terça-feira, março 06, 2018

Santo de barro - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 06/03

Mendes pode ser tudo quanto se lhe acusa. Daí, porém, a que Barroso seja o oposto... Que tal testar a hipótese de que estejam ambos certos a respeito do outro?

Beneficiado — tornado paladino da ética, sentinela da Justiça — pela polarização artificial com aquele que seria o capeta togado, Luís Roberto Barroso, entretanto, já foi Gilmar Mendes. Quem se lembra? Escapando dessa forja ridícula de antípodas, quem se lembra?

Eu me lembro: Barroso foi o Gilmar Mendes do mensalão. Mais precisamente: foi, no julgamento do mensalão, o Gilmar Mendes que ora — enquanto limpa a própria imagem — ajuda a construir. Naquela ocasião, empossado ministro do Supremo havia pouco, o juiz Barroso ascendia como um dos formuladores, o mais apaixonado, da tese — buscada no fundo do lixo daquela corte — que revitalizou o uso de embargos infringentes, cuja aplicação, reinventada para aquele caso concreto, livraria José Dirceu, entre outros petistas, da condenação por formação de quadrilha.

Se é para fulanizar, antes da eleição infantil de um ou outro juiz como contraponto ao maldito de turno, mais produtivo será pesquisar quem, entre as 11 supremas ilhas, não é biruta orientada por vento partidário. Mendes pode ser tudo quanto se lhe acusa. Daí, porém, a que Barroso seja o oposto... Que tal testar a hipótese de que estejam ambos certos a respeito do outro? Que tal conjecturar sobre a que essa polarização — enquanto consagra o sete-peles oficial — serve?

Indicado por Dilma Rousseff, ministro do STF desde 2013, o outrora advogado de Cesare Battisti estreou no tribunal à véspera da apreciação de recursos do mensalão, e dele se dizia que viera para cumprir uma missão. Um preconceito. Enterrado pela lei 8.038, de 1990, e exumado pela excentricidade em que consiste fazer prevalecer o regimento interno do Supremo, o uso restabelecido dos embargos infringentes por muitos foi considerado missão cumprida. Para muitos: conceito formado.

Mais tarde, tratando da forma como Eduardo Cunha encaminhara o processo de impeachment, Barroso deixaria de ler — pularia mesmo — trecho de artigo do regimento da Câmara para então tentar anular a decisão do deputado. Barroso em seus pesos e medidas: aquele que tenta intimidar um diretor-geral da Polícia Federal, porque falador para inocentar; mas que se cala ante o excesso de saliva condenatória de procuradores.

Barroso, aquele que não hesita em apontar o dedo moralizador, mestre em sugerir suspeições, foi o advogado da OAB na ação que pretendia criminalizar o financiamento empresarial de campanha. Tempos depois, já ministro, não se declararia impedido de votar a matéria — e o faria, em dobradinha com Luiz Fux, criando as condições para que chafurdássemos no financiamento público de campanha eleitoral, o sonho maior do petismo.

Barroso é o mais ativo criador num Supremo particularmente legislador. Se o tema é aborto, aí é indisfarçado ativista, vestido com a toga, mas sem largar a agenda. Julgando, por exemplo, um habeas corpus em favor de duas pessoas presas preventivamente em decorrência da prática — um caso concreto, sem efeito vinculante, do que se deveria analisar exclusivamente o mérito —, o doutor subverteria a natureza daquela deliberação para desafiar o Código Penal e tentar, sem mandato popular para tanto, formular lei conforme sua militância; na ocasião, uma que autorizasse o aborto até o terceiro mês de gravidez. Barroso: aquele que se vangloria de não falar de política, mas que não passa semana sem fazer política pela descriminação das drogas — progressista da cepa dos que veem o Brasil como uma Holanda, mas que não sabem o que fazer com Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela.

Barroso, expressão de um Supremo capaz de votar para que uma lei — a da Ficha Limpa — retroaja contra o réu, é, como se declara, homem que vive para o bem e não para ofender pessoas. Orgulha-se, conforme diz, de não frequentar palácios. Talvez, contudo, devesse refletir sobre suas decisões que habilitam os do colarinho branco a continuar nos seus. Por exemplo: tivesse seu entendimento prevalecido — aquele segundo o qual, uma vez homologado, um acordo de delação premiada jamais poderia ser revisto —, Joesley Batista hoje estaria livre, onde desejasse, certamente em um palácio, rindo do Estado que ajudou a pilhar e que, no entanto, teria lhe ajudado a se lavar impunemente. Não haverá outra maneira de um juiz melhor ofender as pessoas.

Barroso disse, não faz muito, jamais haver antecipado julgamento. Um exemplo conhecido, recentíssimo, duvida dessa jactância. Na sessão em que se discutiu sobre se o Supremo poderia afastar parlamentares sem o aval do Congresso, o doutor, enquanto rasgava o artigo 53 da Constituição, desviou-se do que estava em pauta para — dando um bico na presunção de inocência — fazer juízo condenatório prévio, explícito, do senador Aécio Neves, cuja culpa não estava em questão.

Como se já não bastasse confundir acusação com prova, sentiu-se à vontade para especular sobre o trânsito de malas de dinheiro e a natureza de empréstimos sem contrato, e logo, avançando, lançou-se a avaliar, até com citações, o conteúdo de gravações, e a mesmo pontificar que, ouvido o material, podia-se depreender que o senador temeria a delação de um parente; o que só não será julgamento antecipado se deixarmos o eufemismo de lado e chamarmos a coisa pelo que é: verniz para linchamento — lustro ao justiçamento.

Carlos Andreazza é editor de livros

MWC: evolução sem revolução - CORA RÓNAI

O GLOBO - 06/03
Lançamentos de celulares este ano têm aparelhos bastante parecidos com os antecessores, aperfeiçoando desempenho

Agora, que o carnaval e o MWC de Barcelona já acabaram, podemos, enfim, dar o ano de 2018 por começado. A grande feira de Barcelona teve até neve, embutida na onda de frio que castigou a Europa, mas não teve nenhuma novidade revolucionária, e a sensação que se tinha ao caminhar pelos seus quilômetros de corredores era a de que o tempo passou devagar de 2017 para cá. O que se viu nos vários estandes foram aparelhos bastante parecidos com seus antecessores, consolidando características e aperfeiçoando desempenho.

