sábado, maio 06, 2017

No meio do caminho havia apedrejadores - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 06/05

Indigência intelectual torna mais sombrio o futuro dos 14 milhões de desempregados



Estamos avançando no caminho da democracia, com mais transparência e instituições mais fortes, ou, ao contrário, sofrendo um retrocesso, com grave risco de uma recaída na corrupção e na violência?

As duas interpretações são cabíveis. Há indícios nas duas direções. A Lava Jato, por exemplo, é um avanço importante e, justamente por sê-lo, suscita reações contrárias, com empresas, partidos e até pessoas investidas em posições de autoridade fazendo de tudo para esvaziá-la e anular os seus efeitos. No terreno político, outro avanço inegável: hoje já ninguém contesta que as eleições são the only game in town – a única forma legítima de acesso ao poder –, mas não faltam tentativas de abastardá-las mediante o caixa 2, a publicidade enganosa, o coronelismo estatal em que o PT transformou o Bolsa Família, e por outros meios.

O que há, portanto, são dois processos simultâneos e contraditórios, ambos profundamente enraizados na realidade atual do País. Um, modernizador, apontando para a consolidação e o aprimoramento da democracia; o outro, reacionário, corporativista, empenhado em preservar privilégios injustificáveis e, no limite, nefasto para o regime democrático.

A “greve geral” – assim mesmo, entre aspas – de 28 de abril ressaltou os contornos da segunda tendência, reacionária e de duvidoso teor democrático. Se o objetivo das entidades que a convocaram fosse debater com seriedade as reformas, o lógico seria que patrocinassem eventos plurais, em recintos apropriados, propícios a discussões serenas. Ainda que o objetivo fosse apenas manifestar uma posição contrária, de forma unilateral, por que não mobilizaram o público para ouvir seus porta-vozes? A verdade é que as entidades organizadoras não fizeram uma coisa nem outra. Partiram direto para a violência, incumbindo pequenos grupos de paralisar os transportes (às favas, portanto, os interessados no debate!), bloqueando vias públicas, obrigando o comércio a fechar suas portas e dando ensejo a não poucas depredações. Nas ruas percorridas, o que se viu não foi a solitária pedra do poema de Drummond, mas dezenas ou centenas de pedras, tocos de pau e outros objetos.

Esse modo de agir evidencia a importante mudança de ênfase havida na ideologia do PT e das organizações sindicais e dos movimentos sociais que ele satelitiza. Em seus primórdios, o pensamento petista podia ser apropriadamente descrito como um marxismo de sacristia. O assembleísmo daqueles tempos falava em ética e martelava a tecla da “construção do socialismo”, evocando o cristianismo das catacumbas. No momento atual, a nota dominante é o recurso à ação direta, com o declarado intuito de causar transtorno às atividades diárias da sociedade. Para alcançar tal fim serve queimar pneus, apedrejar vidraças, etc; transmitir ameaças sem perder tempo com palavras. A esse modo de agir se pode apropriadamente denominar anarcossindicalismo, uma das modalidades ideológicas do pré-fascismo, classicamente exposta por Georges Sorel no livro Reflexões sobre a Violência, obra de 1908. Sorel queria “educar a burguesia”, fazendo-a deparar-se com o poder coletivo da classe operária. O que estamos começando a ver no Brasil é pior que isso, é uma violência cega, aleatória, que atinge muito mais duramente os pobres que os ricos. Ou será que foi para assustar a burguesia que queimaram nove ônibus no Rio de Janeiro?

Se, como antes assinalei, o objetivo da manifestação do dia 28 de abril fosse debater as reformas, os meios seriam outros, e dois pontos se destacariam obrigatoriamente na pauta: o imposto sindical e a reforma da Previdência. O imposto – um dia de trabalho que a força do Estado arranca de cada assalariado a fim de sustentar os sindicatos – é a pedra angular da organização sindical brasileira. Complementa-o a chamada unicidade sindical, ou seja, o monopólio da representação de uma categoria numa dada base territorial, excluindo, portanto, a competição entre sindicatos (Constituição de 1988, artigo 8, II). Décadas atrás, passava por ignorante o advogado ou sociólogo que discorresse sobre a organização sindical brasileira sem indicar seu parentesco com o regime de Mussolini; citar a Carta del Lavoro era sinal de cultura. Mas foi para preservar tais excrescências que os manifestantes do dia 28 recorreram à peculiar retórica dos pneus queimando e do apedrejamento.

Semelhante ou até pior foi a posição assumida na ocasião pelo sindicalismo no tocante à reforma da Previdência Social. Pior porque a discussão de tal reforma deve obrigatoriamente partir de uma evidência incontornável, a mudança demográfica. A sociedade brasileira está ficando mais velha. Os nascimentos e a mortalidade infantil diminuem, os vivos vivem mais do que há 30 ou 40 anos.

