mito, não é a paralisia que nos mata. É a busca constante de uma perfeição cada vez maior, sempre em competição com os narcisos da vizinhança.
As "redes sociais" são uma selva? Afirmativo. Porque elas permitem que os seres humanos se libertem dos velhos constrangimentos morais ou cívicos para se revelarem em toda a sua nudez.
Se em rede nos revelamos violentos ou covardes, a culpa não é da tecnologia. É de uma matéria-prima que já vem corrompida da origem.
João Pereira Coutinho
É escritor português e doutor em ciência política.
terça-feira, março 13, 2018
Mística é a busca de refazer o mundo onde as coisas se transfiguram na face de Deus - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 12/03
A ideia de que a religiosidade seja objeto de pessoas incultas é evidência de pressa intelectual
Qualquer pessoa que decida se deter de modo um pouco mais atento sobre o tema da religião e da mística perceberá que ele está longe de ser óbvio. Um dos pecados do mundo contemporâneo é sua pressa “ontológica”. Não tenhamos pressa, pelo menos hoje.
A ideia de que mística seja assunto simples e objeto de pessoas incultas é evidência de pressa intelectual e pobreza de repertório. As duas andam juntas. A inteligência alocada na tentativa de entender o que as pessoas querem dizer por um conhecimento direto da divindade (vou simplificar os termos, não vou contemplar os maníacos da pluralidade hoje) é enorme e múltipla, em todas as religiões históricas.
Dentre os muitos especialistas em mística (judaica, no caso), Gershom Scholem (1897-1982) é um dos maiores. Considerado fundador do estudo acadêmico da cabala, Scholem hoje, seguramente, ficaria chocado ao ver a cabala ser usada como fórmula de autoajuda feita ao sabor do consumidor. Cabala como consultora de sucesso, de saúde, de alimentação balanceada, enfim. Melhor evitarmos pronunciar a palavra cabala até ela passar de moda.
A teoria da religião de Scholem e o lugar da mística nela (principalmente a judaica) são vastamente conhecidos, inclusive por conta de sua hipótese “herética” acerca da origem da mística em geral, e, especificamente, da mística judaica.
Para Scholem, as religiões têm, grosso modo, três grandes estágios. O primeiro, o mítico, se caracteriza por envolver o homem, a natureza e as coisas num todo permeado pela presença das divindades. Cada gesto do mundo carrega a assinatura dos deuses. O homem, nesse habitat naturalmente espiritual, se sente acompanhado e acolhido.
O segundo, doutrinário, social, político e racional (mais propriamente “histórico”), é o momento em que as grandes religiões se constituem como tecido social constitutivo da vida. Nesse estágio, por exemplo, se dá o surgimento da Torá no judaísmo. Os deuses (e Deus, nesse processo) se distanciam, tornam-se abstratos, normatizadores, organizadores das coisas e da vida. O acolhimento presente nas formas míticas desaparece, e tomam seu lugar as demanda moral, racional e política. O homem se sente só. Instaura-se o abismo (termo preciso do próprio Scholem) entre o homem e Deus.
O terceiro é o místico. Para Scholem, sem a “catástrofe” da perda da natureza mítica, sem o abismo que surge como decorrência da “evolução” da religião em direção à sua condição doutrinária e racionalista, não há mística. Por isso, ele diz que a mística é o momento “romântico” das religiões.
Esse romantismo metafórico significa que o místico é uma pessoa que “sente saudades de Deus”, nos termos do cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015). A mística é o esforço para se refazer o mundo no qual as coisas se transfiguram na face de Deus. A busca dessa “substância” perdida no instante “intelectual” da religião. Daí a mescla de gozo e agonia típica das narrativas místicas.
“A Noite Escura da Alma”, poema do místico espanhol católico são João da Cruz (1542-1591), é uma chave conceitual essencial em estudos de mística: a agonia do sentir-se longe de Deus é fundamento e parte da experiência mística.
A tese de Scholem, segundo a qual o racionalismo e o moralismo das religiões “atrapalham” a vida estética religiosa (ou seja, a vida das sensações de estar em contato direto com a divindade) e que, portanto, o fundamento da mística é uma “perda de Deus”, é objeto de muita polêmica. Nesse sentido, ele é visto como um scholar herético em estudos de mística, uma vez que o fundamento desta seria uma espécie de consciência religiosa estética perdida.
Para piorar sua condição de teórico herético diante da ortodoxia teórica que associa a mística prioritariamente ao gozo, é conhecida a sua tese segundo a qual a cabala (coração da mística judaica) vem de fontes exteriores (neoplatonismo, religiões iniciáticas gregas ou persas) ao judaísmo “oficial” (o que faria dela “menos” judaica aos olhos de muitos judeus). Por isso, ela é, em si mesma, herética na sua natureza.
A ideia de que a religiosidade seja objeto de pessoas incultas é evidência de pressa intelectual
Qualquer pessoa que decida se deter de modo um pouco mais atento sobre o tema da religião e da mística perceberá que ele está longe de ser óbvio. Um dos pecados do mundo contemporâneo é sua pressa “ontológica”. Não tenhamos pressa, pelo menos hoje.
A ideia de que mística seja assunto simples e objeto de pessoas incultas é evidência de pressa intelectual e pobreza de repertório. As duas andam juntas. A inteligência alocada na tentativa de entender o que as pessoas querem dizer por um conhecimento direto da divindade (vou simplificar os termos, não vou contemplar os maníacos da pluralidade hoje) é enorme e múltipla, em todas as religiões históricas.