A mudança mais radical ficou com a Sony, que deixou enfim o look anguloso que conservou durante tantos anos, e aderiu a formas suaves — os novos XZ2 e XZ2 compacto são lindos aparelhos de costas arredondadas, bem diferentes das linhas retas que vinham sendo a marca registrada da empresa até aqui. Ambos rodam Android Oreo e têm a bela interface da Sony, além de câmeras poderosas que filmam em 4K e, como as do S9 e S9+ da Samsung, são capazes de um super slow motion a 960FPS. O que me pareceu mais curioso no XZ2 foi o Dynamic Vibration System, vibração que acompanha os sons, e que amplifica a experiência de jogar videogames ou assistir a filmes de ação. Ainda não há previsão para a chegada dos aparelhos ao Brasil, mas é certo que virão com o preço estratosférico habitual dos topos de linha.

Boas relações custo X benefício virão, como sempre, de outras paragens: a Alcatel deu uma incrementada geral na família, e o 5, particularmente, me pareceu uma ótima pedida. É bonito e parrudo, com 3GB de RAM, faz reconhecimento visual e tem câmera frontal dupla.

A Asus causou um pequeno escândalo pela semelhança do seu Zenfone 5 com o iPhone X, mas parece que o notch — aquele dente na parte superior da tela — é o novo preto, e ainda vamos ver muitos deles por aí. Os aparelhos da Asus têm vindo cada vez mais bonitos, e a nova família não quebra a escrita: dá um show. No topo de linha, especificações como 8GB de RAM e 256 GB de espaço interno, só para tripudiar “dazinimiga”.

A Nokia, agora como marca da HMD, se consolida, mais uma vez, como fabricante de ótimos celulares. Seu topo de linha, o Nokia 8 Sirocco, foi um dos aparelhos mais elegantes em exibição, com corpo de aço entre painéis de Gorilla Glass 5. Ele tem dimensões um pouco diferentes das que estamos habituados a ver: é menos comprido, e mais largo do que os seus pares. Com 6GB de RAM e 128GB de armazenagem, traz câmera dupla Zeiss e um aplicativo praticamente igual ao fabuloso app de imagem dos velhos Lumia.

A Nokia sabe que tem um grande passado pela frente, e continua buscando inspiração na sua rica história. No ano passado, ressuscitou o 3310, com enorme sucesso; agora foi a vez do 8110, o inesquecível banana fone que tantas cenas roubou em 1999 no filme “Matrix” — e que foi, sem dúvida, o aparelho mais fotografado do MWC, contracenando com os cachos de banana que enfeitavam o estande.

O 8110 é uma releitura popular do antigo aparelho de elite: um featurephone baratinho, de plástico, mas muito bem acabado e com doses certas de nostalgia e funcionalidade. Ele não é um smartphone; seu público alvo está em regiões onde a internet móvel não é nem tão internet nem tão móvel. Apesar disso, tem uma app store que a HMD promete rechear com o tempo. Até lá, pode-se jogar o jogo da cobrinha, agora numa versão mais sofisticada.

Santa ira - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 06/03

Nos falta aquela indignação cívica que motiva as transformações necessárias

Se Deus é bom, por que sua ira recai sobre os homens e não apenas o seu amor? Essa é uma pergunta que teólogos responderam dizendo que Deus não era mau e que a Sua ira santa era o caminho que levaria os cristãos pecadores à redenção e ao paraíso. Afinal, o contrário da bondade e do amor não seria a ira, mas sim a indiferença – essa a atitude a ser temida, pois significaria que Deus não acreditava no poder de regeneração das almas pecadoras.

A ira santa de Deus popularizou-se como a santa ira dos homens ou a ira do bem. Ela aparece na explosão indignada de quem não consegue assistir passivamente ao que é injusto, incorreto ou amoral. A santa ira vem de dentro e invoca a razão e a ética em defesa do que é certo. Sem ela, não há transformação, só apatia. Mantém-se o status quo e vai-se adiante, mas sempre um pouco pior.

Mais ou menos como estamos hoje no Brasil. Somos diariamente bombardeados por notícias e fatos absurdos e vamos nos acostumando, numa condição de normalidade surreal.

Somos o País que concede, com dinheiro público, auxílios moradia, educação, alimentação, livros, etc., para aqueles que têm estabilidade de renda, enquanto não conseguimos prover saúde ou educação de qualidade, gratuitas, para quem não pode pagar. Convivemos com uma associação de juízes que promove greve em favor do desrespeito à lei ao mesmo tempo em que defende o cumprimento das leis pelos outros. Temos o sistema de Previdência mais injusto do mundo, que transfere recursos públicos para os que estão no topo da distribuição de renda, que permite aposentadorias precoces e generosas para alguns e que faz multiplicar o número de filhas de militares solteiras-casadas. Afinal, aqui o direito se adquire mesmo que a condição não esteja presente e apesar do risco concreto de deixarmos todos ao relento.

Concedemos incentivos fiscais e desonerações sem avaliar seus resultados e nos convencemos de que não são renúncia de receita, e sim subvenção a investimento. Fomentamos uma indústria nascente há mais de 60 anos e tributamos de forma regressiva, fazendo aqueles que ganham menos pagarem mais. Convivemos com um sistema tributário caótico e combatemos a falta de uma política de desenvolvimento regional com uma guerra fiscal que incentiva a alocação ineficiente de recursos. Mas preferimos não atentar para os caminhões trançando o País em estradas esburacadas, consequência da falta de capacidade de investimento do setor público.

Promovemos anistias fiscais anuais, premiando quem não paga imposto em detrimento dos que encaram a alta carga tributária como obrigação cívica. O que arrecadamos financia uma máquina pública enorme. Ao mesmo tempo, garantimos aumentos salariais descolados dos aumentos de produtividade e desconectados da qualidade do serviço que o cidadão recebe. Contratamos via concurso público sem planejamento, mas convivemos com escolas caindo aos pedaços e hospitais sem remédios. A Lei de Responsabilidade Fiscal virou “lei para inglês ver”, pois fazemos de conta que o que se paga de salário não é salário, mas a cada mês valores maiores são transferidos à conta de despesa de pessoal e menos sobra para investimento. Nesse desbalanço, o servidor também paga a conta. Basta ver os atrasos de salários e aposentadorias Brasil afora, as condições de trabalho e, muito mais trágico, o recorde de assassinatos de policiais no Rio de Janeiro.

Ah, o Rio... esse foi tomado de assalto. Afundado no caos, ainda assiste à resistência dos poderes locais a uma completa revisão institucional, como se a saída do fundo do poço fosse cavar mais fundo.

Diante de tantos absurdos, está nos faltando a santa ira, a ira do bem. Aquela indignação cívica que não admite a injustiça e motiva as necessárias transformações. Aquela força difusa, a única que pode recolocar o eixo de leis e políticas públicas de volta no cidadão. É hora de resgatar a razão. Somente a santa ira nos levará a um outro Brasil. O Brasil em que queremos viver.

* ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN.

Os escravos do tempo - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 06/03

Grande parte da cultura popular é forma tosca de propaganda do passado: autoritária, atrasada e brega


A palavra "propaganda" tem mau nome. Difícil discordar. O século 20 não foi um passeio no parque. E o totalitarismo provocou milhões de cadáveres tendo na propaganda um aliado mortal.

Verdade: se entendermos por propaganda o uso da arte para veicular ideias religiosas, políticas ou sociais, grande parte da história da arte é um exercício contínuo de propaganda. Mesmo a máxima "a arte pela arte" é uma posição política, ou então apolítica, que não atraiçoa o proselitismo original.

Mas a "propaganda" que conta é outra: o uso da arte, sim, para disseminar ideologias de dominação. E, nesse quesito, como esquecer a Alemanha nazista ou a União Soviética comunista?

Na Alemanha, a propaganda do Reich fez-se a dois tempos: por um lado, destruindo a "decadência" modernista e a sua mensagem de "degeneração" e "negritude"; por outro, promovendo uma arte capaz de exortar o valor da raça ariana --forte, sadia, superior-- como se vê nas pinturas de Adolf Ziegler.

Na União Soviética, não foi diferente: o "realismo socialista" passou a dogma em 1934. A "função" da arte era indistinta da mensagem do Partido: o líder passou a figurar em público na sua monumentalidade esmagadora --e o povo, agente revolucionário por definição, era retratado como a força vital da nação rumo a um progresso glorioso.

O nazismo jaz no caixote do lixo da história. O comunismo, tirando dois ou três estados-zombies, também. Mas a propaganda está de volta: se o tribalismo político regressou ao mundo dos vivos, a sua estética preferida não poderia ser deixada de lado.

Semanas atrás, o historiador português Rui Ramos escreveu no site Observador que, nos prêmios das diferentes indústrias, ninguém discutia a "qualidade" dos produtos. O que interessava era saber se os filmes ou as músicas obedeciam a critérios de "representatividade".

Por outras palavras: mais importante do que saber se o filme X valia como obra cinematográfica era saber qual o sexo do diretor Y ou a etnia do ator Z. Concordo com o meu ilustre compatriota. Basta olhar em volta para perceber que as preocupações estéticas deram lugar à retórica repugnante da ideologia.

No New York Times, Lindy West é apenas um exemplo da corrupção em curso: em texto que faria as delícias de um tirano, a sra. West proclamava que a queda dos "homens maus" na indústria de cinema já não era suficiente.

Agora, era preciso enterrar de vez os "filmes maus". E o que são os "filmes maus"? Precisamente: obras que não se ajustam a ideias preconcebidas de raça, sexualidade ou justiça social. Joseph Goebbels não diria melhor. Mas Lindy West não é caso único. A revista The New Yorker, que está francamente insuportável, perguntava nas vésperas do Oscar quantos filmes seriam aprovados pelo "Teste Bechdel".

Segundo esse teste, existem três questões fundamentais que devem ser formuladas sobre qualquer filme: a) existem duas (ou mais) personagens femininas com direito a nome próprio?; b) essas personagens falam uma com a outra?; c) em caso afirmativo, será que as personagens femininas falam sobre assuntos que não incluam "o homem"?

Para a revista, "Lady Bird", "The Post" e "Corra!" passam no teste. "A Forma da Água", "Dunkirk" e "O Destino de uma Nação" fracassam miseravelmente. Moral da história?

Grande parte da cultura popular é uma forma tosca de propaganda. O livro, o filme ou a peça de teatro já não obedecem a critérios estéticos ou intelectuais do criador. As obras ajustam-se a uma cartilha tão autoritária, atrasada e brega como as propagandas do passado.

Sim, não temos denúncias de "negritude", "bolchevismo cultural" ou "decadência burguesa". Mas, no seu lugar, surgem os pecados do "machismo", da "heteronormatividade" ou da "misoginia". O fim é o mesmo: a abolição da liberdade individual pelo fanatismo da tribo. Perante isto, a pergunta leninista: o que fazer?

Pessoalmente, tentar remar contra os novos bárbaros --ou, inversamente, pensar e criar como se eles não existissem. É a única forma de proteger a integridade da arte.

Até porque há uma lição consoladora na história da propaganda: os bárbaros acreditam que têm o "espírito do tempo" do seu lado. Fatalmente, quando lemos os seus nomes em livros esquecidos, nenhum deles legou uma obra que mereça dois segundos de atenção.

Faz sentido: quem é escravo do tempo morre com o tempo.

João Pereira Coutinho
É escritor português e doutor em ciência política.

Como tirar estados do buraco - RAUL VELLOSO

Correio Braziliense - 06/03

A situação financeira de boa parte dos estados brasileiros beira o caos. Mesmo que a intervenção na segurança do Rio de Janeiro tenha exposto ainda mais essa ferida, há pouca clareza acerca das causas do problema e sobre o que fazer. Nesse contexto, a criação de fundos estaduais, que venho defendendo há mais de ano, só tem encontrado ouvidos moucos.

Na visão de curto prazo, a forte recessão está na raiz do problema e, para azar dos dirigentes, coincidiu exatamente com os atuais mandatos. No caso do Rio, houve ainda o desabamento do preço externo do petróleo — ou seja, da receita de royalties. Com boa parte de sua economia atrelada à cadeia de óleo e gás, os problemas do Rio foram magnificados.

Mas não é só a receita que foi duramente afetada pela recessão. Do lado do gasto, tem havido forte pressão da demanda por serviços, especialmente em educação e saúde, que os sacrificados pela recessão não conseguiriam mais bancar junto a fornecedores privados.

Em consequência, os balanços estaduais passaram a ostentar elevados deficits orçamentários entre 2015 e 2017, que se vêm amontoando sobre eventuais atrasos de pagamentos herdados das administrações precedentes, ainda que a Lei de Responsabilidade Fiscal proibisse empurrar para a frente atrasos de finais de mandato, sob pena de severas punições dos dirigentes. Assim, se nenhuma medida corretiva relevante for adotada, é alto o risco de nova rodada de atrasos ilegais em 2018.

Quando o foco recai sobre questões estruturais, outras causas básicas dos deficits recentes se mostram com toda a força. A primeira é o alto e crescente gasto com aposentados, uma dívida contraída anteriormente e de que os atuais dirigentes não conseguem fugir. A segunda é a forte resistência dos que costumo chamar de “donos do orçamento”, a arcar com qualquer gasto de natureza previdenciária. São eles os chamados “poderes autônomos”, ou seja, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, tribunais de contas e Defensoria Pública, além das secretarias de educação e de saúde, entre outras que conseguiram leis vinculando parcelas fixas das receitas a seus gastos.

