Ninguém discute que os governos têm direito a manter segredos de Estado, mas o que está em jogo na discussão sobre a nova lei de acesso aos documentos públicos em tramitação no Senado é a limitação temporal desse direito, para que a História do país seja um patrimônio de todos os brasileiros.
O retrocesso de manter o sigilo eterno de documentos, a pretexto de preservar segredos da Guerra do Paraguai ou das negociações do Barão do Rio Branco que estabeleceram nossas fronteiras, colocará o país em situação secundária diante de nações que já adotam um sistema transparente, como o México, por exemplo, que saiu de uma política de secretismo ditatorial para uma legislação considerada a mais avançada do mundo.
O país é tão aberto que qualquer pessoa pode requerer documento mesmo assinando um pseudônimo, sem se identificar. A pressuposição é que os documentos governamentais devem ser públicos.
A presidente Dilma havia compreendido a importância de um movimento como esse, tanto que estava empenhada em sancionar a nova legislação no Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, em maio passado, para marcar uma nova fase no trato de documentos públicos.
O senador e ex-presidente Fernando Collor, que preside a comissão que analisava a nova lei, retardou sua liberação para votação em busca de apoio para manter a possibilidade de renovar indefinidamente a restrição à divulgação de certos documentos.
Chegamos a um ponto em que uma legislação moderna, que poderia ser conhecida como “a lei da transparência”, acabará chamada de “a lei do sigilo eterno”, mesmo que contenha avanços inegáveis.
O livre acesso à informação pública pressupõe que os sites tenham informações relativas às despesas da instituição, como salários de pessoal, gastos ou processos de licitação que devem ser apresentados de maneira mais detalhada e acessível possível.
A experiência de outros países mostra que, na realidade, os jornalistas são os que menos usam essas informações, porque o que interessa mesmo é o dia a dia dos cidadãos, que começam a se utilizar da legislação para defender seus direitos, e também os advogados começam a usá-la.
O exercício da cidadania na moderna democracia digital permite que a sociedade acompanhe passo a passo a atuação dos funcionários públicos e, por conseguinte, dos governos como um todo.
Por si só, essa prática faz com que o agente público, seja ele o mais graduado, saiba que um dia a História registrará suas decisões e suas conversas.
O sigilo eterno foi introduzido na legislação nos últimos dias do governo Fernando Henrique, e o ex-presidente admitiu o erro de decisão, alegando que foi induzido a ele sem que se desse conta da dimensão do problema.
O PT criticou muito a medida, mas o ex-presidente Lula não a alterou nos oito anos em que esteve à frente do Executivo, e agora mais uma vez a presidente Dilma parece estar se submetendo a pressões que vêm de áreas militares e do Itamaraty - que funcionaram mais no Senado porque encontraram acolhida nos expresidentes Fernando Collor e José Sarney.
É um equívoco comparar a liberação de documentos públicos com a atuação do WikiLeaks, ONG especializada em vazamento de documentos oficiais de governos.
Na verdade, o WikiLeaks só existe porque os governos procuram esconder suas decisões. Não será surpresa se, a partir de agora, existirem interessados em vazar esses mesmos documentos da Guerra do Paraguai ou do Barão do Rio Branco que tanto zelo estão exigindo.
A legislação de acesso à informação pública estava recebendo, por parte do novo governo brasileiro, um tratamento digno de sua importância.
A presidente Dilma Rousseff, aliás, ficará em situação delicada, pois havia sido convidada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para lançar a iniciativa global intitulada “Parceria por um governo aberto”, em setembro, na Assembleia Geral da ONU, que normalmente é aberta pelo presidente brasileiro.
Um dos primeiros atos de Obama quando assumiu a Casa Branca foi publicar um memorando chamado “Transparência e governo aberto”, que afirmava o comprometimento da sua administração com a transparência, em garantir a confiança pública e em estabelecer um sistema de participação e colaboração.
O site, lançado pela administração federal dos EUA, é consequência dessa política. No ar desde 2009, é um repositório de dados oficiais e permite o desenvolvimento de aplicativos por terceiros.
Atualmente, existem mais de 600 aplicativos de utilidade pública desenvolvidos por programadores externos.
É verdade que houve um retrocesso depois que o WikiLeaks divulgou recentemente aquela enxurrada de documentos sobre a política externa americana, e cresceu nos Estados Unidos a pressão conservadora para limitar essa transparência.
A nova legislação brasileira previa um máximo de 25 anos de sigilo para documentos classificados como ultrassecretos, com a possibilidade de apenas uma renovação pelo mesmo prazo.
Agora, nas negociações no Senado, será preciso recomeçar tudo novamente, para que não se perca todo o projeto. Se qualquer tipo de documento puder ter seu sigilo renovado eternamente, a nova legislação perde o vigor, ficando à mercê do governante de ocasião.
É inadmissível que a versão oficial da História do Brasil seja contada sem base em documentos, e com lacunas eternas.