terça-feira, janeiro 16, 2018

Conservadorismo popular e o comedor de gente - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 16/01

Bolsonaro é a expressão eleitoral de conservadorismo caseiro, de natureza pragmática, esvaziado de caráter ideológico, cuja base é a experiência do pobre


O brasileiro médio é difusamente conservador. Isso nada tem a ver com discussões filosóficas sobre conservadorismo. Não há formulação a respeito. Apenas sentimento; um impulso em defesa de valores — a ideia de família tradicional, por exemplo — percebidos como sob ameaça.

O brasileiro médio, vagamente conservador, somente quer preservar o — pouco — que tem. Ele não pode ser associado automaticamente à direita. Isso porque seu conservadorismo, antes de qualquer alinhamento político, consiste em posição — tão intuitiva quanto reativa — de sobrevivência, ora aditivada por constatação incontornável: a de que as pessoas estão insatisfeitas, convencidas de que a atividade política é eufemismo para ação criminosa, de que as pautas que prosperam nos gabinetes servem a minorias organizadas, e de que a elite dirigente alterna-se no poder alheia aos verdadeiros dramas da população.

Falo do que se pode chamar de conservadorismo popular, de matriz religiosa, nacionalista, disposto a embarcar na tentação autoritária de um líder populista que prometa resolver o problema, e fundamentalmente reacionário, seduzido pela memória que idealiza o passado. Num país com sólido histórico de intervenções armadas sobre a vida pública, esse saudosismo tem destino: regime militar.

Em artigo recente, o jornalista Paulo Roberto Silva foi preciso em definir o tripé que embasa tal lugar conservador: segurança, ordem e moralidade. Impossível, pois, não pensar em Jair Bolsonaro. Ele é a expressão eleitoral desse conservadorismo caseiro, de natureza pragmática, esvaziado de caráter ideológico, cuja base é a experiência do pobre. O deputado é o que melhor o explora; o que mais rapidamente mapeou esse conjunto de anseios sem representação; e o que mais habilmente discursa para encampá-los.

Impossível, portanto, não pensar também em Lula. Porque o ex-presidente já foi o porta-voz desse conservadorismo íntimo, estrato em que jamais o leram como prócer da esquerda, mas como “um de nós”, alguém de fácil identificação, que entendia os interesses dos excluídos, aos quais daria vez. Esse território, hoje, não lhe é mais exclusivo. Bolsonaro ocupa larga faixa, à qual somou seu exército de ressentidos.

Impõe-se, pois, uma reflexão. Estou entre os que consideram que o deputado será o principal prejudicado caso Lula não consiga disputar a Presidência. Baliza de orientação para todos os adversários, para nenhum outro, contudo, o ex-presidente seria referência maior — e isso porque Bolsonaro se tornou o maior nome eleitoral do antilulismo. Ocorre que essa polarização, elitista, talvez tenha alcance superestimado, e que a ausência de Lula resulte mesmo em impacto sobre a massa do conservadorismo doméstico de que trato aqui, aquela gente humilde e objetiva, que ignora o embate partidário e que não tem tempo para classificações ideológicas; esse povo que ora se enxerga no capitão.

Pergunto: na hipótese em que Lula é impedido de concorrer, será possível desprezar a migração da parcela não petista de seus eleitores para Bolsonaro? Sei que as pesquisas já captam o movimento; mas questiono: não estaria esse potencial subestimado?

É preciso estudar todos os cenários. O bolsonarismo é fenômeno que merece exame independentemente do destino de Bolsonaro em 2018. Com ou sem Lula na urna, porém, estou entre os que apostam na desidratação de sua candidatura uma vez iniciada a campanha e posta a moer a máquina eleitoral do establishment. Ele poderia, no entanto, dificultar a própria maceração. Mas, apregoando-se como o suprassumo da ética, montou armadilha fatal contra si, machucado por qualquer esbarrão no mais caro pilar do tripé que sustenta o conservadorismo familiar que exprime: o da moralidade.