Dependendo da dimensão desses itens, o que sobra para os estados gastarem com serviço da dívida, pessoal, outros custeios e capital dos demais segmentos do orçamento tem se reduzido sistematicamente. E é nos demais itens que se insere a segurança pública, onde a responsabilidade básica na prestação de serviços é das administrações estaduais, além de setores igualmente relevantes, como o de infraestrutura.

Entre 2015 e 2017, o custo das previdências estaduais para os respectivos entes públicos passou de 17,1% para 22,0% da RCL (Receita Corrente Líquida), um aumento de 28,7% em apenas dois anos. Em estados onde a questão previdenciária é muito grave, como Minas Gerais, esse mesmo comprometimento de receita passou de 22,6% para 38,3%, implicando 69,5% de aumento nesse mesmo curto período. E se adicionarmos o peso dos “donos do orçamento” à previdência de Minas, chegaremos a um comprometimento total de 85,8% da RCL no ano passado, sobrando apenas 14,2% para os demais gastos. Confronte-se essa sobra com gastos anuais recentes na área de segurança, da ordem de 15,7% da receita. Um total absurdo.

A saída para essa situação dramática existe e está ancorada nos artigos 40 e 249 da Constituição Federal, hoje no esquecimento. Basicamente, trata-se de retirar o item previdência da despesa estadual, ou de equacioná-la via a criação de fundos de pensão, que proponho sejam paraestatais, como na Previ do Banco do Brasil, relativos às aposentadorias e pensões dos servidores respectivos. Note-se que o artigo 249 autoriza o aporte de ativos e de recebíveis a esses fundos, e o artigo 40 determina a criação de contribuições suplementares tanto dos empregados como dos empregadores para fechar a conta.

A legislação que propuser essa mudança, deve ser encabeçada por uma reforma de regras previdenciárias do regime dos servidores, conforme negociações entabuladas com o Congresso. Devem-se ainda adicionar: 1) a exigência de todos os sub-orçamentos acima citados pagarem sua parte da conta previdenciária; e 2) a vinculação de parcela das receitas estaduais a esse fundo. Tratando-se de uma massa de servidores com começo, meio e fim, a securitização (ou antecipação) de parte de suas receitas dos momentos futuros em que haverá folga de recursos viabilizará, sem qualquer dinheiro da União, uma menor dependência de aportes estaduais nos primeiros anos desse equacionamento. Dessa forma, além de atacar o problema estrutural, dá-se alívio à crise financeira estadual de curtíssimo prazo.

Reticente a qualquer solução que não seja o batido “corte de gasto”, a área fazendária federal se esquece de que, no seu quintal, mais ou menos pelas mesmas razões, não tem conseguido evitar deficits primários (excedentes de gastos sem incluir o serviço da dívida) gigantescos, que pode financiar sem maior dificuldade via emissão de moeda, mas ao custo de pôr em risco o combate à inflação a médio prazo.

O Brasil e o mundo - MURILLO DE ARAGÃO

ESTADÃO - 06/03

A hora é de fortalecer o Itamaraty, deixando claros os avanços que estão ocorrendo no País



“O Brasil não perde a oportunidade de perder uma boa oportunidade.” A irônica frase do falecido embaixador Roberto Campos não exclui de sua abrangência a política externa brasileira. É de justiça reconhecer, entretanto, que, ao longo do governo do presidente Michel Temer (PMDB), algumas oportunidades foram aproveitadas e permitiram progressos evidentes.

A política externa do governo anterior, como é bem sabido, contrariou as melhores tradições do Itamaraty sem trazer nenhuma vantagem para o Brasil. Tal crítica não pode ser feita à política externa estabelecida pelo governo Lula (PT), que, apesar de aspectos contraditórios, elevou o perfil brasileiro no cenário internacional.

O processo de impeachment de Dilma Rousseff encontrou o Brasil enfraquecido na cena global, não apenas pelos equívocos de sua política externa – como o inexplicável alinhamento com a Venezuela e a Argentina de Cristina Kirchner, além da complacência nostálgica com Cuba –, como também pelo retumbante fracasso de sua política econômica, que resultou na pior recessão da História do País. Durante o impeachment, o governo petista tentou de todas as formas desqualificar o processo, parecendo não ver que nenhum passo estava sendo dado à margem do texto constitucional. Não conseguiu impedir a saída da presidente, mas causou dano à imagem do Brasil no exterior, o que foi, no mínimo, impatriótico.

Houve sérias tentativas de pôr a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o Parlamento do Mercosul (Parlasul), o próprio Mercosul e a Organização dos Estados Americanos (OEA), entre outros organismos internacionais, contra o impeachment. Até hoje Cuba, de forma inacreditável, não reconhece o governo Temer como legítimo. O saldo final da gestão Dilma foi a dramática perda de prestígio internacional do Brasil e a imposição de preconceitos à gestão Temer, que, finalmente, têm diminuído de forma paulatina pela adoção de uma nova política externa.

A nomeação do senador José Serra como ministro das Relações Exteriores e, posteriormente, de Aloysio Nunes Ferreira (ambos do PSDB), ainda no cargo, fizeram o Itamaraty retomar seu veio tradicional de universalismo, pragmatismo e defesa do interesse nacional, além de um saudável distanciamento da Venezuela e de Cuba. Assim, pouco a pouco o Brasil recupera sua estatura internacional entre os países do Brics e encaminha, no âmbito do Mercosul, boas negociações com a União Europeia, superando amplamente as questões de reconhecimento. O volume crescente de investimentos estrangeiros no Brasil mostra a volta da confiança no País e atesta a solidez da política econômica adotada.

Mesmo assim, no ranking de soft power da revista Monocle ocupamos o 25.º lugar, a pior colocação do Brasil desde que a medição começou a ser feita. Não só por não termos aproveitado o potencial da Olimpíada, em 2016, mas também pelo impeachment e pela dramática situação do Rio de Janeiro, principal cartão-postal do País. E, sobretudo, por não sabermos comunicar-nos com o mundo exterior.

Evidentemente, não podemos tapar o sol com a peneira e esconder nossas graves deficiências. Mas por falta de visão estratégica, e pelo não emprego de táticas que rentabilizem a potencialidade do Brasil, terminamos apequenando a capacidade de influência positiva de nossa imagem em nível internacional. Bem como não utilizando todo o nosso potencial para atrair investimentos privados.

