O GLOBO - 07/04
Nunca tive empregada doméstica aqui na minha residência, o Dodge Dart 73, enferrujado, que fica estacionado na porta de O Globo. Aqui em casa eu e a Isaura, a minha patroa, realizamos nós mesmos o serviço doméstico num sistema de parceria e divisão de trabalhos. A Isaura lava, passa, cozinha, faz a faxina e eu ajudo a minha companheira sujando tudo. Outra coisa que sempre atrapalhou a contratação de uma serviçal foi o ciúme doentio da Isaura, a minha patroa, que sempre teve medo que eu acabasse pegando alguma empregada gostosa, o que, provavelmente, ia acabar acontecendo mesmo.
Devido de quê a esta nova legislação, como se fosse uma chaleira, a classe média começou a chiar! Com os novos encargos, as domésticas cheias da grana vão acabar contratando as suas patroas para fazer faxina no barraco e tomar conta das crianças enquanto elas estão no serviço.
Assim como o Saci Pererê, a Mula Sem Cabeça e o Afro Descendentinho do Pastoreio, a Empregada Doméstica já virou uma figura do Imaginário Popular. Muitos afirmam que já viram, tem gente que jura de pé junto que já teve uma, mas isso não passa de uma lenda delirante. Até o Eike Batista, que está na maior M...X, ficou apavorado com a nova Lei das Domésticas e mandou embora a cozinheira, a faxineira, a arrumadeira, o caseiro, o jardineiro e o diretor de marketing. E ainda teve que pedir uma grana pro André Esteves do BTG PACTUAL pra inteirar o FGTS dos seus ex-empregados.
O Brasil está mudando. Os hábitos e costumes arcaicos do passado ficaram para trás, assim como o pastor homofóbico Marcos Felicianus, só que ele não sabe. Antigamente, o racismo não era considerado preconceito, as mulheres podiam apanhar de seus maridos sossegadas sem ter que prestar queixa na delegacia, os homossexuais viviam sendo espancados tranquilamente e os índios eram queimados numa boa em praça pública. E as empregadas domésticas, que eram quase membros da família, levavam chibatadas se errassem no tempero do feijão. Agora, as empregadas estão por cima da carne seca, do paio e da lingüiça do patrão. E diante desta nova realidade trabalhista, estou pensando seriamente em trocar de profissão e virar empregada doméstica, uma profissão muito melhor remunerada que o jornalismo onde, além de ganhar pouco, você não tem direito à férias e nem dormir no emprego.
***
Com os novos encargos trabalhistas, as domésticas vão virar artigo de luxo. Para cortar custos, já tem muito patrão pensando em se separar da mulher pra casar com a empregada.
***
FIGURAÇA DA SEMANA
Kim Jong-un – o mundo está à beira de uma hecatombe nuclear e tudo por causa do ditador da Coréia do Norte, Kim Jong-Chávez. O tresloucado tirano oriental ameaça a qualquer momento atacar mundo com seus foguetes Caramuru que ele comprou na feira de Caxias. O patético fanfarrão norte–coreano Samsung-Jong-un diz que não está nem aí se os americanos, em represália, bombardearem seu país mesmo porque a Coréia do Norte já está toda destruída mesmo. Os especialistas em geopolítica internacional da GloboNews tentam entender porque o micro-ditador Ping Pong-un entrou nessa onda de destruição nuclear. Será que foi a morte de Chávez? Será que foi por causa da nomeação do pastor Marcos Felicianus para a Comissão de Direitos Humanos? Ou será que foi porque a Daniela Mercury resolveu sair do armário?
Agamenon Mendes Pedreira é jornalista de forno e fogão.
domingo, abril 07, 2013
Sonho meu - CAETANO VELOSO
O GLOBO - 07/04
Por causa de uma viagem pelo verso de ‘Volver’, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba
Escrevi: “Dolores Duran era uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria”. É no que dá escrever com pressa. Houve quem pensasse (com razão) que eu estava dizendo que o samba não existiria sem Dolores, quando eu queria dizer que era sem a língua portuguesa que ele não existiria. É uma ideia que já deu mil voltas na minha cabeça: eu não deveria tê-la resumido tão ligeiramente numa frase que resultaria dúbia.
Faz tempo, eu estava num apart-hotel em Ipanema, cantando o tango “Volver”, só com meu violão. É muito comum acontecer de eu imaginar como seria em português uma frase de canção estrangeira que repito. Sobretudo se a frase me encanta. Parei em “Que es un soplo la vida”. Estava emocionado, e logo minha mente foi procurar como é que isso poderia ser dito em português. Mais: cantado em português. Fiquei surpreso ao ver o tamanho da dificuldade. Afinal era uma canção em espanhol, língua tão próxima à nossa. Mas “Que é um sopro a vida” não funciona. Depois de algumas tentativas, inverti a ordem das palavras e “Que a vida é um sopro” se mostrou natural e sonora. Mas muito longe da força do original. Acima de tudo, nada tango. A imponência, a solenidade da frase castelhana se desfez totalmente. Num primeiro momento, pareceu-me que não restava nenhuma beleza. Mas, afastando-me do tango e do tom aristocrático do espanhol, comecei a achar graça na frase curta e despojada que o português me ofertava. Espontaneamente liguei as sílabas “da”, “é” e “um” (além de, claro, fazer de “que” e “a” também uma sílaba única — como fazemos sempre, cantando ou conversando) e passei a repetir a frase com quatro sílabas poéticas: “Q(ue)a-vi-d(é)um-sopro”. Em poucos segundos eu tinha uma marcação de samba nascida da repetição da frase (que sugeria uma pausa regular entre as repetições). Mas isso era uma brincadeira que, em princípio, poderia ser feita com uma frase qualquer, em qualquer língua. Tudo ficou mais forte quando isolei a frase e a “cantei” (sem a melodia do tango e mesmo sem uma nova melodia muito definida): era uma frase de samba.
Era uma boa frase de samba-canção (para não dizer que estávamos assim tão longe de Dolores — e sem esquecer de que a brevidade da vida é tema central da biografia e do cancioneiro da carioca bochechuda). Era uma boa frase de samba de carnaval dos anos cinquenta, de samba de Paulinho da Viola, de Cartola, de Carlos Lyra, de Arlindo Cruz. De samba. Mas o clima que a envolve é enormemente diferente do clima da frase portenha. Não há solenidade e, portanto, o que se diz é algo ao mesmo tempo mais concreto e menos pesado do que o que se depreende do verso castelhano. Parece coisa mais banal, dita em tom mais pedestre e desimportante. No entanto, se sentido como trecho de samba, revela outros aspectos da constatação de que não passa de um sopro essa nossa vida. É menos bonita, mas há um realismo particular nesse despojamento estético.
Por causa dessa viagem pelo verso de “Volver”, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba. É frequente o tributo histórico que se presta à contribuição africana para o nascimento desse gênero que, por razões tanto autênticas quanto suspeitas, se tornou o centro da musicalidade popular brasileira. Mas ninguém fala (que eu ouça) do papel da língua portuguesa nesse processo. Sempre me fascinou o fato de falarmos português. Quanto mais eu crescia e ia aprendendo a geografia do nosso hemisfério ocidental, mais misterioso e atraente se tornava para mim que esse imenso pedaço de América fosse habitado por lusófonos. Que fosse o único país das Américas em que isso se deu só aumentava o fascínio. Ser um país uno concorria para que eu formasse dentro de mim uma imagem de claro enigma.
Não podemos conceber o samba sem a língua portuguesa. Não o teríamos concebido sem ela. Quando João Gilberto foi cantar em Lisboa escrevi que aquele era um grande acontecimento na história da língua portuguesa. Mas ainda não tinha pensado o que a tentativa de tradução de um verso de “Volver” me levou a formular. Lembro tudo isso quando ouço António Zambujo. Outro dia ouvi uma moça que estava com Xande do Revelação cantar “Não deixe o samba morrer” e, embora sua pronúncia soasse totalmente brasileira, havia algo de sentimento fadista na voz. Fiquei comovido. Logo soube que ela era portuguesa. Ao ouvi-la cantar outros sambas/pagodes, pensei que ali se estava realizando meu sonho antigo de haver grupos de pagode portugueses, fazendo sotaque brasileiro e sucesso internacional. Isso, desde os primeiros pagodes comerciais. Pagode, funk e axé lusitanos. Sonho meu.
Por causa de uma viagem pelo verso de ‘Volver’, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba
Escrevi: “Dolores Duran era uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba não existiria”. É no que dá escrever com pressa. Houve quem pensasse (com razão) que eu estava dizendo que o samba não existiria sem Dolores, quando eu queria dizer que era sem a língua portuguesa que ele não existiria. É uma ideia que já deu mil voltas na minha cabeça: eu não deveria tê-la resumido tão ligeiramente numa frase que resultaria dúbia.
Faz tempo, eu estava num apart-hotel em Ipanema, cantando o tango “Volver”, só com meu violão. É muito comum acontecer de eu imaginar como seria em português uma frase de canção estrangeira que repito. Sobretudo se a frase me encanta. Parei em “Que es un soplo la vida”. Estava emocionado, e logo minha mente foi procurar como é que isso poderia ser dito em português. Mais: cantado em português. Fiquei surpreso ao ver o tamanho da dificuldade. Afinal era uma canção em espanhol, língua tão próxima à nossa. Mas “Que é um sopro a vida” não funciona. Depois de algumas tentativas, inverti a ordem das palavras e “Que a vida é um sopro” se mostrou natural e sonora. Mas muito longe da força do original. Acima de tudo, nada tango. A imponência, a solenidade da frase castelhana se desfez totalmente. Num primeiro momento, pareceu-me que não restava nenhuma beleza. Mas, afastando-me do tango e do tom aristocrático do espanhol, comecei a achar graça na frase curta e despojada que o português me ofertava. Espontaneamente liguei as sílabas “da”, “é” e “um” (além de, claro, fazer de “que” e “a” também uma sílaba única — como fazemos sempre, cantando ou conversando) e passei a repetir a frase com quatro sílabas poéticas: “Q(ue)a-vi-d(é)um-sopro”. Em poucos segundos eu tinha uma marcação de samba nascida da repetição da frase (que sugeria uma pausa regular entre as repetições). Mas isso era uma brincadeira que, em princípio, poderia ser feita com uma frase qualquer, em qualquer língua. Tudo ficou mais forte quando isolei a frase e a “cantei” (sem a melodia do tango e mesmo sem uma nova melodia muito definida): era uma frase de samba.
Era uma boa frase de samba-canção (para não dizer que estávamos assim tão longe de Dolores — e sem esquecer de que a brevidade da vida é tema central da biografia e do cancioneiro da carioca bochechuda). Era uma boa frase de samba de carnaval dos anos cinquenta, de samba de Paulinho da Viola, de Cartola, de Carlos Lyra, de Arlindo Cruz. De samba. Mas o clima que a envolve é enormemente diferente do clima da frase portenha. Não há solenidade e, portanto, o que se diz é algo ao mesmo tempo mais concreto e menos pesado do que o que se depreende do verso castelhano. Parece coisa mais banal, dita em tom mais pedestre e desimportante. No entanto, se sentido como trecho de samba, revela outros aspectos da constatação de que não passa de um sopro essa nossa vida. É menos bonita, mas há um realismo particular nesse despojamento estético.
Por causa dessa viagem pelo verso de “Volver”, entrei, sozinho, numa meditação sobre a importância do português na construção da forma samba. É frequente o tributo histórico que se presta à contribuição africana para o nascimento desse gênero que, por razões tanto autênticas quanto suspeitas, se tornou o centro da musicalidade popular brasileira. Mas ninguém fala (que eu ouça) do papel da língua portuguesa nesse processo. Sempre me fascinou o fato de falarmos português. Quanto mais eu crescia e ia aprendendo a geografia do nosso hemisfério ocidental, mais misterioso e atraente se tornava para mim que esse imenso pedaço de América fosse habitado por lusófonos. Que fosse o único país das Américas em que isso se deu só aumentava o fascínio. Ser um país uno concorria para que eu formasse dentro de mim uma imagem de claro enigma.
Não podemos conceber o samba sem a língua portuguesa. Não o teríamos concebido sem ela. Quando João Gilberto foi cantar em Lisboa escrevi que aquele era um grande acontecimento na história da língua portuguesa. Mas ainda não tinha pensado o que a tentativa de tradução de um verso de “Volver” me levou a formular. Lembro tudo isso quando ouço António Zambujo. Outro dia ouvi uma moça que estava com Xande do Revelação cantar “Não deixe o samba morrer” e, embora sua pronúncia soasse totalmente brasileira, havia algo de sentimento fadista na voz. Fiquei comovido. Logo soube que ela era portuguesa. Ao ouvi-la cantar outros sambas/pagodes, pensei que ali se estava realizando meu sonho antigo de haver grupos de pagode portugueses, fazendo sotaque brasileiro e sucesso internacional. Isso, desde os primeiros pagodes comerciais. Pagode, funk e axé lusitanos. Sonho meu.
A formação de um povo - LYA LUFT
REVISTA VEJA
A formação de um povo pode ser olhada sob vários aspectos. Aqui eu falo da formação cultural. informação, crescimento, consciência dos direitos e deveres de quem vive numa democracia verdadeira, que se interesse por um povo formado e informado. Aqui entra primariamente a educação, que venho comentando sem conseguir esgotar, assunto inexaurível na vida privada de todo cidadão e na existência geral de um povo. É preciso ter em mente que para os líderes, sejam quais forem, esse deve ser um interesse primordial em sua atividade.
A mim me preocupa a redução do nível de formação e informação que nos oferecem. Escrevi muito sobre as cotas, com que em lugar de melhorar a educação pela base. subindo o nível do precário ensino elementar, se reduz o nível do ensino superior, para que se adapte aos que lá entram mais por cota do que por mérito e preparo, em lugar de ser, como deveria, o inverso. Com isso. nosso ensino superior, já tão carente e ruim. com algumas gloriosas exceções, piora ainda mais. Vejam-se os dados assustadores de reprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, de candidatos saídos dos nossos cursos de direito. Os exames de igual caráter para egressos de cursos de medicina ainda não apresentam resultado tão incrivelmente ruim, mas começam a nos deixar alertas: pois esses médicos vão lidar com o nosso corpo, a nossa vida. Estudantes de letras frequentemente nem sabem ortografia, e mais: não conseguem se expressar por escrito, não têm pensamento claro e seguro, não foram habituados, desde cedo. a argumentar, a pensar, a analisar, a discernir, a ler e a escrever.
Agora, pelo que leio, parece que vão conseguir piorar ainda mais a situação, pois a meninada só precisa se alfabetizar no fim do 3o ano da escola elementar. Pergunto: o que estarão fazendo nos primeiros dois anos de escola? Brincando? Gazetando? A escola vai fingir que está ensinando, preparando para a vida e a profissão? E os pais que se interessam, o que podem esperar de tal ensino? Aos 8 anos meninos e meninas já deveriam estar escrevendo direito e lendo bastante - claro que em escolas públicas de qualquer ponto do país onde os governas tivessem colocado professores bem pagos, seguros e com boa autoestima: em escolas nas quais cada sala de aula tenha uma prateleira com livros doados pelos respectivos governos, municipal, estadual ou federal, interessados na formação do seu povo.
Qualquer coisa diferente disso é ilusão pura. Não resolve enviar centenas de jovens ao exterior ou trazer estudantes estrangeiros para cá, se a base primeira do ensino é ruim como a nossa, pois não adianta um telhado de luxo sobre paredes rachadas em casas construídas sobre areia movediça. Como não adianta dar comida a quem precisaria logo a seguir de estudo e trabalho que proporcionasse crescimento real, projetos e horizontes em lugar da dependência de meninos que não conseguem largar o peito materno mesmo passada a idade adequada.
O que vai acontecer? Com certeza vai se abrir e aprofundar mais o fosso entre alunos saídos de escolas particulares que ainda consigam manter um nível e objetivo de excelência e a imensa maioria daqueles saídos de escolas públicas ou mesmo privadas em que o rebaixamento de nível se instalar. Grandes e pequenas empresas e indústrias carecem de mão de obra especializada e boa milhares de vagas oferecidas não são preenchidas porque não há mão de obra preparada: imaginem se a alfabetização for concluída no fim do 3o ano elementar, quando os alunos tiverem já 8 anos, talvez mais, quando e como serão preparados? Com que idade estarão prontos para um mercado de trabalho cada vez mais exigente? Ou a exigência também vai cair e teremos mais edifícios e outras obras mal construídos, serviços deixando a desejar, nossa excelência cada vez mais reduzida?
Não sei se somos um povo cordial: receio que sejamos desinteressados, mal orientados e conformados, achando que é só isso que merecemos. Ou nem pensando no assunto.
"Se a alfabetização for concluída no fim do 3o ano elementar, quando os alunos tiverem já 8 anos, talvez mais, quando e como serão preparados? Com que idade estarão prontos para um mercado de trabalho cada vez mais exigente?"