Bolsonaro “comedor de gente”? Bolsonaro “comendo de gente” com dinheiro público? Aí, a casa começa a ruir. Bolsonaro com funcionário fantasma? Bolsonaro com assessor parlamentar — pago com recursos públicos — servindo em Angra dos Reis? Aí, a casa cai.

O deputado ergue sua mitologia sobre a pedra do político diferente. Para quem estica a corda da própria integridade assim, qualquer frouxidão no fio gera dissonância sobre a credibilidade; porque volta contra si a régua da pureza estabelecida para malhar os demais. Esse, todavia, foi o solo em que se plantou. Talvez — justiça seja feita — não houvesse alternativa; não para que chegasse aonde chegou. Para ele, mais que qualquer outro, não basta ser honesto. Tem de parecer; o mais honesto indivíduo já parido sobre a Terra. Bolsonaro pode perder tudo, até o auxílio-moradia, e ainda resistir. Mas não a supremacia moral, superfície sobre a qual o mais mínimo arranhão — ele e os seus sabem — será gangrena.

Esse medo da infecção ficou evidente a partir do levantamento patrimonial empreendido pela “Folha de S.Paulo”. Não há, na reportagem, prova de atividade ilícita. É legítimo, entretanto, estranhar que indivíduos cuja atividade sempre foi pública tenham podido comprar 13 imóveis. Esse pavor — a noção de que tinham a imagem em risco — acuou os Bolsonaro e os colocou em inédita posição defensiva.

Em vez de acusar conspirações onde só há necessária luz sobre a vida de quem quer presidir o país, Bolsonaro deveria dar satisfações claras ao brasileiro — pai de família, que não sonega impostos, dono apenas de princípios — que passou a duvidar do mito.

Em suma: é melhor Jair se explicando.

Carlos Andreazza é editor de livros

Os três equívocos do Movimento Passe Livre - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA

Não existe tarifa grátis: a gratuidade precisa ser compensada por subsídios públicos ou pela cobrança maior para os grupos sem isenção


O Movimento Passe Livre (MPL) recomeçou sua luta pela gratuidade no transporte coletivo. Essa demanda comete pelo menos três equívocos. O primeiro é não perceber a inexistência de tarifa zero. Montar e operar um sistema de transportes requer investimentos em veículos, locomotivas e instalações, além dos gastos de manutenção. Tais custos devem ser cobertos pela cobrança da tarifa ou pelo setor público.

O segundo equívoco, que decorre do primeiro, é não perceber que os recursos para financiar a gratuidade virão da cobrança de tributos. No Brasil, cerca de dois terços da carga tributária são de tributos sobre o consumo, que não distinguem contribuintes. Assim, o ICMS do pãozinho é o mesmo para o rico, para a classe média e para os pobres. Logo, representa uma parcela proporcionalmente maior da renda dos pobres. O passe livre constituirá, pois, um peso relativamente maior para os pobres. Já que o MPL visa essencialmente os estudantes, em sua maioria de classe média ou rica, a gratuidade será uma transferência de renda dos pobres para os segmentos de maior poder aquisitivo.

O terceiro equívoco é imaginar que as concessionárias de serviços de transportes podem deixar de cobrar pelas passagens. Isso não está previsto nos contratos de concessão. A gratuidade terá, então, que ser compensada por subsidio do governo. Do contrário, as empresas irão à falência e todos ficarão sem transporte, pelo menos até que o sistema seja estatizado, criando ineficiências. No fundo, imagina-se que o lucro é algo pecaminoso, o que justificaria sua eliminação para favorecer os usuários do transporte coletivo.

Na realidade, além dos equívocos, o MPL é prisioneiro da cultura da meia entrada, mostrada por Marcos Lisboa e Zeina Latif. Ela está presente na meia entrada em cinemas e teatros. Neste caso, acontece o subsídio cruzado, isto é, a gratuidade é financiada pelos que não se beneficiam da isenção, pois pagam uma entrada maior do que deveriam.