Dentre os muitos especialistas em mística (judaica, no caso), Gershom Scholem (1897-1982) é um dos maiores. Considerado fundador do estudo acadêmico da cabala, Scholem hoje, seguramente, ficaria chocado ao ver a cabala ser usada como fórmula de autoajuda feita ao sabor do consumidor. Cabala como consultora de sucesso, de saúde, de alimentação balanceada, enfim. Melhor evitarmos pronunciar a palavra cabala até ela passar de moda.
A teoria da religião de Scholem e o lugar da mística nela (principalmente a judaica) são vastamente conhecidos, inclusive por conta de sua hipótese “herética” acerca da origem da mística em geral, e, especificamente, da mística judaica.
Para Scholem, as religiões têm, grosso modo, três grandes estágios. O primeiro, o mítico, se caracteriza por envolver o homem, a natureza e as coisas num todo permeado pela presença das divindades. Cada gesto do mundo carrega a assinatura dos deuses. O homem, nesse habitat naturalmente espiritual, se sente acompanhado e acolhido.
O segundo, doutrinário, social, político e racional (mais propriamente “histórico”), é o momento em que as grandes religiões se constituem como tecido social constitutivo da vida. Nesse estágio, por exemplo, se dá o surgimento da Torá no judaísmo. Os deuses (e Deus, nesse processo) se distanciam, tornam-se abstratos, normatizadores, organizadores das coisas e da vida. O acolhimento presente nas formas míticas desaparece, e tomam seu lugar as demanda moral, racional e política. O homem se sente só. Instaura-se o abismo (termo preciso do próprio Scholem) entre o homem e Deus.
O terceiro é o místico. Para Scholem, sem a “catástrofe” da perda da natureza mítica, sem o abismo que surge como decorrência da “evolução” da religião em direção à sua condição doutrinária e racionalista, não há mística. Por isso, ele diz que a mística é o momento “romântico” das religiões.
Esse romantismo metafórico significa que o místico é uma pessoa que “sente saudades de Deus”, nos termos do cineasta português Manoel de Oliveira (1908-2015). A mística é o esforço para se refazer o mundo no qual as coisas se transfiguram na face de Deus. A busca dessa “substância” perdida no instante “intelectual” da religião. Daí a mescla de gozo e agonia típica das narrativas místicas.
“A Noite Escura da Alma”, poema do místico espanhol católico são João da Cruz (1542-1591), é uma chave conceitual essencial em estudos de mística: a agonia do sentir-se longe de Deus é fundamento e parte da experiência mística.
A tese de Scholem, segundo a qual o racionalismo e o moralismo das religiões “atrapalham” a vida estética religiosa (ou seja, a vida das sensações de estar em contato direto com a divindade) e que, portanto, o fundamento da mística é uma “perda de Deus”, é objeto de muita polêmica. Nesse sentido, ele é visto como um scholar herético em estudos de mística, uma vez que o fundamento desta seria uma espécie de consciência religiosa estética perdida.
Para piorar sua condição de teórico herético diante da ortodoxia teórica que associa a mística prioritariamente ao gozo, é conhecida a sua tese segundo a qual a cabala (coração da mística judaica) vem de fontes exteriores (neoplatonismo, religiões iniciáticas gregas ou persas) ao judaísmo “oficial” (o que faria dela “menos” judaica aos olhos de muitos judeus). Por isso, ela é, em si mesma, herética na sua natureza.
Educação e democracia. O que vem primeiro? - FERNÃO LARA MESQUITA
ESTADÃO - 13/03
O atalho obrigatório que abre caminho para a boa educação é ousar na reforma das instituições
Há no YouTube a gravação de um debate sobre a decadência da qualidade da educação nos Estados Unidos de que já recebi cópias pelo menos uma dezena de vezes. Nele Michio Kaku, um divulgador da ciência célebre naquele país, adverte que “ela é o motor da prosperidade que só não entrou em colapso nos Estados Unidos ainda porque o país dispõe de uma arma secreta, o H-1b”, que vem a ser o “visto especial para gênios” que o governo concede (ou concedia até Trump) com largueza suficiente para fazer do país um “ímã que suga todos os cérebros do mundo”.
Isso é menos de metade da verdade. Se transformar-se num “ímã” de cérebros privilegiados fosse apenas uma questão de conceder vistos facilitados, ninguém teria problemas em conseguir o mesmo efeito. Os Estados Unidos atraem os cérebros mais brilhantes do mundo pela mesma razão pela qual o dólar é a moeda de referência e sustentação de todas as outras. Porque o seu sistema de governo é o único onde a vontade de um presidente sozinho não pode nada e a vontade popular realmente impera. É porque o país dispõe de instituições montadas para permitir que a vontade dos representados seja imposta aos seus representantes (a saber: voto distrital puro, eleições primárias diretas, recall, referendo, iniciativa, e eleições de retenção de juízes), que o sistema se torna disposto a e capaz de corrigir erros. E isso porque “erros” persistentes nunca são função de enganos genuínos, mas sim da condição dada a uma oligarquia para criar e manter privilégios manipulando instituições calculadamente entortadas para lhe dar esse poder.