A mim me preocupa a redução do nível de formação e informação que nos oferecem. Escrevi muito sobre as cotas, com que em lugar de melhorar a educação pela base. subindo o nível do precário ensino elementar, se reduz o nível do ensino superior, para que se adapte aos que lá entram mais por cota do que por mérito e preparo, em lugar de ser, como deveria, o inverso. Com isso. nosso ensino superior, já tão carente e ruim. com algumas gloriosas exceções, piora ainda mais. Vejam-se os dados assustadores de reprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, de candidatos saídos dos nossos cursos de direito. Os exames de igual caráter para egressos de cursos de medicina ainda não apresentam resultado tão incrivelmente ruim, mas começam a nos deixar alertas: pois esses médicos vão lidar com o nosso corpo, a nossa vida. Estudantes de letras frequentemente nem sabem ortografia, e mais: não conseguem se expressar por escrito, não têm pensamento claro e seguro, não foram habituados, desde cedo. a argumentar, a pensar, a analisar, a discernir, a ler e a escrever.
Agora, pelo que leio, parece que vão conseguir piorar ainda mais a situação, pois a meninada só precisa se alfabetizar no fim do 3o ano da escola elementar. Pergunto: o que estarão fazendo nos primeiros dois anos de escola? Brincando? Gazetando? A escola vai fingir que está ensinando, preparando para a vida e a profissão? E os pais que se interessam, o que podem esperar de tal ensino? Aos 8 anos meninos e meninas já deveriam estar escrevendo direito e lendo bastante - claro que em escolas públicas de qualquer ponto do país onde os governas tivessem colocado professores bem pagos, seguros e com boa autoestima: em escolas nas quais cada sala de aula tenha uma prateleira com livros doados pelos respectivos governos, municipal, estadual ou federal, interessados na formação do seu povo.
Qualquer coisa diferente disso é ilusão pura. Não resolve enviar centenas de jovens ao exterior ou trazer estudantes estrangeiros para cá, se a base primeira do ensino é ruim como a nossa, pois não adianta um telhado de luxo sobre paredes rachadas em casas construídas sobre areia movediça. Como não adianta dar comida a quem precisaria logo a seguir de estudo e trabalho que proporcionasse crescimento real, projetos e horizontes em lugar da dependência de meninos que não conseguem largar o peito materno mesmo passada a idade adequada.
O que vai acontecer? Com certeza vai se abrir e aprofundar mais o fosso entre alunos saídos de escolas particulares que ainda consigam manter um nível e objetivo de excelência e a imensa maioria daqueles saídos de escolas públicas ou mesmo privadas em que o rebaixamento de nível se instalar. Grandes e pequenas empresas e indústrias carecem de mão de obra especializada e boa milhares de vagas oferecidas não são preenchidas porque não há mão de obra preparada: imaginem se a alfabetização for concluída no fim do 3o ano elementar, quando os alunos tiverem já 8 anos, talvez mais, quando e como serão preparados? Com que idade estarão prontos para um mercado de trabalho cada vez mais exigente? Ou a exigência também vai cair e teremos mais edifícios e outras obras mal construídos, serviços deixando a desejar, nossa excelência cada vez mais reduzida?
Não sei se somos um povo cordial: receio que sejamos desinteressados, mal orientados e conformados, achando que é só isso que merecemos. Ou nem pensando no assunto.
"Se a alfabetização for concluída no fim do 3o ano elementar, quando os alunos tiverem já 8 anos, talvez mais, quando e como serão preparados? Com que idade estarão prontos para um mercado de trabalho cada vez mais exigente?"
Admitir o fracasso - MARTHA MEDEIROS
ZERO HORA - 07/04
Eu estava dentro do carro em frente à escola da minha filha, aguardando a aula dela terminar. A rua é bastante congestionada no final da manhã. Foi então que uma mulher chegou e começou a manobrar para estacionar o seu carro numa vaga ainda livre. Reparei que seu carro era grande para o tamanho da vaga, mas, vá saber, talvez ela fosse craque em baliza.
Tentou entrar de ré, não conseguiu. Tentou de novo, e de novo não conseguiu. E de novo. E de novo. Por pouco não raspou a lataria do carro da frente, e deu umas batidinhas no de trás que eu vi. Não fazia calor, mas ela suava, passava a mão na testa, ou seja, estava entregando a alma para tentar acomodar sua caminhonete numa vaga que, visivelmente, não servia. Ou, se servisse, haveria de deixá-la entalada e com muita dificuldade de sair dali depois. Pensei: como é difícil admitir um fracasso e partir para outra.
Para quem está de fora, é mais fácil perceber quando uma insistência vai dar em nada – e já não estou falando apenas em estacionar carros em vagas minúsculas, mas em situações variadas em que o “de novo, de novo, de novo” só consegue fazer com que a pessoa perca tempo. Tudo conspira contra, mas a criatura teima na perseguição do seu intento, pois não é do seu feitio fracassar.
Ora, seria do feitio de quem?
Todas as nossas iniciativas pressupõem um resultado favorável. Ninguém entra de antemão numa fria: acreditamos que nossas atitudes serão compreendidas, que nosso trabalho trará bom resultado, que nossos esforços serão valorizados. Só que às vezes não são. E nem é por maldade alheia, simplesmente a gente dimensionou mal o tamanho do desafio. Achamos que daríamos conta, e não demos. Tentamos, e não rolou. “De novo!”, ordenamos a nós mesmos – e, ok, até vale insistir um pouquinho.
Só que nada. Outra vez, e nada. Até quando perseverar? No fundo, intuímos rapidinho que algo não vai dar certo, mas é incômodo reconhecer um fracasso, ainda mais hoje em dia, em que o sucesso anda sendo superfaturado por todo mundo. Só eu vou me dar mal? Nada disso. De novo!
De-sis-ta. É a melhor coisa que se pode fazer quando não se consegue encaixar um sonho em um lugar determinado. Se nada de positivo vem desse empenho todo, reconheça: você fez uma escolha errada. Aprender alemão talvez não seja para sua cachola. Entrar naquela saia vai ser impossível. Seu namorado não vai deixar de ser mulherengo, está no genoma dele. Você irá partir para a oitava tentativa de fertilização?
Adote. E em vez de alemão, tente aprender espanhol. Troque a saia apertada por um vestido soltinho. Invista em alguém que enxergue a vida do seu mesmo modo, que tenha afinidades com seu jeito de ser. Admitir um fracasso não é o fim do mundo. É apenas a oportunidade que você se dá de estacionar seu carro numa vaga mais fácil e que está logo ali em frente, disponível.
Eu estava dentro do carro em frente à escola da minha filha, aguardando a aula dela terminar. A rua é bastante congestionada no final da manhã. Foi então que uma mulher chegou e começou a manobrar para estacionar o seu carro numa vaga ainda livre. Reparei que seu carro era grande para o tamanho da vaga, mas, vá saber, talvez ela fosse craque em baliza.
Tentou entrar de ré, não conseguiu. Tentou de novo, e de novo não conseguiu. E de novo. E de novo. Por pouco não raspou a lataria do carro da frente, e deu umas batidinhas no de trás que eu vi. Não fazia calor, mas ela suava, passava a mão na testa, ou seja, estava entregando a alma para tentar acomodar sua caminhonete numa vaga que, visivelmente, não servia. Ou, se servisse, haveria de deixá-la entalada e com muita dificuldade de sair dali depois. Pensei: como é difícil admitir um fracasso e partir para outra.
Para quem está de fora, é mais fácil perceber quando uma insistência vai dar em nada – e já não estou falando apenas em estacionar carros em vagas minúsculas, mas em situações variadas em que o “de novo, de novo, de novo” só consegue fazer com que a pessoa perca tempo. Tudo conspira contra, mas a criatura teima na perseguição do seu intento, pois não é do seu feitio fracassar.
Ora, seria do feitio de quem?
Todas as nossas iniciativas pressupõem um resultado favorável. Ninguém entra de antemão numa fria: acreditamos que nossas atitudes serão compreendidas, que nosso trabalho trará bom resultado, que nossos esforços serão valorizados. Só que às vezes não são. E nem é por maldade alheia, simplesmente a gente dimensionou mal o tamanho do desafio. Achamos que daríamos conta, e não demos. Tentamos, e não rolou. “De novo!”, ordenamos a nós mesmos – e, ok, até vale insistir um pouquinho.
Só que nada. Outra vez, e nada. Até quando perseverar? No fundo, intuímos rapidinho que algo não vai dar certo, mas é incômodo reconhecer um fracasso, ainda mais hoje em dia, em que o sucesso anda sendo superfaturado por todo mundo. Só eu vou me dar mal? Nada disso. De novo!
De-sis-ta. É a melhor coisa que se pode fazer quando não se consegue encaixar um sonho em um lugar determinado. Se nada de positivo vem desse empenho todo, reconheça: você fez uma escolha errada. Aprender alemão talvez não seja para sua cachola. Entrar naquela saia vai ser impossível. Seu namorado não vai deixar de ser mulherengo, está no genoma dele. Você irá partir para a oitava tentativa de fertilização?
Adote. E em vez de alemão, tente aprender espanhol. Troque a saia apertada por um vestido soltinho. Invista em alguém que enxergue a vida do seu mesmo modo, que tenha afinidades com seu jeito de ser. Admitir um fracasso não é o fim do mundo. É apenas a oportunidade que você se dá de estacionar seu carro numa vaga mais fácil e que está logo ali em frente, disponível.
A teia das probabilidades - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 07/04
Foi então que me lembrei de minha teoria de que grande parte do que ocorre na vida é por acaso
Com a idade, meu relacionamento com os animais mudou muito. Quando menino, eu não dava mole para os passarinhos, cobras e lagartixas. De atiradeira em punho, o bolso cheio de pedras, saía eu a caçar os pobres coitados. E não para capturá-los, não; era para acabar mesmo com eles. Mas por que razão -me pergunto, hoje-, pelo simples prazer de matá-los?
Não que odiasse os animais em geral, nada disso. Não havia ódio algum em minha atitude. Era, talvez, o instinto do caçador que permanece em todos nós, sem levar em conta que, para os passarinhos e lagartixas, significa o fim da vida.
A verdade é que não pensava nisso, mesmo porque tinha um carneirinho, que meu pai dera, e eu o amava muito. Sair com ele a passear, levá-lo a pastar no capinzal, era a minha alegria.
Gostava também de cabras, cabritos, cachorros e papagaios. Sim, e de um macaquinho de cheiro que vivia amarrado no gradil próximo à cozinha da casa. Dava-lhe banana e ficava encantado com suas mãozinhas iguais às nossas, mas tão pequeninas.
Afora estes, não tinha a mínima simpatia ou piedade por outros bichos. Cheguei a pôr um pedaço de carne num anzol para fisgar um pobre urubu, e o fisguei. Foi um desespero, mas ele conseguiu se safar e sair voando com o anzol fincado no bico.
Ia me esquecendo dos gatos. Sempre gostei de gatos, mas meu amor por eles só nasceu mesmo quando meu filho Paulo me fez comprar um gatinho para ele, que ganhou o nome de Ho Chi Mim e se tornou o rei da casa. Um dia se apaixonou por uma gata de rua e sumiu para sempre. Foi substituído por outro e este por outros, até que surgiu o siamês que se chamou Gatinho e me inspirou um livro de poemas.
Morreu de velho aos 16 anos para minha tristeza, que só acabou quando Adriana me trouxe de presente uma gatinha siamesa, que ganhou o nome de Gatinha.
Pois bem, mas coisa inesperada foi a pequenina aranha com que me deparei ao abrir o dicionário de filosofia de José Ferrater Mora. Abri na página em que ela estava e foi aquela surpresa, minha e dela: correu com suas perninhas finas e foi colocar-se no alto da página, tão surpresa quanto eu.
Ela mais que eu, certamente, pois já conhecia aranhas e ela, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais vira um ser humano. Fechei cuidadosamente o livro e deixei-a lá, para viver sua vida de aranha. Os anos se passaram e não é que, para minha surpresa de novo, surge uma aranhinha parecida com aquela, tecendo uma teia perto do espelho de meu banheiro? Meu primeiro impulso foi acabar com ela, pois banheiro com teia de aranha pega mal.
Mas refleti: ela é tão inofensiva e, afinal, é um ser vivo. Por que então acabar com ela? Não, não vou fazer isso, aranha não faz mal a ninguém. Deixei-a lá e avisei à faxineira que não tocasse nela.
- Mas o senhor vai deixar esse bicho pendurado no espelho de seu banheiro?
- Vou.
A faxineira me olhou espantada, soltou um muxoxo e continuou a limpeza da pia. Aquela aranha ficou ali durante semanas e um belo dia sumiu. Faz meses isso, e não é que, semana passada, ao abrir o filtro de água na cozinha, vejo ali, entre ele e a parede, outra aranha, pequenina como aquela, tecendo sua teia?
No filtro já é demais, pensei comigo, mas deixei-a lá. E lá ela continua, no centro de sua teia. Parada, sem mover uma perninha, dias e dias, à espera de uma presa. Quanta paciência, pensei comigo. E se não aparecer presa alguma?
Foi então que me lembrei de minha teoria de que grande parte do que ocorre na vida é por acaso. E vi que, se há alguém nesta vida, a quem essa teoria melhor se aplica, é à aranha. Veja bem, ela passa dias tecendo a sua teia, estendendo-a estrategicamente.
É o único recurso de que dispõe para capturar a presa e devorá-la. Acredita que a presa, cedo ou tarde, cairá na armadilha, mas nada garante que isso ocorrerá. Só o acaso o determinará. E fiquei vendo-a, ali, imóvel, à espera de um mosquito incauto. Se ele cair na armadilha, ela o come e se alimenta; se não cair, ela morrerá de fome. Ninguém depende tanto do acaso quanto uma aranha.
Foi então que me lembrei de minha teoria de que grande parte do que ocorre na vida é por acaso
Com a idade, meu relacionamento com os animais mudou muito. Quando menino, eu não dava mole para os passarinhos, cobras e lagartixas. De atiradeira em punho, o bolso cheio de pedras, saía eu a caçar os pobres coitados. E não para capturá-los, não; era para acabar mesmo com eles. Mas por que razão -me pergunto, hoje-, pelo simples prazer de matá-los?
Não que odiasse os animais em geral, nada disso. Não havia ódio algum em minha atitude. Era, talvez, o instinto do caçador que permanece em todos nós, sem levar em conta que, para os passarinhos e lagartixas, significa o fim da vida.
A verdade é que não pensava nisso, mesmo porque tinha um carneirinho, que meu pai dera, e eu o amava muito. Sair com ele a passear, levá-lo a pastar no capinzal, era a minha alegria.
Gostava também de cabras, cabritos, cachorros e papagaios. Sim, e de um macaquinho de cheiro que vivia amarrado no gradil próximo à cozinha da casa. Dava-lhe banana e ficava encantado com suas mãozinhas iguais às nossas, mas tão pequeninas.
Afora estes, não tinha a mínima simpatia ou piedade por outros bichos. Cheguei a pôr um pedaço de carne num anzol para fisgar um pobre urubu, e o fisguei. Foi um desespero, mas ele conseguiu se safar e sair voando com o anzol fincado no bico.
Ia me esquecendo dos gatos. Sempre gostei de gatos, mas meu amor por eles só nasceu mesmo quando meu filho Paulo me fez comprar um gatinho para ele, que ganhou o nome de Ho Chi Mim e se tornou o rei da casa. Um dia se apaixonou por uma gata de rua e sumiu para sempre. Foi substituído por outro e este por outros, até que surgiu o siamês que se chamou Gatinho e me inspirou um livro de poemas.
Morreu de velho aos 16 anos para minha tristeza, que só acabou quando Adriana me trouxe de presente uma gatinha siamesa, que ganhou o nome de Gatinha.
Pois bem, mas coisa inesperada foi a pequenina aranha com que me deparei ao abrir o dicionário de filosofia de José Ferrater Mora. Abri na página em que ela estava e foi aquela surpresa, minha e dela: correu com suas perninhas finas e foi colocar-se no alto da página, tão surpresa quanto eu.
Ela mais que eu, certamente, pois já conhecia aranhas e ela, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais vira um ser humano. Fechei cuidadosamente o livro e deixei-a lá, para viver sua vida de aranha. Os anos se passaram e não é que, para minha surpresa de novo, surge uma aranhinha parecida com aquela, tecendo uma teia perto do espelho de meu banheiro? Meu primeiro impulso foi acabar com ela, pois banheiro com teia de aranha pega mal.
Mas refleti: ela é tão inofensiva e, afinal, é um ser vivo. Por que então acabar com ela? Não, não vou fazer isso, aranha não faz mal a ninguém. Deixei-a lá e avisei à faxineira que não tocasse nela.
- Mas o senhor vai deixar esse bicho pendurado no espelho de seu banheiro?
- Vou.