Ora, se cada cidadão quer, como é justo que queira, ser garantido na velhice, é óbvio que precisa trabalhar e contribuir por mais tempo. Esse é o cerne da questão, o resto são as regras específicas da transição para o novo sistema, que o Congresso está analisando e negociando. Eis aqui, portanto, uma evidência meridiana: o foro adequado para a negociação é o Congresso, não as ruas. A linguagem apropriada é a do discurso parlamentar, não a do coquetel Molotov. Ameaçar ou tentar chantagear o Parlamento por meio da ação direta é uma insanidade que só pode mesmo vicejar na mentalidade anarcossindicalista.

Neste momento em que o Brasil precisa desesperadamente das reformas mencionadas a fim de superar a recessão e retomar o crescimento econômico, essa forma de indigência intelectual não “educa” ninguém. O que ela faz é tornar mais sombrio o futuro dos nossos 14 milhões de desempregados e dos pobres em geral.

*Cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro “LIBERAIS e Antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo” (Companhia das Letras, 2016)

O governo reformista - JOÃO DOMINGOS

ESTADÃO - 06/05

O País não afundou na crise porque a democracia não sofreu nenhum abalo

Nas vésperas de completar um ano de governo – cerca de três meses na interinidade, enquanto aguardava o impeachment de Dilma Rousseff, e nove meses como titular –, o presidente Michel Temer pode dizer que já cumpriu parte do que prometeu quando assumiu, o de ser um presidente reformista. E que, possivelmente, cumprirá o restante no tempo que lhe falta de mandato, apesar das falhas gritantes de sua coordenação política.

Olhando-se o dia a dia da crise política brasileira, de um governo que tem o presidente da República e quase um terço de seus ministros citados na Operação Lava Jato, os principais líderes do Congresso e dos partidos políticos investigados, afora os que já estão presos, mais um processo de cassação da chapa vencedora da eleição presidencial de 2014 em fase bem adiantada no TSE, é de se pensar como é que tudo não afundou.

Não afundou por um motivo principal: a democracia esnobou a crise política. O Supremo Tribunal Federal (STF) continuou tocando seus julgamentos, o Congresso, mesmo sob suspeita, trabalhou mais do que nunca, e ajudou o Executivo a pôr as reformas para andar. Primeiro, foi aprovada a emenda constitucional que instituiu o teto para os gastos públicos baseado na inflação do ano anterior. Depois, a quebra do monopólio da Petrobrás na exploração do pré-sal, a terceirização da mão de obra, a reforma trabalhista pela Câmara e a reforma da Previdência numa comissão especial, também da Câmara.

Nesse período, comandantes das Forças Armadas, especialmente o do Exército, general Eduardo Villas Bôas, admitiram que a crise é grave. Além da política e da parte econômica, há também a ética e a moral. Acrescentaram os chefes militares, no entanto, que a crise deve ser resolvida dentro do que determina a Constituição.

Temer insiste que não se candidatará à reeleição nem continuará na vida política depois que deixar o cargo, em 31 de dezembro de 2018. Afirma que se dá por satisfeito se passar à História como um presidente reformista.

Apesar do tanto que já fez num espaço pequeno de tempo, o presidente talvez não tivesse tanto trabalho se conseguisse transmitir para sua base de apoio no Congresso a confiança que concentra em si mesmo.

Porque não é só o presidente Temer que depende das reformas para levar seu governo à frente. Todos os partidos que ficaram ao lado dele na luta política também estão amarrados a elas. Se conseguirem terminá-las, e por consequência a economia melhorar e a geração de empregos voltar, vão disputar as eleições com chances de se reeleger. Se as reformas fracassarem, ficarão mais impopulares ainda, serão escorraçados pelos eleitores, perdedores que serão da luta política.

Pois de luta política o governo de Temer parece não entender muita coisa. Basta ver o que acontece nos plenários da Câmara e do Senado. Embora matematicamente a base do governo tenha cerca de 400 deputados e 60 senadores, a impressão que se tem, ao se presenciar uma sessão de qualquer uma das Casas, é que o governo está em minoria e os partidos de oposição em maioria. Fala-se coisas do arco da velha do governo o tempo todo. Quase nunca aparece alguém para defender o grupo que está no poder.

Líder do governo na Câmara durante as grandes reformas econômicas de Fernando Henrique Cardoso, o deputado Benito Gama (PTB-BA) lembra que, naquela época, entre 20 e 30 deputados eram escalados a cada semana para vigiar o plenário e responder a qualquer crítica. E olha que a oposição era muito mais poderosa. À frente estavam, por exemplo, os petistas José Dirceu, José Genoino e Arlindo Chinaglia, cada um com um dossiê ou um pedido de CPI na manga.

