quarta-feira, janeiro 31, 2018

De tombo em tombo - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Lula se vê reduzido, hoje, a contar com gente que queima pneu na rua para fechar o trânsito por umas tantas horas, e diz que isso é um ato de “resistência”


Ninguém consegue ganhar uma guerra acumulando derrotas. O ex-presidente Lula começou a perder a sua guerra quando 500.000 pessoas foram há menos de três anos à Avenida Paulista, em São Paulo, protestar contra a corrupção e dizer claramente, no fim das contas, que estavam cheias dele. Cheias dele e do PT, dos seus amigos ladrões que acabaram confessando crimes de corrupção nunca vistos antes na história deste país e das desgraças que causou ─ incluindo aí, como apoteose, essa trágica Dilma Rousseff que inventou para sentar (temporariamente, esperava ele), em sua cadeira. Lula, na ocasião, não reagiu. Achou que deveria ser um engano qualquer: como seria possível tanta gente ir à rua contra ele? Preferiu se convencer de que tudo era apenas um ajuntamento de “coxinhas” aproveitando o domingão de sol. Acreditou no Datafolha, cujas pesquisas indicavam que não havia quase ninguém na Paulista ─ parecia haver, nas fotos, mas as fotos provavelmente estavam com algum defeito. Seja como for, não quis enfrentar o problema cara a cara. Preferiu ignorar o que viu, na esperança de que aquele povo todo sumisse sozinho. Enfim: bateu em retirada ─ e assim como acontece com as derrotas, também não se pode ganhar guerras fazendo retiradas.

Lula não ganhou mais nada dali para frente. Foi perdendo uma depois da outra, e recuando a cada derrota. Pior: batia em retirada e achava que estava avançando. Confundiu o que imaginava ser uma “ofensiva política” com o que era apenas a ira do seu próprio discursório. O ex-presidente, então, mobilizava exércitos que não tinha, como o “do Stédile”. Fazia ameaças que não podia cumprir. Contava com multidões a seu favor que não existiam. Imaginava-se capaz de demitir o juiz Sérgio Moro ou de deixar o Judiciário inteiro com medo dele, e não tinha meios para fazer nenhuma das duas coisas. Chegou a supor, inclusive, que poderia ser ajudado por artistas mostrando plaquinhas contra o “golpe” no festival de cinema de Cannes ─ ou pela “opinião pública internacional”, o costumeiro rebanho de intelectuais que falam muito em inglês ou francês, mas resolvem tão pouco quanto os que falam em português. O resultado é que o mundo de Lula girava numa direção, e o mundo das coisas concretas girava na direção contrária. Sua comédia só poderia acabar como acabou: com a sua condenação, pela segunda vez em seguida, por crime de corrupção, e agora não mais por um juiz só, mas pelos três magistrados do TRF-4 de Porto Alegre. Pior impossível: perdeu por 3 a 0.

Derrotas, sobretudo quando não entendidas, em geral têm dentro de si apenas a semente de outras derrotas. Foi assim com o ex-presidente. Depois de derrotado na Avenida Paulista e nas ruas do Brasil inteiro, Lula perdeu o apoio que tinha no Congresso. As gangues de assaltantes do erário que formavam a sua “base aliada” começaram a largar de Lula em busca de um novo futuro ─ e ele não conseguiu segurar essa tropa. Tome-se um Geddel Vieira de Lima, por exemplo ─ esse dos 50 milhões enfurnados num apartamento de Salvador e residente na cadeia desde setembro do ano passado. Foi ministro de Lula durante três anos inteiros, depois peixe graúdo no governo Dilma ─ e mesmo assim o nosso gênio da “engenharia política” não conseguiu segurar o seu apoio. Geddel é apenas o representante clássico de todos; há centenas de outros e de outras. Lula, embora contasse com a máquina do governo Dilma a seu favor, foi perdendo todos ─ e deixou-se ficar em minoria no Congresso. Perdeu, também, quando foi levado por uma escolta armada para prestar depoimento na polícia. Não se ouviu, na ocasião, um pio em seu favor por parte da massa de brasileiros reais; descobriu, chocado, que podia ser enfiado num camburão de polícia a qualquer momento ─ e ninguém estava ligando a mínima para isso. Foi derrotado, não muito depois, quando tentou nomear-se “ministro” de Dilma e arrumar para si o infame “foro privilegiado” que, na opinião da massa, é apenas um esconderijo de ladrões que querem ficar livres da justiça. Foi derrotado de novo, logo em seguida, quando ficou claro que o seu lado não tinha força para fazer nem isso.

Lula sofreu mais uma derrota pavorosa, até ali a pior de todas, quando Dilma conseguiu o prodígio de ser deposta da presidência da República por 367 votos contra 137, na Câmara de Deputados ─ nada menos que 71,5% dos votos disponíveis, sem falar no seu naufrágio por 61 votos a 20 no Senado Federal, num total de 81 senadores. Para qualquer político, seria um aviso que o seu lado estava na mais miserável minoria; não tinha força para exigir nada, e muito menos para derrubar no grito o sistema Judiciário do Brasil, só porque estava sendo incomodado por um juiz de direito de Curitiba. Para Lula, não houve nada. Como o seu partido, disse que tudo foi um simples “golpe” e que a CUT, a UNE, o MST, os bispos, os sem teto e os etcs. jamais iriam aceitar isso. Somados, não juntavam três estilingues ─ mas Lula achou que conseguiriam salvá-lo. Daí para diante foi apenas de mal a pior. Quis enfrentar o juiz Sérgio Moro num concurso de popularidade. Perdeu. Quis se safar com truquezinhos de advogado. Não deu certo. Tentou passar recibos falsos. Falhou de novo.