A faxineira me olhou espantada, soltou um muxoxo e continuou a limpeza da pia. Aquela aranha ficou ali durante semanas e um belo dia sumiu. Faz meses isso, e não é que, semana passada, ao abrir o filtro de água na cozinha, vejo ali, entre ele e a parede, outra aranha, pequenina como aquela, tecendo sua teia?
No filtro já é demais, pensei comigo, mas deixei-a lá. E lá ela continua, no centro de sua teia. Parada, sem mover uma perninha, dias e dias, à espera de uma presa. Quanta paciência, pensei comigo. E se não aparecer presa alguma?
Foi então que me lembrei de minha teoria de que grande parte do que ocorre na vida é por acaso. E vi que, se há alguém nesta vida, a quem essa teoria melhor se aplica, é à aranha. Veja bem, ela passa dias tecendo a sua teia, estendendo-a estrategicamente.
É o único recurso de que dispõe para capturar a presa e devorá-la. Acredita que a presa, cedo ou tarde, cairá na armadilha, mas nada garante que isso ocorrerá. Só o acaso o determinará. E fiquei vendo-a, ali, imóvel, à espera de um mosquito incauto. Se ele cair na armadilha, ela o come e se alimenta; se não cair, ela morrerá de fome. Ninguém depende tanto do acaso quanto uma aranha.
Sobre o Rio - ARTUR XEXÉO
O GLOBO - 07/04
A coluna de quarta-feira passada ainda estava quentinha quando chegou o primeiro e-mail me pichando. “Por que tanta má vontade com a cidade? Será que os problemas relacionados só acontecem aqui?”, cobrava Sheila Soares. Quase ao mesmo tempo, entrou na caixa de e-mails a segunda crítica. “Você cobra demais, suas críticas são severas, ácidas, são críticas destrutivas e não construtivas, parece que você não gosta da cidade”, analisou Rodolfo Diogo Dias.
Os comentários dos leitores foram provocados pela crônica que criticava o hábito carioca que, diante das mazelas da cidade, só se preocupar com os estragos feitos à imagem da cidade no exterior. Tenho obrigação de revelar que a grande maioria dos e-mails gerados pela coluna foram favoráveis. Veio de gente que compartilhava a mesma opinião. Mas as duas opiniões contrárias me abalaram. Má vontade com o Rio? Crítica destrutiva? Há mais de 20 anos, escrevo, pelo menos duas vezes por semana, uma crônica no jornal. Sempre acreditei que fazia uma coluna carioca, de amor ao Rio. Quase sempre, temo ser bairrista. Quase sempre, tenho medo de ser carioca demais. O que mudou? O que aconteceu que fez com que, mesmo que apenas dois leitores, o que escrevo seja interpretado como desamor à cidade?
Até agora, tinha dúvidas, mas hoje tenho certeza: o que mais fez mal ao Rio nos últimos tempos foi ter recebido a honraria de sediar as próximas Copa do Mundo e Olimpíadas. Desde que isso foi anunciado, um oba-oba cercou a cidade que, de uma hora para outra, tornou-se o lugar perfeito, a destino-desejo dos turistas do mundo inteiro, a cidade-fetiche do planeta.
Até há pouco, o Rio parecia ter um único problema: a violência. A gente acreditava que, no dia em que houvesse mais segurança por aqui, as delícias da cidade poderiam ser aproveitadas. As UPPs, criadas com o olho das autoridades nos grandes eventos que se aproximam, não resolveram a questão. Mas é evidente que trouxeram para todos os habitantes do Rio uma sensação de mais segurança. Foi aí que se descobriu ou que se percebeu que as delícias que a gente não aproveitava não eram tão evidentes. O Rio está mais seguro. Mas continua sujo, com serviços abaixo da crítica, com transportes ineficientes, com preços absurdamente caros. A gente só não se dava conta porque a violência encobria tudo.
Vou destacar só um dos muitos pontos negativos que o Rio agora deixa à mostra: o trânsito. Sou de um tempo em que engarrafamentos, congestionamentos, tráfego intenso não faziam parte das conversas cariocas. Isso era coisa de paulista. Hoje, qual é o dia em que você não se pega queixando-se ou ouvindo queixas do tráfego? Uma cidade de distâncias curtas cada vez aproveita menos essa vantagem e torna complicado o que poderia ser simples.
Continuo amando o Rio e torço para que sua imagem seja boa. Mas não vou entrar para o cordão do oba-oba que quer transformá-la, sem merecimento, na melhor cidade do mundo. Não é. Está longe de ser. E não há indícios de que esteja sendo feito algo para que ela um dia receba este título
A coluna de quarta-feira passada ainda estava quentinha quando chegou o primeiro e-mail me pichando. “Por que tanta má vontade com a cidade? Será que os problemas relacionados só acontecem aqui?”, cobrava Sheila Soares. Quase ao mesmo tempo, entrou na caixa de e-mails a segunda crítica. “Você cobra demais, suas críticas são severas, ácidas, são críticas destrutivas e não construtivas, parece que você não gosta da cidade”, analisou Rodolfo Diogo Dias.
Os comentários dos leitores foram provocados pela crônica que criticava o hábito carioca que, diante das mazelas da cidade, só se preocupar com os estragos feitos à imagem da cidade no exterior. Tenho obrigação de revelar que a grande maioria dos e-mails gerados pela coluna foram favoráveis. Veio de gente que compartilhava a mesma opinião. Mas as duas opiniões contrárias me abalaram. Má vontade com o Rio? Crítica destrutiva? Há mais de 20 anos, escrevo, pelo menos duas vezes por semana, uma crônica no jornal. Sempre acreditei que fazia uma coluna carioca, de amor ao Rio. Quase sempre, temo ser bairrista. Quase sempre, tenho medo de ser carioca demais. O que mudou? O que aconteceu que fez com que, mesmo que apenas dois leitores, o que escrevo seja interpretado como desamor à cidade?
Até agora, tinha dúvidas, mas hoje tenho certeza: o que mais fez mal ao Rio nos últimos tempos foi ter recebido a honraria de sediar as próximas Copa do Mundo e Olimpíadas. Desde que isso foi anunciado, um oba-oba cercou a cidade que, de uma hora para outra, tornou-se o lugar perfeito, a destino-desejo dos turistas do mundo inteiro, a cidade-fetiche do planeta.
Até há pouco, o Rio parecia ter um único problema: a violência. A gente acreditava que, no dia em que houvesse mais segurança por aqui, as delícias da cidade poderiam ser aproveitadas. As UPPs, criadas com o olho das autoridades nos grandes eventos que se aproximam, não resolveram a questão. Mas é evidente que trouxeram para todos os habitantes do Rio uma sensação de mais segurança. Foi aí que se descobriu ou que se percebeu que as delícias que a gente não aproveitava não eram tão evidentes. O Rio está mais seguro. Mas continua sujo, com serviços abaixo da crítica, com transportes ineficientes, com preços absurdamente caros. A gente só não se dava conta porque a violência encobria tudo.
Vou destacar só um dos muitos pontos negativos que o Rio agora deixa à mostra: o trânsito. Sou de um tempo em que engarrafamentos, congestionamentos, tráfego intenso não faziam parte das conversas cariocas. Isso era coisa de paulista. Hoje, qual é o dia em que você não se pega queixando-se ou ouvindo queixas do tráfego? Uma cidade de distâncias curtas cada vez aproveita menos essa vantagem e torna complicado o que poderia ser simples.
Continuo amando o Rio e torço para que sua imagem seja boa. Mas não vou entrar para o cordão do oba-oba que quer transformá-la, sem merecimento, na melhor cidade do mundo. Não é. Está longe de ser. E não há indícios de que esteja sendo feito algo para que ela um dia receba este título
Poemas - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
O ESTADÃO - 07/05
Poesia é isso mesmo, não é? Perguntas sem respostas
Prezado M:Recebi o e-mail com seu mais novo poema e entendo seu entusiasmo. Realmente, é um raro exemplo de exteriorização poética da angústia moderna, a começar pela reiteração inicial:
‘Eu mato, eu mato...’
A brutal assertiva evoca à perfeição a têmpera destes dias, o nosso “zeitgeist”. Perderam-se as ilusões com a justiça, com as esperanças de regeneração e com todas as instâncias jurídicas. Vivemos num deserto de valores morais. O poeta não diz “eu reprimendo”, “eu castigo”, “eu mando prender”, “eu condeno”. Diz e repete “eu mato”. Que retribuição se pode esperar onde a justiça não faz justiça e a cadeia não segura o ladrão? O poeta ameaça fazer sua própria justiça porque não existe outra. Revertemos ao animal primevo com as presas à mostra, num ricto de vingança selvagem. Uma hiena ganindo entre as ruínas de uma civilização falida.
Segue o poema:
‘...quem roubou minha cueca...’
Há aqui algo que evoca Eliot, com seu constante recurso ao aparentemente banal — no caso, a cueca – em contraponto a alusões clássicas e míticas, e que acabou sendo um viés da poesia moderna (Auden, Drummond). Não seria, talvez, demais ler a cueca como metáfora. A cueca representa o que temos de mais íntimo, recôndito, profundo. O que temos de mais nosso. O que o “zeitgeist” nos roubou. Ou seja: a nossa alma. Onde está “cueca” leia-se “alma”. Sem a cueca ficamos nus. Sem a alma também estamos reduzidos a apenas nosso corpo.
Mas quem roubou a nossa cueca/alma? Quem trouxe nosso corpo desprotegidos para este deserto?
Quem merece a raiva do poeta?
Que a raiva é merecida fica evidente na última linha do verso:
‘... pra fazer pano de prato!´
A suprema degradação. Nossa alma secando pratos. O fim de uma geração que conseguiu chegar à Lua, mas se perdeu no caminho da privada. Quem é o culpado? Também queremos ganir de indignação como o poeta mas não sabemos em que direção. Para o alto? Para o lado? Para que lado? Quem, afinal, roubou nossa cueca pra fazer pano de prato?
Mas, enfim, poesia é isso mesmo, não é não? Perguntas sem respostas. Se houvesse resposta não seria poesia. Só me resta invejar o seu poder de síntese e a síntese do seu poder, que reduz toda a condição humana a um verso singelo, e o Universo a um gemido terminal. Parabéns!
E um grande abraço do L.”
“Prezado L:
Gostei muito do que você escreveu sobre o verso que mandei, mas preciso fazer uma confissão: mandei o verso errado. Queria que você comentasse o poema caudal em 170 estrofes que me custou quase um ano de trabalho mas me atrapalhei (sou um pré-eletrônico, você sabe) e acabei mandando a letra de uma antiga marchinha de Carnaval que, sei lá por que, meu neto de doze anos armazenou no meu laptop. Mas obrigado assim mesmo. Grande abraço, M.”
Poesia é isso mesmo, não é? Perguntas sem respostas
Prezado M:Recebi o e-mail com seu mais novo poema e entendo seu entusiasmo. Realmente, é um raro exemplo de exteriorização poética da angústia moderna, a começar pela reiteração inicial:
‘Eu mato, eu mato...’
A brutal assertiva evoca à perfeição a têmpera destes dias, o nosso “zeitgeist”. Perderam-se as ilusões com a justiça, com as esperanças de regeneração e com todas as instâncias jurídicas. Vivemos num deserto de valores morais. O poeta não diz “eu reprimendo”, “eu castigo”, “eu mando prender”, “eu condeno”. Diz e repete “eu mato”. Que retribuição se pode esperar onde a justiça não faz justiça e a cadeia não segura o ladrão? O poeta ameaça fazer sua própria justiça porque não existe outra. Revertemos ao animal primevo com as presas à mostra, num ricto de vingança selvagem. Uma hiena ganindo entre as ruínas de uma civilização falida.
Segue o poema:
‘...quem roubou minha cueca...’
Há aqui algo que evoca Eliot, com seu constante recurso ao aparentemente banal — no caso, a cueca – em contraponto a alusões clássicas e míticas, e que acabou sendo um viés da poesia moderna (Auden, Drummond). Não seria, talvez, demais ler a cueca como metáfora. A cueca representa o que temos de mais íntimo, recôndito, profundo. O que temos de mais nosso. O que o “zeitgeist” nos roubou. Ou seja: a nossa alma. Onde está “cueca” leia-se “alma”. Sem a cueca ficamos nus. Sem a alma também estamos reduzidos a apenas nosso corpo.
Mas quem roubou a nossa cueca/alma? Quem trouxe nosso corpo desprotegidos para este deserto?
Quem merece a raiva do poeta?
Que a raiva é merecida fica evidente na última linha do verso:
‘... pra fazer pano de prato!´
A suprema degradação. Nossa alma secando pratos. O fim de uma geração que conseguiu chegar à Lua, mas se perdeu no caminho da privada. Quem é o culpado? Também queremos ganir de indignação como o poeta mas não sabemos em que direção. Para o alto? Para o lado? Para que lado? Quem, afinal, roubou nossa cueca pra fazer pano de prato?
Mas, enfim, poesia é isso mesmo, não é não? Perguntas sem respostas. Se houvesse resposta não seria poesia. Só me resta invejar o seu poder de síntese e a síntese do seu poder, que reduz toda a condição humana a um verso singelo, e o Universo a um gemido terminal. Parabéns!
E um grande abraço do L.”
“Prezado L:
Gostei muito do que você escreveu sobre o verso que mandei, mas preciso fazer uma confissão: mandei o verso errado. Queria que você comentasse o poema caudal em 170 estrofes que me custou quase um ano de trabalho mas me atrapalhei (sou um pré-eletrônico, você sabe) e acabei mandando a letra de uma antiga marchinha de Carnaval que, sei lá por que, meu neto de doze anos armazenou no meu laptop. Mas obrigado assim mesmo. Grande abraço, M.”
A corrupção e a improbidade são os crimes do século - JOAQUIM FALCÃO
CORREIO BRAZILIENSE - 07/04
A Praça é dos Três Poderes. A Constituição manda que eles sejam harmônicos. Mas essa não é a realidade todo o tempo. É o ideal. No real, são tensos entre si, divergentes muitas vezes. É natural. Na democracia é assim. O importante é que a tensão seja sempre resolvida e, ao ser, se reinaugura. E que mesmo na divergência, saibam convergir quando os objetivos estão acima deles. São necessários à República.
Combater a corrupção e a improbidade administrativa é um desses objetivos que, além de nacionais, são internacionais. Corrupção administrativa e corrupção são os crimes do século. Não dispensam presidente da França, princesa na Espanha, ministro na Alemanha ou secretário da Inglaterra. Hoje, um país se distingue do outro não pela ocorrência de improbidade e corrupção (agora mesmo vemos o caso do ex-corretor do Goldman Sachs acusado de fraudar US$ 8 bilhões nos Estados Unidos e a substituição do diretor da CIA). Distingue-se pela eficácia com que o Estado, a mídia e a sociedade os combatem. Esse é o teste maior das democracias de hoje.
O primeiro objetivo do terceiro Pacto pela Justiça, em gestação no Ministério da Justiça em conjunto com o Supremo e o Congresso, é o compromisso de todo o Judiciário de acelerar e dar prioridade aos julgamentos pendentes sobre improbidade administrativa. Não somente no Supremo, mas nos tribunais estaduais em que muitas vezes inadequadas alianças de pequenos mas poderosos setores dos Três Poderes locais paralisam esses processos. Nova legislação para tipificar o crime de organização criminosa é também um dos objetivos a alcançar.
Faz oito anos que a Emenda 45 à Constituição consagrou como direito do cidadão o direito à razoável duração do processo. Direito ainda à busca de concretude, alerta o Secretário da Reforma do Judiciário, Flavio Caetano, do Ministério da Justiça. Como concretizá-lo? Aqui não se trata de novas leis, mas de intensificação do processo judicial digital e ampla mobilização social, com recursos, treinamentos e conscientização da população, para conciliação e mediação.
Seria importante que os tribunais cumprissem a lei, os prazos processuais. No próprio Supremo já houve processos que pararam mais de 5 mil dias dor causa de pedido de vista dos próprios ministros. Ministros e desembargadores não se controlam a si próprios quando ultrapassam os prazos de pedidos de vista. Criam a insegurança jurídica processual, a pior e mais ampla de todas porque tem a aparência infelizmente de naturalidade. Sempre acendem a suspeita de que algo estranho está se passando com o processo.
Esse pode ser um tema a ser discutido com a nova Lei Orgânica da Magistratura. O ministro Joaquim Barbosa pretende enviar um anteprojeto ao Congresso este semestre. Qual a responsabilidade dos magistrados no não cumprimento dos prazos processuais?
Há que distinguir entre o pedido de vista necessário a melhor compreender o caso e formar o livre convencimento e os pedidos de vista apenas para retirar o assunto de pauta ou tentar inadequadamente conquistar os colegas. Seria de considerar a manipulação judicial dos prazos como improbidade administrativa?
Não existe muita divergência sobre os problemas do Judiciário. O que se necessita é da vontade política concertada dos Três Poderes em ultrapassar interesses setoriais e corporativos e caminhar no aperfeiçoamento institucional.