O cidadão exerce a sua liberdade, na prática, na sua dimensão de produtor e consumidor na medida em que possa escolher entre patrões e fornecedores competindo entre si por sua preferência. O resto é poesia. Já os déspotas, depois do surgimento das armas de extinção em massa, deram-se conta de que entrar no jogo econômico é o único modo de projetar poder internacionalmente e continuar vivo. A diferença essencial entre os capitalismos de estado e o capitalismo democrático está, portanto, nos objetivos que se propõem. O primeiro visa o bem-estar do indivíduo que depende do estado impor limites ao capital em nome da preservação da concorrência que garante a liberdade individual. O outro requer a concentração dos poderes do capital e do estado nas mesmas mãos e a sujeição de tudo o mais ao objetivo de projetar internacionalmente a hegemonia que o ditador e seu grupo já exercem internamente. Um só pode avançar com benefício de todos pelos acrescentamentos da inovação que depende da garantia da propriedade intelectual pelo estado. Os outros impõem-se pela lógica do monopólio que tem no pirateamento das invenções alheias e na exploração pelo estado da sua condição de único empregador a vantagem competitiva que lhes permite esmagar concorrentes pelo mundo afora.
Quando, porém, esses expedientes ou outra causa qualquer produzem turbulências na economia mundial, as chinas todas, para proteger os lucros acumulados que são a munição da sua guerra pela hegemonia econômica, correm para abrigar-se... nos títulos do governo americano. Por quê? Porque ele é o único do mundo que não tem o poder de calotear seus credores internos, que contam com instituições que os fazem mais fortes que o próprio governo, o que redunda na extensão dessa mesma garantia aos credores externos. As explicações conspiratórias e “imperialistas” para a força do dólar são mentirosas. Ele é o que é em função da qualidade das instituições do país que o emite.
Assim também os “gênios” do mundo. É para os Estados Unidos que eles afluem não porque seja fácil conseguir um visto, mas para fugir de governos como os das chinas do mundo onde os ditadores da hora podem fazer de seus súditos o que bem entenderem quando bem entenderem, o que torna impossível a liberdade, a estabilidade e a continuidade que a pesquisa pura e a verdadeira inovação requerem.
No Brasil é voz corrente que instituições de qualidade são produto de uma boa educação e que como não temos uma boa educação jamais teremos instituições de qualidade. Historicamente, entretanto, a ordem desses fatores tem sido a inversa. A boa educação é que é consequência da conquista de boas instituições. A “educação” patrocinada pelos regimes estabelecidos está sempre casada com a religião, vale dizer, com o dogma oficialmente aceito, o único livre de repressão. E sua função é reproduzir o sistema instituído. Lutero primeiro denuncia o dogma que sustenta as instituições anteriores. E para se compor com os príncipes que queriam se livrar do papa, exige educação gratuita e obrigatória para todos. Na Inglaterra seiscentista, igualmente, é só depois que a volúpia de Henrique VIII institui a liberdade religiosa e “legaliza” a convivência com a diversidade de crenças que se abre o espaço que vai ensejar o nascimento da ciência moderna. Nas experiências asiáticas, mais recentes, é sempre o déspota esclarecido que denuncia o dogma anterior (o socialismo). Só então abre-se o caminho para a reforma da educação que, mais adiante, consolida a mudança.
O Brasil mantém “petrificada” a sua miséria medieval muito mais graças ao desconhecimento meticulosamente construído das curas disponíveis mediante um controle estrito da educação e da mídia que por uma recusa consciente da população a tomar os “antibióticos institucionais” que poderiam facilmente curá-la. E essa afirmação de que “estudar medicina” seria um requisito prévio para que esses remédios façam efeito aqui faz parte da mentira de quem nos quer para sempre doentes. Eles curam quem quer que os tome, independentemente do que lhe tenham “ensinado” na vida.
Uma boa educação requer, de qualquer maneira, no mínimo duas ou três gerações. O atalho obrigatório, que é o que abre caminho para ela, é ousar na reforma das instituições.
*JORNALISTA
O atalho obrigatório que abre caminho para a boa educação é ousar na reforma das instituições
Há no YouTube a gravação de um debate sobre a decadência da qualidade da educação nos Estados Unidos de que já recebi cópias pelo menos uma dezena de vezes. Nele Michio Kaku, um divulgador da ciência célebre naquele país, adverte que “ela é o motor da prosperidade que só não entrou em colapso nos Estados Unidos ainda porque o país dispõe de uma arma secreta, o H-1b”, que vem a ser o “visto especial para gênios” que o governo concede (ou concedia até Trump) com largueza suficiente para fazer do país um “ímã que suga todos os cérebros do mundo”.
Isso é menos de metade da verdade. Se transformar-se num “ímã” de cérebros privilegiados fosse apenas uma questão de conceder vistos facilitados, ninguém teria problemas em conseguir o mesmo efeito. Os Estados Unidos atraem os cérebros mais brilhantes do mundo pela mesma razão pela qual o dólar é a moeda de referência e sustentação de todas as outras. Porque o seu sistema de governo é o único onde a vontade de um presidente sozinho não pode nada e a vontade popular realmente impera. É porque o país dispõe de instituições montadas para permitir que a vontade dos representados seja imposta aos seus representantes (a saber: voto distrital puro, eleições primárias diretas, recall, referendo, iniciativa, e eleições de retenção de juízes), que o sistema se torna disposto a e capaz de corrigir erros. E isso porque “erros” persistentes nunca são função de enganos genuínos, mas sim da condição dada a uma oligarquia para criar e manter privilégios manipulando instituições calculadamente entortadas para lhe dar esse poder.