Uma abordagem estratégica da política externa poderia, sem dúvida, ampliar a imagem das boas iniciativas do governo, com repercussões internas e externas, consolidando o legado reformista do atual governo e expondo ao mundo a potencialidade do País. Recentemente, artigos do presidente Michel Temer tiveram boa repercussão no exterior. É o tipo de iniciativa que deve ser ampliado.

Em conversas em Nova York, onde fui dar aulas na Universidade Columbia, ouvi manifestações de investidores e especialistas de que o Brasil é subestimado e subavaliado. Sobretudo porque as notícias refletem mais o lado perverso de nossa realidade do que os avanços. Na melhor tradição de que bad news are good news.

Alguns interlocutores se revelaram surpresos com a agenda de reformas em curso e o agressivo programa de concessões. Bem como com o avanço das práticas de compliance no País e a atuação independente do Poder Judiciário. Como se não soubessem o que se passa por aqui.

Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é um dos únicos países a não ter instrumentos de comunicação – como, por exemplo, canais de TV por assinatura – em inglês sobre o País, entre outras iniciativas. A verdade é que, embora sejamos um país de dimensões continentais, continuamos a ser um enigma para a maior parte do mundo.

Não somos um paraíso para investidores e temos sérios problemas de segurança pública, mas somos melhores do que parecemos e, lamentavelmente, não sabemos contar a nossa história de modo adequado. E se não contarmos a nossa história, alguém o fará. Quase nunca de forma favorável.

Por fim, devemos retomar a tradição de assumir posição com ênfase em questões de direitos humanos, que nos trouxe reputação positiva nas esferas diplomáticas internacionais. O Brasil reduziu sua exposição nesse tema por causa de alianças e entendimentos com países que não primam pelo respeito aos direitos humanos. Por sermos complacentes, perdemos credibilidade. E credibilidade em política externa é algo precioso.

Em Davos, na Suíça, onde realizou uma bem-sucedida visita, após um período de quatro em que o Brasil ali não se fez representar no mais alto nível, o presidente Temer sustentou que o Brasil está de volta. A hora é de fortalecer o Itamaraty, que detém um legado diplomático consistente e testado para pavimentar essa volta, deixando claros ao mundo os avanços que estão ocorrendo no País.

*ADVOGADO, CONSULTOR, CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR, É DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNB

Investimento e crescimento econômico - EDITORIAL GAZETA DO POVO-PR

GAZETA DO POVO-PR - 06/03

Se todo aumento do PIB virar consumo, a melhoria do padrão de vida é pequena; é preciso aumentar a taxa de investimento em infraestrutura e maquinário

A imaginação popular é estimulada a acreditar que o motor do crescimento econômico e do desenvolvimento social é o aumento do consumo. A expressão “o crescimento foi puxado pelo consumo das famílias” tem um viés de verdade à medida que é preciso haver quem compre os bens e serviços para que o sistema produtivo se disponha a investir e produzir, e o aumento do consumo das famílias sugere que o padrão de vida melhora porque as pessoas estão consumindo mais. Em tudo isso há verdades, meias verdades e algumas falácias.

Primeiro, o total do Produto Interno Bruto (PIB) – que é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos dentro do território nacional – é limitado pela capacidade produtiva do país. Os primeiros números da contabilidade nacional informam que, a preços correntes, o PIB de 2017 foi de R$ 6,6 trilhões. Os bens e serviços que compõem o PIB são divididos em bens e serviços de consumo (tudo o que o país consome) e bens de capital (tudo o que o país investe, como estradas, portos, usinas, fábricas, máquinas, equipamentos, veículos etc.). Os bens e serviços de consumo são destruídos no próprio ano de sua produção, enquanto os bens de capital se destinam a elevar a infraestrutura física, a infraestrutura empresarial e a infraestrutura social, e aumentam a capacidade produtiva nacional nos anos seguintes.

A taxa de investimento em 2017 foi de apenas 15,6% do PIB, a mais baixa taxa desde 1996


Segundo, a parte do PIB que é consumida é a soma do consumo das famílias, consumo do governo e consumo do resto do mundo (exportação brasileira de bens e serviços de consumo). É possível, em dado ano, o consumo total aumentar pela via do aumento do consumo do governo e pelo aumento das exportações de bens de consumo, sem que haja elevação do consumo das famílias. Um terceiro aspecto relevante é que, para garantir que o país tenha capacidade de aumentar o PIB dos anos seguintes a fim de acompanhar o crescimento da população e melhorar o produto por habitante, o total de investimentos como proporção do PIB precisa se dar a taxas capazes de dar suporte ao crescimento.

Sendo o Brasil muito pobre e com sua população crescendo em torno de 0,8% ao ano, a melhoria rápida do padrão de bem-estar médio requer taxa de crescimento do PIB de 5% ao ano e, para que isso aconteça, o ideal é uma taxa de investimento de 25% do PIB. Ou seja, do total que o país produz durante um ano, 75% deveria ser a fatia de bens e serviços de consumo e 25%, a fatia de bens de capital. É nesse ponto que o Brasil tem um nó que vem fazendo o país patinar e não ser capaz de crescer a taxas próximas de 5% ao ano – e sem isso não há como sair do clube dos pobres e atrasados. A taxa de investimento em 2017 foi de apenas 15,6% do PIB, a mais baixa taxa desde 1996, taxa essa que os economistas chamam de “formação bruta de capital fixo” para indicar o total de investimentos de um ano sem levar em conta o desgaste (depreciação) da estrutura produtiva, isto é, a parte que deixa de ser produtiva nos anos seguintes. Quanto menor a formação bruta de capital fixo de um ano, menor é a capacidade de aumento do PIB do ano seguinte.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) alerta que, para o Brasil sair da pobreza e do atraso, é necessário ampliar a liberdade econômica, reestruturar o mercado de crédito, priorizar o setor privado, aumentar a eficiência do governo e combater a corrupção. Isso é verdade, mas não basta se o país não conseguir elevar a taxa de investimento como porcentual do PIB. Se todo aumento do PIB virar consumo agregado (das famílias, do governo e das exportações), a melhoria do padrão de vida é pequena e no máximo será uma festa de curta duração, insustentável e incapaz de tirar a população da pobreza extrema e da baixa renda por habitante.

Manipulação populista - SUELY CALDAS

O Globo - 06/03

Maduro gosta de programas que deem ganho político


A Venezuela não vive uma guerra sangrenta como a Síria. Mas a fuga de venezuelanos para Brasil, Colômbia, Peru, Chile e até Panamá chega a superar a dos sírios para a Europa. Eles fogem da fome, da miséria, da carestia, do desemprego. Se em 2016 chegavam ao Brasil chefes de família à procura de trabalho, hoje são famílias inteiras, crianças, mulheres grávidas, em busca de abrigo, comida e esperança, coisas que desapareceram em seu país. No ano passado, o PIB despencou 17%, e o imposto mais cruel contra os pobres — a inflação — cobrou dos venezuelanos a extraordinária alíquota de 2.616%.