Mais que tudo, Lula nunca percebeu que o Brasil, apesar de todos os seus atrasos, já saiu um pouco do século XIX. Como José Sarney, Renan Calheiros e o restante do Brasil da senzala, não conseguiu entender que existe hoje, na vida real, uma parte do sistema de Justiça que não depende de quem manda no governo, como foi durante séculos. Poder Judiciário, para Lula, é uma força auxiliar dos donos do governo, dos que têm influência e bons “índices de pesquisa”. Estão lá para “acertar”, ajudar e resolver. Tem um juiz atrapalhando? Tira o juiz. É Maranhão puro. No seu caso, quando enfim se deu conta que não estava funcionando assim, entrou em pane ─ “espanou”, como se diz, e perdeu de vez o rumo. Ao fim, veio a derrota mais arrasadora, do seu ponto de vista pessoal. Foi condenado como ladrão, e demolido de vez, agora, com o aumento da sua sentença de 9,5 para 12 anos de cadeia no Tribunal que está acima de Moro ─ com provas que não podem mais ser contestadas. Fim da história ─ sem contar a batelada de processos penais que ainda tem pela frente.

Lula se vê reduzido, hoje, a contar com gente que queima pneu na rua para fechar o trânsito por umas tantas horas, e diz que isso é um ato de “resistência” política. Põe na praça manifestantes que correm da polícia. Manda milícias sindicalistas proibir que trabalhadores entrem em seus locais de trabalho ─ frequentemente, acabam apenas levando uns tapas e desistem de seus piquetes. Pode, como sabotagem, organizar greves de funcionários públicos; mas isso só funcionaria se as greves durassem pelo resto da vida. Pode, também, tumultuar as eleições. No mais, sobram-lhe os “intelectuais”, artistas da Globo que assinam manifestos, a classe média urbana que não precisa pegar no pesado e a elite milionária ─ que tem aí mais uma oportunidade de fingir-se de “esquerda civilizada” sem correr risco nenhum. Não é grande coisa. Não dá para fazer uma revolução bolivariana. Não dá para tomar de volta o Brasil.

Temer tirou o país do buraco em que o PT o jogou, mas 70% o rejeitam. É a soma de direita xucra, esquerda sagaz e ‘globismo’ - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL - 31/01

Escrevi há tempos que o presidente Michel Temer tinha tudo para entrar para a história como o mais injustiçado da República. Por enquanto, a escrita está se cumprindo. Segundo o Datafolha, 70% o consideram ruim ou péssimo — já houve pico de 73%; apenas 4% o veem como ótimo ou bom; o fundo do poço já foi de 2%; para 22%, o governo é regular.

Temer assumiu a Presidência interinamente no dia 12 de maio de 2016. Pesquisa Datafolha do dia 31 de junho apontava que seu governo era ruim ou péssimo para 31% dos entrevistados; 42% o consideravam regular, e 13% o avaliavam como ótimo e bom.

Vamos tentar entender o que aconteceu nesse intervalo:
– a inflação caiu de mais de 10% para 2,95%;
– a taxa Selic caiu de 14,25% para 7%;
– foi aprovado o teto de gastos:
– governo muda o marco regulador do pré-sal e retoma a produção;
– tem início a necessária reforma do ensino médio;
– governo aprova a MP que reestrutura o setor elétrico, que Dilma havia quebrado;
– país saiu de uma recessão de 3,6% para um crescimento em torno de 1% em 2017 e, estima-se, de mais de 3% em 2018;
– muda a curva do emprego; desemprego tem uma queda acentuada;
– país faz a reforma trabalhista;
– governo reajustou o valor do Bolsa Família;
– todos os programas sociais foram mantidos, sem cortes.

E, claro, a vida dos brasileiros pobres continua difícil.

Vamos ao ponto. Não há um só motivo objetivo para que os brasileiros façam avaliação tão negativa do governo.

Assim, pergunte-se e responda-se: a voz do povo é a voz de Deus? Não mesmo! Às vezes, reproduz a algaravia da legião de capetas que tentam o regime democrático.

Temer assumiu sob cerco da esquerda, especialmente dos petistas, que passaram a lhe atribuir os males que eles próprios haviam fabricado na economia. O país foi sacudido por ondas de “Fora Temer!”, “abaixo o golpe”. A direita xucra, em vez de perceber a armadilha petista, ajudou a armá-la. Por burrice, sim, mas por oportunismo também. Algumas das ditas “lideranças” de movimentos de rua lançaram suas respectivas candidaturas. Que importa que o país se dane? Daqui a pouco, alguns deles estarão aboletados em postos do estamento político. Sic transit gloria mundi. No país, temos ladrões de dinheiro público e ladrões da verdade dos fatos — o que não quer dizer que não roubem ou venham a roubar também dinheiro público. Adiante.

Esse clima levou a rejeição a Temer perto dos 60%. Atingiu o patamar dos 70% com o que chamo de duas tentativas de golpe patrocinadas por uma associação entre Rodrigo Janot, setores do STF — notadamente Edson Fachin e Cármen Lúcia — e os veículos (sem exceção!) do grupo Globo. A ordem era derrubar o presidente. Da gravação feita por Joesley Batista àquilo a que se chamou “operação controlada”, nada por ali era legal. Muito pelo contrário. O conjunto da obra se mostrou uma soma impressionante de agressões à lei.

A operação resultou em duas denúncias. A propósito: dia desses, li um artigo em que o autor tratava o Brasil, embora seja ele brasileiro, como um jardim zoológico de humanos exotismos. Entre estes, incluía o fato de que o presidente foi denunciado duas vezes pela Procuradoria Geral da República. Deveria acrescentar outra esquisitice ao nosso rol de particularidades. Em que outro lugar do mundo um procurador-geral faz duas denúncias sem apresentar provas, sendo que uma delas decorre de uma espécie de licitação aberta entre meliantes para ver quem acusa o presidente?