Uma outra demonstração dessa cultura foi hoje divulgada pelo jornal Valor. Existem 112 projetos no Senado, na Câmara e em assembleias legislativas, propondo a isenção total ou parcial do pedágio para idosos, funcionários públicos, motociclistas, vãs escolares ou carros com mais de um passageiro. Isso exigiria que se determinasse quem vai pagar pela isenção, se os demais usuários ou toda a sociedade.

Um desses projetos já foi aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo e aguarda sanção do governador Geraldo Alckmim. Isenta completamente do pedágio professores, dentistas, médicos, enfermeiros e fisioterapeutas da rede pública nas rodovias estaduais. Por que não beneficiar também quem trabalha no setor privado?

Somente com a melhoria da educação, inclusive para ensinar que não existe almoço grátis, será possível o Brasil livrar-se de tamanha ignorância e de seus efeitos negativos.

E a reforma dos privilégios? - GIL CASTELO BRANCO

O Globo - 16/01


Excelências usufruem de verba para aluguel de carros e escritórios, combustível, passagens aéreas, telefone, cópias etc.


O Estado brasileiro é uma verdadeira “mãe” no que diz respeito à concessão de privilégios. O Brasil, porém, não é uma jabuticaba. Um dos mais influentes líderes da França moderna, Charles de Gaulle, afirmou: “O apetite do privilégio e o gosto da igualdade, eis as paixões dominantes e contraditórias dos franceses, em todas as épocas”.

Uma classe que adora privilégios é a dos políticos. Às nossas custas, isto é, dos cidadãos que pagam impostos, as excelências usufruem de verba para aluguel de carros e escritórios, combustível, passagens aéreas, telefone, cópias, imóvel funcional, divulgação da atividade parlamentar, reembolso por serviço médico prestado em qualquer hospital do país etc. Fazem jus a recesso no meio do ano, enforcam a semana quando os feriados caem na terça, quarta ou quinta e tiram férias em janeiro. Além disso, podem ter um exército de burocratas (ou seriam cabos eleitorais?) à disposição. Os deputados podem ter até 25 assessores e no Senado, o recordista em quantidade de funcionários — o senador do Maranhão João Alberto — tem 84 servidores distribuídos no gabinete em Brasília e no escritório no estado, a maioria comissionados, claro. Não por acaso, o Congresso Nacional custará em 2018 cerca de R$ 29 milhões por dia aos brasileiros.

No Judiciário, a concessão generalizada de “penduricalhos”, na forma de “auxílios” para moradia, alimentação e saúde, fez com que 26 tribunais estaduais de Justiça tenham gasto cerca de R$ 890 milhões em 2017. Com base na publicação detalhada das remunerações, determinada pelo Conselho Nacional de Justiça, o Estadão Dados constatou que 13.185 juízes dos TJs (mais de 80%) tiveram contracheques turbinados por esses benefícios. Por ter caráter de “verba indenizatória”, esses recursos adicionais não são levados em conta no cálculo do teto de R$ 33.763. Em resumo, para o Judiciário, o teto previsto na Constituição virou piso. Vale destacar que o auxílio moradia é pago a magistrados, mesmo quando possuem imóveis próprios nas cidades onde trabalham. Além do que recebem, os juízes têm férias de 60 dias e recesso prolongado na Páscoa. Na esteira dos magistrados vieram promotores, procuradores, conselheiros dos Tribunais de Contas e até do Ministério Público de Contas.

No Executivo, falam muito em enxugamento, mas existem 33.659 funções comissionadas (incluindo o governo do DF) e 66.725 funções e gratificações técnicas (novembro/2017). Há, pelo menos, duas propostas para restringir a quantidade de cargos em comissão na administração pública(PEC 110/ 2015 e PLS 257/2014), que caminham a passos de cágado no Congresso. Os servidores não querem perder as “boquinhas” e os políticos, os votos. A propaganda sobre a reforma da Previdência vende a ideia do fim dos privilégios, mas deixa fora do debate a aposentadoria dos militares, a mais desequilibrada. As mulheres continuarão a se aposentar com idade menor do que a dos homens e os movimentos feministas não tocam no assunto.