A falta de lideranças - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 06/05

Diagnóstico dessa deficiência do País é um alerta sobre a qualidade da sua democracia e da sua capacidade de fazer valer, na vida política, o interesse público



A crise econômica, política, social e moral que o País vive desvela com grande nitidez e de forma sintomática um fenômeno que não é novo, mas que nos últimos tempos se manifesta dentro de contornos bastante dramáticos: a falta de lideranças públicas.

Não se trata de uma questão teórica. Basta tentar encontrar soluções para a crise que a constatação brota imediatamente: o cenário político nacional está devastado e não há lideranças capazes de construir saídas efetivas para a crise.

Encontram-se, deve-se reconhecer, nomes que, a seu tempo, contribuíram decisivamente para a construção do País. Agora, estão a gozar de merecida aposentadoria e seria injusto fazer recair sobre essas pessoas a responsabilidade pela resolução dos problemas atuais. Cada geração deve levar o seu bastão.

E é justamente isso o que parece faltar à geração atual – a capacidade de assumir o peso da condução da vida pública. Quando se olha o Congresso, por exemplo, veem-se alguns temperamentos fortes, algumas pessoas com um histórico de luta política, alguns empresários e profissionais de sucesso em sua área de atuação, mas nada além disso. Predomina o chamado baixo clero. Ou, como às vezes parece, existe apenas o baixo clero.

A situação não é muito diferente quando se vai da política para a vida econômica, acadêmica ou social. Há, como não poderia deixar de ser, nomes de relevo, às vezes por seus feitos na vida empresarial, às vezes por um currículo acadêmico brilhante ou por uma irretocável trajetória internacional, mas – volta-se a repetir – não se veem destacadas lideranças nacionais.

A situação está à vista de todos: o mundo público nacional sofre uma grave carência de grandes e decisivos talentos. Por causas diversas, o País não tem conseguido prover a vida pública de pessoas com a formação e o talento necessários para serem líderes políticos em seu sentido mais amplo e genuíno.

Não raro se formulam críticas sobre a educação nacional. Abundam diagnósticos e avaliações a atestar que não estamos formando adequadamente as novas gerações para os desafios da vida contemporânea. Por deficiências da escola nacional, o Brasil estaria desperdiçando os talentos de sua juventude, que permanecem ocultos e incultos. A produtividade do brasileiro permanece estagnada ou até mesmo retrocede. Pois bem, a crítica de idêntico teor é plenamente cabível a respeito da formação de novas lideranças políticas. Estamos a desperdiçar talentos e, quando mais deles precisamos, não os temos.

Quando se clama por lideranças não se prega a substituição da vontade da maioria pelo mando de alguns poucos iluminados. Muito menos se sustenta que a democracia falhou e deveria ser substituída por uma aristocracia disfarçada.

A democracia, em seu funcionamento mais pleno, necessita de lideranças fortes e esclarecidas, capazes de aglutinar sentimentos, representar vontades, promover consensos e levar adiante projetos que ultrapassem os interesses particulares. Na verdade, um dos primeiros sintomas da ausência de líderes é o esmaecimento da democracia, com o alheamento da população em relação à coisa pública.

Quando segmentos cada vez mais numerosos da população gritam que não estão representados no Congresso, não são apenas as instituições que apresentam trincas. É a própria Nação – a sociedade, como querem alguns – que não está sendo capaz de regenerar o tecido de seus órgãos vitais. Pois não são apenas as instituições nem tampouco os procedimentos abstratos que fazem a democracia. São as pessoas que constroem e viabilizam esse regime onde não há soberanos nem cidadãos de segunda categoria. Dessa igualdade fundamental de todos perante a lei não decorre, porém, um igualitarismo de funções, como se todos devessem ter idêntico papel na máquina social. A alguns, com talento e formação adequados, movidos por genuíno espírito público, cabe exercer funções de liderança.

O País não pode fingir que não sofre dessa deficiência. Na verdade, o diagnóstico a respeito da falta de lideranças é um alerta sobre a qualidade da sua democracia e da sua capacidade de fazer valer, na vida política, o interesse público.

Um avanço importante - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 06/05

Cláusula de desempenho não é novidade no nosso sistema


A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira passada, a proposta de reforma política de autoria dos senadores Aécio Neves (MG) e Ricardo Ferraço (ES), ambos do PSDB. O placar foi contundente: 37 votos a favor e 14 contrários.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 282/16, aprovada pelo Senado no final do ano passado, estabelece a chamada cláusula de desempenho, se possível para valer já para a eleição do ano que vem, e acaba com as coligações de partidos políticos para as eleições proporcionais – deputados (federais, estaduais e distritais) e vereadores – a partir de 2020. Cabe agora ao presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), criar uma comissão especial para analisar o mérito da proposta, antes de seu envio ao plenário.