É este o resultado do populismo eleitoreiro que, nos últimos quatro anos, fez disparar a miséria na Venezuela e levou à expulsão de um milhão de pessoas do país. É o que mostra pesquisa feita pela Universidade Católica Andrés Bello (Ucab), uma das mais conceituadas de Caracas, com dados de 2017. Quando a pesquisa foi iniciada, em 2014, 48,4% dos venezuelanos não tinham renda para comprar os produtos da cesta básica e, destes, 23,6% não conseguiam sequer comprar os alimentos da cesta. No final de 2017, estes índices dispararam para 87% e 61%. A Ucab calcula que hoje 61% da população viva em desespero e situação de pobreza extrema.

“A pobreza disparou a tal ponto que praticamente toda a população está classificada como pobre. E na crise o governo Maduro tenta concentrar sua política social na distribuição de alimentos porque, neste momento, é a necessidade básica e a que ainda produz rendimento político”, analisa Anitza Freitez Landeata, responsável pela pesquisa.

Enquanto na Europa o populismo de direita dispara com odiosa rejeição a imigrantes e um separatismo sem rumo, na América Latina o populismo de esquerda definha. O que fascina políticos como Maduro não é direcionar a economia para gerar empregos e salários. É distribuir dinheiro à população pobre, gastar em programas sociais de vida curta que produzam resultados rápidos em apoio político e votos na próxima eleição. Os pobres são o alvo preferencial por dois desonestos motivos. Primeiro, eles constituem a maioria dos eleitores; segundo são fáceis de manipular, enganar, explorar seu nível precário de escolaridade e informação. Os populistas aproveitam-se da situação trágica de quem precisa desesperadamente de um dinheirinho para comprar remédio ou comida para os filhos.

No Brasil o populismo de Lula produziu bons resultados, mas durou pouco e deixou uma herança amarga para a sucessora. Dilma Rousseff pôs mais lenha na fogueira. Aprofundou os erros de Lula, criando mais e mais programas sociais insustentáveis e que levaram o país à falência e à pior recessão econômica de sua história. Programas focados na pobreza, como o Bolsa Família, são bem-vindos, mas é preciso garantir suporte financeiro que lhes dê longa vida.

Na América Latina, Argentina e Equador acabam de responder não ao populismo nas urnas. Na Venezuela ele agoniza, com a miséria se alastrando pelo país despedaçado. E logo a Venezuela, rica em petróleo, com tudo para ser a economia mais potente do continente.


Hollywood, tende piedade de nós - JOEL PINHEIRO DA FONSECA

FOLHA DE SP - 06/03

Será o espectador um monstro por não desejar 4h de edificação moral vinda de privilegiados?


Fui envenenado pelo politicamente correto. A cada indivíduo que não era homem, branco e heterossexual a subir no palco do Oscar neste último domingo, uma vozinha malvada objetava dentro de mim: só foi colocado ali para cumprir a agenda política da gente fina, elegante e sincera de Hollywood. Em outras palavras, para "lacrar".

Meu cinismo teve mesa farta. Política sempre esteve presente no Oscar, mas agora ocupa o primeiro plano. Foi um verdadeiro festival de diversidade, inclusão e discursos engajados. Homossexuais, negros, transexuais, mulheres, mexicanos; recebendo e entregando prêmios. Se for o resultado de uma sociedade com mais oportunidades para todos, ótimo. Se for só a Academia preenchendo cota, não significa nada.
Felizmente, os organizadores não ficaram, como em 2017, implorando em vão a atenção do presidente. Trump e os republicanos ficaram como referências implícitas —quase não mencionadas—, um inimigo difuso contra o qual Hollywood e a classe artística se levantam.

Vencedor de melhor filme e melhor diretor, "A Forma da Água" é a vitrine perfeita da cerimônia: diversidade, machismo, imigração, preconceito, vítimas de opressão: está tudo lá, da produção à moral da história.
Dirigido pelo mexicano Guillermo del Toro, tem como protagonista uma mulher muda (violentada na infância), e como coadjuvantes seu vizinho gay de meia-idade e sua colega de trabalho negra. Na trama, ela se apaixona por uma criatura aquática (um "illegal alien"?) que está sob o poder do governo americano.

Preciso dizer a cor de pele e o sexo do vilão da história? Ou que um de seus crimes é assédio sexual contra a protagonista? Ele é o verdadeiro monstro, enquanto a criatura vulnerável, de aparência estranha e origem misteriosa traz cura e redenção; mesmo sua violência é apenas reação ao mundo hostil que o cerca. "We are all dreamers!"

Nada disso diminui ou aumenta o valor do filme. Mas que esses fatores tenham tamanho relevo dá a impressão de que o prêmio é café com leite: de que origem, cor de pele, sexo ou orientação sexual de quem fez o filme mais a conveniência política de sua mensagem contêm mais do que o filme em si. O mais bonzinho, e não o melhor, vence. O palco da elite do cinema mundial virou mais um pedestal dentre tantos para bem-intencionados declamarem seus valores.

Adoro diversidade; torço para que Trump falhe em seu fechamento econômico e humano dos EUA. Só suspeito que essa ostentação toda feita durante o Oscar é mais uma ocasião de elevar as vaidades de Hollywood do que algo que realmente ajude as causas em jogo. Suspeito, ademais, que essa necessidade constante de reafirmação pública esteja ligada à sensação de impotência prática.

Que bom que os valores defendidos sejam diversidade e inclusão, e não preconceito e opressão. Mas boas intenções repetidas incessantemente geram desprezo. Praticamente obrigam qualquer espírito livre a contestar a autocomplacência reinante.

Ao colocar o aspecto político no centro, o Oscar perde sua razão de ser. Fica mais chato, menos arriscado, com mais cartas marcadas e tapinhas nas costas. Será o espectador comum um monstro por não desejar quatro horas de edificação moral vinda das bocas mais privilegiadas e paparicadas do planeta? Podemos condená-lo ou não, mas uma coisa ninguém poderá tirar dele: o direito inalienável de mudar de canal.

Joel Pinheiro da Fonseca
É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro.

Vedação maculada - IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

ESTADÃO - 06/03

Inconstitucionalidade da investigação presidencial por atos anteriores ao mandado



Durante os trabalhos para a elaboração da Constituição de 1988, participei de audiências públicas e fui consultado, repetidas vezes, por constituintes, pelo presidente e pelo relator daquela assembleia – presidida pelo ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal (STF), na abertura –, a saber: o deputado Ulysses Guimarães e o senador Bernardo Cabral.