Temer, convenham, é resiliente até demais. Outros teriam sucumbido.

Não fosse a patuscada golpista, o país já teria aprovado a reforma da Previdência, e na sua versão mais incorporada, e estaríamos já em outro patamar não apenas de expectativas, mas de ganhos econômicos efetivos. Em vez disso, essa soma exótica de MPF, direita xucra e imprensa-com-partido (o partido do “derruba-presidente-pra-provar-sua-moral-elevada”) resultou nos números que o DataFolha revela nesta quarta: os idiotas precisam se ajoelhar aos pés de tribunais que tomam decisões discricionárias para tentar evitar a eleição daquela mesma esquerda que levou o país ao buraco — buraco do qual nos tirou o governo Temer, que, não obstante, conta com a reprovação de 70% daqueles que por ele foram beneficiados, sim.

Dito assim, parece que o país não tem saída.

Deve ter alguma. Por enquanto, tateamos no túnel. E ainda não se vê nem mesmo a luz bruxuleante de uma vela.

Se queremos acabar com os urubus, basta acabar com a carniça - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 31/01

A condenação do ex-presidente Lula é, até agora, o cume de um processo doloroso, em que o país vê expostas as entranhas da corrupção numa dimensão que surpreende até os mais cínicos.

Por onde se olhe não parece haver no mundo político convencional alternativa que não esteja ligada, de alguma forma, ao pervasivo fenômeno de exploração do setor público para fins de enriquecimento pessoal ou financiamento de campanhas (a destinação dos recursos não alivia em nada a sujeira da sua origem).

Já tive oportunidade de explorar aqui as consequências nefastas da caça à renda (da qual a corrupção é a faceta mais tenebrosa) para o crescimento, tema que foi também trabalhado por Samuel Pessôa em sua coluna mais recente com a competência habitual.

Em suma, a caça à renda desvia a busca do lucro da inovação para a captura de recursos, levando ao menor crescimento e, portanto, piores condições de vida, processo detalhadamente explicado por Acemoglu e Robinson em "Por Que as Nações Fracassam", livro indispensável para entender o Brasil e seus dilemas.

Uma vez estabelecida a ligação entre a caça à renda e o baixo desempenho econômico, resta saber como poderíamos romper esse elo e, tão importante quanto, se há alguma chance de fazê-lo.

Francamente, não vejo outro modo de acabar com isso que não passe por uma mudança radical da forma como organizamos nossa economia, em particular como o poder público intervém no domínio econômico.

Está cada vez mais claro que as diversas dimensões da intervenção estatal na economia oferecem aos caçadores de renda, entre eles os corruptos, um amplo manancial de oportunidades.

Vimos isso na Petrobras, vimos isto também na compra de medidas provisórias, na busca por desonerações tributárias, na escolha de "campeões nacionais" (JBS, por exemplo) e na enésima tentativa de ressuscitar a indústria naval, para citar, de memória, uns poucos exemplos.

A lista poderia se estender por bem mais do que os 3.200 caracteres aqui permitidos, mas apenas os casos aqui lembrados dão uma ideia, ainda que pálida, das imensas possibilidades de venda e compra de favores que a atual organização econômica do país permite.

Ocioso, no caso, discutir se a iniciativa parte dos compradores ou vendedores; o que importa é que onde há carniça é para lá que voam os urubus. Assim, se queremos acabar com os urubus, a solução é óbvia: basta acabar com a carniça.

Metáforas de gosto duvidoso à parte (perdão, mas ando bem revoltado), não vejo saída que não passe por ampla privatização e redução drástica da intervenção estatal.

Vai acontecer? A resposta honesta é "não sei", mas confesso ao raro leitor que não tenho muita esperança que nenhuma proposta nesse sentido acabe endossada pela população nas eleições. Reclama-se da corrupção, mas ninguém parece seriamente interessado em acabar com sua origem.

*

Márcio "Maria Antonieta" Holland ainda não entendeu que minha repugnância se limita às ideias econômicas das quais é veículo, seja na sua insistente divulgação, seja, de forma ainda mais grave, na sua aplicação sob a forma da Nova Matriz, que nos levou à pior recessão em quase 40 anos.

Já sua figura pessoal é irrelevante; se me importasse com ela, provavelmente a desprezaria.

Banco estatal derruba o crédito - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 31/01

OS BANCOS estatais foram responsáveis por 99% da redução do crédito no ano passado. O BNDES sozinho causou a baixa de 74% do total de empréstimos.

Encolher o BNDES é uma política deliberada dos economistas de Michel Temer. O banco ficou menor também porque as empresas pediram menos empréstimos, obviamente por causa da recessão e da falta de perspectivas de crescimento acelerado.

Além do mais, acabou a mamata de empréstimos concedidos a taxas de juros negativas ou, de qualquer modo, subsidiados além da conta, o que por vezes financiava indiretamente até a distribuição de dividendos pelas empresas.

Em 2015 e 2016, o total de dinheiro emprestado pelo BNDES (estoque de crédito) diminuiu mais de R$ 140 bilhões. Mas o banco não ficou pequeno.

O bancão de desenvolvimento ainda tem 17,5% do total dos empréstimos bancários do país. É o mesmo tamanho de 2009, penúltimo ano do governo Lula 2, quando se começava a inflar o banco a fim de combater uma crise econômica que, enfim, já acabava (foi a breve e rasa recessão causada pela crise financeira mundial de 2008).

Cevado sob Dilma Rousseff, o banco serviria muita vez para facilitar a criação de oligopólios, a fusão de empresas avariadas por incompetências financeiras grosseiras na crise de 2008 e para financiar também projetos ruins do nacional-empresismo petista. No auge, início de 2015, chegou a ter 21,5% do estoque de empréstimos.