A proposta precisa ser aprovada na Câmara dos Deputados por 3/5 dos parlamentares, em dois turnos de votação. Sua aprovação pela CCJ da Câmara foi o primeiro passo, naquela Casa legislativa, na direção do saneamento do sistema político-partidário brasileiro, amplamente fragmentado e custoso.

É fato que o projeto em questão trata apenas de duas das muitas medidas que precisam ser implementadas para que distorções do sistema político-partidário, acumuladas em décadas, possam ser corrigidas. Mas a cláusula de desempenho e o fim das coligações partidárias para as eleições proporcionais são precisamente as duas medidas que figuram como as mais urgentes nos diagnósticos feitos por especialistas que têm se debruçado sobre o tema da reforma política.

Pela proposta, a partir de 2018, apenas os partidos que obtiverem 2% dos votos válidos em pelo menos 14 Estados terão direito aos recursos do Fundo Partidário, à propaganda eleitoral nas redes de rádio e televisão e ao uso da estrutura funcional da Câmara e do Senado. A partir de 2022, a linha de corte sobe para 3% dos votos válidos, também distribuídos em pelo menos 14 Estados, com um mínimo de 2% dos votos válidos em cada um deles.

A cláusula de desempenho não é uma novidade no nosso sistema eleitoral. A Lei 9.096/95 já estabelecia o índice mínimo de votos para que os partidos pudessem ter direito ao funcionamento parlamentar, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade dessa regra em 2006, o que levou os senadores a propor a emenda à Constituição agora em exame.

Evidentemente, num contexto em que muitos partidos tendem a se aproximar mais de uma organização empresarial, tendo como objetivo a arrecadação de recursos financeiros e não o legítimo meio de representação política de segmentos da sociedade, a aprovação da proposta pela CCJ recebeu críticas. “A consequência prática dessa PEC é restringir a atuação partidária para apenas 11 legendas. O fundamento da Constituição é justamente o pluralismo político”, argumentou o deputado Rubens Pereira Júnior (PCdoB-MA). Com 35 partidos em funcionamento e mais 57 aguardando homologação pelo Tribunal Superior Eleitoral, difícil será explicar ao contribuinte que financia a farra partidária onde há espaço no espectro ideológico para tanto “pluralismo político”.

Não menos importante será o fim das coligações partidárias em eleições proporcionais. Grande parte da frustração e do desalento dos eleitores diante da pobreza da atual representação congressual advém justamente dos parlamentares que chegam ao Congresso eleitos a reboque de candidatos que, estes sim, receberam votações mais expressivas. Graças às coligações, o eleitor pode eleger um candidato, embora tenha votado em outro. Não é por acaso que hoje tanto se fala em uma profunda crise de representatividade.

A PEC 282/16 não extingue partidos políticos ou impede que setores da sociedade se organizem em novas legendas partidárias, se assim lhes aprouver. A emenda à Constituição apenas dará o peso de lei a uma obviedade: um partido político legítimo, para funcionar efetivamente no Parlamento, precisa ser respaldado pelos votos daqueles que pretende representar.

A farra da corrupção - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 06/05

Toda vez que um dos réus se senta em frente ao juiz Sérgio Moro disposto a dizer a verdade, mesmo que parcial, é sempre um choque. Renato Duque mostra que, no fim, a corrupção feria até as empresas que pensavam estar sendo espertas e tendo vantagens. “Era sócio roubando sócio, diretor roubando sua própria empresa, agente público embolsando sem repassar o dinheiro”, explicou.

Isso foi o que ele respondeu quando Moro perguntou por que as companhias pagavam propina já que ele tinha dito que nem era necessário falar com elas sobre isso. “Era institucionalizado”. Segundo Duque, não era preciso explicar. Elas já sabiam. Mesmo assim, ele disse que as empresas nem precisavam fazer um cartel e dividir entre si as obras: — Havia obras para todo mundo. A farra da corrupção era assim. Duque, lá pelas tantas, nem queria tomar conhecimento do que era pago a ele.

— Quando chegou a US$ 10 milhões era mais do que eu precisava.

A exuberância irracional do dinheiro que jorrava fazia com que a propina fosse paga, mesmo sem ser cobrada. Corrupto nem precisava contar o dinheiro que entrava em sua conta, as empresas roubavam a si mesmas. E tudo isso apesar de um sistema rígido de orçamento de obras.