Saíra o País de um regime de exceção e a EC 26/86, proposta pelo presidente Sarney, objetivava permitir que a Nação voltasse a viver a plena democracia, com harmonia e independência de Poderes, enunciadas no artigo 2.º do texto resultante de quase dois anos de amplo debate entre os representantes do povo e a sociedade. Tão relevante se tornou a temática democrática que decidiram os constituintes ofertar a cada Poder ampla autonomia, sem direito à invasão de competências, e atribuindo às Forças Armadas o dever de repor a lei e a ordem – jamais rompê-las – se os Poderes em conflito solicitassem sua ação.

Pelo artigo 103, § 2.º, o Supremo Tribunal nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Congresso pode legislar. Pelo artigo 49, inciso XI, o Congresso Nacional tem a obrigação de zelar por sua competência normativa se outro Poder a invadir, e a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais à administração da justiça, mas não são Poderes.

Por outro lado, a representação popular não existe no Poder técnico, que é o Judiciário – os ministros do STF são escolhidos por um homem só –, mas sim nos Poderes Executivo e Legislativo. Por isso os constituintes conformaram o direito da sociedade de eleger os seus membros, que são os seus verdadeiros mandatários.

Apesar de ser parlamentarista desde os bancos acadêmicos, isto é, desde a distante década de 1950, e apesar de a Constituinte ter procurado adotar tal sistema, alterado na undécima hora para o presidencial de governo, o certo é que o regime plasmado na Lei Suprema foi o de dar ao presidente da República a função maior, o topo da pirâmide governamental, com preservação de responsabilidade funcional durante o período para o qual foi conduzido. Essa é a razão pela qual o afastamento de um presidente (artigos 85 e 86 da Carta Magna) se reveste de todo um rito composto de freios e contrafreios e de garantia de defesa não extensível a todos os outros cargos da administração federal.

É que, devendo a vontade popular ser respeitada, só como exceção das exceções pode ser o presidente responsabilizado e afastado. Foi essa a origem do § 4.º do artigo 86 da Constituição federal, cuja dicção é a seguinte: “ O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.

Por nenhum ato anterior ao seu mandato um presidente da República que chegar ao cargo pelos meios permitidos pela Constituição pode ser responsabilizado, visto que o que pretendeu o constituinte preservar foi a vontade popular, pressupondo que atos anteriores deveriam ter sido examinados previamente à eleição ou ser examinados após o fim do mandato.

A não responsabilização do presidente transcende a figura do próprio presidente, pois objetiva não permitir que a condução do governo – sempre presumivelmente a favor da sociedade – seja prejudicada por atos isolados, mesmo que graves, que pudessem vir a ser, pelos reflexos na cidadania, prejudiciais à própria cidadania.

Assim é que exatamente no artigo mais grave, que diz respeito ao afastamento do presidente da República, houve por bem o constituinte afastar a hipótese de atos fora do exercício do mandato como tema de responsabilização. Nesse particular, bem agiu o ex-procurador-geral Rodrigo Janot ao não permitir que houvesse investigação do presidente no concernente à contribuição da Odebrecht a campanha eleitoral do presidente da Fiesp em São Paulo.

A reabertura, pela atual procuradora-geral da República, de tal investigação, sob a justificativa de que “investigar” não é “responsabilizar”, com aval de eminente ministro da Suprema Corte, a meu ver, representa nítida violação do Texto Supremo. Uma investigação com claro intuito de responsabilização já macula a vedação constitucional.

Embora não tenha visto fato delituoso no episódio de contribuição à mencionada campanha – na época não era proibida a contribuição de empresas –, não entro no mérito de se ela corresponderia ou não a qualquer espécie de contrapartida (o atual presidente à época não comandava o País), visto que a questão é apenas jurídica e constitucional. Quem investiga quer responsabilizar e a responsabilização é vedada pela Lei Suprema, no § 4.º do artigo 86 da Constituição Federal. A Carta Magna não fala em ser denunciado, mas em ser responsabilizado, razão pela qual o preclaro ministro Edson Fachin não deveria ter aceitado o pedido da chefe do “parquet”.

Graças a denúncias mal elaboradas pelo antigo procurador-geral da República, rejeitadas pela Câmara dos Deputados duas vezes, o Brasil foi rebaixado três vezes pelas agências internacionais de rating, no momento em que estava o Congresso preparado para discutir algumas das mais essenciais reformas de que o nosso país necessita (a da Previdência e a tributária), pois ficou parado durante todo aquele período na expectativa da atuação congressual.

Com todo o respeito que sempre tenho pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, tenho a impressão de que o combate à corrupção – que apoio, naturalmente – não pode sobrepor-se aos textos da Lei Suprema. O excessivo protagonismo de algumas autoridades, que ultrapassam os limites permitidos pela Carta da República, está se constituindo no grande obstáculo ao desenvolvimento do Brasil, apesar de algumas sinalizações de melhoria. E, o que é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.

*PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DE DIREITO DA FECOMÉRCIO-SP

Antonio Machado e o Brasil - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 06/03
É impossível aumentar a produtividade sem enfrentar um dos demônios atávicos do país: o medo da competição

Ano passado, passei as férias com minha mulher em um país do Terceiro Mundo. Fiquei hospedado na casa de um casal de amigos, nossos anfitriões. Num dos passeios, nosso amigo estava dirigindo numa estrada e passou por um pedágio. Cem metros depois de pagar, fomos parados por um funcionário, a quem foi preciso mostrar o comprovante de que o pedágio tinha sido pago. Quando questionado por mim acerca da razão de algo tão esdrúxulo, a explicação foi: “Isso é uma forma que eles têm aqui de dar emprego para as pessoas”. É difícil pensar em algo mais idiota do que checar dois minutos depois se um ato impossível de burlar — pois, em caso de não pagamento, a barreira veda a passagem — foi levado a cabo. “Emprego” e “baixa produtividade” são dois fenômenos que caminham juntos. O problema é quem paga.

Nos 30 anos entre 1987 e 2017, o PIB brasileiro aumentou 89%, e o emprego, 66%. Isso significa que a produtividade por trabalhador ocupado cresceu apenas 0,4% ao ano. Para entender o que isso significa, projetemos alguns números para os próximos 30 anos, utilizando as estimativas populacionais do IBGE. Segundo estas, a população entre 15 e 59 anos crescerá até 2031 e depois começará a declinar. Enquanto isso, a população total aumentará ainda por algum tempo, a uma média 0,4% ao ano superior à trajetória do grupo de 15 a 59 anos em 30 anos. Se assumirmos este grupo como uma proxy da população empregada, isso significa que, se nos próximos 30 anos repetirmos o aumento da produtividade por trabalhador ocupado dos últimos 30, a renda per capita do brasileiro em 2048 será igual à de 2018. Estaremos lidando então não com uma “década perdida”, e sim com mais de meio século perdido. Seria uma tragédia.