O cidadão exerce a sua liberdade, na prática, na sua dimensão de produtor e consumidor na medida em que possa escolher entre patrões e fornecedores competindo entre si por sua preferência. O resto é poesia. Já os déspotas, depois do surgimento das armas de extinção em massa, deram-se conta de que entrar no jogo econômico é o único modo de projetar poder internacionalmente e continuar vivo. A diferença essencial entre os capitalismos de estado e o capitalismo democrático está, portanto, nos objetivos que se propõem. O primeiro visa o bem-estar do indivíduo que depende do estado impor limites ao capital em nome da preservação da concorrência que garante a liberdade individual. O outro requer a concentração dos poderes do capital e do estado nas mesmas mãos e a sujeição de tudo o mais ao objetivo de projetar internacionalmente a hegemonia que o ditador e seu grupo já exercem internamente. Um só pode avançar com benefício de todos pelos acrescentamentos da inovação que depende da garantia da propriedade intelectual pelo estado. Os outros impõem-se pela lógica do monopólio que tem no pirateamento das invenções alheias e na exploração pelo estado da sua condição de único empregador a vantagem competitiva que lhes permite esmagar concorrentes pelo mundo afora.
Quando, porém, esses expedientes ou outra causa qualquer produzem turbulências na economia mundial, as chinas todas, para proteger os lucros acumulados que são a munição da sua guerra pela hegemonia econômica, correm para abrigar-se... nos títulos do governo americano. Por quê? Porque ele é o único do mundo que não tem o poder de calotear seus credores internos, que contam com instituições que os fazem mais fortes que o próprio governo, o que redunda na extensão dessa mesma garantia aos credores externos. As explicações conspiratórias e “imperialistas” para a força do dólar são mentirosas. Ele é o que é em função da qualidade das instituições do país que o emite.
Assim também os “gênios” do mundo. É para os Estados Unidos que eles afluem não porque seja fácil conseguir um visto, mas para fugir de governos como os das chinas do mundo onde os ditadores da hora podem fazer de seus súditos o que bem entenderem quando bem entenderem, o que torna impossível a liberdade, a estabilidade e a continuidade que a pesquisa pura e a verdadeira inovação requerem.
No Brasil é voz corrente que instituições de qualidade são produto de uma boa educação e que como não temos uma boa educação jamais teremos instituições de qualidade. Historicamente, entretanto, a ordem desses fatores tem sido a inversa. A boa educação é que é consequência da conquista de boas instituições. A “educação” patrocinada pelos regimes estabelecidos está sempre casada com a religião, vale dizer, com o dogma oficialmente aceito, o único livre de repressão. E sua função é reproduzir o sistema instituído. Lutero primeiro denuncia o dogma que sustenta as instituições anteriores. E para se compor com os príncipes que queriam se livrar do papa, exige educação gratuita e obrigatória para todos. Na Inglaterra seiscentista, igualmente, é só depois que a volúpia de Henrique VIII institui a liberdade religiosa e “legaliza” a convivência com a diversidade de crenças que se abre o espaço que vai ensejar o nascimento da ciência moderna. Nas experiências asiáticas, mais recentes, é sempre o déspota esclarecido que denuncia o dogma anterior (o socialismo). Só então abre-se o caminho para a reforma da educação que, mais adiante, consolida a mudança.
O Brasil mantém “petrificada” a sua miséria medieval muito mais graças ao desconhecimento meticulosamente construído das curas disponíveis mediante um controle estrito da educação e da mídia que por uma recusa consciente da população a tomar os “antibióticos institucionais” que poderiam facilmente curá-la. E essa afirmação de que “estudar medicina” seria um requisito prévio para que esses remédios façam efeito aqui faz parte da mentira de quem nos quer para sempre doentes. Eles curam quem quer que os tome, independentemente do que lhe tenham “ensinado” na vida.
Uma boa educação requer, de qualquer maneira, no mínimo duas ou três gerações. O atalho obrigatório, que é o que abre caminho para ela, é ousar na reforma das instituições.
*JORNALISTA
Corporativismo nota 10 - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 13/02
Sistema de gratificações por desempenho mostra a aplicação aviltada de um princípio correto
Há um setor da sociedade para o qual o serviço público brasileiro constitui exemplo virtuoso de eficiência e produtividade —trata-se do próprio serviço público.
É o que se depreende, ao menos, da escalada das despesas do governo federal com gratificações por desempenho de seus funcionários. Como noticiou esta Folha, tais pagamentos atingiram R$ 42,3 bilhões em 2017, que se somaram ao montante não muito superior, de R$ 54,5 bilhões, pago em salários.
Esse gasto teve expansão de 6,5% acima da inflação no ano passado, em plena vigência do teto para os desembolsos da União. Podendo-se descartar a hipótese de um surto de hiperatividade nas repartições nacionais, o que se observa é tão somente a aplicação espúria de um princípio correto.
A partir de uma lei de 2008, ampliou-se na administração federal a concessão de bônus associados a metas para os resultados obtidos pelos servidores e pelos departamentos a que pertencem. A iniciativa, entretanto, continha vícios desde sua origem.
Vivia-se o auge da bonança orçamentária do governo Luiz Inácio Lula da Silva, e o comando petista se empenhava em atender a demandas do funcionalismo —cujos sindicatos estão entre as bases mais influentes do partido.
Em vez de instrumento para premiar órgãos e funcionários mais diligentes, as gratificações logo passaram a ser encaradas como parte da remuneração fixa de todos.
Para tanto, bastam parâmetros pouco ambiciosos e generosidade nas avaliações, nas quais se adota a nota máxima como regra. A permissividade se tornou desfaçatez quando as vantagens acabaram estendidas aos aposentados.