A Praça é dos Três Poderes. A Constituição manda que eles sejam harmônicos. Mas essa não é a realidade todo o tempo. É o ideal. No real, são tensos entre si, divergentes muitas vezes. É natural. Na democracia é assim. O importante é que a tensão seja sempre resolvida e, ao ser, se reinaugura. E que mesmo na divergência, saibam convergir quando os objetivos estão acima deles. São necessários à República.
Combater a corrupção e a improbidade administrativa é um desses objetivos que, além de nacionais, são internacionais. Corrupção administrativa e corrupção são os crimes do século. Não dispensam presidente da França, princesa na Espanha, ministro na Alemanha ou secretário da Inglaterra. Hoje, um país se distingue do outro não pela ocorrência de improbidade e corrupção (agora mesmo vemos o caso do ex-corretor do Goldman Sachs acusado de fraudar US$ 8 bilhões nos Estados Unidos e a substituição do diretor da CIA). Distingue-se pela eficácia com que o Estado, a mídia e a sociedade os combatem. Esse é o teste maior das democracias de hoje.
O primeiro objetivo do terceiro Pacto pela Justiça, em gestação no Ministério da Justiça em conjunto com o Supremo e o Congresso, é o compromisso de todo o Judiciário de acelerar e dar prioridade aos julgamentos pendentes sobre improbidade administrativa. Não somente no Supremo, mas nos tribunais estaduais em que muitas vezes inadequadas alianças de pequenos mas poderosos setores dos Três Poderes locais paralisam esses processos. Nova legislação para tipificar o crime de organização criminosa é também um dos objetivos a alcançar.
Faz oito anos que a Emenda 45 à Constituição consagrou como direito do cidadão o direito à razoável duração do processo. Direito ainda à busca de concretude, alerta o Secretário da Reforma do Judiciário, Flavio Caetano, do Ministério da Justiça. Como concretizá-lo? Aqui não se trata de novas leis, mas de intensificação do processo judicial digital e ampla mobilização social, com recursos, treinamentos e conscientização da população, para conciliação e mediação.
Seria importante que os tribunais cumprissem a lei, os prazos processuais. No próprio Supremo já houve processos que pararam mais de 5 mil dias dor causa de pedido de vista dos próprios ministros. Ministros e desembargadores não se controlam a si próprios quando ultrapassam os prazos de pedidos de vista. Criam a insegurança jurídica processual, a pior e mais ampla de todas porque tem a aparência infelizmente de naturalidade. Sempre acendem a suspeita de que algo estranho está se passando com o processo.
Esse pode ser um tema a ser discutido com a nova Lei Orgânica da Magistratura. O ministro Joaquim Barbosa pretende enviar um anteprojeto ao Congresso este semestre. Qual a responsabilidade dos magistrados no não cumprimento dos prazos processuais?
Há que distinguir entre o pedido de vista necessário a melhor compreender o caso e formar o livre convencimento e os pedidos de vista apenas para retirar o assunto de pauta ou tentar inadequadamente conquistar os colegas. Seria de considerar a manipulação judicial dos prazos como improbidade administrativa?
Não existe muita divergência sobre os problemas do Judiciário. O que se necessita é da vontade política concertada dos Três Poderes em ultrapassar interesses setoriais e corporativos e caminhar no aperfeiçoamento institucional.
ALÉM DO ARCO-ÍRIS - MÔNICA BERGAMO
FOLHA DE SP - 07/04
Walcyr Carrasco lança livro e estreia novela das 21h na Globo; o vilão será um gay enrustido, "um tipo que o deputado e pastor Marco Feliciano aprovaria"
"Eu não poderia ser modelo", diz o dramaturgo Walcyr Carrasco, 61, enquanto posa para a coluna. "Eles precisam vestir casaco de inverno em pleno verão, fingir felicidade nas fotos. Não sei como aguentam."
É na escrita que o autor afirma se realizar. "Gosto de escrever novela, não tenho problema em fazer uma atrás da outra." Desde 2000, quando estreou na Globo com o sucesso "O Cravo e a Rosa", emendou dez produções -para as 18h, para as 19h e, em 2012, "Gabriela", para as 23h.
Neste mês, a novidade: Carrasco está lançando seu primeiro romance adulto, "Juntos para Sempre", com histórias de amor e de espiritualismo. O anterior misturava ficção e realidade.
"Nunca se leu tanto no Brasil. Até por isso, o livro vai ter preço popular. Mas prefiro não usar o termo filão. Isso implica que estou tentando faturar... Sou uma pessoa muito tranquila, na medida em que eu realmente vivo da televisão. E sou feliz", diz ao repórter Alberto Pereira Jr.
No mês que vem ele chegará, finalmente, ao horário nobre da TV Globo: está escrevendo "Amor à Vida", folhetim que sucederá "Salve Jorge" às 21h. Teve uma breve experiência na faixa em 2002, quando o autor de "Esperança", Benedito Ruy Barbosa, se afastou por problemas de saúde.
Ele diz achar "uma bobagem essa história de clube fechado", em que os mesmos autores (Manoel Carlos, Gilberto Braga, Gloria Perez, Aguinaldo Silva, Silvio de Abreu e, mais recentemente, João Emanuel Carneiro) teriam a preferência de escrever para o horário nobre, dedicando-se quase que exclusivamente a ele. "Autor tem que se exercitar em todos os horários. Depois dessa, já avisei que escreverei uma história para as 18h."
Come um pastel, preparado pela empregada Adriana, grávida de sete meses. Durante a entrevista, consome outros dois quitutes e dois cafés. "Tenho que aproveitar enquanto ela está aqui", diz. Quer iniciar uma dieta. "De só 600 calorias por dia."
Se a narrativa de "Juntos para Sempre", sobre um amor que atravessa séculos e reencarnações, lhe foi "soprada num sonho" durante uma viagem para a África do Sul, a do novo folhetim lhe consome tardes e noites.
"'Amor à Vida' será um novelão clássico, sobre relações familiares e amorosas, ambientada em um hospital paulistano. A família principal é tradicional, cheia de segredos que vão se revelando ao longo dos capítulos."
"Tem o casal gay que quer ter um filho por inseminação e contrata uma barriga de aluguel. Com eles eu não vou brincar. É realmente para mostrar a existência dessa nova família. Não há crítica. É um casal gay estabelecido." Thiago Fragoso, Marcello Anthony e Danielle Winits estarão nesse núcleo da história.
Ele vai mexer também em um tabu de décadas: nas novelas, gays são sempre personagens "do bem". Na trama de Carrasco, o vilão será um homossexual. "O personagem já existia antes do aparecimento do pastor Feliciano", ironiza, referindo-se ao deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara que está sendo alvo de críticas por já ter dado declarações consideradas homofóbicas.
"Estou escrevendo a novela há um ano. Mas, de certa maneira, é um tipo que o Feliciano aprovaria, porque não se expõe. É o gay no armário, casado e com filho." Mateus Solano está no papel.
Já foi atacado no Twitter por causa do personagem. "Não quer dizer que todos os gays sejam maus, quer dizer que esse personagem é mau e é gay. O politicamente correto virou uma obsessão. Sempre vão arranjar um motivo para dizer que tal obra não deveria ir ao ar por esse ou por aquele motivo." Ainda não sabe se vai incluir um beijo gay no folhetim. "No Brasil, qualquer casal gay pode se beijar onde quiser e ninguém pode falar nada. Mas esse direito não é exercido, só em locais específicos. O que se cobra da TV é que ela dê um passo que os próprios homossexuais não deram, que é o de assumir o seu espaço. Essa é a visão da Globo. E eu sou um funcionário."
Bebe um gole de café e continua: "Estou preocupado com a questão do beijo gay. Acho que você pode escrever que talvez possa rolar, mas não é algo que esteja planejado. Não como um grande acontecimento. Se rolar vai ser algo totalmente cotidiano, sem bater nos tambores. Tem que ser visto como algo corriqueiro".
Diz acreditar que o público não é conservador. "Travestis são eleitos no interior do Nordeste para deputado, para vereador, em lugares que nunca imaginaríamos. Tenho a impressão é que há grupos conservadores na sociedade que fazem muito barulho porque dão surra, gritam. Existe uma onda de conservadorismo insuflada por algumas igrejas evangélicas."
Evangélicos também terão espaço em "Amor à Vida". A personagem da humorista Tatá Werneck sofrerá uma transformação: periguete que tenta engravidar de jogadores, ela vai se converter.
"Tive um tio que era pastor presbiteriano. A minha única tia viva, irmã da minha mãe, é evangélica. Existem dois tipos: o mais tradicional, que costuma ser bem bacana, e o de algumas igrejas radicais, que insuflam e pedem dinheiro. São esses que fazem muito barulho e escândalo."
Polêmicas não visam o Ibope, diz. "Vivemos uma contradição. O mercado anunciante está satisfeito. Os jornalistas, não." Mesmo com audiência mais baixa do que as de outras décadas, "a Globo faturou mais em 2012 do que nos outros anos".
"A audiência é um prisma americano de se enxergar o trabalho criativo. Bom é o que faz sucesso. Então, Guimarães Rosa é uma merda. Lygia Fagundes Telles também. São autores excelentes, mas que vendem pouco."
Ficou surpreso ao receber um bônus salarial por "Gabriela", que teve média de 19 pontos. "Estava acostumado com outros números. A imprensa estava em cima, fiquei até um pouco foragido."
Sempre que pode, recebe amigos em sua cobertura em Higienópolis e prepara o jantar. É sushiman certificado. Tem ainda uma casa no Pacaembu, outra na Granja Viana e um apartamento no Rio.
Gabriel Chalita (PMDB-SP) é convidado e amigo. Está às voltas com acusações de irregularidades de quando foi secretário da Educação. "Confio nele. Mas não me envolvo com política. Num passado distante, fui da esquerda radical e vi como minhas opiniões estavam erradas."
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"No Brasil, qualquer casal gay pode se beijar onde quiser e ninguém pode falar nada.
Mas esse direito não é exercido.
O que está se cobrando da TV é que ela dê um passo que os gays não deram, que é o de assumir o seu espaço"
"A audiência é um prisma americano de se enxergar o trabalho criativo. O que é bom é o que faz sucesso. Então, Guimarães Rosa é uma merda. Lygia Fagundes Telles também.
São autores excelentes, mas que vendem pouco"
"Eu não poderia ser modelo", diz o dramaturgo Walcyr Carrasco, 61, enquanto posa para a coluna. "Eles precisam vestir casaco de inverno em pleno verão, fingir felicidade nas fotos. Não sei como aguentam."
É na escrita que o autor afirma se realizar. "Gosto de escrever novela, não tenho problema em fazer uma atrás da outra." Desde 2000, quando estreou na Globo com o sucesso "O Cravo e a Rosa", emendou dez produções -para as 18h, para as 19h e, em 2012, "Gabriela", para as 23h.
Neste mês, a novidade: Carrasco está lançando seu primeiro romance adulto, "Juntos para Sempre", com histórias de amor e de espiritualismo. O anterior misturava ficção e realidade.
"Nunca se leu tanto no Brasil. Até por isso, o livro vai ter preço popular. Mas prefiro não usar o termo filão. Isso implica que estou tentando faturar... Sou uma pessoa muito tranquila, na medida em que eu realmente vivo da televisão. E sou feliz", diz ao repórter Alberto Pereira Jr.
No mês que vem ele chegará, finalmente, ao horário nobre da TV Globo: está escrevendo "Amor à Vida", folhetim que sucederá "Salve Jorge" às 21h. Teve uma breve experiência na faixa em 2002, quando o autor de "Esperança", Benedito Ruy Barbosa, se afastou por problemas de saúde.
Ele diz achar "uma bobagem essa história de clube fechado", em que os mesmos autores (Manoel Carlos, Gilberto Braga, Gloria Perez, Aguinaldo Silva, Silvio de Abreu e, mais recentemente, João Emanuel Carneiro) teriam a preferência de escrever para o horário nobre, dedicando-se quase que exclusivamente a ele. "Autor tem que se exercitar em todos os horários. Depois dessa, já avisei que escreverei uma história para as 18h."
Come um pastel, preparado pela empregada Adriana, grávida de sete meses. Durante a entrevista, consome outros dois quitutes e dois cafés. "Tenho que aproveitar enquanto ela está aqui", diz. Quer iniciar uma dieta. "De só 600 calorias por dia."
Se a narrativa de "Juntos para Sempre", sobre um amor que atravessa séculos e reencarnações, lhe foi "soprada num sonho" durante uma viagem para a África do Sul, a do novo folhetim lhe consome tardes e noites.
"'Amor à Vida' será um novelão clássico, sobre relações familiares e amorosas, ambientada em um hospital paulistano. A família principal é tradicional, cheia de segredos que vão se revelando ao longo dos capítulos."
"Tem o casal gay que quer ter um filho por inseminação e contrata uma barriga de aluguel. Com eles eu não vou brincar. É realmente para mostrar a existência dessa nova família. Não há crítica. É um casal gay estabelecido." Thiago Fragoso, Marcello Anthony e Danielle Winits estarão nesse núcleo da história.
Ele vai mexer também em um tabu de décadas: nas novelas, gays são sempre personagens "do bem". Na trama de Carrasco, o vilão será um homossexual. "O personagem já existia antes do aparecimento do pastor Feliciano", ironiza, referindo-se ao deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara que está sendo alvo de críticas por já ter dado declarações consideradas homofóbicas.
"Estou escrevendo a novela há um ano. Mas, de certa maneira, é um tipo que o Feliciano aprovaria, porque não se expõe. É o gay no armário, casado e com filho." Mateus Solano está no papel.
Já foi atacado no Twitter por causa do personagem. "Não quer dizer que todos os gays sejam maus, quer dizer que esse personagem é mau e é gay. O politicamente correto virou uma obsessão. Sempre vão arranjar um motivo para dizer que tal obra não deveria ir ao ar por esse ou por aquele motivo." Ainda não sabe se vai incluir um beijo gay no folhetim. "No Brasil, qualquer casal gay pode se beijar onde quiser e ninguém pode falar nada. Mas esse direito não é exercido, só em locais específicos. O que se cobra da TV é que ela dê um passo que os próprios homossexuais não deram, que é o de assumir o seu espaço. Essa é a visão da Globo. E eu sou um funcionário."
Bebe um gole de café e continua: "Estou preocupado com a questão do beijo gay. Acho que você pode escrever que talvez possa rolar, mas não é algo que esteja planejado. Não como um grande acontecimento. Se rolar vai ser algo totalmente cotidiano, sem bater nos tambores. Tem que ser visto como algo corriqueiro".
Diz acreditar que o público não é conservador. "Travestis são eleitos no interior do Nordeste para deputado, para vereador, em lugares que nunca imaginaríamos. Tenho a impressão é que há grupos conservadores na sociedade que fazem muito barulho porque dão surra, gritam. Existe uma onda de conservadorismo insuflada por algumas igrejas evangélicas."
Evangélicos também terão espaço em "Amor à Vida". A personagem da humorista Tatá Werneck sofrerá uma transformação: periguete que tenta engravidar de jogadores, ela vai se converter.
"Tive um tio que era pastor presbiteriano. A minha única tia viva, irmã da minha mãe, é evangélica. Existem dois tipos: o mais tradicional, que costuma ser bem bacana, e o de algumas igrejas radicais, que insuflam e pedem dinheiro. São esses que fazem muito barulho e escândalo."
Polêmicas não visam o Ibope, diz. "Vivemos uma contradição. O mercado anunciante está satisfeito. Os jornalistas, não." Mesmo com audiência mais baixa do que as de outras décadas, "a Globo faturou mais em 2012 do que nos outros anos".
"A audiência é um prisma americano de se enxergar o trabalho criativo. Bom é o que faz sucesso. Então, Guimarães Rosa é uma merda. Lygia Fagundes Telles também. São autores excelentes, mas que vendem pouco."
Ficou surpreso ao receber um bônus salarial por "Gabriela", que teve média de 19 pontos. "Estava acostumado com outros números. A imprensa estava em cima, fiquei até um pouco foragido."
Sempre que pode, recebe amigos em sua cobertura em Higienópolis e prepara o jantar. É sushiman certificado. Tem ainda uma casa no Pacaembu, outra na Granja Viana e um apartamento no Rio.
Gabriel Chalita (PMDB-SP) é convidado e amigo. Está às voltas com acusações de irregularidades de quando foi secretário da Educação. "Confio nele. Mas não me envolvo com política. Num passado distante, fui da esquerda radical e vi como minhas opiniões estavam erradas."
-
"No Brasil, qualquer casal gay pode se beijar onde quiser e ninguém pode falar nada.
Mas esse direito não é exercido.
O que está se cobrando da TV é que ela dê um passo que os gays não deram, que é o de assumir o seu espaço"
"A audiência é um prisma americano de se enxergar o trabalho criativo. O que é bom é o que faz sucesso. Então, Guimarães Rosa é uma merda. Lygia Fagundes Telles também.