No setor privado, uma boa parte dos privilégios está nos subsídios e nas isenções fiscais, que somam juntos, anualmente, quase R$ 400 bilhões. Os subsídios dispararam de 2007 para 2016, passando de R$ 31 bilhões para R$ 115 bilhões. As isenções fiscais (os chamados gastos tributários) estão estimadas para 2018 em R$ 284 bilhões, beneficiando setores, regiões, categorias empresariais ou mesmo pessoas físicas. Segundo estudo recente do TCU, oito em cada dez desses programas não têm data para acabar e mais da metade (53%) não têm gestor responsável. Os beneficiários, obviamente, não reclamam.

Os contribuintes em atraso criticam a carga tributária, mas também não reclamam dos sucessivos programas de refinanciamento de dívidas (Refis), por meio dos quais a União deixou de arrecadar R$ 176 bilhões em juros e multas nos últimos dez anos.

No momento em que o país tem um déficit primário de R$ 159 bilhões, fazse necessário comprometermos os candidatos a deputados, senadores, governadores e presidente da República com a “reforma dos privilégios”. É claro que não seremos uma Suécia da noite para o dia — país onde congressistas moram em quitinetes, não têm assessores e, como os magistrados, usam o transporte público para ir ao trabalho.

Como em nosso país a sensação de injustiça é generalizada na concepção de um bom número de brasileiros, privilégio é um benefício do qual os “outros” usufruem. No caso pessoal, é sempre um direito adquirido. O pior é que no Brasil, frequentemente, o privilégio é irmão da injustiça e vizinho da corrupção...

A ineficiência da vinculação - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 16/01

Não basta destinar verba para que serviço público funcione


O legislador brasileiro tem recorrido, nas últimas décadas, com desastrosa frequência, à prática de vincular o destino de um porcentual dos recursos públicos a um uso específico. Por exemplo, a Emenda Constitucional 86/2015 determinou que a União deve aplicar ao menos 15% de sua receita corrente líquida anual em ações e serviços públicos de saúde.

No caso da área de educação, o limite mínimo é ainda maior. O art. 212 da Constituição diz que "a União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino".

À primeira vista, esse tipo de regra parece oportuno, já que significaria dar prioridade orçamentária ao que realmente deve ser prioritário no País. Em 2014, por exemplo, foi comemorado por amplos setores da sociedade o Plano Nacional de Educação, que destina, até 2024, ao menos 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação pública. Seria o passo definitivo para que o Brasil tivesse uma educação pública de qualidade.

O problema, no entanto, é que as coisas não são tão simples como parecem. Não basta destinar mais dinheiro para que um hospital público funcione melhor ou para que alunos aprendam mais Matemática e Português. É, aliás, mais provável que ocorra o oposto. É o que verificou o Banco Mundial no caso da educação pública brasileira, num recente estudo sobre a qualidade dos gastos públicos no País. "A vinculação constitucional dos gastos em educação a 25% das receitas dos municípios também contribui para a ineficiência dos gastos. Municípios mais ricos, com altas taxas de receita corrente líquida por aluno, tendem a ser bem menos eficientes que municípios mais pobres", disse o estudo.

A causa para tal ineficiência não é difícil de ser encontrada. "É provável que, para cumprir as regras constitucionais, muitos municípios ricos sejam obrigados a gastar em itens que não necessariamente aumentam o aprendizado." Ou seja, quando determinados recursos são vinculados a um determinado uso, como faz frequentemente o legislador brasileiro, há uma ruptura entre destinação e necessidade. Mesmo que não sejam necessários, os recursos serão destinados a uma área por força de regra legal.