Reconheça-se que fixar indicadores objetivos para o desempenho de funcionários é tarefa complexa —até no setor privado. Mesmo governos de países desenvolvidos reportam tentativas malsucedidas ou de resultados modestos.
No serviço público brasileiro, entretanto, ainda restam providências óbvias a serem tomadas na busca por eficiência. Destacam-se entre elas a profissionalização dos gestores, prejudicada pelo excesso de cargos sujeitos a indicações políticas, e a redução do alcance da estabilidade no emprego.
Faz-se necessário também ampliar a diferença entre os salários iniciais, hoje muito elevados, e os finais, de modo que estimule o profissional a produzir mais e melhor para progredir na carreira.
Há, enfim, uma cultura de corporativismo e defesa de privilégios a enfrentar, o que tem se mostrado um desafio inglório. O único impulso importante nessa direção, infelizmente, vem do esgotamento dos recursos orçamentários.
Sistema de gratificações por desempenho mostra a aplicação aviltada de um princípio correto
Há um setor da sociedade para o qual o serviço público brasileiro constitui exemplo virtuoso de eficiência e produtividade —trata-se do próprio serviço público.
É o que se depreende, ao menos, da escalada das despesas do governo federal com gratificações por desempenho de seus funcionários. Como noticiou esta Folha, tais pagamentos atingiram R$ 42,3 bilhões em 2017, que se somaram ao montante não muito superior, de R$ 54,5 bilhões, pago em salários.
Esse gasto teve expansão de 6,5% acima da inflação no ano passado, em plena vigência do teto para os desembolsos da União. Podendo-se descartar a hipótese de um surto de hiperatividade nas repartições nacionais, o que se observa é tão somente a aplicação espúria de um princípio correto.
A partir de uma lei de 2008, ampliou-se na administração federal a concessão de bônus associados a metas para os resultados obtidos pelos servidores e pelos departamentos a que pertencem. A iniciativa, entretanto, continha vícios desde sua origem.
Vivia-se o auge da bonança orçamentária do governo Luiz Inácio Lula da Silva, e o comando petista se empenhava em atender a demandas do funcionalismo —cujos sindicatos estão entre as bases mais influentes do partido.
Em vez de instrumento para premiar órgãos e funcionários mais diligentes, as gratificações logo passaram a ser encaradas como parte da remuneração fixa de todos.
Para tanto, bastam parâmetros pouco ambiciosos e generosidade nas avaliações, nas quais se adota a nota máxima como regra. A permissividade se tornou desfaçatez quando as vantagens acabaram estendidas aos aposentados.
Reconheça-se que fixar indicadores objetivos para o desempenho de funcionários é tarefa complexa —até no setor privado. Mesmo governos de países desenvolvidos reportam tentativas malsucedidas ou de resultados modestos.
No serviço público brasileiro, entretanto, ainda restam providências óbvias a serem tomadas na busca por eficiência. Destacam-se entre elas a profissionalização dos gestores, prejudicada pelo excesso de cargos sujeitos a indicações políticas, e a redução do alcance da estabilidade no emprego.
Faz-se necessário também ampliar a diferença entre os salários iniciais, hoje muito elevados, e os finais, de modo que estimule o profissional a produzir mais e melhor para progredir na carreira.
Há, enfim, uma cultura de corporativismo e defesa de privilégios a enfrentar, o que tem se mostrado um desafio inglório. O único impulso importante nessa direção, infelizmente, vem do esgotamento dos recursos orçamentários.
Mundo real convida ACM Neto e Rodrigo Maia - CARLOS ANDREAZZA
O GLOBO - 13/03
O DEM não teve coragem alguma. Foi frouxo. Covarde. Burro e covarde. Deixou-se levar pela correnteza petista. Recusou as bandeiras econômicas liberais
‘Não visto essa carapuça e não aceito esse rótulo.” A fala é de ACM Neto, presidente do DEM, em entrevista à “Folha de S.Paulo” e em resposta à indagação sobre o partido ser considerado conservador. A sentença — a rejeição ao conservadorismo segundo o prefeito de Salvador — é breve. Caudalosa é a incultura que contém.
É sempre grotesco o efeito do desconhecimento num jovem poderoso, porque daí derivam desesperança e perigo. Tanto quanto será sempre ridículo querer educar um jovem poderoso, porque daí derivariam pretensão e perda de tempo. Afinal, esse rapaz pode ir longe na política partidária mesmo ignorando a contribuição decisiva do conservadorismo para a fortaleza de valores que fundamentam a atividade pública na civilização ocidental; mesmo jamais sabendo que a conformação institucional do complexo em que disputa eleições e em que encontra balizas para governar é obra erguida pelos séculos de exercício do pensamento conservador.
O tipo pode até presidir o Brasil — quantos já o fizeram — desconhecendo que os princípios do estado de direito são pilares erguidos e defendidos pelas ideias conservadoras; mas, desde a cadeira em que estiver, será eterno refém da hegemonia esquerdista. É o caso de ACM Neto. Mais um sequestrado pelo método de desinformação — pela cultura de deturpação de conceitos — que faz alguém repelir algo não pelo que realmente seja, mas pelo que seus destruidores dizem que é. Assim, pela mão esquerda do gesseiro, ACM Neto encontra seu teto: não veste a carapuça do conservadorismo porque despreza o rótulo de ser alguém que quer conservar as desigualdades. Não é isso? Não é isso o conservadorismo segundo os petistas?
