ESTADÃO - 09/06
Político e intelectual missionário, avesso a dar sermão, exerceu o poder sem falsos pretextos. Em país de política inóspita e coalizões frágeis, elites apáticas, demagogias, combinou liberalismo econômico com intervenção social, sem provocar frustração.
Numa América Latina em que os intelectuais emigram e muitos reagem às críticas de forma rígida, Fernando Henrique Cardoso é exemplo admirável de quem não deixou passar a hora nem esticou provocação. Cidadão do mundo, selou compromisso com o Brasil. Com elevada capacidade de ligar fatos, conectar análises e dono de jovialidade compreensiva e receptiva a novas explanações, sua trajetória prova que é possível associar eficácia e grandeza – e felicidade – à política como ofício.
Carioca, compreendeu o mar e navegou por suas ondas. Executou reforma ambiciosa da moeda, reuniu a mais brilhante equipe de economistas, enterrou a inflação. Ousou sem impostura ou negligência. Construiu alicerces para o Estado eficiente, enfrentou oligarquias e movimentos sindicais monopolistas. Foi corajosamente impessoal na crise bancária. Sempre alertou para a racionalidade limitada da economia, a emersão do sujeito de direitos, a certeza de que só será promissora nação capaz de conduzir conjuntamente vida social e econômica.
Apontou caminhos para a modernização. Traçou fronteiras, sem sufocar a liberdade. Não mentiu sobre o que pensava, não se moveu falsamente na política. A todas as críticas que recebeu respondeu sem provocar ou perseguir. Espírito propenso ao jogo democrático, não estimulou a ferocidade de campanhas eleitorais que acham que é a pior parte que funciona. E ao reconhecer a inadequação da reeleição, deu de vez a mão a JK como os dois maiores presidentes brasileiros.
Inesperado, combinava informação, intuição e razão. Assim, quando o MST invadiu a fazenda da família o presidente não exigiu reintegração na marra, mandou o ouvidor agrário negociar. O professor preocupou-se mais com a maneira como um movimento social faz tão descuidadamente suas ações. Não viu profanação em sua adega: se são hospedes compulsórios, que bebam o vinho como desagravo à cortesia.
Coisa do Fernando, coisa da Ruth, assim o casal de mandarins distribuía os papéis e contornava com inteligência as peripécias de um governo à flor da pele. Pressionado a receber em palácio o Dalai Lama, ou a não fazer muita festa para Jiang Zemin por causa do Tibete, o governo desdobrava-se para não ferir os dois. A primeira-dama cuidava da sensibilidade espiritual do Parlamento e o presidente, do interesse material do comércio entre nações. Bem feito, melhor do que temos visto fazer a ONU.
Em pelo menos três ocasiões dele recebi elevada distinção. Própria de líder cujo poder não provocou o eclipse da razão e não separa a vida da História. Com visão de estadista, e do papel geopolítico do País na relação com a África, Fernando Henrique honrou-me com o convite para ser embaixador do Brasil em Moçambique, ainda dilacerado pelas sequelas da guerra civil. Não exigiu minha desfiliação partidária, antes a exaltou como forma de indicar ao País dividido que um valor superior às divergências governo/oposição o motivava.
Na posse de Ricardo Lagos na presidência do Chile, concedeu que políticos de oposição entrassem com ele em La Moneda, junto com Hortênsia Allende, que retornava ali quase 30 anos depois do golpe que a fez viúva de Salvador Allende. Um ano antes, em Florença, na Itália, como único representante de países em desenvolvimento, formou uma delegação pluripartidária para se reunir com os cinco maiores líderes da social-democracia do mundo – D’Alema, Blair, Clinton, Jospin e Schroeder – em conferência sobre desafio dos governos progressistas para resolver a equação entre sociedade, economia e política, no horizonte da esquerda democrática.
Uma das chaves para interpretar o sucesso de FHC é justamente sua capacidade de captar as principais difusões normativas internacionais e adaptá-las às particularidades brasileiras.
Nas políticas afirmativas sua compreensão prevaleceu. Algo que se forma desde seu estudo original sobre a questão do negro no Rio Grande do Sul, honrando seu mestre Florestan Fernandes.
Programas de saúde e inclusão social sempre miravam o fortalecimento da sociedade civil, quebraram cadeias clientelistas para sustentar uma rede de proteção ao cidadão, que diminui a desigualdade. Da constatação de que o Brasil não é um país pobre, mas injusto, à ideia de que o terceiro setor é essencial, a qualidade e a identidade de sua parceria com as formulações de dona Ruth foram um mar de luz na questão social brasileira. Que se estendeu à promoção das mulheres a altos cargos do Estado, ao abrir para elas a porta do Supremo Tribunal Federal.
Fernando Henrique, 90 anos, continua mostrando o que precisa ser abandonado para preservar o melhor que existe no Brasil. E oferecendo sua amizade ao País permite que todos continuem a usufruir suas ideias. Segue, assim, professor, aquele que só é dono do que cede aos outros. Um intelectual prático que presenteia nosso povo com mais do que poderia receber por gratidão.