Aumentar a produtividade deveria ser uma obsessão nacional. O problema é que é impossível alcançar isso sem enfrentar um dos demônios atávicos do país: o medo da competição. Pensemos em quatro casos/cenas diferentes, de diversas categorias.

Cena 1 (posto de gasolina). O cidadão vai a um posto encher o tanque. Conta quatro frentistas, mais um auxiliar, mais uma balconista da loja de conveniência e a atendente do caixa. Total: sete pessoas. Nos EUA, uma única pessoa tomaria conta de tudo, e o próprio motorista abasteceria o carro.

Cena 2 (turismo). Um turista europeu vem ao Brasil visitar lugares históricos numa cidade X. No ônibus, uma pessoa dirige e outra fala no trajeto. Chegando ao local, uma terceira explica o que estão vendo. Na Europa, é muito comum uma mesma pessoa fazer o papel de motorista, guia e historiador, explicando tudo aos passageiros enquanto dirige entre um lugar e outro.

Cena 3 (estaleiro). Um estaleiro brasileiro tenta vender navios para a Petrobras. Ele produz basicamente para o mercado nacional e um pouco para o mercado latino-americano, que depende de acordos de governo. Sua produtividade é apenas 40% do maior produtor mundial, uma empresa da Coreia que produz um número muito maior de unidades por ano e vende para o mundo inteiro por um preço muito menor.

Cena 4 (entidade empresarial). Uma pessoa visita a sede de uma das entidades empresariais mantidas com recursos parafiscais de arrecadação compulsória e destinação de recursos vinculados. Entrega a identidade na recepção a uma pessoa, para depois ser conduzida por outra ao elevador. Ali encontrará o segurança e depois o ascensorista. Ao chegar ao andar, será recebido por uma recepcionista que o conduzirá a uma sala, onde uma pessoa lhe oferecerá cafezinho. Antes de encontrar a pessoa com quem foi falar de algo específico, terá passado então por seis pessoas.

O leitor, em cinco minutos, identificará outras tantas experiências da sua vida pessoal em que terá se deparado com situações em que a ineficiência brota aos borbotões, com o emprego de um número muito maior que o necessário de pessoas para desempenhar atividades que poderiam ser feitas ocupando muito menos gente. Esse era um modus operandi de um país que pertence ao passado. Os versos de Antonio Machado (“Hay un español que quiere / Vivir y a vivir empieza / Entre una España que muere / Y otra España que bosteza”) se aplicam perfeitamente ao Brasil, cujo futuro, espremido entre o passado que morre e a modernidade que quer acordar, será definido nos próximos meses.

Fabio Giambiagi é economista

Constituição amputada - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 06/03

Para Raquel Dodge, urge investigar o presidente Temer. O argumento não resiste a uma folheada na Constituição


A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a inclusão do presidente Michel Temer em um inquérito que apura suspeitas de que campanhas eleitorais do MDB receberam recursos ilegais da construtora Odebrecht. O pedido viola claramente o artigo 86, parágrafo 4.º, da Constituição, onde se lê que “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. A despeito disso, o ministro do STF Edson Fachin aceitou o requerimento e incluiu o presidente Temer no inquérito.

Ou seja, a Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal, duas das principais instituições responsáveis por vigiar o cumprimento da Constituição e a defesa da ordem jurídica, decidiram, em conjunto, suspender a vigência de um dispositivo constitucional.

O caso diz respeito a um processo aberto contra os caciques emedebistas Eliseu Padilha e Moreira Franco. De acordo com delações de executivos da Odebrecht, Padilha e Moreira Franco teriam pedido recursos para a campanha de 2014, ocasião em que Temer era vice-presidente. O acordo teria sido costurado numa reunião no Palácio do Jaburu, residência do vice-presidente, em maio daquele ano. Um dos executivos diz que Temer pediu R$ 10 milhões, mas o presidente afirma que apenas solicitou recursos para a campanha, sem determinar valores.

O inquérito foi aberto em abril de 2017 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que, no entanto, evitou pedir a inclusão de Temer na investigação, pois ele nem presidente era na época dos fatos. Naquela ocasião, Janot – a quem não se pode atribuir nenhuma simpatia por Temer, posto que encaminhou contra ele duas denúncias sem qualquer fundamento – fez a leitura correta do artigo constitucional que impede a investigação do presidente da República por atos estranhos ao exercício de suas funções.

Esse dispositivo constitucional não é um privilégio para o ocupante do mais alto cargo político nacional. Trata-se de uma maneira de, nas palavras de Janot, “resguardar a figura do chefe do Poder Executivo federal quanto ao escrutínio e questionamento de atos estranhos ao desempenho da função”. Ou seja, não se pretende preservar a pessoa que ocupa a Presidência, pois esta pode perfeitamente ser processada assim que deixar o cargo. A intenção é evitar que a capacidade do presidente de exercer suas funções seja comprometida pelo previsível desgaste político causado pela devassa de sua vida pessoal por agentes a serviço da Justiça. Mesmo que o inquérito conclua, mais tarde, que nada há contra o presidente, está claro que o estrago já estará feito, pois muito dificilmente um presidente conseguiria governar enquanto sua imagem é enxovalhada.

Não se pode esquecer, também, que, na fase de inquérito, o investigado nem sempre tem acesso ao que contra ele supostamente se está reunindo, já que a acusação formal ainda não foi feita. Logo, ele não tem como se defender de forma ampla – mas pode-se presumir que, enquanto isso, detalhes picantes da investigação certamente chegarão ao conhecimento público por meio dos já rotineiros vazamentos.

Se para qualquer cidadão essa situação já seria inadmissível, pode-se concluir que, quando o investigado é ninguém menos que o presidente da República, o prejuízo não é apenas do indivíduo, mas do País. Isso explica a “imunidade temporária” concedida ao presidente, conforme está explícito no artigo 86, parágrafo 4.º, da Constituição, ora ignorado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e pelo ministro do STF Edson Fachin.

Para Raquel Dodge, no entanto, urge investigar Temer agora porque “a ausência da investigação pode dar ensejo a que as provas pereçam”. O argumento não resiste a uma folheada no texto constitucional. Mais uma vez, a ânsia de purificar o País da corrupção parece superar a capacidade de aceitar as regras do jogo democrático, pactuadas entre todos os brasileiros na forma da Constituição.