Pois é a isso que adere o presidente do DEM, com medinho de ser de direita, ao validar um debate público fundado todo em falácias. Eis ACM Neto, calcificado pelo sistema já antes dos 40 anos, alfabetizado pela gramática revolucionária enquanto se julga algo novo na política: mais um tocado, pela insciência, a reagir a um estigma negativo a partir da estigmatização desonesta original que é incapaz de distinguir.
A entrevista, contudo, não se esgota na ignorância. Questionado sobre fato de o DEM ter minguado durante os governos do PT, saiu-se com mistificação: “O partido teve coragem de remar contra a maré para manter seus princípios. Isso nos custou.” Não é verdade. O DEM não teve coragem alguma. Foi frouxo. Covarde. Burro e covarde. Deixou-se levar pela correnteza petista. Recusou as bandeiras econômicas liberais e a origem conservadora do PFL, e nem sequer soube esboçar a luta política contra a esquerda. Por isso, quase acabou. E nada aprendeu — conforme indicam as declarações de ACM Neto.
Perguntado, por exemplo, sobre o tal Estado mínimo, em vez de falar sobre redução da máquina pública, superfície na qual a corrupção se alastra, acoelhou-se para pregar a manutenção daquilo que “o Estado se propõe a fazer” — como se o Estado não se propusesse a fazer tudo, e como se esse não fosse exatamente o problema. É discurso de quem se quer irrelevante — desnecessário. Rodrigo Maia não fica atrás: tem Brizola como referência. Chegamos a 2018, e essa gente ainda se desfaz do lote eleitoral que historicamente possui para disputar com o PT o terreno do “social”. O que dizer?
Qual o destino, na política, dos que, negando-se a encarnar contraponto para o qual há consistente demanda, posição ademais legítima, no entanto escolhem explorar o território dominado pelo adversário e lutar para lhe ter um quinhão? A insistirem nisso, em quanto tempo teremos o anúncio de uma nova refundação do DEM, promovida por ACM Bisneto e Cesar Maia Neto?
Aliás, em que consiste o atual renascimento desse partido? Qual o mérito de sua recuperação se não decorrente do voto? O DEM encorpou sua representação no Congresso, foi feliz no negócio da janela partidária e adquiriu mais parlamentares para si. E daí? Será isso efeito da duvidável potência em ascensão do partido, que nem sequer tem um governador, ou da óbvia influência de um presidente da Câmara em busca de cacifar seu projeto de poder individual?
Ninguém leva a sério a candidatura presidencial de Maia. Isso não quer dizer que não nos comunique sobre a irresponsabilidade de um partido modesto cuja direção constrange a realidade com surtos de grandeza e independência, em vez de se comprometer com a briga política por meio da qual teria contribuição estratégica a dar para o país.
Se o DEM quer mesmo trabalhar por derrotar a esquerda, se deseja enfraquecer nacionalmente o PT, deveria deixar de bravata e se dedicar a vencer a disputa que pode — a eleição para governador da Bahia. É o desafio que o mundo real impõe a ACM Neto: que tenha senso de proporções, assuma o que é, supere o medinho de perder e encontre a coragem de se lançar candidato a governar o estado de cuja capital é prefeito. É movimento natural para si — e para o crescimento do DEM, se tal se quiser verdadeiro.
Enquanto assim não for, os líderes de outros partidos que comparecerem a eventos como aquele de lançamento da candidatura presidencial de Maia o farão não em apoio — mas em solidariedade. Talvez em manifestação de pêsames. Afinal, há limites para se soltar balão de ensaio. O principal deles: que não estoure.
Carlos Andreazza é editor de livros
‘Não visto essa carapuça e não aceito esse rótulo.” A fala é de ACM Neto, presidente do DEM, em entrevista à “Folha de S.Paulo” e em resposta à indagação sobre o partido ser considerado conservador. A sentença — a rejeição ao conservadorismo segundo o prefeito de Salvador — é breve. Caudalosa é a incultura que contém.
É sempre grotesco o efeito do desconhecimento num jovem poderoso, porque daí derivam desesperança e perigo. Tanto quanto será sempre ridículo querer educar um jovem poderoso, porque daí derivariam pretensão e perda de tempo. Afinal, esse rapaz pode ir longe na política partidária mesmo ignorando a contribuição decisiva do conservadorismo para a fortaleza de valores que fundamentam a atividade pública na civilização ocidental; mesmo jamais sabendo que a conformação institucional do complexo em que disputa eleições e em que encontra balizas para governar é obra erguida pelos séculos de exercício do pensamento conservador.
O tipo pode até presidir o Brasil — quantos já o fizeram — desconhecendo que os princípios do estado de direito são pilares erguidos e defendidos pelas ideias conservadoras; mas, desde a cadeira em que estiver, será eterno refém da hegemonia esquerdista. É o caso de ACM Neto. Mais um sequestrado pelo método de desinformação — pela cultura de deturpação de conceitos — que faz alguém repelir algo não pelo que realmente seja, mas pelo que seus destruidores dizem que é. Assim, pela mão esquerda do gesseiro, ACM Neto encontra seu teto: não veste a carapuça do conservadorismo porque despreza o rótulo de ser alguém que quer conservar as desigualdades. Não é isso? Não é isso o conservadorismo segundo os petistas?
Pois é a isso que adere o presidente do DEM, com medinho de ser de direita, ao validar um debate público fundado todo em falácias. Eis ACM Neto, calcificado pelo sistema já antes dos 40 anos, alfabetizado pela gramática revolucionária enquanto se julga algo novo na política: mais um tocado, pela insciência, a reagir a um estigma negativo a partir da estigmatização desonesta original que é incapaz de distinguir.