E agora, como fica o crédito?

O total de dinheiro emprestado pelos bancos privados ficou quase na mesma em relação a 2017. O estoque de crédito dos bancos estatais que não o BNDES caiu 2,3%. No BNDES, baixa de quase 13%.

No total, o crédito ainda diminuiu 3,4% no ano passado, em termos reais (descontada a inflação). É o terceiro ano de queda feia (10% em 2016 e 3,4% em 2015).

Para 2018, o crescimento deve ser pouco maior do que nada, embora o ritmo das concessões (novos empréstimos) se recupere de modo animado desde agosto passado.

Parte do encolhimento do BNDES foi compensada pela ressuscitação do mercado de capitais. Ou seja, pelo dinheiro que as empresas levantam por meio de debêntures, notas promissórias, letras de crédito e ações.

As captações no mercado equivaleram a 118% do dinheiro que o BNDES deixou de emprestar em 2017. Mas é preciso lembrar que o mercado de capitais vinha de três anos ruins, desde 2014.

Em 2018 vamos ter um teste melhor da capacidade do mercado de substituir o crédito de longo prazo e/ou barato de bancos estatais, embora o ano seja outra vez atípico e prejudicado pelas incertezas da eleição.

Ainda assim, vamos saber algo mais sobre como financiar negócio de longo prazo no Brasil e de onde sairá dinheiro para bancar a construção de infraestrutura em áreas ou setores essenciais que não interessem ao dinheiro privado.

Pelos resultados de 2017, parece razoável, pelo menos em parte, a tese de que o mercado de capitais é diminuto porque o BNDES ocupava muito espaço. Mas o ano passado foi de recuperação de crise e de antecipação de dinheiro que talvez ficasse caro ou indisponível neste 2018 de eleição. Vamos ver se não foi fogo de palha.

Não precisamos de uma “jurisprudência Lula” - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 31/01

Cármen Lúcia diz que, no que depender dela, o tema do início do cumprimento da pena após decisão de segunda instância não volta ao STF


A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, deixou claro em jantar promovido pelo site Poder360 que, se depender dela, não haverá julgamento em plenário para reverter o entendimento atual da corte a respeito da prisão após condenação em segunda instância e, com isso, beneficiar o ex-presidente Lula. Segundo a ministra, isso seria “apequenar o Judiciário” – e felizmente ela tem essa percepção, porque reduzir o Supremo Tribunal Federal a um chancelador da vontade de determinados partidos políticos é justamente o que se pretende fazer neste momento sensível da história do país.

Em duas votações no fim de 2016, pela apertada maioria de seis votos a cinco, o STF decidiu que o cumprimento da pena poderia começar após a decisão de tribunais de segunda instância – seja os Tribunais Regionais Federais, na Justiça Federal, ou os Tribunais de Justiça, nos estados. A decisão não criou uma obrigação, e nem a prisão é automática – em cada caso, é preciso que os magistrados responsáveis pelos julgamentos determinem que o condenado inicie o cumprimento da pena.

A última coisa de que o país precisa é ver sua suprema corte rebaixada 
As primeiras rachaduras neste dique foram abertas pelo ministro Gilmar Mendes, um dos que haviam votado com a maioria no julgamento de 2016. No segundo semestre do ano passado, Mendes concedeu habeas corpus em benefício de um empresário que já tinha contra si decisão em segunda instância por crime contra a ordem tributária, e deu a entender que, se o tema voltasse ao plenário do Supremo, mudaria sua posição. Isso não impediu que, em dezembro do ano passado, Mendes negasse habeas corpus semelhante, dessa vez solicitado pela defesa de um condenado por homicídio culposo.

E, com a decisão do TRF4 que confirmou a condenação de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, os defensores do petista, sabedores da possibilidade de uma reversão no entendimento que pelo menos livre Lula da cadeia neste momento (questão que não tem ligação alguma com a sua inelegibilidade no pleito de outubro), inventaram uma certa “urgência”: o Supremo teria que rediscutir a questão em nome de uma suposta “pacificação” da jurisprudência – como se os ministros já não tivessem tratado do tema mais de uma vez.

Claro que o objetivo não declarado (mas também não ocultado) desse tipo de pressão sobre Cármen Lúcia é a criação de uma “jurisprudência Lula”, oportunamente feita para beneficiar o ex-presidente, cujo processo no TRF4 terminará assim que o tribunal analisar os embargos de declaração a que a defesa tem direito. Ora, isso seria o cúmulo do casuísmo, uma situação em que uma corte tomaria uma decisão tomando como o critério principal o nome do réu, e não o mérito da questão propriamente dita. Neste caso, sim, o STF estaria agindo como um tribunal político, e não jurídico – justamente aquilo de que os petistas vivem acusando indevidamente o Supremo.

Infelizmente, a própria presidente do STF deu a entender que, apesar de sua convicção, há brechas para o tema voltar ao plenário. “Se acontecer de alguém levar em mesa, é outra coisa, não é pauta do presidente”, afirmou, sem dar mais explicações. De fato, há certos tipos de ações que podem “atravessar a pauta”, mas mesmo assim continua sendo prerrogativa do presidente da corte definir os temas do dia, e inclusive a ordem em que serão discutidos em cada sessão. Cármen Lúcia julgou desnecessário explicar mais sobre essa situação aos jornalistas e empresários presentes ao jantar por julgá-la hipotética, e só resta esperar mesmo que se trate de uma possibilidade bastante remota. A última coisa de que o país precisa é ver sua suprema corte rebaixada, colocada a serviço de um projeto político que agride a democracia ou de um líder populista condenado por corrupção.