São autores excelentes, mas que vendem pouco"
A mágica receita cósmica - MARCELO GLEISER
FOLHA DE SP - 07/04
Possível sinal de matéria escura pode ser o primeiro raio de luz que iluminará nossa treva atual
A história da ciência é permeada de substâncias invisíveis e matérias obscuras.
Em 1667, o alquimista e médico alemão Johann Joachim Becher, procurando entender a combustão, propôs que substâncias queimavam devido à liberação de "flogisto": uma substância sem flogisto não queimava. A hipótese foi questionada quando se demonstrou que certos metais ganhavam peso quando queimavam, algo difícil de conciliar com a perda de uma substância.
Como solução, alguns especularam que o flogisto era mais leve do que o ar, enquanto outros sugeriram que tinha peso negativo. Esse tipo de atitude não é raro em ciência -quando uma ideia começa a falhar, medidas são tomadas para resgatá-la. Só com tempo e provas experimentais a ideia é abandonada ou modificada até fazer sentido.
Apenas em 1783 o grande químico francês Antoine-Laurent Lavoisier demonstrou que a combustão requer a presença de oxigênio e que a massa dos reagentes permanece constante em toda reação química: "Em todas as operações da natureza nada é criado; uma quantidade idêntica de matéria existe antes e depois do experimento".
Porém, confuso sobre a natureza do calor, Lavoisier propôs outra substância estranha, o "calórico". As coisas esfriam devido ao fluxo de calórico do quente ao frio. Para respeitar sua lei de conservação, o calórico não podia ter massa, sendo uma espécie de éter capaz de fluir.
O calórico, errado mas útil, foi abandonado em meados do século 19, quando se mostrou que o calor é uma forma de movimento, uma agitação da matéria.
Em pleno século 21, eis que vivemos num Universo pleno de substâncias obscuras. Observações astronômicas confirmam que a receita cósmica é um tanto estranha. Os números são revisados cada vez que um novo experimento publica resultados, como foi o caso do satélite europeu Planck há duas semanas.
Mas a estranheza permanece. Os átomos dos quais você e eu somos feitos são a minoria absoluta, contribuindo apenas com 4,9% do total. Do resto, sabemos menos.
Há duas contribuições principais: a matéria escura (26,8%) e a energia escura (68,5%). O adjetivo "escuro" vem do fato de não podermos "ver" tais substâncias. Sabemos que existem devido à sua ação sobre a matéria comum, os 4,9% que formam galáxias e estrelas.
Isso porque ambas substâncias escuras atuam gravitacionalmente: a matéria escura, provavelmente formada de algum tipo de partícula, circunda as galáxias como um véu translúcido; a energia escura, bem etérea, banha o Cosmo por inteiro e é sentida apenas em escalas gigantescas, de centenas de milhões de anos-luz. É ela a responsável por causar a aceleração do Universo.
Será que essas substâncias são nosso novo flogisto? Pouco provável. (Se bem que Lavoisier diria o mesmo do seu calórico.)
A matéria escura deforma o espaço à sua volta, fazendo com que raios de luz sejam desviados, e esse desvio é detectado.
Nesta semana, o primeiro sinal promissor de uma detecção foi feito por um instrumento da Estação Espacial Internacional. Ainda é cedo para confirmar, mas pode ser o primeiro raio de luz que iluminará nossa treva atual.
Possível sinal de matéria escura pode ser o primeiro raio de luz que iluminará nossa treva atual
A história da ciência é permeada de substâncias invisíveis e matérias obscuras.
Em 1667, o alquimista e médico alemão Johann Joachim Becher, procurando entender a combustão, propôs que substâncias queimavam devido à liberação de "flogisto": uma substância sem flogisto não queimava. A hipótese foi questionada quando se demonstrou que certos metais ganhavam peso quando queimavam, algo difícil de conciliar com a perda de uma substância.
Como solução, alguns especularam que o flogisto era mais leve do que o ar, enquanto outros sugeriram que tinha peso negativo. Esse tipo de atitude não é raro em ciência -quando uma ideia começa a falhar, medidas são tomadas para resgatá-la. Só com tempo e provas experimentais a ideia é abandonada ou modificada até fazer sentido.
Apenas em 1783 o grande químico francês Antoine-Laurent Lavoisier demonstrou que a combustão requer a presença de oxigênio e que a massa dos reagentes permanece constante em toda reação química: "Em todas as operações da natureza nada é criado; uma quantidade idêntica de matéria existe antes e depois do experimento".
Porém, confuso sobre a natureza do calor, Lavoisier propôs outra substância estranha, o "calórico". As coisas esfriam devido ao fluxo de calórico do quente ao frio. Para respeitar sua lei de conservação, o calórico não podia ter massa, sendo uma espécie de éter capaz de fluir.
O calórico, errado mas útil, foi abandonado em meados do século 19, quando se mostrou que o calor é uma forma de movimento, uma agitação da matéria.
Em pleno século 21, eis que vivemos num Universo pleno de substâncias obscuras. Observações astronômicas confirmam que a receita cósmica é um tanto estranha. Os números são revisados cada vez que um novo experimento publica resultados, como foi o caso do satélite europeu Planck há duas semanas.
Mas a estranheza permanece. Os átomos dos quais você e eu somos feitos são a minoria absoluta, contribuindo apenas com 4,9% do total. Do resto, sabemos menos.
Há duas contribuições principais: a matéria escura (26,8%) e a energia escura (68,5%). O adjetivo "escuro" vem do fato de não podermos "ver" tais substâncias. Sabemos que existem devido à sua ação sobre a matéria comum, os 4,9% que formam galáxias e estrelas.
Isso porque ambas substâncias escuras atuam gravitacionalmente: a matéria escura, provavelmente formada de algum tipo de partícula, circunda as galáxias como um véu translúcido; a energia escura, bem etérea, banha o Cosmo por inteiro e é sentida apenas em escalas gigantescas, de centenas de milhões de anos-luz. É ela a responsável por causar a aceleração do Universo.
Será que essas substâncias são nosso novo flogisto? Pouco provável. (Se bem que Lavoisier diria o mesmo do seu calórico.)
A matéria escura deforma o espaço à sua volta, fazendo com que raios de luz sejam desviados, e esse desvio é detectado.
Nesta semana, o primeiro sinal promissor de uma detecção foi feito por um instrumento da Estação Espacial Internacional. Ainda é cedo para confirmar, mas pode ser o primeiro raio de luz que iluminará nossa treva atual.
O acaso facilita o amor, mas não decide - FABRÍCIO CARPINEJAR
ZERO HORA - 07/04
Nosso primeiro encontro foi num café. Mas não aceitamos mentiras.
O café era eufemismo de pina colada e uísque. Trocamos a cafeteria pelo bar da frente.
O garçom não captou a mudança de humor.
Atravessamos a rua já de mãos dadas.
Antes mesmo de sentar, antes mesmo de conversar, nos beijamos na escadaria.
Um beijo longo como se fosse o corrimão da rua inteira.
Jamais beijei uma estranha sem palavras. Jamais beijei assim, com o beijo sendo a própria palavra.
A realidade nos favorecia. A realidade nos apressava. A realidade nos queria próximos.
Uma série de sortilégios se acumulou em nossos ombros.
Você se apresentou como marinheira. Minha ex-esposa tinha uma marinheira tatuada na perna e sempre brincava que só a largaria para ficar com a marinheira. A marinheira era exatamente o desenho de seu rosto.
Você tremia, eu ria.
Tremer é rir silencioso.
Nossa pele concordava com o toque. A intimidade sabotava as perguntas.
Dei meu anel de caveira. Entortei o ferro em forma de coração. Você colocou na carteira. Fui mexer em sua identidade. Não se olha bolsa de mulher, muito menos a carteira. Não sei o que passou pela minha cabeça, mas mexi, invadi e achei um bloco com sua letra. Nele, descrevia profecias de uma cartomante que visitou há três semanas. Pretendia conferir os presságios, por isso anotou, por isso guardou entre os documentos.
Afora doenças e preocupações com a saúde dos familiares, ela me retratava perfeitamente: alto, claro, careca, com filha adulta, tatuagens e acessórios, estável financeiramente, e com uma mão diferente da outra (as unhas pintadas), que seria o homem de sua maturidade, que você iria casar e morar junto.
Eu via o futuro antes mesmo do presente. Novamente o beijo antes das palavras.
Naquela semana, escrevi crônicas usando cartas de tarô. E antecipava que amaria uma Sacerdotisa e me nomeava como o Louco. Como que pode tamanha sincronia?
As últimas horas pareciam pressentimentos de nossas vidas entrelaçadas.
Tudo tudo gerava sentido para nossa união. Minha mania de segurar os potes pelas tampas, sua mania de respirar pela boca, minha mania de colocar os travesseiros por debaixo dos lençóis, sua mania de gritar para espantar os mosquitos como se eles escutassem, minha coleção de pinóquios, sua coleção de ovelhas.
Falamos de Pink Floyd, que você e eu ouvíamos na adolescência, banda que mais abalou nossas convicções. Não é que o quarteto do pub encerra sua apresentação tocando Dark Side of the Moon.
Nossa estreia surgia antiga, inverossímil, ensaiada.
Contei que dividia o destino amoroso em três telefones: o preto, o vermelho e o amarelo. O preto é quando forçamos o amor pela carência. O vermelho é quando o amor é agradável e fingimos urgência. O amarelo é a linha que todos temem: quando toca, é o amor raro, louco, acima de nossas vontades.
Na manhã seguinte, depois de não dormir, mandei rosas e lírios amarelos para seu trabalho, com um bilhete: Atenda!.
Nosso primeiro encontro foi sublime.
Mas as coincidências nunca serão nada sem a coragem. A trama de acasos nos ajudando nunca fará diferença sem a coragem. Os avisos dos astros nunca serão contundentes sem a coragem.
Sem a coragem, não existiremos.
Nosso primeiro encontro foi num café. Mas não aceitamos mentiras.
O café era eufemismo de pina colada e uísque. Trocamos a cafeteria pelo bar da frente.
O garçom não captou a mudança de humor.
Atravessamos a rua já de mãos dadas.
Antes mesmo de sentar, antes mesmo de conversar, nos beijamos na escadaria.
Um beijo longo como se fosse o corrimão da rua inteira.
Jamais beijei uma estranha sem palavras. Jamais beijei assim, com o beijo sendo a própria palavra.
A realidade nos favorecia. A realidade nos apressava. A realidade nos queria próximos.
Uma série de sortilégios se acumulou em nossos ombros.
Você se apresentou como marinheira. Minha ex-esposa tinha uma marinheira tatuada na perna e sempre brincava que só a largaria para ficar com a marinheira. A marinheira era exatamente o desenho de seu rosto.
Você tremia, eu ria.
Tremer é rir silencioso.
Nossa pele concordava com o toque. A intimidade sabotava as perguntas.
Dei meu anel de caveira. Entortei o ferro em forma de coração. Você colocou na carteira. Fui mexer em sua identidade. Não se olha bolsa de mulher, muito menos a carteira. Não sei o que passou pela minha cabeça, mas mexi, invadi e achei um bloco com sua letra. Nele, descrevia profecias de uma cartomante que visitou há três semanas. Pretendia conferir os presságios, por isso anotou, por isso guardou entre os documentos.
Afora doenças e preocupações com a saúde dos familiares, ela me retratava perfeitamente: alto, claro, careca, com filha adulta, tatuagens e acessórios, estável financeiramente, e com uma mão diferente da outra (as unhas pintadas), que seria o homem de sua maturidade, que você iria casar e morar junto.
Eu via o futuro antes mesmo do presente. Novamente o beijo antes das palavras.
Naquela semana, escrevi crônicas usando cartas de tarô. E antecipava que amaria uma Sacerdotisa e me nomeava como o Louco. Como que pode tamanha sincronia?
As últimas horas pareciam pressentimentos de nossas vidas entrelaçadas.
Tudo tudo gerava sentido para nossa união. Minha mania de segurar os potes pelas tampas, sua mania de respirar pela boca, minha mania de colocar os travesseiros por debaixo dos lençóis, sua mania de gritar para espantar os mosquitos como se eles escutassem, minha coleção de pinóquios, sua coleção de ovelhas.
Falamos de Pink Floyd, que você e eu ouvíamos na adolescência, banda que mais abalou nossas convicções. Não é que o quarteto do pub encerra sua apresentação tocando Dark Side of the Moon.
Nossa estreia surgia antiga, inverossímil, ensaiada.
Contei que dividia o destino amoroso em três telefones: o preto, o vermelho e o amarelo. O preto é quando forçamos o amor pela carência. O vermelho é quando o amor é agradável e fingimos urgência. O amarelo é a linha que todos temem: quando toca, é o amor raro, louco, acima de nossas vontades.
Na manhã seguinte, depois de não dormir, mandei rosas e lírios amarelos para seu trabalho, com um bilhete: Atenda!.
Nosso primeiro encontro foi sublime.
Mas as coincidências nunca serão nada sem a coragem. A trama de acasos nos ajudando nunca fará diferença sem a coragem. Os avisos dos astros nunca serão contundentes sem a coragem.
Sem a coragem, não existiremos.
Pequenos desastres - HUMBERTO WERNECK
O Estado de S.Paulo - 07/04
Discretíssimo, nosso amigo fazia o impossível para que ninguém se inteirasse de seus gostos mais recônditos, um dos quais, na contramão de seu proverbial bom senso, o levava a chafurdar, todo carnaval, ensandecido, no vale-tudo de algum baile gay, de preferência aqueles onde predominasse o que chamava de "baixa renda". Mas nunca, evidentemente, em São Paulo, onde vivia: repórter da seção de artes de uma revista conspícua, arrepiava-se à simples ideia de que a verdade de suas preferências vazasse um dia para o universo ebuliente de fofocas da redação.
Pode-se portanto imaginar os mil cuidados de que se cercou ao aceitar convite para uma festa à fantasia num apartamento dos Jardins. O fato de não ser carnaval, quando se liberam fantasias, inclusive as propriamente ditas, não lhe facilitava as coisas. Foi preciso arquitetar um esquema em que um motorista de confiança o recolheria na garagem deserta do edifício onde morava, para depositá-lo, sorrateiramente, no subsolo do prédio da festa.
Tudo correu à maravilha até o momento em que, chegado ao destino, ele embarcou no elevador de serviço, empacotado em malha colante verde-limão que, excetuado o rosto e a bem cuidada barba grisalha, lhe envolvia o corpo inteiro, dos pés à cabeça, sobre a qual balouçavam, frenéticas, duas antenas de libélula.
Foi assim vestido que, depois de saltar no piso errado, apertou a campainha e viu surgir diante de si, metido num pijama, o circunspecto e ainda hoje boquiaberto diretor da redação da revista onde ele trabalhava.
***
Era a sua primeira vez na casa da namorada - e lá estava ele à beira da piscina, sob os olhares perquiridores dos pais da moça e uma fartura de cunhados (era a única menina entre cinco marmanjos), todos, a seu ver, dispostos a fazê-lo passar por crudelíssimas provas antes de uma eventual admissão. Habitualmente falante, o constrangimento da situação transformara o frangote num tartamudo bicho do mato, o que alimentava ainda mais seu desconforto. Que assunto posso eu puxar, meu Deus do Céu, se agoniava ele, para não parecer tão pateta aos olhos da família dela?
Antes tivesse ficado a ruminar a questão: a certa altura, de pura aflição, levantou-se e propôs um mergulho coletivo. Uma caída? Uma entrada? Incapazes de optar entre as duas palavras, seus neurônios engendraram uma terceira, feita em parte com pedaços de uma e outra:
- Pessoal - conclamou -, vamos dar uma cag......?
E não é que deu mesmo?
A vontade, choramingou mais tarde, ao me relatar o fim da história (e do namoro, claro), foi de permanecer para sempre sob as águas, nas quais, consumado o desastre, tratou de se precipitar com plúmbea determinação de suicida, única forma de evitar o que o esperava ao retornar à tona.
***
Esta quem contou foi o professor e político mineiro José Elias Murad, autor de um livrinho delicioso, Meus alunos, meus colegas e eu, lançado faz quase meio século, há muito desaparecido das livrarias e, lamentavelmente, de minha própria biblioteca. O personagem é um cientista de suas relações, que um dia se embrenhou por experimentos para os quais necessitava de cobaias - sapos, mais exatamente do sexo masculino. Como não era o caso de chapinhar ele mesmo em algum brejo, encarregou um funcionário do laboratório de conseguir os batráquios. Mas como eu vou saber se é macho ou fêmea? - indagou o rapaz. Fácil, explicou o pesquisador: basta cutucar o ventre do sapo - se for macho, ele vai agarrar seu dedo com as patinhas.
Dias depois, está o professor no último banco de um ônibus, quando lá na frente, prestes a descer, o auxiliar o vê - e, eufórico, anuncia:
- Professor, arranjei um macho para o senhor!
E, radiante, ainda especificou, antes de apear:
- Daqueles bem agarradô!