A vinculação de receitas tem ainda outro grave efeito sobre a eficiência. Algumas áreas não precisarão realizar bons projetos para que recebam recursos. Ou seja, além do risco de o dinheiro ir para locais que não precisam tanto, dissemina-se, na esfera pública, a cultura de que não é preciso ter um bom projeto para receber recursos. A vinculação de receita prejudica, assim, a qualidade da aplicação dos recursos públicos também naquelas áreas em que, a princípio, poderia haver necessidade.

Também não se pode esquecer que uma distribuição de recursos públicos que não esteja baseada nas necessidades reais é sempre um estímulo à corrupção. Por pior que seja o déficit fiscal do País, com esse sistema de vinculação de receitas, haverá áreas com dinheiro sobrando.

O Banco Mundial aponta ainda que os efeitos da vinculação de receitas na área de educação tendem a piorar, em razão da transição demográfica pela qual passa o País, com a diminuição do número de alunos. "Para cumprir a lei, muitos municípios serão obrigados a gastar mais e mais por aluno, mesmo quando a receita se mantenha constante. (...) A consequência é um aumento ainda maior da ineficiência."

Como é lógico, esses problemas não estão restritos à área de educação, dado que as regras de vinculação engessam quase 80% do dinheiro arrecadado pelo governo. Com urgência, é preciso tornar o Orçamento mais flexível. Seja por força de equilíbrio fiscal, para que o governo tenha capacidade de administrar de fato as despesas, seja para melhorar a eficiência pública. É injusto e irracional gastar mal quando se tem tão pouco e as necessidades são tão grandes.

'Jus esperniandi' - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 16/01
Afinal, o que vai ocorrer no dia 24 em Porto Alegre é um julgamento, um carnaval, um circo ou, pior, uma guerra de guerrilhas? Quanto mais o julgamento do ex-presidente Lula se aproxima, mais o TRF-4 parece nervoso, as autoridades morrem de medo e os dois lados – anti-Lula e pró-Lula – se comportam como se fosse tudo, menos uma decisão de Justiça, a confirmação ou não da condenação em primeira instância.

Foi por isso que o presidente do TRF-4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, fez uma maratona ontem em Brasília, desde o encontro com a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, até o da procuradora-geral, Raquel Dodge, o do diretor-geral da Polícia Federal, Fernando Segovia, e o do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, general Sérgio Etchegoyen.

Vamos ao óbvio: qualquer ação contra Lula, na primeira, segunda ou qualquer instância, mexe com os nervos das “torcidas” e gera temor de quebra-quebra. E o TFR-4 é tratado como “muito pequeno” para uma decisão tão importante. Quem queria estar na pele dos três desembargadores?

Óbvio, também, que ninguém admite ter discutido a sentença do juiz Sérgio Moro, de mais de 9 anos de prisão para Lula, e muito menos a disposição do TRF-4. O que todos dizem é discutir os aspectos externos: a possibilidade de confrontos de rua, de perturbação da ordem pública.

“Perguntar a um desembargador sobre um julgamento seria como exigir de vocês, jornalistas, o nome de uma fonte de notícia. Um absurdo”, disse o general Etchegoyen, velho amigo de Thompson Flores, que almoçou com ele no Planalto e saiu com um presente: o livro História da Segunda Guerra Mundial, de Sir Liddell Hart.

Nem é preciso perguntar se Etchegoyen concorda com o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que disse à repórter do Estado Tânia Monteiro que pedir tropas para o julgamento do Lula é inconstitucional. Cá entre nós, é também ridículo, já que se trata de uma questão da Secretaria de Segurança Pública, além de as Forças Nacionais protegerem os prédios federais em torno do TRF-4.

No caso de Cármen Lúcia: Thompson Flores relatou as ameaças a desembargadores do caso Lula, já que ela preside também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mas, objetivamente, o único recurso do CNJ seria chamar a polícia! E o presidente do TRF-4 já foi direto à Polícia Federal. Já o ministro da Justiça, Torquato Jardim, vai a Porto Alegre nesta sexta-feira, para encontros com o governador e o prefeito, e “vai aproveitar” para conversar com o desembargador no TRF-4, que, como se vê, se cerca de todos os lados.