Quatro mitos sobre a reforma tributária - MELINA ROCHA LUKIC, VANESSA RAHAL CANADO E ANA CAROLINA MONGUILOD

O Estado de S.Paulo - 31/01

A reforma tributária volta ao centro do debate político. Várias propostas estão em discussão. A maioria, no entanto, não defende uma questão crucial no que diz respeito à tributação sobre o consumo: o melhor modelo é aquele em que tudo e todos sejam tratados de maneira igual. De nada adianta uma reforma que não traga maior simplificação tributária e esta só será atingida se o novo modelo não comportar exceções, regimes especiais e alíquotas diversificadas, nem diferenciação de qualquer natureza entre os setores. Na defesa de um sistema tributário mais slim – no termo cunhado por Rita de La Feria – algumas falácias devem ser desconstruídas.

A primeira é a que defende a diferenciação de alíquotas conforme o produto. Atualmente, a diversidade de regimes e alíquotas tem trazido como consequência uma maior complexidade do sistema, um aumento da insegurança jurídica e da litigiosidade administrativa e judicial.

É impossível que a lei traga um rol exaustivo de todos os produtos existentes e que poderão vir a existir. Sempre haverá espaço para interpretação quanto ao enquadramento de determinado produto em determinada alíquota ou regime especial. Os “crocs” são sandálias de borracha ou sapatos impermeáveis? Barrinhas de cereais são produtos de confeitaria ou preparações de cereais? Esses são só alguns exemplos de discussões recentes no Brasil.

Nem as empresas, muito menos os órgãos do poder público, devem perder tempo e recursos com esse tipo de discussão. Um modelo de tributação sobre o consumo deve evitar essas diferenciações, para que o sistema se torne mais eficaz, simples e previsível.

Outra falácia é a de que os produtos essenciais devem ser menos onerados para que a carga tributária não se concentre nos mais pobres. De acordo com a Constituição da República, a tributação sobre o consumo deve ser seletiva em função da essencialidade do produto. Ou seja, produtos mais essenciais deveriam ser desonerados ou menos tributados. Acontece que, na prática, não funciona assim. Primeiro, porque a definição do que é essencial e do que não é, além de subjetiva, não é fácil. Energia elétrica, “bem” que deveria ser considerado dos mais essenciais, sofre altíssima tributação por questões de facilidade de arrecadação. Além disso, temos ao menos 27 diferentes conceitos de bem essencial nas legislações dos Estados para fins de menor tributação. Em segundo lugar, porque ao desonerar a cesta básica estamos, na verdade, dando um grande benefício aos mais ricos, que consomem muito mais que os mais pobres em termos nominais. O inverso também é verdadeiro: ao tributar produtos supérfluos mais pesadamente, prejudicamos os mais pobres que também consumem tais produtos – por exemplo, artigos de perfumaria.

É claro que nesse debate devemos considerar que nosso sistema, ao contrário da maior parte dos países, concentra a carga tributária nos impostos sobre o consumo e isso faz com que as famílias pobres paguem, em relação à sua renda, mais tributos do que as famílias mais ricas. Nosso sistema é, sim, regressivo. A solução, no entanto, não é estipular diferenciações na tributação indireta, mas reestruturar o sistema de tributação sobre a renda e a propriedade (nos quais a progressividade pode ser mais bem aplicada) e utilizar o dinheiro arrecadado sobre o consumo dos mais ricos para aumentar os recursos das transferências de renda aos mais pobres, por exemplo.

A terceira falácia é a necessidade de diferenciação entre os setores. Nos países que adotam modelo IVA (imposto sobre valor adicionado), produção, comércio e serviços são submetidos às mesmas regras e alíquotas. O setor de serviços no Brasil argumenta que os demais setores – indústria e comércio – têm direito a créditos dos seus insumos, enquanto os serviços não têm. Essa afirmação desconsidera toda a lógica da tributação indireta sobre o consumo, em que o ônus econômico do tributo recai a priori sobre o consumidor final. Isso quer dizer que o IVA não onera as empresas, que funcionam como meros agentes arrecadatórios, incluindo no preço o valor desse tributo. Essa percepção também desconsidera o fato de que o valor adicionado dos serviços é concentrado numa única etapa, pois geralmente fornecem diretamente ao consumidor final. Já os demais setores estão estruturados em cadeia e o recolhimento do tributo é feito ao longo dela com base no valor adicionado em cada etapa. Além disso, trazer o setor de serviços – mais de 70% do nosso PIB – para a base de um IVA possibilitará que a carga dos demais setores seja diminuída, o que trará enorme benefício à economia – maior competitividade no cenário internacional e maior possibilidade de atração de investimentos.

A última falácia diz respeito à inadequação dos tributos sobre o consumo diante das novas tecnologias. De fato, pensar a tributação da economia digital à luz do nosso atual sistema é tão anacrônico quanto considerar que um computador possa ser movido a carvão. Não tem como funcionar. A distinção outrora clássica entre indústria, comércio e serviços, na qual se baseou nosso sistema tributário na década de 1960, não serve mais para explicar fenômenos como Netflix, Uber, Airbnb ou mesmo Amazon. Isso não significa, contudo, que o IVA seja um imposto velho para um mundo novo. Com base ampla, flexibilidade no design normativo e cooperação internacional para arrecadação nas importações, não só essas, mas também as futuras tecnologias digitais estariam capturadas pela tributação sobre o consumo.

Enfim, essas falácias não podem mais dominar o debate e continuar a impedir a adoção de um novo sistema tributário mais racional, mais slim: eficaz do ponto de vista arrecadatório e econômico e que traga mais isonomia e segurança jurídica aos contribuintes.

O julgamento - ROBERTO DAMATTA

O Globo - 31/01

Na contramão dos axiomas do poder à brasileira, um ex-presidente emblemático da defesa dos oprimidos foi desmascarado e condenado


Nos regimes democráticos há o julgamento público, gravado, filmado e televisionado. Uma anormalidade produz uma crise; há um acusado que, tendo o direito de defesa, promove uma disputa, a qual é levada a um juiz que, num julgamento aberto e invocando a lei, fecha o processo.

O antropólogo Victor Turner estudou as crises como “dramas sociais”. Os conflitos recorrentes que investigou entre os ndembu de Zâmbia levavam à segmentação e a uma indesejável perda de continuidade coletiva. Para Turner, processos agudos de disputa interna são marcados por quatro momentos interdependentes. O primeiro seria o da crise, quando comportamentos fogem das normas; o segundo é o do distúrbio por ela causada. O terceiro aciona tentativas de reparação e compensação do malfeito. Nesta etapa, entra em cena a turma do deixa-disso com o objetivo de mitigar os pontos de vista em colisão. Numa quarta e última fase, ocorreria rearranjo, concordância ou cisão. Uma modificação das rotinas tradicionais ou o rompimento do grupo em duas comunidades. Parece familiar, não?

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Na ausência daquilo que o historiador inglês E. P. Thompson chamou de the rule of law — o domínio da lei —, são os incomodados que se mudam. Nas ditaduras, eles são presos ou eliminados, como é comum nas crises sem a mediação de um juízo público englobador. Nos conflitos tribais, investigados por Turner, a norma costumeira levava à bifurcação. Nas sociedades nacionais, a lei escrita e promulgada, aceita por todos e diretamente afastada dos conflitos, é invocada e pode até mesmo ser usada contra aqueles que detêm o poder — controle do contexto. O “domínio do fato”, como foi mencionado na condenação unânime e histórica do ex-presidente Lula — uma persona social dotada de um imenso “capital simbólico”, para que ninguém diga que eu não gosto e não leio, além de Marx, Pierre Bourdieu.
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O julgamento foi extraordinário. Pela primeira vez no Brasil, vimos desembargadores condenarem em segunda instância um ex-presidente da República. Assistimos a um drama que, depois de inúmeros inquéritos e vergonhosas descobertas de gorjeta, fechava a cortina reafirmando um adormecido poder da lei aplicada a um representante máximo do poder e dos seus sequazes — aqueles que puseram a política a serviço do enriquecimento particular, em vez de se servirem dela para o enriquecimento público.

Na contramão dos axiomas do poder à brasileira, um ex-presidente emblemático da defesa dos oprimidos foi desmascarado e condenado, dissolvendo as ideologias nativas do “quanto maior menos cadeia”, do “você sabe com quem está falando” e do pós-moderno populismo, no qual todos ganham, ninguém perde e nós (os donos do poder) ganhamos mais do que todos.
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Condenou-se uma figura tabu, tida como intocável. Uma pessoa tão especial e acima da lei que é capaz de suscitar a onipotente, absurda e surreal narrativa de que, sem ela, não haveria democracia no Brasil. 
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Outra surpresa foi entender a língua dos desembargadores. Um deles, aliás, tendo consciência do rebuscamento do falar jurídico (construído para não ser entendido pelas pessoas comuns), tinha o cuidado de traduzi-lo para o português.

O ritual inovador reiterava muito do que tenho escrito neste espaço sobre as imposições dos papéis ou cargos públicos aos seus ocupantes. O julgamento foi histórico porque também recapitulou o papel de presidente da República nos seus privilégios e nos seus deveres e suficiências. O eleito em nome dos pobres e dos que queriam uma sociedade mais igualitária — o supremo magistrado da nação — pode alinhar-se aos ricos e com eles assaltar o país? Os papéis mais altos e nobres exigem mais lealdade dos seus atores. Quanto maior o cargo, maior a responsabilidade e punição.
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A narrativa de que o condenado foi vítima de uma conjuração corporativa — uma inquisição — é absurda, a menos que o julgamento não tivesse sido realizado publicamente, seguindo o processo do estado democrático de direito. Suas evidências não foram colhidas por órgãos secretos de segurança, como ocorre nas ditaduras — esses regimes, aliás, tão a gosto dos que recusam a realidade e confundem meios e fins. 
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Mas como nada se fecha no Brasil, já se projeta uma regra fora da regra: há o condenado, mas não pode haver prisão. Confunde-se desobediência civil com a tentativa de assassinar as mediações que sublimam o confronto aberto sem aviltamento dos envolvidos. É justamente no julgamento, nesse rito final, que se faz justiça não a pessoas, partidos ou facções, mas à sociedade brasileira. Sem ele, não se abre caminho para a democracia. Sua rejeição nos leva diretamente à violência que assassina mediações.

Lula diz ter consciência do que está acontecendo no Brasil. Eu jamais tive dúvidas e sobre isso fiz uma obra demonstrando o óbvio: o nosso problema é assistir como a casa sempre vence a rua, e como relacionamentos pessoais englobam a lei.

Até, quem sabe, esse julgamento.

De gambiarra em gambiarra - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 31/01

Gambiarras até funcionam, mas há riscos em utilizá-las. A instalação montada com recurso a peças improvisadas se torna menos segura e, na hipótese de uma sobrecarga, pode produzir fogo. O Brasil, por uma série de motivos, virou uma República das Gambiarras. O auxílio-moradia concedido a juízes é um bom exemplo.

Como magistrados não conseguem sensibilizar o Parlamento para aprovar todas as suas reivindicações salariais –a categoria já é a mais bem paga do serviço público e está entre o 1% com melhor remuneração em todo o país–, buscaram caminhos alternativos. A solução encontrada foi estender a todos os juízes uma verba indenizatória de R$ 4.377 mensais concebida para compensar servidores que precisam morar em cidades diferentes daquela em que têm residência.

A coisa começou até discretamente, com uma ação movida por juízes federais. Em 2014, o ministro Luiz Fux, do STF, concedeu-lhes o benefício em caráter liminar, mas a prebenda rapidamente se universalizou, abrangendo todos os magistrados e membros do Ministério Público. Estima-se que a farra já tenha custado R$ 5 bilhões.

O problema com soluções criativas como essa é que deixam fios desencapados. O aspecto legal do auxílio-moradi pode até estar coberto, mas o moral não. A extensão do benefício é percebida pela população como uma gambiarra. E, quanto mais juízes são vistos como espertalhões que não pensam duas vezes antes de abocanhar privilégios, menos são percebidos como "espectadores imparciais" (a imagem é de Adam Smith), que é o que daria credibilidade a suas decisões. É a própria confiança no Judiciário que está em jogo aqui.

Como o auxílio-moradia não é a única gambiarra de que o Brasil se serve –elas proliferam nos outros Poderes e na iniciativa privada–, é a própria ideia de República que vai se perdendo na sucessão de improvisos mal-ajambrados.

O Judiciário resolveu ser réu - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 31/01

Promotores, juízes, desembargadores e ministros não aguentam o teste da lanchonete da rodoviária


O juiz Marcelo Bretas resolveu passar de símbolo da faxina das roubalheiras do Rio de Janeiro a ícone dos penduricalhos do Judiciário. Contrariando uma resolução do Conselho Nacional de Justiça e respondendo a um questionamento da Ouvidoria da Justiça Federal, cobrou num tribunal o seu auxílio-moradia e o de sua mulher, também juíza.

Bretas sempre morou no Rio, e o casal obteve um penduricalho de R$ 8.600 mensais. Num cálculo grosseiro, para pagar uma quantia dessas à Viúva, uma pequena empresa que pague impostos pelo regime de lucro presumido precisa faturar R$ 5 mil por dia.

Bretas não é o único juiz ou promotor beneficiado pelo penduricalho. A desembargadora Marianna Fux, dona de dois apartamentos no Leblon, também recebe auxílio-moradia. Seu pai, o ministro Luiz Fux, reteve por três anos no Supremo Tribunal Federal o processo que contesta a legalidade do mimo classista.

Quando as repórteres Daniela Lima e Julia Chaib revelaram a bizarrice de Bretas, ele se explicou com a ironia dos poderosos: “Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo eu vou à Justiça e peço. Talvez devesse ficar chorando num canto, ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito.”

Pegar escondido ele não pega, mas se o doutor tem medo de castigo, não deve levar seu pleito ao balcão de uma lanchonete da rodoviária. Lá, trabalhadores que esperam pelo transporte teriam dificuldade para entender como juízes ou promotores, cujos salários iniciais estão em R$ 27.500 ou R$ 26.125, precisam de R$ 4.300 de auxílio-moradia para trabalhar na cidade em que sempre viveram. No caso de Bretas, ele deveria explicar como um casal precisa de mais R$ 4.300, morando na mesma casa.

Os penduricalhos transformaram-se numa ferida na cara do Judiciário, agravada pela má qualidade da argumentação dos doutores na defesa do mimo. Argumentam que outros servidores também recebem a prebenda. Dois erros nunca somaram um acerto. O juiz Roberto Veloso, presidente da guilda dos juízes federais, chegou a dizer que um magistrado não pode ter tranquilidade para trabalhar “se o advogado que está a seu lado está ganhando mais que ele”. Parolagem de má qualidade. Para recolher em impostos o que o casal Bretas recebe de auxílio-moradia (noves fora o salário), um advogado precisa faturar R$ 70 mil por mês. Além disso, juiz não fica sem clientes, mesmo sendo um mau servidor. Em São Paulo, um juiz condenado por extorsão está em regime semiaberto e em agosto recebeu R$ 52 mil pela sua aposentadoria.

A Lava-Jato colocou o Judiciário no centro da política nacional. Transformado em agente da moralidade pública, esse poder está empesteado pela cobiça, pelo corporativismo e pela onipotência. Bretas decidiu simbolizar as três coisas.

Há poucos dias, o professor Conrado Hübner Mendes publicou um artigo intitulado “Na prática, ministros do STF agridem a democracia”. Uma joia de coragem, informação e lógica. Expôs baixarias, contradições e auto mistificações de ministros do Supremo. Sobraram poucos. Sua amarga conclusão: “O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.”


Perigo real e imediato - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 31/01

Governo decidiu subir o tom das advertências sobre os riscos reais que o País corre no curtíssimo prazo se tudo ficar como está na Previdência. E faz muito bem


Consciente de que ainda não tem os votos necessários para fazer passar no Congresso a reforma da Previdência mesmo em sua versão mais desidratada, a despeito da inquestionável necessidade de aprová-la, o governo decidiu subir o tom de suas advertências sobre os riscos reais que o País corre no curtíssimo prazo se tudo ficar como está. E faz muito bem, pois deve ficar muito claro para todos de quem será a responsabilidade caso o sistema entre em colapso, como inevitavelmente acontecerá em breve sem a reforma, tornando-se impossível honrar o pagamento de parte dos benefícios previdenciários.

O aumento de R$ 41,9 bilhões no déficit da Previdência em um ano, fechando em R$ 268,8 bilhões em 2017, está sendo usado pelo governo como argumento inapelável na sua nova tentativa de chamar à razão os deputados que ainda não se convenceram da necessidade de reformar o sistema.

É certo que não se deve perder tempo com parlamentares que são contrários à reforma da Previdência por questões puramente ideológicas, pois estes não estão preocupados com o País, mas somente com os projetos de poder das organizações políticas das quais são soldados. Com estes, não há argumento racional que funcione nem negociação que leve a bom termo, pois quem diz que não há déficit na Previdência não pode ser levado a sério. Já os parlamentares que se dizem contrários à reforma porque temem perder votos ainda podem ser convencidos de que muito pior do que ser mal compreendido por alguns eleitores é ver-se vinculado a uma decisão legislativa que provoque a “situação catastrófica de se cortar benefícios” previdenciários, como alertou, em entrevista ao Estado, o economista Paulo Tafner, especialista em Previdência.

Tafner advertiu que estamos a apenas três anos desse desfecho, caso nada seja feito imediatamente. “Não temos tempo para negociar mais ou esticar a transição, que já é longa”, disse o economista, advertindo que o Brasil está caminhando para o colapso mais rapidamente do que Grécia e Portugal o fizeram num passado não muito distante.

Os casos grego e português são justamente o mote da nova fase da campanha do governo pela aprovação da reforma da Previdência. “Sem a reforma da Previdência, o Brasil pode se tornar a Grécia”, diz o site do governo em seção destinada a esclarecer os diversos aspectos das mudanças propostas. Na Grécia, a profunda crise fiscal que eclodiu em 2009 obrigou o país a cortar salários do funcionalismo e aposentadorias em geral – e a Grécia gastava 13% do PIB com Previdência, o mesmo que o Brasil hoje.

Já Portugal se viu obrigado a adotar uma “jurisprudência de crise” para enfrentar os efeitos da turbulência econômica verificada entre 2008 e 2011. Tamanho era o risco de insolvência do Estado que o Tribunal Constitucional português aceitou relativizar os direitos adquiridos relativos à Previdência, pois entendeu que o objetivo de preservar o equilíbrio das contas públicas, algo que atinge diretamente a todos, deveria prevalecer sobre outras demandas. E a razão disso é muito simples: um Estado quebrado não consegue honrar compromissos assegurados pelos chamados “direitos adquiridos”.

Ou seja, todos os cidadãos foram chamados a colaborar, na medida de suas possibilidades, para garantir a solvência do Estado. Ficou claro que a manutenção de direitos adquiridos ou da expectativa de direitos não pode ser uma injunção absoluta. Numa crise, os interesses maiores devem prevalecer.

Os especialistas concordam que o Brasil ainda tem algum tempo antes que tal desafio se lhe imponha, mas o prazo está ficando cada vez mais curto. Por isso, mais do que nunca, deve ficar claro que não há escolha senão aprovar a reforma da Previdência ainda neste ano, pois disso pode depender a capacidade do Estado de pagar a aposentadoria de todos num futuro próximo. Não se trata de um cenário hipotético, como mostram os exemplos de Grécia e Portugal. Os deputados ainda recalcitrantes – seja por receio eleitoral, seja para auferir algum ganho fisiológico – têm de saber com o que estão brincando.

Não é sustentável a melhoria fiscal - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 31/01

Diante do descalabro nas contas públicas, o resultado de 2017 chega a ser heroico, embora também tenha sido um déficit. Mas o relativo êxito é tópico, devido à Previdência


Se forem considerados o tamanho da crise fiscal e sua evolução, principalmente a partir de 2015, a recuperação relativa das contas públicas no ano passado chega a ser heroica. Embora, dada a gravidade do quadro, a União tenha encerrado mais um ano com um déficit bilionário, de R$ 124,4 bilhões, ele foi R$ 34,6 bilhões inferior à meta de R$ 159 bilhões.

O feito tem vários aspectos relevantes. Um deles, que o esforço de contenção de gastos do governo foi recompensado. Outro, que chegaram em bom momento receitas extraordinárias — de leilões de hidrelétricas e na área de petróleo, e o Refis. Sendo oportuno comentar, no entanto, que são receitas, como diz o termo, que não se repetem no futuro. Portanto, para que seja mantido sob controle o quadro fiscal, elas precisam ser substituídas por imposto, outras rendas extras ou corte de gastos.

Seja como for, o horizonte deste ano ficou bem mais claro. A ponto de o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, ontem, no evento “E Agora, Brasil?”, promovido pelo GLOBO, ter demonstrado relativa despreocupação com o cumprimento em 2018 da regra de ouro — é vetado pela Constituição emitir títulos de dívida para financiar gastos de custeio.

Outra limitação constitucional é o teto de gastos, obedecido no ano passado, e o será certamente neste. Mas, quanto a 2019, primeiro ano do próximo governo, continua o nevoeiro.

A questão é que o êxito de 2017 não significa que a questão fiscal foi resolvida, longe disso, porque o grande indutor de déficits públicos continua sem controle, a Previdência. E sem que ela comece a ser reformada — éo que se verá no dia 19 de fevereiro na Câmara —, nada feito. O Tesouro continuará em marcha batida para a insolvência. No ano passado, a despesa total da União cresceu abaixo da inflação, chegando a cair 1% em termos reais. Mas nada garante que o resultado se repetirá. Ao contrário.

O governo ganhou uma folga para este ano, mas será anunciado em breve um contingenciamento orçamentário na faixa dos R$ 20 bilhões. Haverá cortes. Não é uma contradição, porque, como chamou a atenção a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi, o país, pelo quarto ano consecutivo, teve déficit primário, desta vez de 1,9%, inferior aos 2,5% de 2016, mas déficit do mesmo jeito.

Por isso, o peso da dívida pública em relação ao PIB, na faixa dos 75%, continua escalando — há quatro anos, era 50%. No bloco de economias emergentes, de que o Brasil faz parte, os índices são de cerca de 45%. O país está bastante fora da curva.

Tudo porque a Previdência, o maior gasto obrigatório, não para de ficar mais dispendiosa. O bom resultado de 2017, portanto, em vez de funcionar como um calmante, deve aumentar o sentido de urgência com que a reforma previdenciária precisa ser tratada no Congresso. Quem aspira a ser governo em 2019, por exemplo, tem de se preocupar com isso.