O resto da viagem o cientista houve por bem fazer de pé, andando nervosamente entre os bancos, na tentativa de salvar sua reputação subitamente estilhaçada:
- Eu posso me explicar, gente, não é nada do que vocês estão pensando!
Discretíssimo, nosso amigo fazia o impossível para que ninguém se inteirasse de seus gostos mais recônditos, um dos quais, na contramão de seu proverbial bom senso, o levava a chafurdar, todo carnaval, ensandecido, no vale-tudo de algum baile gay, de preferência aqueles onde predominasse o que chamava de "baixa renda". Mas nunca, evidentemente, em São Paulo, onde vivia: repórter da seção de artes de uma revista conspícua, arrepiava-se à simples ideia de que a verdade de suas preferências vazasse um dia para o universo ebuliente de fofocas da redação.
Pode-se portanto imaginar os mil cuidados de que se cercou ao aceitar convite para uma festa à fantasia num apartamento dos Jardins. O fato de não ser carnaval, quando se liberam fantasias, inclusive as propriamente ditas, não lhe facilitava as coisas. Foi preciso arquitetar um esquema em que um motorista de confiança o recolheria na garagem deserta do edifício onde morava, para depositá-lo, sorrateiramente, no subsolo do prédio da festa.
Tudo correu à maravilha até o momento em que, chegado ao destino, ele embarcou no elevador de serviço, empacotado em malha colante verde-limão que, excetuado o rosto e a bem cuidada barba grisalha, lhe envolvia o corpo inteiro, dos pés à cabeça, sobre a qual balouçavam, frenéticas, duas antenas de libélula.
Foi assim vestido que, depois de saltar no piso errado, apertou a campainha e viu surgir diante de si, metido num pijama, o circunspecto e ainda hoje boquiaberto diretor da redação da revista onde ele trabalhava.
***
Era a sua primeira vez na casa da namorada - e lá estava ele à beira da piscina, sob os olhares perquiridores dos pais da moça e uma fartura de cunhados (era a única menina entre cinco marmanjos), todos, a seu ver, dispostos a fazê-lo passar por crudelíssimas provas antes de uma eventual admissão. Habitualmente falante, o constrangimento da situação transformara o frangote num tartamudo bicho do mato, o que alimentava ainda mais seu desconforto. Que assunto posso eu puxar, meu Deus do Céu, se agoniava ele, para não parecer tão pateta aos olhos da família dela?
Antes tivesse ficado a ruminar a questão: a certa altura, de pura aflição, levantou-se e propôs um mergulho coletivo. Uma caída? Uma entrada? Incapazes de optar entre as duas palavras, seus neurônios engendraram uma terceira, feita em parte com pedaços de uma e outra:
- Pessoal - conclamou -, vamos dar uma cag......?
E não é que deu mesmo?
A vontade, choramingou mais tarde, ao me relatar o fim da história (e do namoro, claro), foi de permanecer para sempre sob as águas, nas quais, consumado o desastre, tratou de se precipitar com plúmbea determinação de suicida, única forma de evitar o que o esperava ao retornar à tona.
***
Esta quem contou foi o professor e político mineiro José Elias Murad, autor de um livrinho delicioso, Meus alunos, meus colegas e eu, lançado faz quase meio século, há muito desaparecido das livrarias e, lamentavelmente, de minha própria biblioteca. O personagem é um cientista de suas relações, que um dia se embrenhou por experimentos para os quais necessitava de cobaias - sapos, mais exatamente do sexo masculino. Como não era o caso de chapinhar ele mesmo em algum brejo, encarregou um funcionário do laboratório de conseguir os batráquios. Mas como eu vou saber se é macho ou fêmea? - indagou o rapaz. Fácil, explicou o pesquisador: basta cutucar o ventre do sapo - se for macho, ele vai agarrar seu dedo com as patinhas.
Dias depois, está o professor no último banco de um ônibus, quando lá na frente, prestes a descer, o auxiliar o vê - e, eufórico, anuncia:
- Professor, arranjei um macho para o senhor!
E, radiante, ainda especificou, antes de apear:
- Daqueles bem agarradô!
O resto da viagem o cientista houve por bem fazer de pé, andando nervosamente entre os bancos, na tentativa de salvar sua reputação subitamente estilhaçada:
- Eu posso me explicar, gente, não é nada do que vocês estão pensando!
Cresce a descrença - TOSTÃO
FOLHA DE SP - 07/04
Crescem a descrença e o pessimismo com a seleção e com a Copa do Mundo no Brasil
Os conflitos de interesses decorrentes das várias atividades de Ronaldo são óbvios. O comentarista Ronaldo, que é membro do comitê da Copa, vai opinar sobre a organização do Mundial e sobre a atuação de jogadores que têm relações comerciais com o empresário Ronaldo. Não adianta Ronaldo dizer que é independente. Após assumir tantos compromissos afins, a independência já foi perdida.
Na coluna anterior, citei a inteligência espacial e cinestésica de Ronaldinho. Tento explicar melhor.
A ciência já mostrou que o grande craque, em uma fração de segundos, é capaz de mapear tudo o que está à sua volta, perceber os movimentos dos jogadores e calcular a velocidade da bola, dos companheiros e dos adversários. Ele sabe, sem saber que sabe. Faz.
Quando jogava com Pelé, ele, antes de a bola chegar, parecia me dizer, com seu olhar expressivo, tudo o que ia fazer. A comunicação analógica é inexata, porém, mais ampla e mais rica que a digital. O corpo fala primeiro. E não mente.
Para ser um grande craque, não basta ter inteligência espacial e cinestésica. São necessárias uma excepcional técnica e ótimas condições físicas e emocionais.
Após as ótimas atuações de Thiago Silva e Daniel Alves e o bom desempenho de Lucas, no primeiro tempo, na partida entre Barcelona e Paris Saint-Germain, renovam-se as esperanças de que a seleção brasileira possa ter uma boa equipe. Se Ronaldinho jogasse, na seleção principal, contra bons adversários, metade do que joga no Atlético-MG, melhoraria muito o time nacional.
Dois anos atrás, achava que a maior deficiência da seleção era individual. Hoje, mesmo com poucos craques, penso que é coletiva. Não me refiro aos sistemas táticos (4-2-3-1, 4-4-2 e tantos outros). Isso não tem importância. Qualquer técnico medíocre conhece os sistemas táticos. O jogo coletivo e os detalhes estratégicos vão muito além disso.
Cresce a descrença com a seleção e com a Copa no Brasil, por causa do exagerado gasto de dinheiro público e da falta de importantes legados à população. Além disso, só os comprometidos querem e toleram José Maria Marin na presidência da CBF. Há inúmeros outros graves problemas. O último absurdo, mostrado pela repórter Gabriela Moreira, da ESPN Brasil, é que o novo Maracanã, que custou mais de R$ 1 bilhão, terá de ser reformulado, após o Mundial de 2014, para ser usado na Olimpíada.
Alguns falam que vão torcer contra o Brasil, pois, para eles, será a única maneira de se fazer uma limpeza no futebol brasileiro, dentro e fora de campo.
Quando a bola rolar na Copa do Mundo, haverá um grande número de possibilidades e de sentimentos contraditórios, racionais, emocionais, nacionalistas, ufanistas, de revoltas e de protestos. Não dá para prever o que vai acontecer.
Crescem a descrença e o pessimismo com a seleção e com a Copa do Mundo no Brasil
Os conflitos de interesses decorrentes das várias atividades de Ronaldo são óbvios. O comentarista Ronaldo, que é membro do comitê da Copa, vai opinar sobre a organização do Mundial e sobre a atuação de jogadores que têm relações comerciais com o empresário Ronaldo. Não adianta Ronaldo dizer que é independente. Após assumir tantos compromissos afins, a independência já foi perdida.
Na coluna anterior, citei a inteligência espacial e cinestésica de Ronaldinho. Tento explicar melhor.
A ciência já mostrou que o grande craque, em uma fração de segundos, é capaz de mapear tudo o que está à sua volta, perceber os movimentos dos jogadores e calcular a velocidade da bola, dos companheiros e dos adversários. Ele sabe, sem saber que sabe. Faz.
Quando jogava com Pelé, ele, antes de a bola chegar, parecia me dizer, com seu olhar expressivo, tudo o que ia fazer. A comunicação analógica é inexata, porém, mais ampla e mais rica que a digital. O corpo fala primeiro. E não mente.
Para ser um grande craque, não basta ter inteligência espacial e cinestésica. São necessárias uma excepcional técnica e ótimas condições físicas e emocionais.
Após as ótimas atuações de Thiago Silva e Daniel Alves e o bom desempenho de Lucas, no primeiro tempo, na partida entre Barcelona e Paris Saint-Germain, renovam-se as esperanças de que a seleção brasileira possa ter uma boa equipe. Se Ronaldinho jogasse, na seleção principal, contra bons adversários, metade do que joga no Atlético-MG, melhoraria muito o time nacional.
Dois anos atrás, achava que a maior deficiência da seleção era individual. Hoje, mesmo com poucos craques, penso que é coletiva. Não me refiro aos sistemas táticos (4-2-3-1, 4-4-2 e tantos outros). Isso não tem importância. Qualquer técnico medíocre conhece os sistemas táticos. O jogo coletivo e os detalhes estratégicos vão muito além disso.
Cresce a descrença com a seleção e com a Copa no Brasil, por causa do exagerado gasto de dinheiro público e da falta de importantes legados à população. Além disso, só os comprometidos querem e toleram José Maria Marin na presidência da CBF. Há inúmeros outros graves problemas. O último absurdo, mostrado pela repórter Gabriela Moreira, da ESPN Brasil, é que o novo Maracanã, que custou mais de R$ 1 bilhão, terá de ser reformulado, após o Mundial de 2014, para ser usado na Olimpíada.
Alguns falam que vão torcer contra o Brasil, pois, para eles, será a única maneira de se fazer uma limpeza no futebol brasileiro, dentro e fora de campo.
Quando a bola rolar na Copa do Mundo, haverá um grande número de possibilidades e de sentimentos contraditórios, racionais, emocionais, nacionalistas, ufanistas, de revoltas e de protestos. Não dá para prever o que vai acontecer.
A moda: e isso pega? - DANUZA LEÃO
FOLHA DE SP - 07/05
Ninguém se torna gay de repente, só porque está na moda; alguma semente deve existir, lá no fundo do peito
Quando vim morar no Rio, vindo de Vitória -eu era uma criança-, lembro que em Copacabana, onde morava, existia um único personagem gay. Seu nome era Bob; quando visto na rua, era um acontecimento, e logo se comentava "eu vi o Bob hoje" -e em que lugar, e como estava vestido, e todos os detalhes.
Ninguém o conhecia, de conversar, mas ele era uma pessoa que fazia parte da vida do bairro, e era o único. O tempo foi passando, outros gays foram surgindo -atores, cantores, artistas em geral-, e ainda mais tarde muitos amigos foram, aos poucos, saindo do armário.
No início se comentava, discretamente, essas modificações sexuais; depois, nem foi mais preciso, pois não havia nem mais armário onde as pessoas se escondessem, e a vida ficou mais prática.
O que eu não entendo: será que no tempo em que -aparentemente- só existia Bob, a comunidade gay era tão grande como no presente, só que todos se escondiam?
Hoje, às vezes, a existência dessa população parece maior do que a dos héteros, e num domingo de verão em Ipanema só vendo para crer: são bandeiras em arco-íris, tangas extravagantes, alguns de brincos, pulseiras, colares, cabelos de todas as cores e formatos; a paquera é franca e aberta, prova da liberdade que têm todas as pessoas, nos dias de hoje, de escolher o que querem ser, em matéria inclusive de sexo.
Mas eu me pergunto: nos tempos passados, será que eram tantos assim, só que enrustidos, ou essa população cresceu tanto? Não sei se é a onda -ou moda- do casamento gay, de que tanto se fala, que pegou, como tantas modas pegam ou não.
Mas penso que ninguém se torna gay de repente, só porque está na moda; alguma semente deve existir, lá no fundo do peito, desde sempre, e como não existem mais os problemas de repressão, quem tinha razão era Cole Porter, em sua maravilhosa canção "Anything Goes" (numa tradução livre, Tudo é válido).
Tudo bem, tudo certo, só que -volto a dizer- ninguém fica homossexual porque está na moda, e é aí que entra uma outra indagação que não tem nada a ver, mas pensamentos são assim mesmo: vão chegando e não têm nada a ver um com o outro.
Existem os que não sabem cozinhar um ovo, e por mais que esteja na moda nos dias de hoje, para homens e para mulheres, entrar na cozinha e fazer um prato maravilhoso, não é esse fato que vai ajudar ninguém a fazer um ovinho mexido delicioso. Ou você nasce com o dom divino de lidar com as panelas, ou não, e isso não se aprende: é dom mesmo.
Mas eis que hoje você liga a televisão, abre uma revista, e se dá conta de que todo mundo agora é chef. Todas as mocinhas e rapazes que não sabem o que ser na vida fazem um curso em Paris, Londres ou Nova York, viram estrelas dos restaurantes mais fantásticos, e eu não consigo entender que tantas pessoas tenham adquirido esse talento que, no meu entender, vem do berço: o de cozinhar bem.
Para mim, ou você nasce com tendência a ser gay, ou a mão boa para fazer um belo prato na cozinha, porque certas coisas são difíceis de improvisar.
O mais provável? Que eu cada vez entendo menos desse mundo.
Ninguém se torna gay de repente, só porque está na moda; alguma semente deve existir, lá no fundo do peito
Quando vim morar no Rio, vindo de Vitória -eu era uma criança-, lembro que em Copacabana, onde morava, existia um único personagem gay. Seu nome era Bob; quando visto na rua, era um acontecimento, e logo se comentava "eu vi o Bob hoje" -e em que lugar, e como estava vestido, e todos os detalhes.
Ninguém o conhecia, de conversar, mas ele era uma pessoa que fazia parte da vida do bairro, e era o único. O tempo foi passando, outros gays foram surgindo -atores, cantores, artistas em geral-, e ainda mais tarde muitos amigos foram, aos poucos, saindo do armário.
No início se comentava, discretamente, essas modificações sexuais; depois, nem foi mais preciso, pois não havia nem mais armário onde as pessoas se escondessem, e a vida ficou mais prática.
O que eu não entendo: será que no tempo em que -aparentemente- só existia Bob, a comunidade gay era tão grande como no presente, só que todos se escondiam?
Hoje, às vezes, a existência dessa população parece maior do que a dos héteros, e num domingo de verão em Ipanema só vendo para crer: são bandeiras em arco-íris, tangas extravagantes, alguns de brincos, pulseiras, colares, cabelos de todas as cores e formatos; a paquera é franca e aberta, prova da liberdade que têm todas as pessoas, nos dias de hoje, de escolher o que querem ser, em matéria inclusive de sexo.
Mas eu me pergunto: nos tempos passados, será que eram tantos assim, só que enrustidos, ou essa população cresceu tanto? Não sei se é a onda -ou moda- do casamento gay, de que tanto se fala, que pegou, como tantas modas pegam ou não.
Mas penso que ninguém se torna gay de repente, só porque está na moda; alguma semente deve existir, lá no fundo do peito, desde sempre, e como não existem mais os problemas de repressão, quem tinha razão era Cole Porter, em sua maravilhosa canção "Anything Goes" (numa tradução livre, Tudo é válido).
Tudo bem, tudo certo, só que -volto a dizer- ninguém fica homossexual porque está na moda, e é aí que entra uma outra indagação que não tem nada a ver, mas pensamentos são assim mesmo: vão chegando e não têm nada a ver um com o outro.
Existem os que não sabem cozinhar um ovo, e por mais que esteja na moda nos dias de hoje, para homens e para mulheres, entrar na cozinha e fazer um prato maravilhoso, não é esse fato que vai ajudar ninguém a fazer um ovinho mexido delicioso. Ou você nasce com o dom divino de lidar com as panelas, ou não, e isso não se aprende: é dom mesmo.
Mas eis que hoje você liga a televisão, abre uma revista, e se dá conta de que todo mundo agora é chef. Todas as mocinhas e rapazes que não sabem o que ser na vida fazem um curso em Paris, Londres ou Nova York, viram estrelas dos restaurantes mais fantásticos, e eu não consigo entender que tantas pessoas tenham adquirido esse talento que, no meu entender, vem do berço: o de cozinhar bem.
Para mim, ou você nasce com tendência a ser gay, ou a mão boa para fazer um belo prato na cozinha, porque certas coisas são difíceis de improvisar.
O mais provável? Que eu cada vez entendo menos desse mundo.
A velha e o caolho - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 07/04
SÃO PAULO - "Esta velha é pior que o caolho." A frase do presidente uruguaio José Mujica sobre os Kirchner não poderia ser mais inadequada. Com apenas sete palavras, ele insultou uma chefe de Estado e o seu marido já morto. Só o que desculpa parcialmente Mujica é o fato de ter feito o comentário, transmitido ao vivo numa página da web, quando pensava falar em privacidade.