Apesar de toda essa maratona, a expectativa parece pior do que a realidade. Durante o julgamento, vai haver manifestações em Porto Alegre, na Avenida Paulista e em outras capitais. O PT e seus braços, tipo MTST, convocam os atos pró-Lula. Os adversários tentam concorrer com os anti-Lula. É do jogo. Desde que o jogo não descambe para batalha campal.

Depois, com Lula condenado ou com Lula absolvido, o mundo não vai acabar, o Brasil não vai parar, tudo vai continuar como está. E o lado perdedor vai chiar. Confirmada a sentença de Moro, como apostam os meios jurídico e político, os petistas vão reclamar, criticar, xingar. Ok. Também faz parte do jogo.

Haverá mil e uma versões sobre perseguição das elites, continuidade do “golpe”, essas bobagens que não dizem respeito à Justiça. Mas isso não significa guerra nem atentado à democracia, só o velho “jus esperniandi”, que vale também para o outro lado. E, na Quarta-Feira de Cinzas deste carnaval, começa uma outra folia: a dos recursos. Resta saber até quando a candidatura Lula aguenta essa rebordosa.

Loucura de Trump é sucesso de bilheteria para ele e para a mídia - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/01

Donald Trump sofre de uma doença mental? Para mim, a pergunta não faz sentido. Sempre parto do princípio que todas as pessoas sofrem de uma doença mental. Em rigor, estar vivo é uma doença mental. Mas divago.

Donald Trump sofre de uma doença mental, repito? São incontáveis os artigos que respondem afirmativamente. Já perdi a conta: um jornal, normalmente progressista, convida um psicólogo, um psiquiatra, um neurologista para dissertar sobre a cabeça de Trump.

O diagnóstico é sempre sombrio. Tão sombrio que o leitor poderia pensar que a "medicalização" da política é uma originalidade desta Presidência. Não é.

Houve um tempo em que me diverti com o assunto. Conheço mal a "medicalização" da esquerda pela direita. Mas suspeito que é tão ignara como a "medicalização" da direita pela esquerda -um esporte que teve em Theodor Adorno e seus camaradas os principais gurus: os conservadores, diziam eles, exibem uma personalidade "autoritária", "cínica", "violenta", que só pode produzir o nazismo e o Holocausto.

O livro "The Authoritarian Personality" foi publicado em 1950, poucos anos depois do suicídio coletivo da Europa. O que pode servir de atenuante.
Ou não. Porque Adorno deixou herdeiros. A lista é infinita -Michael Dodd, John Jost, Bob Altemeyer etc.- mas todos eles parecem concordar que o conservadorismo não é uma ideologia; é uma patologia que tem os seus sintomas: o medo do desconhecido; a agressão como linguagem primária; uma intolerância forte a situações de incerteza e ambiguidade; um fechamento cognitivo perante o pensamento abstrato.

Aliás, por falar em pensamento abstrato, estudos recentes (de Gordon Hodson e Michael Busseri) estabelecem uma ligação entre a homofobia e essa dificuldade em lidar com abstrações. Pergunta inevitável: quem não gosta de matemática também não gosta de gays? Parece que sim. O debate continua.

E continua com a participação da tecnologia: John Hibbing, da Universidade do Nebraska, afirma ter provado que existem diferenças na estrutura neuronal de um conservador. Para sermos mais precisos, no seu sistema nervoso simpático, que reage com repulsa sempre que alguém fala em "casamento gay".

Imagino que o próximo passo da ciência é encontrar um fármaco para tratar essa doença -ou, então, uma qualquer forma de lobotomia para que o sistema nervoso simpático seja, precisamente, mais simpático com minorias.

Longe de mim querer proibir, por palavras ou atos, a "medicalização" das ideologias: exercícios divertem-me e, quando leio essa prosa "científica", gosto de escrever os meus pensamentos nas margens do texto.

"Medo perante o desconhecido?" Stálin não tinha. "Intolerância perante a ambiguidade"? Na Coreia do Norte, a família Kim nunca soube o que isso era. "Fechamento cognitivo"? Felizmente, Fidel Castro era um pluralista.

Mas existem duas consequências mais sérias -e a obra do sociólogo Frank Furedi, que está longe de ser um conservador, não se cansa de as lembrar.

A primeira é que a transformação do rival em doente destrói qualquer possibilidade de debate. Se o rival é um louco, só um louco tenta argumentar com outro louco. Donde, silêncio ou insulto são as únicas atitudes razoáveis.

A consequência disso é a incomunicabilidade instalada entre esquerda e direita -ou, em linguagem mais prosaica, a transformação de uma comunidade política democrática numa sociedade de inimigos mais típica de uma ditadura.

Mas existe uma segunda consequência: tratar o adversário como louco é imitar as piores práticas dos regimes totalitários. Na União Soviética, por exemplo, o dissidente não era um agente político válido, ainda que perigoso para o regime. Era um doente mental -e o asilo, ou o "campo de reeducação", era o melhor lugar para ele.

Admito que Donald Trump tem uma saúde mental problemática -repito, todo mundo tem. Mas também admito que Trump gosta de "fabricar" essa instabilidade. No fundo, foi com esse número de circo que ele chegou à Casa Branca.

Se, por mera hipótese, a mídia deixasse de sondar o boletim psiquiátrico de Trump, isso sim, seria uma derrota para o presidente.
Mas "the show must go on" -e a loucura de Trump é sucesso de bilheteria. Para ele e para a mídia.

Impedir Cristiane no Trabalho é aberração legal; cretinos de direita não percebem que é a guerra contra Reforma da Previdência - REINALDO AZEVEDO

REDE TV/UOL - 16/01

Nunca falei com a deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ). Nunca tratei Roberto Jefferson, seu pai, como professor de Educação Moral & Cívica, nem mesmo quando ele se tornou a voz a denunciar o mensalão, acusação que pegava na testa do PT. Tampouco disponho de elementos técnicos para defender a nomeação da parlamentar para o Ministério do Trabalho. Entenderam? Não vou tratar de pessoas, mas de competências e procedimentos. Assim, uma coisa eu sei: as decisões tomadas pela Justiça Federal do Rio impedido a posse de Cristiane como titular do Trabalho são uma aberração. Trata-se de um momento vergonhoso, em que se evidencia a óbvia politização do Judiciário.

Fato do dia: o juiz federal Vladimir Vitovsky, que está como substituto no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), no Rio, negou nesta segunda questão apresentada pela Advocacia-Geral da União, em embargos de declaração, para tentar derrubar a liminar que impede a posse de Cristiane. Fez ainda mais: decidiu que a 4ª Vara Federal de Niterói — que concedeu a liminar contra a posse — passa a ser a titular de outras ações do gênero, que correm em outras varas, a saber: 1ª Vara Federal de Magé, 1ª Vara Federal de Teresópolis, 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro, 1ª Vara Federal de Nova Friburgo, 1ª Vara Federal de Campos e 1ª Vara Federal de Macaé.

A quantidade de idiotices escritas a respeito da decisão, sobretudo por cretinos de direita, os nossos falsos liberais, impressiona. Essa gente evidencia que uma eventual derrota da esquerda em 2018 não tornará o país carente de asnos. Os dois lados os produzem com proficiência prolífica, não é mesmo?