A entrevista, contudo, não se esgota na ignorância. Questionado sobre fato de o DEM ter minguado durante os governos do PT, saiu-se com mistificação: “O partido teve coragem de remar contra a maré para manter seus princípios. Isso nos custou.” Não é verdade. O DEM não teve coragem alguma. Foi frouxo. Covarde. Burro e covarde. Deixou-se levar pela correnteza petista. Recusou as bandeiras econômicas liberais e a origem conservadora do PFL, e nem sequer soube esboçar a luta política contra a esquerda. Por isso, quase acabou. E nada aprendeu — conforme indicam as declarações de ACM Neto.
Perguntado, por exemplo, sobre o tal Estado mínimo, em vez de falar sobre redução da máquina pública, superfície na qual a corrupção se alastra, acoelhou-se para pregar a manutenção daquilo que “o Estado se propõe a fazer” — como se o Estado não se propusesse a fazer tudo, e como se esse não fosse exatamente o problema. É discurso de quem se quer irrelevante — desnecessário. Rodrigo Maia não fica atrás: tem Brizola como referência. Chegamos a 2018, e essa gente ainda se desfaz do lote eleitoral que historicamente possui para disputar com o PT o terreno do “social”. O que dizer?
Qual o destino, na política, dos que, negando-se a encarnar contraponto para o qual há consistente demanda, posição ademais legítima, no entanto escolhem explorar o território dominado pelo adversário e lutar para lhe ter um quinhão? A insistirem nisso, em quanto tempo teremos o anúncio de uma nova refundação do DEM, promovida por ACM Bisneto e Cesar Maia Neto?
Aliás, em que consiste o atual renascimento desse partido? Qual o mérito de sua recuperação se não decorrente do voto? O DEM encorpou sua representação no Congresso, foi feliz no negócio da janela partidária e adquiriu mais parlamentares para si. E daí? Será isso efeito da duvidável potência em ascensão do partido, que nem sequer tem um governador, ou da óbvia influência de um presidente da Câmara em busca de cacifar seu projeto de poder individual?
Ninguém leva a sério a candidatura presidencial de Maia. Isso não quer dizer que não nos comunique sobre a irresponsabilidade de um partido modesto cuja direção constrange a realidade com surtos de grandeza e independência, em vez de se comprometer com a briga política por meio da qual teria contribuição estratégica a dar para o país.
Se o DEM quer mesmo trabalhar por derrotar a esquerda, se deseja enfraquecer nacionalmente o PT, deveria deixar de bravata e se dedicar a vencer a disputa que pode — a eleição para governador da Bahia. É o desafio que o mundo real impõe a ACM Neto: que tenha senso de proporções, assuma o que é, supere o medinho de perder e encontre a coragem de se lançar candidato a governar o estado de cuja capital é prefeito. É movimento natural para si — e para o crescimento do DEM, se tal se quiser verdadeiro.
Enquanto assim não for, os líderes de outros partidos que comparecerem a eventos como aquele de lançamento da candidatura presidencial de Maia o farão não em apoio — mas em solidariedade. Talvez em manifestação de pêsames. Afinal, há limites para se soltar balão de ensaio. O principal deles: que não estoure.
Carlos Andreazza é editor de livros
Honorários e privilégios - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S. Paulo - 13/03
Não foi obra de amadores a captura do Estado para interesses corporativos e pessoais. É gente que conhece o riscado, ágil em vincular as manobras a dispositivos legais.
O debate sobre a reforma da Previdência contribuiu para mostrar à população a discrepância dos regimes previdenciários do servidor público e do trabalhador da iniciativa privada. Há, no País, uma classe de privilegiados, que desfruta de facilidades e condições inacessíveis à maioria da população. Os privilégios, no entanto, não se restringem às aposentadorias e pensões. O problema é mais amplo e mais arraigado. São décadas de pressão política de parte do funcionalismo público, com o objetivo de incorporar continuamente novos benefícios para sua turma.
Não foi obra de amadores essa captura do Estado para interesses corporativos e pessoais. É gente que conhece o riscado, ágil em vincular suas manobras a dispositivos legais. Sua tática é assegurar um caráter de legalidade aos privilégios de que desfrutam, como meio de perpetuar suas práticas.
Recentemente, veio à tona mais um caso escandaloso. A Eletrobrás e a Eletropaulo chegaram a um entendimento sobre uma antiga disputa judicial, relativa a um empréstimo feito à distribuidora paulista em 1986. No acordo, estabeleceu-se que a Eletropaulo deverá pagar à Eletrobrás R$ 1,4 bilhão, dividido em cinco parcelas ao longo de 48 meses.
O pacto contém, no entanto, um pequeno detalhe. Os advogados da Eletrobrás asseguraram no acordo que eles deverão receber da Eletropaulo R$ 100 milhões a título de honorários de sucumbência. Ou seja, os advogados da estatal receberam, durante todo o processo, seus respectivos salários – o trabalho realizado foi devidamente remunerado – e ainda conseguiram acrescentar, na assinatura do acordo, um generoso cachê adicional.
Esse tipo de manobra perverte o sentido dos honorários de sucumbência. Se é cabível algum ressarcimento em função de todo o processo judicial, quem merece essa indenização é a Eletrobrás, que teve sua equipe jurídica ocupada por tanto tempo com essa demanda. Foi a empresa estatal que sofreu os danos e os riscos do processo judicial.