O uruguaio perdeu uma boa ocasião de manter a boca fechada. Podemos ir mais longe e afirmar que as exigências da diplomacia o transformam num hipócrita, levando-o a elogiar pessoas de que não gosta.
Embora faltar com a verdade seja uma prática condenada de forma mais ou menos unânime por religiões, sistemas de Justiça e pela cultura popular, pesquisadores que investigaram o fenômeno descobriram que ela está mais profundamente inscrita em nosso DNA do que gostaríamos.
Para começar, a fraude é onipresente na natureza. Das pintas do leopardo à camuflagem do louva-a-deus, relações de predação e parasitismo são quase sempre mediadas por algum tipo de engodo. Bebês aprendem a manipular as mães com choro antes de conseguirem falar.
A gafe de Mujica prova que pequenas mentiras são fundamentais para a vida em sociedade. Elogiamos a comida de nossos anfitriões mesmo que seja intragável. Não revelamos a nossos interlocutores todas as nossas impressões sobre eles. Personagens anormalmente sinceros, como o príncipe Míchkin, protagonista de "O Idiota", de Dostoiévski, acabam atraindo desgraças para si próprios.
Há quem sustente que ludibriar o próximo com o objetivo de galgar posições hierárquicas foi uma força tão ou mais importante que o uso de ferramentas ou o cozimento da comida a moldar a evolução humana. É a hipótese da inteligência maquiavélica. Se ela é correta, Mujica, mesmo que por acidente, cometeu o maior pecado possível para um político, que é dizer o que realmente pensa.
SÃO PAULO - "Esta velha é pior que o caolho." A frase do presidente uruguaio José Mujica sobre os Kirchner não poderia ser mais inadequada. Com apenas sete palavras, ele insultou uma chefe de Estado e o seu marido já morto. Só o que desculpa parcialmente Mujica é o fato de ter feito o comentário, transmitido ao vivo numa página da web, quando pensava falar em privacidade.
O uruguaio perdeu uma boa ocasião de manter a boca fechada. Podemos ir mais longe e afirmar que as exigências da diplomacia o transformam num hipócrita, levando-o a elogiar pessoas de que não gosta.
Embora faltar com a verdade seja uma prática condenada de forma mais ou menos unânime por religiões, sistemas de Justiça e pela cultura popular, pesquisadores que investigaram o fenômeno descobriram que ela está mais profundamente inscrita em nosso DNA do que gostaríamos.
Para começar, a fraude é onipresente na natureza. Das pintas do leopardo à camuflagem do louva-a-deus, relações de predação e parasitismo são quase sempre mediadas por algum tipo de engodo. Bebês aprendem a manipular as mães com choro antes de conseguirem falar.
A gafe de Mujica prova que pequenas mentiras são fundamentais para a vida em sociedade. Elogiamos a comida de nossos anfitriões mesmo que seja intragável. Não revelamos a nossos interlocutores todas as nossas impressões sobre eles. Personagens anormalmente sinceros, como o príncipe Míchkin, protagonista de "O Idiota", de Dostoiévski, acabam atraindo desgraças para si próprios.
Há quem sustente que ludibriar o próximo com o objetivo de galgar posições hierárquicas foi uma força tão ou mais importante que o uso de ferramentas ou o cozimento da comida a moldar a evolução humana. É a hipótese da inteligência maquiavélica. Se ela é correta, Mujica, mesmo que por acidente, cometeu o maior pecado possível para um político, que é dizer o que realmente pensa.
Ativismo compulsivo - SUELY CALDAS
O Estado de S.Paulo - 07/04
Na quinta-feira, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o Brasil levou anos sem rumo e só depois do governo Lula recuperou a capacidade de planejar e construir o futuro. A presidente confunde alhos com bugalhos. O que falta em sua gestão, desde o primeiro dia, é justamente planejar um rumo, definir uma direção, sedimentar um caminho para chegar a metas e objetivos, de forma organizada, consistente e segura. Não é isso o que se vê. O que falta mesmo é um programa de governo.
A gestão Dilma padece de uma espécie de ativismo compulsivo. Dá voltas (há dois anos fala em privatizar portos), segue e recua (trapalhadas na privatização de aeroportos), atira sem mirar o alvo e quase todo dia produz uma novidade, uma nova intervenção na economia, tenta apagar incêndios aqui e ali, mas o fogo reaparece adiante. De resultados no crescimento econômico, quase nada. E como explicar, então, a popularidade da presidente?
Na área social, Lula e ela tomaram a decisão acertada de dar ênfase aos programas de transferência de renda de Fernando Henrique Cardoso, o que contribuiu para pobres ascenderem à classe média. Porém a degradação da rede pública de saúde, a falta de uma educação de qualidade, o pífio investimento em saneamento básico e a ausência de uma política de segurança para reduzir a violência são obstáculos ao bem-estar dessa classe média emergente.
Na economia, Lula e Dilma conseguiram reduzir a dívida pública para 35,1% do Produto Interno Bruto (PIB) e a taxa básica de juros para 7,25% ao ano. Tal sucesso deveria, mas não resultou em crescimento econômico - nos últimos dois anos, o PIB brasileiro foi lanterna entre os países da América Latina. Dilma também conseguiu reduzir a tarifa de energia elétrica, mas causou tanto estrago nas empresas elétricas que o Tesouro Nacional terá de arcar com boa parcela do custo, injetando dinheiro na capitalização da Eletrobrás para garantir a sua sobrevivência.
Como disse o ministro Aloizio Mercadante em entrevista ao Estado, "o PIB para o povo é emprego e renda". Nestes dois anos, a renda e o emprego estiveram em alta e é possível que assim fiquem nos próximos meses. Só que faltou Mercadante acrescentar: é uma boa receita para ganhar a eleição de 2014, mas é pouco para gerar investimentos, garantir um crescimento sustentado e consistente e quase nada para construir um futuro promissor para o País e seus habitantes.
Isso porque - e tanto Dilma quanto Mercadante sabem disso - o que fazem no governo é transitório, momentâneo, passageiro, e não fruto de um plano de governo que multiplique o investimento e pavimente o progresso econômico.
Quantidade sem qualidade. O ativismo compulsivo do governo Dilma produz ações em quantidade. Porém, descoladas de um planejamento de longo prazo, elas não conseguem se transformar em realizações de qualidade, nem mesmo para o objetivo pretendido. Exemplos há muitos.
O mais óbvio deles são as ações voltadas para derrubar a inflação. Até onde não dava mais, Dilma esticou a corda do aumento dos combustíveis, dilapidando o presente e o futuro da Petrobrás; pediu a prefeitos que adiassem o aumento da tarifa de ônibus (e quando vier o aumento?); e reduziu a tarifa de energia elétrica. Em vez de atacar o dilema da inflação na sua estrutura, por exemplo, cortando gastos correntes do governo, Dilma recorre a paliativos transitórios que só adiam, não resolvem o problema. Por isso - como reconhece o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini -, a inflação persiste e produz riscos para a saúde da economia.
As ações do ativismo são lançadas aos borbotões, sem a preocupação de avaliar resultados. O "Plano Brasil Maior", de agosto de 2011, seria a política industrial da gestão Dilma, mas a produção industrial não para de cair.
Os subsídios em linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as desonerações fiscais a setores escolhidos, o BNDES socorrendo grupos privados em parcerias perigosas, o arriscado uso das estatais em políticas públicas e licitações públicas mal feitas com lucro tabelado que afastam o investidor são ações que se tornaram corriqueiras e pretensamente visam a estimular o crescimento e o investimento. Até agora, não conseguiram nem uma coisa nem outra. Desconfiado com as habituais intervenções do governo, o investidor teme mudanças de regras e desiste de seu projeto.
Comércio exterior. Além da situação fiscal - prejudicada pela menor arrecadação de impostos -, o mais novo pepino para Dilma descascar é o comércio exterior, ou seja, a queda das exportações e o aumento de importações. É nessa área onde desabam com maior intensidade e rapidez os efeitos da crise econômica dos países ricos, com reflexos internos negativos sobre o câmbio e o balanço de pagamentos. O inédito déficit comercial de US$ 5,1 bilhões até março de 2013 parece não preocupar o governo (o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, diz que "vamos conseguir um bom saldo comercial"), mas derrubou todas as previsões de analistas.
O boletim Focus reduziu sua estimativa para um saldo positivo de US$ 12,4 bilhões, o Banco Central manteve a sua em US$ 15 bilhões, mas as apostas mais comuns oscilam, agora, entre US$ 8 bilhões e US$ 10 bilhões. E o ex-secretário de Comércio Exterior do governo Lula Welber Barral é mais pessimista: o saldo em 2013 cai para US$ 4 bilhões. Para um país habituado a gerar superávits elevados (US$ 20,3 bilhões, em 2010; US$ 29,8 bilhões, em 2011; e US$ 19,4 bilhões, em 2012), é extremamente preocupante um tombo desse tamanho.
Mesmo porque, ainda resta contabilizar em abril mais US$ 1,8 bilhão de importações de petróleo de 2013; a Petrobrás vai importar, este ano, tanto ou mais do que no ano passado; o saldo comercial com China e Argentina - países que mais compram no Brasil - vem desabando e, em 2013, deve piorar; e os países ricos, que costumam sustentar nossa receita cambial, estão importando bem menos.
As exportações para os 27 países da União Europeia (UE) desabam desde o ano passado, com resultados crescentemente negativos para o Brasil. O superávit de US$ 6,520 bilhões com o bloco da UE em 2011 caiu para US$ 1,192 bilhão em 2012 e, em 2013, a situação inverteu: entre janeiro e fevereiro, o Brasil acumulou déficit de US$ 1,434 bilhão.
Na quinta-feira, a presidente Dilma Rousseff afirmou que o Brasil levou anos sem rumo e só depois do governo Lula recuperou a capacidade de planejar e construir o futuro. A presidente confunde alhos com bugalhos. O que falta em sua gestão, desde o primeiro dia, é justamente planejar um rumo, definir uma direção, sedimentar um caminho para chegar a metas e objetivos, de forma organizada, consistente e segura. Não é isso o que se vê. O que falta mesmo é um programa de governo.
A gestão Dilma padece de uma espécie de ativismo compulsivo. Dá voltas (há dois anos fala em privatizar portos), segue e recua (trapalhadas na privatização de aeroportos), atira sem mirar o alvo e quase todo dia produz uma novidade, uma nova intervenção na economia, tenta apagar incêndios aqui e ali, mas o fogo reaparece adiante. De resultados no crescimento econômico, quase nada. E como explicar, então, a popularidade da presidente?
Na área social, Lula e ela tomaram a decisão acertada de dar ênfase aos programas de transferência de renda de Fernando Henrique Cardoso, o que contribuiu para pobres ascenderem à classe média. Porém a degradação da rede pública de saúde, a falta de uma educação de qualidade, o pífio investimento em saneamento básico e a ausência de uma política de segurança para reduzir a violência são obstáculos ao bem-estar dessa classe média emergente.
Na economia, Lula e Dilma conseguiram reduzir a dívida pública para 35,1% do Produto Interno Bruto (PIB) e a taxa básica de juros para 7,25% ao ano. Tal sucesso deveria, mas não resultou em crescimento econômico - nos últimos dois anos, o PIB brasileiro foi lanterna entre os países da América Latina. Dilma também conseguiu reduzir a tarifa de energia elétrica, mas causou tanto estrago nas empresas elétricas que o Tesouro Nacional terá de arcar com boa parcela do custo, injetando dinheiro na capitalização da Eletrobrás para garantir a sua sobrevivência.
Como disse o ministro Aloizio Mercadante em entrevista ao Estado, "o PIB para o povo é emprego e renda". Nestes dois anos, a renda e o emprego estiveram em alta e é possível que assim fiquem nos próximos meses. Só que faltou Mercadante acrescentar: é uma boa receita para ganhar a eleição de 2014, mas é pouco para gerar investimentos, garantir um crescimento sustentado e consistente e quase nada para construir um futuro promissor para o País e seus habitantes.
Isso porque - e tanto Dilma quanto Mercadante sabem disso - o que fazem no governo é transitório, momentâneo, passageiro, e não fruto de um plano de governo que multiplique o investimento e pavimente o progresso econômico.
Quantidade sem qualidade. O ativismo compulsivo do governo Dilma produz ações em quantidade. Porém, descoladas de um planejamento de longo prazo, elas não conseguem se transformar em realizações de qualidade, nem mesmo para o objetivo pretendido. Exemplos há muitos.
O mais óbvio deles são as ações voltadas para derrubar a inflação. Até onde não dava mais, Dilma esticou a corda do aumento dos combustíveis, dilapidando o presente e o futuro da Petrobrás; pediu a prefeitos que adiassem o aumento da tarifa de ônibus (e quando vier o aumento?); e reduziu a tarifa de energia elétrica. Em vez de atacar o dilema da inflação na sua estrutura, por exemplo, cortando gastos correntes do governo, Dilma recorre a paliativos transitórios que só adiam, não resolvem o problema. Por isso - como reconhece o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini -, a inflação persiste e produz riscos para a saúde da economia.
As ações do ativismo são lançadas aos borbotões, sem a preocupação de avaliar resultados. O "Plano Brasil Maior", de agosto de 2011, seria a política industrial da gestão Dilma, mas a produção industrial não para de cair.
Os subsídios em linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as desonerações fiscais a setores escolhidos, o BNDES socorrendo grupos privados em parcerias perigosas, o arriscado uso das estatais em políticas públicas e licitações públicas mal feitas com lucro tabelado que afastam o investidor são ações que se tornaram corriqueiras e pretensamente visam a estimular o crescimento e o investimento. Até agora, não conseguiram nem uma coisa nem outra. Desconfiado com as habituais intervenções do governo, o investidor teme mudanças de regras e desiste de seu projeto.
Comércio exterior. Além da situação fiscal - prejudicada pela menor arrecadação de impostos -, o mais novo pepino para Dilma descascar é o comércio exterior, ou seja, a queda das exportações e o aumento de importações. É nessa área onde desabam com maior intensidade e rapidez os efeitos da crise econômica dos países ricos, com reflexos internos negativos sobre o câmbio e o balanço de pagamentos. O inédito déficit comercial de US$ 5,1 bilhões até março de 2013 parece não preocupar o governo (o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, diz que "vamos conseguir um bom saldo comercial"), mas derrubou todas as previsões de analistas.
O boletim Focus reduziu sua estimativa para um saldo positivo de US$ 12,4 bilhões, o Banco Central manteve a sua em US$ 15 bilhões, mas as apostas mais comuns oscilam, agora, entre US$ 8 bilhões e US$ 10 bilhões. E o ex-secretário de Comércio Exterior do governo Lula Welber Barral é mais pessimista: o saldo em 2013 cai para US$ 4 bilhões. Para um país habituado a gerar superávits elevados (US$ 20,3 bilhões, em 2010; US$ 29,8 bilhões, em 2011; e US$ 19,4 bilhões, em 2012), é extremamente preocupante um tombo desse tamanho.
Mesmo porque, ainda resta contabilizar em abril mais US$ 1,8 bilhão de importações de petróleo de 2013; a Petrobrás vai importar, este ano, tanto ou mais do que no ano passado; o saldo comercial com China e Argentina - países que mais compram no Brasil - vem desabando e, em 2013, deve piorar; e os países ricos, que costumam sustentar nossa receita cambial, estão importando bem menos.
As exportações para os 27 países da União Europeia (UE) desabam desde o ano passado, com resultados crescentemente negativos para o Brasil. O superávit de US$ 6,520 bilhões com o bloco da UE em 2011 caiu para US$ 1,192 bilhão em 2012 e, em 2013, a situação inverteu: entre janeiro e fevereiro, o Brasil acumulou déficit de US$ 1,434 bilhão.
A encruzilhada do PSB - DENISE ROTHENBURG
CORREIO BRAZILIENSE - 07/04
As cenas no Rio de Janeiro e as desta semana que veremos em Porto Alegre não deixam dúvidas. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, se movimenta como candidato a presidente da República e, nos últimos 30 dias, fugiu do script traçado lá atrás pelo PSB. A ideia original era de uma pré-candidatura no campo governista, leia-se aliado a Lula, ao PT e à presidente Dilma Rousseff, colocando-se como uma opção “por dentro”.
A realidade, entretanto, empurra Eduardo a outros campos. Ele conversou com José Serra, ex-candidato a presidente pelo PSDB e um dos baluartes da oposição. Aproximou-se do presidente do PPS, Roberto Freire, seu conterrâneo e crítico feroz do governo Dilma e de Lula. Até o DEM, que frequentemente se refere a petistas como “quadrilha”, tem setores simpáticos à pré-candidatura de Eduardo Campos. Obviamente, o socialista não recusa apoios. E, a essa altura do campeonato, sequer disse com todas as letras que vai mesmo ser candidato, nem poderia. Afinal, o diálogo político faz parte do dia-a-adia.