Vamos lembrar. A suspensão da posse de Cristiane é um escárnio. O juiz Leonardo da Costa Couceiro, da 4ª Vara Federal de Niterói, concedeu liminar a Ação Popular impetrada pelo valente Movimento dos Advogados Trabalhistas Independentes — quem são, a propósito, os “dependentes”? Argumentos da turma, acatados pelo juiz:
1) A deputada não teria currículo compatível com a tarefa. Atenção! Inexiste exigência de “currículo mínimo” para exercício de cargo ministerial, uma função eminentemente política. A nomeação, segundo a Constituição, é de competência exclusiva do presidente. E o doutor Couceiro não parou por aí.
2) Ele acatou outra argumentação estupefaciente, cuja veracidade nem verifiquei, mas dou de barato que seja como se diz: Cristiane teria sido condenada a pagar uma multa em processo trabalhista.

Segundo os tais advogados, com o que concordou o juiz, dados esses dois elementos — a falta de currículo e a multa —, a nomeação de Cristiane feriria a moralidade administrativa.

É um escracho.

É um acinte.

É um despropósito.

É uma provocação.

É uma aberração.

É um deboche.

A questão da falta de currículo é apenas um despropósito que nem merece outras considerações. Mostrem-me onde está a exigência. Quem deu ao juiz o direito de estabelecer filtros que não estão na lei para nomeação desta ou daquela pessoas ?

Quanto à multa trabalhista, dizer o quê? Recorrer à Justiça é um direito de todo cidadão. Defender-se também. Ainda que Cristiane venha a ser condenada, em caráter definitivo, a pagar uma multa, isso não a inabilita para o exercício de qualquer cargo público. Basta que pague, e nada mais ela deverá à Justiça.

A AGU recorreu da decisão, apegando-se à questão técnica. Nada, na lei, da à 4ª Vara Federal de Niterói competência específica para conceder aquela liminar, impedindo a posse de um ministro de Estado. O primeiro recurso teve de ser apresentado ao próprio Couceiro, que reafirmou a sua primazia. O TRF-2, por meio de Vladimir Vitovsky, sem dizer por quê — e não disse! — não apenas decidiu que a 4ª Vara é a dona da bola como passou para ela todas as outras ações. Ao governo caberá agora recorrer ao STJ. Se mantida a decisão, ainda existe o STF. O que pode acontecer? A esta altura, meus caros, não dá para prever. Estamos nos tornando a terra da insegurança jurídica e da imprevisibilidade.

Atenção! Essa constatação que faço aqui já chegou aos agentes econômicos. Grandes investidores, hoje em dia, afirmam, em conversas reservadas, que a Justiça já não pode ser considerada uma instância que vai corrigir este ou aquele abusos. Ao contrário: o que se avalia é que ela própria se tornou o território privilegiado da transgressão, da idiossincrasia e do corporativismo.

Por mais críticos do governo que possam ser analistas não-esquerdistas, cumpriria, em casos assim, olhar menos para o “quem” e mais para o “quê”. Importa menos saber a história de Cristiane e seu pai — afinal, eles passarão, como todos nós — do que a agressão a fundamento legal, que ordena o Estado de Direito. Mas, para que tal análise se faça, os nossos direitistas e liberais teriam ao menos de respeitar os fundamentos de uma democracia. E os idiotas estão ocupados demais vazando seu moralismo primitivo e azedo.

Todo mundo sabe que a nomeação de Cristiane é parte de um movimento maior que busca votos para a reforma da Previdência, sem a qual o país voltará para o buraco. Se a intenção é esta ou não, pouco me importa, porque não julgo intenções, mas avalio fatos. Eis um fato: impedir a posse da deputada no Ministério é só mais uma forma de sabotar a reforma da Previdência, que, como é sabido, conta com a quase unânime rejeição do Poder Judiciário, o mais aquinhoado dos Três Poderes com benefícios e privilégios que esmagam os pobres brasileiros.

Sim, o mundo que interessa está atento às aberrações em curso por aqui, como revela a decisão da Standard & Poor’s, que rebaixou a nota do país. O corporativismo, o moralismo tosco e a burrice estão fazendo um enorme esforço para inviabilizar o país. E, como corolário desse esforço, pavimentam o caminho da volta da esquerda ao poder.

Sob o aplauso da direita xucra.