Segundo ele, uns 50 engenheiros atuavam orçando as obras da Petrobras, e tudo era tão controlado que a diferença entre o preço mínimo e máximo era pequena. Eles sabiam, portanto, os custos. Apesar de ser diretor ele não tinha acesso aos orçamentos. Era tudo rígido, mas ainda assim o dinheiro que entrava em sua conta era mais do que ele precisava.

A comunicação era outra curiosidade. Além da mímica de passar a mão na barba para sequer pronunciar o apelido do presidente (“chefe”, “grande chefe”, “nine”), havia os encontros entre autoridades e operadores. Júlio Camargo queria exibir intimidade com José Dirceu e falava dos favores que havia feito ao então ministro. Com Palocci nem isso, porque “ele não dava intimidade”. Duque disse que se perguntava ao fim desses jantares: “o que eu estou fazendo aqui, não se conversava nada do interesse da Petrobras”. Na verdade, eram reuniões para ficar claro que aqueles operadores tinham intimidade com as autoridades.

Há muitas curiosidades no relato mostrando que o crime se naturalizou a tal ponto que certas coisas estavam implícitas. O apelido dado por Pedro Barusco para o destino do dinheiro que ficava com os próprios diretores e gerentes envolvidos era “casa”. Como havia uma divisão entre eles, virava “casa 1” e “casa 2”. No começo, metade ia para “casa” e a outra metade para o PT. Depois João Vaccari fala que “Dr. Palocci”, ao ser consultado, disse que a divisão seria “um terço para casa, dois terços para o partido”, o que provocou a revolta de Barusco. “Fica calmo porque eles podem tirar você daqui e você fica sem nada”, aconselhou Duque a Barusco.

Renato Duque confirma o que Léo Pinheiro já havia dito sobre o conhecimento de Lula a respeito do esquema que se espalhou pela Petrobras. E que inclusive o aconselhou a não ter contas no exterior, quando a operação já estava em andamento. Da mesma forma que Lula havia aconselhado Léo Pinheiro a “destruir tudo”. Isso é mais grave do que qualquer eventual vantagem pessoal que o ex-presidente tenha tido, porque é tentativa de esconder o crime. Esses dois depoimentos juntos elevam o peso das acusações contra o ex-presidente. Duque disse que teve três encontros com Lula e em todos ficou com a impressão “de que ele tinha o conhecimento de tudo e detinha o comando do esquema”.

Há no depoimento de Duque a descrição da corrupção como parte da paisagem das relações entre o governo, os partidos políticos, a Petrobras, e os fornecedores da empresa. E há também a afirmação de que não era isolado, mas institucionalizado, e que o então presidente sabia de tudo, a ponto de aconselhar o futuro réu, Duque, a não ter conta no exterior para não ser pego. A resposta da defesa de Lula foi, como sempre, a de que as acusações foram “fabricadas”. Se for para levar a sério a resposta, pode-se dizer que nunca tantos foram induzidos a “fabricar” eventos inexistentes. E invenções coerentes, que confirmam as outras. O depoimento de Duque complica mais a situação de Lula. Ele conta de reuniões em que nada se falava de importante, apenas para mostrar o poder dos operadores Depoimento de Duque se soma ao de Léo Pinheiro na mesma direção: a de Lula propondo esconder o crime

Diga não ao Real - FERNANDA GUARDADO

O Globo 06/05

Sob gritos e cartazes com a frase do título acima e lemas como “Contra o plano FHC”, sindicatos, alguns partidos e categorias protestavam durante o primeiro semestre de 1994 contra o “caráter eleitoreiro” e penalizante do Plano Real para os trabalhadores. O passar do tempo provou que o plano foi um sucesso duradouro e que o fim da hiperinflação era uma vitória do, e para, o povo. Hoje, como em 1994, diversos segmentos da sociedade organizada esbravejam contra a reforma da Previdência, e seu mérito e propostas para melhorá-la se perdem na falta de informação e na politização do tema.

Neste ambiente, é importante verificar quais são as premissas por trás da reforma e entender o porquê da mesma. Atenho-me a duas estatísticas em particular:

1) O bônus demográfico acaba em 2020, segundo as Nações Unidas, o que quer dizer que, a partir dali, haverá cada vez mais aposentados para cada trabalhador ativo. Isso significa que teremos uma massa cada vez maior de aposentados, com um volume menor de trabalhadores ativos financiando a Previdência. E, dado o avanço da expectativa de vida, a proporção de pessoas muito idosas aumenta, significando que este contingente maior ficará recebendo sua aposentadoria por mais tempo.