No sentido contrário, seguem os demais partidos da base aliada da presidente Dilma Rousseff. Os senadores do PMDB catarinense estavam felizes da vida na última semana no Congresso e fizeram chegar ao presidente do partido, Valdir Raupp, um acordo fechado em Santa Catarina. O PMDB pretende apoiar a reeleição do governador Raimundo Colombo, do PSD, indicando um candidato a vice na chapa. A vaga ao Senado está reservada para a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, do PT.
E, para completar, Dilma e Lula, aos poucos, vão amarrando os demais aliados. O PR ganhou ministério, o PP se considera bem contemplado. E, dentro do PSD de Gilberto Kassab, começa a se formar um consenso de que em 2014 o partido deve seguir com Dilma. Esse quadro de cerco aos aliados por parte do PT e as conversas de Eduardo com setores da oposição, desenhado ao longo do mês de março, expõem a necessidade de uma definição. Até fevereiro, a conversa interna do PSB era a de que o talentoso governador seria candidato como opção dentro da base de Dilma/Lula, para garantir uma alternativa interna ao PT, na hipótese de se confirmar um naufrágio da economia.
Esse naufrágio até agora não ocorreu e não há certeza de que ocorrerá, apesar da inflação dos alimentos. A presidente continua estourando de popularidade, inclusive no Nordeste. Lula já avisou que estará nas ruas pedindo votos em favor dela. Com esse cenário, o que o PT pretende saber de Eduardo Campos nos próximos 30 ou 60 dias é muito simples: a candidatura é para valer, independentemente do que ocorrer daqui para frente com a economia? Se for para ele ser candidato em qualquer circunstância, haverá uma pressão de setores do PT para que o PSB deixe o governo — em especial, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, que, apesar das especulações em sentido contrário, aproveitou a solenidade de inauguração de obras em Serra Talhada (PE), para deixar registrado nas entrelinhas que ficará ao lado do governador e do seu partido, o PSB.
Enquanto isso, nos estados…
O desfile de Eduardo, ora mais afeito à oposição, ora aos aliados do governo, inquieta o próprio PSB por causa das alianças que o partido tem pelo Brasil afora. Em São Paulo, por exemplo, o PT desconfia do jogo do aliado, que já colocou um pé na campanha pela reeleição de Geraldo Alckmin. Já na Bahia, o DEM do deputado Claudio Cajado, por exemplo, que pertence ao grupo do prefeito ACM Neto, abre diálogo com Eduardo, deixando o PSB estressado por conta da antiga ligação entre socialistas e petistas no estado. Não por acaso, recentemente o vice-presidente do partido, sempre afinado com Eduardo Campos, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que o PSB não servirá aos interesses da oposição nem será oposição. Apenas exerce o seu legítimo direito de se apresentar como alternativa.
Ocorre que, Eduardo, aos poucos, vai sendo empurrado para a oposição ao mesmo tempo que (ainda) é governo. E, se demorar para decidir seu caminho, o duradouro casamento com o PT pode terminar mal. Momento mais difícil do que esse impossível. Afinal, o governador está entre a perspectiva de se lançar candidato para, no mínimo, se tornar conhecido — e assim garantir um lugar no primeiro time da política rumo a 2018 — ou recolher os flaps e passar a vida pensando que se deixou sufocar pelo PT, o partido que lhe passou a perna enquanto preparava futuros combatentes, por exemplo, Fernando Haddad em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. É esse o momento atual na conjuntura do PSB.
Em tempo
O senador Jarbas Vasconcelos (mais um oposicionista!) pretende reunir esta semana Eduardo Campos com senadores do PMDB que integram a ala dos sem-ministério. Resta saber se a conversa é para valer ou apenas para forçar o governo a lhes conceder mais espaço de poder.
A realidade, entretanto, empurra Eduardo a outros campos. Ele conversou com José Serra, ex-candidato a presidente pelo PSDB e um dos baluartes da oposição. Aproximou-se do presidente do PPS, Roberto Freire, seu conterrâneo e crítico feroz do governo Dilma e de Lula. Até o DEM, que frequentemente se refere a petistas como “quadrilha”, tem setores simpáticos à pré-candidatura de Eduardo Campos. Obviamente, o socialista não recusa apoios. E, a essa altura do campeonato, sequer disse com todas as letras que vai mesmo ser candidato, nem poderia. Afinal, o diálogo político faz parte do dia-a-adia.
No sentido contrário, seguem os demais partidos da base aliada da presidente Dilma Rousseff. Os senadores do PMDB catarinense estavam felizes da vida na última semana no Congresso e fizeram chegar ao presidente do partido, Valdir Raupp, um acordo fechado em Santa Catarina. O PMDB pretende apoiar a reeleição do governador Raimundo Colombo, do PSD, indicando um candidato a vice na chapa. A vaga ao Senado está reservada para a ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, do PT.
E, para completar, Dilma e Lula, aos poucos, vão amarrando os demais aliados. O PR ganhou ministério, o PP se considera bem contemplado. E, dentro do PSD de Gilberto Kassab, começa a se formar um consenso de que em 2014 o partido deve seguir com Dilma. Esse quadro de cerco aos aliados por parte do PT e as conversas de Eduardo com setores da oposição, desenhado ao longo do mês de março, expõem a necessidade de uma definição. Até fevereiro, a conversa interna do PSB era a de que o talentoso governador seria candidato como opção dentro da base de Dilma/Lula, para garantir uma alternativa interna ao PT, na hipótese de se confirmar um naufrágio da economia.
Esse naufrágio até agora não ocorreu e não há certeza de que ocorrerá, apesar da inflação dos alimentos. A presidente continua estourando de popularidade, inclusive no Nordeste. Lula já avisou que estará nas ruas pedindo votos em favor dela. Com esse cenário, o que o PT pretende saber de Eduardo Campos nos próximos 30 ou 60 dias é muito simples: a candidatura é para valer, independentemente do que ocorrer daqui para frente com a economia? Se for para ele ser candidato em qualquer circunstância, haverá uma pressão de setores do PT para que o PSB deixe o governo — em especial, o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, que, apesar das especulações em sentido contrário, aproveitou a solenidade de inauguração de obras em Serra Talhada (PE), para deixar registrado nas entrelinhas que ficará ao lado do governador e do seu partido, o PSB.
Enquanto isso, nos estados…
O desfile de Eduardo, ora mais afeito à oposição, ora aos aliados do governo, inquieta o próprio PSB por causa das alianças que o partido tem pelo Brasil afora. Em São Paulo, por exemplo, o PT desconfia do jogo do aliado, que já colocou um pé na campanha pela reeleição de Geraldo Alckmin. Já na Bahia, o DEM do deputado Claudio Cajado, por exemplo, que pertence ao grupo do prefeito ACM Neto, abre diálogo com Eduardo, deixando o PSB estressado por conta da antiga ligação entre socialistas e petistas no estado. Não por acaso, recentemente o vice-presidente do partido, sempre afinado com Eduardo Campos, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que o PSB não servirá aos interesses da oposição nem será oposição. Apenas exerce o seu legítimo direito de se apresentar como alternativa.
Ocorre que, Eduardo, aos poucos, vai sendo empurrado para a oposição ao mesmo tempo que (ainda) é governo. E, se demorar para decidir seu caminho, o duradouro casamento com o PT pode terminar mal. Momento mais difícil do que esse impossível. Afinal, o governador está entre a perspectiva de se lançar candidato para, no mínimo, se tornar conhecido — e assim garantir um lugar no primeiro time da política rumo a 2018 — ou recolher os flaps e passar a vida pensando que se deixou sufocar pelo PT, o partido que lhe passou a perna enquanto preparava futuros combatentes, por exemplo, Fernando Haddad em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. É esse o momento atual na conjuntura do PSB.
Em tempo
O senador Jarbas Vasconcelos (mais um oposicionista!) pretende reunir esta semana Eduardo Campos com senadores do PMDB que integram a ala dos sem-ministério. Resta saber se a conversa é para valer ou apenas para forçar o governo a lhes conceder mais espaço de poder.
Por trás do cartão-postal - DORRIT HAZARIM
O GLOBO - 07/04
Pelo jeito, algumas coisas só voltarão a ser o que são quando o carioca acordar na manhã de 22 de agosto de 2016, depois de apagada a tocha olímpica no Maracanã e a cidade tiver zerado a sua trepidante temporada de megaeventos. Até lá, para quem surfa no calendário de alta visibilidade da cidade - Jornada da Juventude, Copa das Confederações, Copa do Mundo, Jogos Olímpicos -, notícia ruim é tudo aquilo que mancha a imagem deste Rio efervescente.
Sob esta ótica, o estupro de uma estrangeira dentro de uma van em circulação no Rio, além de horripilante, foi indigesto. E acabou revelando, por mero acaso, a face até então oculta dessa modalidade de crime já inserida na vida carioca. Ela apenas não fora detectada pelo radar de proteção aos Grandes Eventos.
A história do horror pelo qual passaram dois jovens turistas estrangeiros na madrugada do sábado de Páscoa, 30 de março, correu o mundo. A americana de 21 anos e seu amigo francês, de 23, haviam embarcado numa van em Copacabana rumo ao bairro boêmio da Lapa, no centro do Rio. No caminho, foram aprisionados dentro do veículo pelo motorista e pelo cobrador, iniciando-se uma sequência de violências que durou quase seis horas.
Com um terceiro cúmplice embarcado no caminho, a van circulou por Niterói, São Gonçalo, novamente Copacabana, Itaboraí. O francês foi algemado, agredido e ameaçado com barra de ferro. A americana foi estuprada por todos. Por fim, se viram largados num ponto de ônibus da Região Metropolitana.
Assistidos por representantes de seus países, passaram por dois hospitais públicos - à jovem foi ministrado um coquetel de drogas contra doenças sexualmente transmissíveis e a chamada "pílula do dia seguinte". Por fim, foi feito o boletim de ocorrência policial.
Decorridas menos de 14 horas, os dois primeiros suspeitos foram capturados e puderam ser apresentados à imprensa pela Delegacia Especial de Atendimento ao Turista. Três dias após o atentado, o terceiro acusado também já estava em mãos da polícia.
Ainda assim, nos gabinetes municipais, o episódio doeu. "Ficamos tristes e decepcionados", disse Alfredo Lopes, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, verbalizando a reação dos mais preocupados com o "dano à imagem". "Pela importância turística do local, nunca se espera um caso desses. Ninguém quer um assalto numa van em Bonsucesso ou no Complexo do Alemão, mas em Copacabana, cartão-postal famoso mundialmente!"
Na verdade, apesar de ser um dos bairros cariocas com maior número de câmeras de segurança, guardas municipais, Batalhões de Policiamento Turístico e UPPs, a "Princesinha do Mar" parece ainda não ser unanimidade no exterior. Em sua página na internet voltada a patrícios em viagem, o Ministério das Relações Exteriores da França recomenda prudência a viajantes com destino ao Rio de Janeiro. "Este aviso vale para todos os bairros e particularmente Copacabana, onde estão concentrados mais de 50% dos casos de assaltos à mão armada com registro policial", informa o Quai d"Orsay. O alerta consta como atualizado até 2 de março - antes, portanto, da violência sofrida pelo jovem francês que acompanhava a americana estuprada.
Para muitos, o terror vivido pelos jovens dentro de uma van que trafegava calmamente pela cidade evocou a barbárie cometida contra um casal de indianos a bordo de um ônibus, em Nova Délhi. Naquele episódio de estupro coletivo, que resultou na morte da mulher atacada com requintes de bestialidade, homens e mulheres indianos foram às ruas. Não por preocupação com a queda de 30% no turismo estrangeiro ao país, decorrente da percepção de violência contra a mulher na Índia, mas por simples impulso de indignação comunitária. Esta indignação, que aliás se espraiou em passeatas de solidariedade mundo afora, evoluiu na Índia para um movimento de tomada de consciência sem precedentes. O julgamento dos seis réus, um dos quais teria se suicidado - ou sido morto - na prisão, está recebendo cobertura cerrada da mídia mundial.
Com o Rio tendo virado grife internacional e o estupro se tornado o crime em evidência, era inevitável que a violência contra os dois jovens em temporada carioca tivesse o impacto que teve no exterior.
Só que uma semana antes, também na madrugada do sábado, foi uma brasileirinha que embarcou na mesma van. Apenas o sentido era inverso - Lapa-Copacabana. Em determinado momento, a jovem de pouco mais de 20 anos percebeu ser a única passageira ainda no veículo e tentou descer. Tarde demais. O motorista e o cobrador eram estupradores. Os mesmos que assaltariam a americana na semana seguinte.
Após ser violentada, a jovem procurou o IML e a delegacia mais próxima. Foi atendida com a indiferença burocrática tantas vezes reservada aos anônimos. A probabilidade de a denúncia que fizera ser investigada de imediato era pouca. Afinal, segundo o Instituto de Segurança Pública, o Estado do Rio registra uma média de 16 casos de estupro por dia.
Quis o acaso que a própria jovem reconheceu seus agressores ao vê-los retratados como os autores do atentado contra a americana. E mais desdobramentos deste fio de meada vão emergindo, com novas denúncias de vítimas que dizem ter sido assaltadas pela mesma gangue.
Cabe, aqui, um registro de louvor à chefe de Polícia Civil do Estado do Rio, delegada Martha Rocha. Informada do atendimento inadequado prestado à brasileira estuprada que buscou assistência numa Delegacia Especial de Atendimento à Mulher e num posto regional da Polícia Técnico-Científica, a xerifa convocou as titulares dos dois departamentos a seu gabinete. Exonerou as duas e ainda emitiu nota com pedido de desculpas à população pelo atendimento falho.
Com este tipo de postura, voltada para quem usa a cidade e lhe dá vida, a travessia até 2016 será mais fácil. Da imagem de cartão-postal do Rio, a natureza já cuidou.
Sob esta ótica, o estupro de uma estrangeira dentro de uma van em circulação no Rio, além de horripilante, foi indigesto. E acabou revelando, por mero acaso, a face até então oculta dessa modalidade de crime já inserida na vida carioca. Ela apenas não fora detectada pelo radar de proteção aos Grandes Eventos.
A história do horror pelo qual passaram dois jovens turistas estrangeiros na madrugada do sábado de Páscoa, 30 de março, correu o mundo. A americana de 21 anos e seu amigo francês, de 23, haviam embarcado numa van em Copacabana rumo ao bairro boêmio da Lapa, no centro do Rio. No caminho, foram aprisionados dentro do veículo pelo motorista e pelo cobrador, iniciando-se uma sequência de violências que durou quase seis horas.
Com um terceiro cúmplice embarcado no caminho, a van circulou por Niterói, São Gonçalo, novamente Copacabana, Itaboraí. O francês foi algemado, agredido e ameaçado com barra de ferro. A americana foi estuprada por todos. Por fim, se viram largados num ponto de ônibus da Região Metropolitana.
Assistidos por representantes de seus países, passaram por dois hospitais públicos - à jovem foi ministrado um coquetel de drogas contra doenças sexualmente transmissíveis e a chamada "pílula do dia seguinte". Por fim, foi feito o boletim de ocorrência policial.
Decorridas menos de 14 horas, os dois primeiros suspeitos foram capturados e puderam ser apresentados à imprensa pela Delegacia Especial de Atendimento ao Turista. Três dias após o atentado, o terceiro acusado também já estava em mãos da polícia.
Ainda assim, nos gabinetes municipais, o episódio doeu. "Ficamos tristes e decepcionados", disse Alfredo Lopes, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, verbalizando a reação dos mais preocupados com o "dano à imagem". "Pela importância turística do local, nunca se espera um caso desses. Ninguém quer um assalto numa van em Bonsucesso ou no Complexo do Alemão, mas em Copacabana, cartão-postal famoso mundialmente!"
Na verdade, apesar de ser um dos bairros cariocas com maior número de câmeras de segurança, guardas municipais, Batalhões de Policiamento Turístico e UPPs, a "Princesinha do Mar" parece ainda não ser unanimidade no exterior. Em sua página na internet voltada a patrícios em viagem, o Ministério das Relações Exteriores da França recomenda prudência a viajantes com destino ao Rio de Janeiro. "Este aviso vale para todos os bairros e particularmente Copacabana, onde estão concentrados mais de 50% dos casos de assaltos à mão armada com registro policial", informa o Quai d"Orsay. O alerta consta como atualizado até 2 de março - antes, portanto, da violência sofrida pelo jovem francês que acompanhava a americana estuprada.
Para muitos, o terror vivido pelos jovens dentro de uma van que trafegava calmamente pela cidade evocou a barbárie cometida contra um casal de indianos a bordo de um ônibus, em Nova Délhi. Naquele episódio de estupro coletivo, que resultou na morte da mulher atacada com requintes de bestialidade, homens e mulheres indianos foram às ruas. Não por preocupação com a queda de 30% no turismo estrangeiro ao país, decorrente da percepção de violência contra a mulher na Índia, mas por simples impulso de indignação comunitária. