FOLHA DE SP - 14/12
Você se considera uma pessoa desapegada? Sim, você tem razão se devolver a questão assim: o que eu quero dizer com ser uma “pessoa desapegada”?
A palavra é polissêmica mesmo. As grandes tradições religiosas –já disse várias vezes, nunca fale mal das grandes tradições religiosas, porque será prova de falta de repertório, o que não significa que as religiões não tenham pisado na bola feio ao longo da história– são sábias em refletir sempre sobre esse tema. Nunca é pouco pensar no desapego, ainda mais numa sociedade como a nossa, que precisa de pessoas “apegadas ao consumo” se não ela quebra e nós todos vamos pro saco.
Foi uma pergunta de uma aluna, recentemente, que me trouxe de volta a um tema que me acompanhou muito tempo em minha pesquisa em filosofia da religião. Antes, algumas poucas palavras sobre o desapego num contexto mais comum.
A pergunta de minha aluna se referia a quão longe se pode ir no desapego sem que ele faça mal a própria vida. Pode-se responder de pronto a essa questão (coisa que não faço) dizendo aquela famosa palavra em moda que é “equilíbrio”. Ou seja, pode-se cultivar o desapego de modo “equilibrado”. Ponho entre aspas a palavra “equilíbrio” porque acredito pouco nesse papo espiritual light de que alguém saiba onde está o tal “caminho do meio”. Talvez porque tenha sempre sido uma pessoa meio desequilibrada em minhas paixões e manias, duvide de quem diz ter conseguido o tal “caminho do meio”.
Entretanto, concordo que o tema do desapego seja essencial na vida, para começar, como disse acima, porque vivemos numa sociedade do apego, em que, mesmo para “se desapegar”, existem pousadinhas charmosas caríssimas em lugares desertos de difícil acesso, para dificultar o acesso aos chatos pobres que não dispõem de tempo e dinheiro pra chegar lá.
O mercado de bens de significado (marketing existencial) cresce a cada dia, a medida que a sociedade se enriquece. Sim, sei que gente chata gosta de falar em “desigualdade social” em meio a eventos chiques, mas esse papo só existe porque o mundo fica a cada minuto mais rico, e nessa pegada, os consumidores de significado (bens invisíveis que agregam sentido para uma vida exageradamente pragmática, como a nossa) aumentam a cada hora.
O estoicismo, filosofia grega, também falava de desapego da vida e das paixões porque o mundo engana e é efêmero. O ridículo de nosso tempo pode ser medido pela paixão pela “celebridade”. O sucesso é “espuma” e o cotidiano feito de pedra.
Suspeito de pessoas “desapegadas” assim como suspeito de pessoas “bem resolvidas”, mas isso não me impede de perceber que o apego excessivo às promessas do mundo faz de você um bobo. O apego excessivo às promessas do mundo é um dos comportamentos mais bregas da atualidade.
Mas, e o apego místico? Dediquei alguns anos ao estudo do filósofo e místico medieval Meister Eckhart (1260””1327/28), dominicano condenado pela inquisição em março de 1329, quando já estava morto. Sua condenação como herege está intimamente ligada aos seus sermões místicos, mas não vou tratar do seu confronto com a inquisição aqui.
O Meister cunhou um importante conceito de desapego ou desprendimento (”abegescheidenheit”, no alemão de seu tempo, “abgeschiedenheit” em alemão atual) ao longo de sua vida. E é o percurso deste desapego que julgo muito importante numa discussão sobre desapego para um mundo apegado ao “consumo de si mesmo” como o nosso.
Se lermos suas conversas com os frades dominicanos de Erfurt, onde foi prior quando jovem, o desapego ali aparece como desapego dos bens materiais, numa abordagem fiel a pobreza clássica em várias formas de espiritualidade. Mas, ao chegarmos ao seu período de Estrasburgo, o desapego ali é um desapego, entre outras coisas, do que hoje chamaríamos de “eu” ou “si mesmo” e seus desejos. Num mundo em que o “eu” é um dos maiores bens de consumo de significado, caberia a pergunta: não será o “amor ao eu” uma forma contemporânea de patologia? E como não ficar “doente de si mesmo” num mundo em que o usufruto de si mesmo é o valor maior?