2) Devido às alterações demográficas em curso, se até 2100 o Brasil continuar a gastar por aposentado (média) o mesmo que hoje, o valor total do gasto previdenciário atingiria mais de 45% do PIB, segundo o BID. A estimativa do governo aponta para cerca de 20% do PIB em 2060, valor já bastante expressivo. Parte do elevado gasto tem a ver com regimes previdenciários (de juízes, servidores, professores etc) generosos e que são reservados apenas para alguns setores, enquanto cerca de 60% dos aposentados recebem apenas um salário mínimo. Este desenvolvimento cria dois problemas gravíssimos: como financiar este gasto, uma vez que nossos filhos e netos podem (e provavelmente vão) se negar a fazê-lo; e como financiar os demais direitos sociais, como educação e saúde. Este segundo ponto é ainda mais dramático quando se leva em conta que o número de idosos que requerem assistência médica vai crescer substancialmente nas próximas décadas, exigindo assim mais recursos proporcionalmente para a área da saúde. Quem vai financiar o déficit explosivo daqui a 30 anos? Nossos filhos. Mas eles podem também resolver rachar esta conta com os aposentados do futuro (nós), através de diminuições do benefício em um momento em que não poderemos nos precaver e poupar mais para a velhice.

Os dois pontos acima já expõem o X da questão previdenciária: ela trata de um conflito de gerações. Nós, que podemos nos aposentar com as regras atuais e temos mecanismos de pressão política, versus “eles”, crianças de hoje e de amanhã, que não têm lobby ou sindicatos, que não votam em representantes para seus interesses e que pagarão a conta de nossas decisões. Infelizmente, nossos filhos ainda não podem faltar um dia de aula para se manifestarem. A reforma vai viabilizar não apenas a existência de uma aposentadoria para nós, mas também para eles, e eximi-los de uma carga tributária esmagadora, que preserva regalias para poucos setores.

Quando se fala de “perda de direitos trabalhistas”, as palavras de ordem tratam de trabalhadores correntes que terão que trabalhar mais alguns anos ou abrir mão de regimes especiais de aposentadoria. Mas não deveriam eles também defender o direito dos trabalhadores do futuro a uma educação e saúde públicas, aposentadorias e uma carga tributária decente? Vamos ver em que lado da história estarão sindicatos e grupos organizados em 20 anos.


FERNANDA GUARDADO é economista

Nasce o fascismo do bem - GUILHERME FIUZA

O Globo - 06/05

José Dirceu, guerreiro do povo brasileiro, está solto. O Supremo Tribunal Federal sabe o que faz. Conforme demonstrado na Lava-Jato — essa operação invejosa da elite branca — do banco dos réus do mensalão Dirceu continuava operando o petrolão. E o maior assalto governamental da história prosseguiu, com formidável desinibição, enquanto o PT ocupava o Planalto. Dilma trocava e-mails secretos com José Eduardo Cardozo para sabotar a Lava-Jato, e seguia o baile. Dilma e Cardozo também estão soltos.

O bando precisa da liberdade para administrar o caixa monumental que fez com o suor do seu rosto, caro leitor. E o STF é sensível a essa causa. Se todos os líderes progressistas e humanitários estiverem presos, quem vai tocar o negócio mais bem-sucedido do século? O Supremo, no fundo, está protegendo a economia. E você está orgulhoso por patrocinar essa esquadra de advogados milionários que defendem os heróis perseguidos por Sergio Moro. Palocci já avisou que quer uma fatia da pizza de Dirceu.

O STF tem cumprido seu papel com bravura. Desde os famosos embargos infringentes e refrescantes para os mensaleiros, a corte tem sido impecável. Triangulando com Cardozo e Janot, fez um belíssimo trabalho de cartas embaralhadas e pistas falsas — mantendo o quanto pôde Dilma e Lula fora do alcance da Lava-Jato. Claro que quando Delcídio foi gravado dizendo que ia combinar o “cala a boca, Cerveró” com os supremos juízes, eles deram seu brado cívico — “não passarão!” etc — e prenderam o senador.

No que ficaram bem na foto (que é o que importa), meteram a mão grande no rito do impeachment na Câmara.

Os supremos companheiros só não salvaram o governo delinquente de Dilma Rousseff da degola porque a LavaJato cismou de trabalhar dobrado entre o Natal e o carnaval. Quando cessaram os tamborins em março de 2016, as delações já tinham provado que não havia uma quadrilha no governo do PT: o governo do PT era uma quadrilha.

Eduardo Cunha tirou o petrolão do pedido de impeachment, mas não teve jeito — uma fração das fraudes fiscais da quadrilha foi suficiente para configurar o crime. E as obras completas já estavam sendo esfregadas na cara do Brasil, escancarando a receita da maior recessão da História. Mas o STF é bravo, e ainda conseguiu um salto ornamental (especialidade da casa) para manter os direitos políticos da presidente criminosa. Contando, ninguém acredita.

A libertação triunfal de José Dirceu sucede à não menos apoteótica de José Carlos Bumlai, o laranja da revolução. A série “Os dias eram assim” é linda, e os heróis da TV são esses mesmos que estão no noticiário hoje — com a sutil transição das páginas políticas para as policiais. Talvez na continuação de “Os dias são assim” se possa mostrar que os revolucionários do povo chegaram ao poder 30 anos depois e roubaram o povo, sem perder a ternura.

O governo dos brancos e velhos que assumiu em lugar da mulher e do operário não tem a menor graça. Hoje, quem toma conta do seu dinheiro são técnicos, administradores que só pensam em administrar, nunca nem subiram num palanque. Uns chatos. Michel Temer deu uma de Itamar Franco e pôs o leme nas mãos dos melhores — no Tesouro, no Banco Central, na Fazenda, no BNDES, na Petrobras. Nenhum faminto do PMDB apita em qualquer desses domínios. O resultado é chocante: inflação controlada, retomada de investimentos, previsão de queda do desemprego este ano. O que fazer num cenário desses?

Greve geral. Assim como na época da privatização da telefonia — quando esses técnicos sem glamour nenhum estabilizaram a moeda nacional —, os heróis da narrativa denunciam as reformas da elite contra o povo. Eles sabem (como sabiam no Plano Real) que as reformas são para sanear o país e, consequentemente, beneficiar o povo — o que seria horrível. Eles sabem o quanto é triste ver a vida de todo mundo melhorando e ninguém com tempo e saco para consumir lendas revolucionárias. Aí só tem um jeito: quebrar tudo.

Na primeira greve geral cenográfica da história, os heróis da lenda mandaram seus pimpolhos selvagens para o front. Eles saíram arrebentando tudo e todos, bloqueando ruas e incendiando ônibus, uma beleza. Pela internet, os intelectuais da revolução, também conhecidos como pacifistas da porrada, defendiam a livre manifestação. E a CUT manifestando livremente seus pedaços de pau no saguão do Santos Dumont, nas praças e na cabeça do trabalhador que queria trabalhar.

Ao final, os intelectuais engajados, também conhecidos como cafetões da bondade, denunciaram a violência policial contra os pimpolhos. Um crítico teatral talvez dissesse que, para brincar de “Os dias eram assim”, precisa dar uma melhorada na direção de cena. Esses críticos nunca estão satisfeitos.

Foi, enfim, uma grande festa em defesa do imposto sindical — que encheria de orgulho Benito Mussolini. Mas fascistas são os outros. E agora que abriram a porteira para os guerreiros do povo voltarem ao convívio social, convenhamos, nem vale a pena se chatear com assuntos de arrecadação.

Juntando as pontas - MERVAL PEREIRA

O Globo - 06/05

De duas, uma: todo mundo resolveu contar a mesma história só para incriminar Lula ou o ex-presidente era mesmo o “chefe, o grande chefe, o nine”, identificado, como revelou ontem o ex-dirigente da Petrobras Renato Duque, por um movimento passando a mão na barba. Somente com uma santa ingenuidade é possível ainda acreditar que Lula não sabia de nada, não tinha nada com o que acontecia na Petrobras e em outros setores do Estado brasileiro, pilhado pela máquina petista e seus aliados.

Trava-se agora uma batalha jurídica, já que a política está liquidada, prevendo que a eleitoral, ainda a ser disputada em 2018, pode reverter o quadro que as pesquisas de opinião revelam no momento. Lula é o líder das pesquisas, especialmente devido à popularidade que ainda mantém no Nordeste, mas é também o campeão de rejeição.

Só ainda não acontece com ele o mesmo que aconteceu com candidatos de outras paragens, especialmente tucanos, porque ele é um líder populista diferenciado, que ainda carrega consigo lembranças de melhores tempos em que ele era o “salvador da pátria”.

Natural que em regiões menos informadas custem a chegar os dados sobre a corrupção que chefiou, segundo relato de vários delatores e denúncia que está sendo processada na Procuradoria Geral da República.

A denúncia sobre o “quadrilhão”, que o coloca como o chefe do esquema criminoso, já foi feita pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que, em 2016, pediu a inclusão do ex-presidente Lula como um dos investigados no inquérito 3.989. Ao descrever o papel do ex-presidente no caso, pedindo ao Supremo uma investigação mais aprofundada, Janot afirmou: “Pelo panorama dos elementos probatórios colhidos até aqui e descritos ao longo dessa manifestação, essa organização criminosa jamais poderia ter funcionado por tantos anos e de uma forma tão ampla e agressiva no âmbito do governo federal, sem que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dela participasse.”

Desde então, o processo do quadrilhão, que, a exemplo do mensalão é dividido em núcleos, e, por enquanto, tem cerca de 50 investigados, vem sendo acrescido das novas informações que surgem nas delações premiadas e em depoimentos como o de ontem de Renato Duque.

Não é a primeira vez, por exemplo, que o ex-presidente surge na narrativa orientando seus cúmplices a destruir provas. Segundo Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, Lula perguntou se tinha feito pagamentos no exterior ao PT, e disse que se tivesse provas de encontros de contas com o PT no pagamento de caixa 2, que as destruísse.

Ontem foi a vez de Duque revelar que Lula lhe ordenou que não tivesse contas no exterior das propinas oriundas das sondas da Sete Brasil ou da empresa holandesa SMB. O interessante é que o ex-presidente fez essas perguntas porque disse que a então presidente Dilma Rousseff estava preocupada, pois soubera que um dirigente da Petrobras recebera propina da holandesa SMB.

Mas Dilma estava preocupada não com a roubalheira, pois não foi para parar com ela que Lula chamou Duque para conversar. O que preocupava era que os rastros da propina no exterior fossem descobertos.

Os detalhes narrados por Renato Duque, há anos identificado como o homem do PT dentro do esquema de corrupção da Petrobras, nem um bom ficcionista criaria se não fossem baseados em “fatos reais”.

Aliás, se juntarmos todos os relatos já obtidos em delações premiadas na Operação Lava-Jato, veremos que eles têm relação entre si e formam uma narrativa coerente que não poderia ser inventada por tantos envolvidos de diferentes empresas. Há uma lógica interna nas narrativas que as confirma, deixando abismados os brasileiros.

O próprio Renato Duque ontem, na sua fase de arrependido, disse que ele mesmo ficava espantado com a ganância de seus pares. Seu parceiro Barusco amealhou US$ 100 milhões, e ele diz que quando alcançou a cifra de US$ 10 milhões, deu-se por satisfeito. Mas tudo indica que não parou de roubar e promete devolver tudo.

Lula está cada vez mais sozinho na sustentação de que tudo não passa de uma conspiração contra ele. A cada dia fica mais difícil acreditar nas teses de sua defesa. Nada indica que o depoimento do dia 10 em Curitiba desfaça essa impressão. Lula é o líder nas pesquisas para 2018, especialmente devido ao Nordeste, mas é o campeão de rejeição Lula está cada vez mais sozinho na sustentação de que tudo não passa de uma conspiração contra ele

Mudanças sim, mudar não - RICARDO AMORIM

REVISTA ISTO É

Todos querem que a corrupção acabe… todos menos os corruptos.

Todos sabem que o foro privilegiado e a indicação política dos juízes do STF não podem continuar… todos menos os que se protegem com isso.

Todos acham que as regras previdenciárias de políticos, juízes e militares são absurdas… menos políticos, juízes e militares.

Todos acham inaceitável que servidores públicos tenham um regime previdenciário muito mais generoso que os outros… todos menos os servidores públicos e seus familiares.

Todos querem reformar a Previdência de políticos, juízes, militares e servidores públicos, mas reformar o INSS, que só no ano passado precisou de R$ 150 bilhões que poderiam ter ido para educação, saúde ou segurança para complementar os benefícios que as contribuições não cobriram, nem pensar.

Todos de acordo que as dívidas das grandes empresas com o INSS têm de ser cobradas, mas muitos estão atrasados nos pagamentos de suas próprias dívidas.

Todos descontentes com a educação, mas ninguém chocado que o governo brasileiro direcione nove vezes mais recursos per capita para gastos previdenciários do que para a educação de nossas crianças.

Todos querem menos impostos, produtos mais baratos e salários maiores, mas ninguém quer que o governo reduza seus gastos para que os impostos possam cair para que tudo isso aconteça.

Todos de acordo que algo radical tem de ser feito para reverter o crescimento da informalidade e do desemprego, menos reformar a CLT para que as empresas contratem mais – e menos gente trabalhe na informalidade, sem direitos trabalhistas efetivos.

Em meio a tantos escândalos bilionários de corrupção, é compreensível a impressão de que se eliminássemos a corrupção, os outros problemas brasileiros desapareceriam.

Infelizmente, mesmo se a corrupção for eliminada, outros problemas serão reduzidos, mas nenhum deles será exterminado. Temos de trabalhar para resolver cada um deles também.

Sabendo que as mudanças não vão acontecer se não mudarmos também, fica a pergunta: você quer mudanças, mas está disposto a mudar?