Até algum tempo atrás, não havia dúvidas sobre esse ponto. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou vasta jurisprudência no sentido de que “a titularidade dos honorários advocatícios de sucumbência, quando vencedora a Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou as autarquias, as fundações instituídas pelo Poder Público, ou as empresas públicas, ou as sociedades de economia mista, não constituem direito autônomo do procurador judicial, porque integram o patrimônio público da entidade”.
Esse respeito à coisa pública foi abalroado, no entanto, pelo intenso lobby de algumas corporações públicas. Na redação do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), incluiu-se um parágrafo – o casuístico § 19 do artigo que regula os honorários – para dizer que “os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”.
A confirmar a força das corporações, já no ano seguinte, em 2016, foi aprovada a Lei 13.327, que regulamentou os honorários de sucumbência das carreiras públicas. Fixou-se, por exemplo, que os honorários devem ser distribuídos também entre os funcionários inativos. Não se vê qualquer menção a critério de rateio por mérito, produtividade ou eficiência. “Os valores dos honorários devidos serão calculados segundo o tempo de efetivo exercício no cargo, para os ativos, e pelo tempo de aposentadoria, para os inativos”, diz o art. 31.
Também foi criado um Conselho Curador dos Honorários Advocatícios, para, entre outras funções, “adotar as providências necessárias para que os honorários advocatícios (...) sejam creditados pontualmente”. Não falta diligência na defesa dos interesses da esperta rapaziada.
Os R$ 100 milhões de honorários para os advogados da Eletrobrás lembram a tremenda injustiça dessa legislação enviesada, que de forma tão desavergonhada repassa o que é público a alguns poucos. É preciso dar fim, o quanto antes, também a esse privilégio.
Não foi obra de amadores a captura do Estado para interesses corporativos e pessoais. É gente que conhece o riscado, ágil em vincular as manobras a dispositivos legais.
O debate sobre a reforma da Previdência contribuiu para mostrar à população a discrepância dos regimes previdenciários do servidor público e do trabalhador da iniciativa privada. Há, no País, uma classe de privilegiados, que desfruta de facilidades e condições inacessíveis à maioria da população. Os privilégios, no entanto, não se restringem às aposentadorias e pensões. O problema é mais amplo e mais arraigado. São décadas de pressão política de parte do funcionalismo público, com o objetivo de incorporar continuamente novos benefícios para sua turma.
Não foi obra de amadores essa captura do Estado para interesses corporativos e pessoais. É gente que conhece o riscado, ágil em vincular suas manobras a dispositivos legais. Sua tática é assegurar um caráter de legalidade aos privilégios de que desfrutam, como meio de perpetuar suas práticas.
Recentemente, veio à tona mais um caso escandaloso. A Eletrobrás e a Eletropaulo chegaram a um entendimento sobre uma antiga disputa judicial, relativa a um empréstimo feito à distribuidora paulista em 1986. No acordo, estabeleceu-se que a Eletropaulo deverá pagar à Eletrobrás R$ 1,4 bilhão, dividido em cinco parcelas ao longo de 48 meses.
O pacto contém, no entanto, um pequeno detalhe. Os advogados da Eletrobrás asseguraram no acordo que eles deverão receber da Eletropaulo R$ 100 milhões a título de honorários de sucumbência. Ou seja, os advogados da estatal receberam, durante todo o processo, seus respectivos salários – o trabalho realizado foi devidamente remunerado – e ainda conseguiram acrescentar, na assinatura do acordo, um generoso cachê adicional.
Esse tipo de manobra perverte o sentido dos honorários de sucumbência. Se é cabível algum ressarcimento em função de todo o processo judicial, quem merece essa indenização é a Eletrobrás, que teve sua equipe jurídica ocupada por tanto tempo com essa demanda. Foi a empresa estatal que sofreu os danos e os riscos do processo judicial.
Até algum tempo atrás, não havia dúvidas sobre esse ponto. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou vasta jurisprudência no sentido de que “a titularidade dos honorários advocatícios de sucumbência, quando vencedora a Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou as autarquias, as fundações instituídas pelo Poder Público, ou as empresas públicas, ou as sociedades de economia mista, não constituem direito autônomo do procurador judicial, porque integram o patrimônio público da entidade”.
Esse respeito à coisa pública foi abalroado, no entanto, pelo intenso lobby de algumas corporações públicas. Na redação do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), incluiu-se um parágrafo – o casuístico § 19 do artigo que regula os honorários – para dizer que “os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”.
A confirmar a força das corporações, já no ano seguinte, em 2016, foi aprovada a Lei 13.327, que regulamentou os honorários de sucumbência das carreiras públicas. Fixou-se, por exemplo, que os honorários devem ser distribuídos também entre os funcionários inativos. Não se vê qualquer menção a critério de rateio por mérito, produtividade ou eficiência. “Os valores dos honorários devidos serão calculados segundo o tempo de efetivo exercício no cargo, para os ativos, e pelo tempo de aposentadoria, para os inativos”, diz o art. 31.
Também foi criado um Conselho Curador dos Honorários Advocatícios, para, entre outras funções, “adotar as providências necessárias para que os honorários advocatícios (...) sejam creditados pontualmente”. Não falta diligência na defesa dos interesses da esperta rapaziada.
Os R$ 100 milhões de honorários para os advogados da Eletrobrás lembram a tremenda injustiça dessa legislação enviesada, que de forma tão desavergonhada repassa o que é público a alguns poucos. É preciso dar fim, o quanto antes, também a esse privilégio.
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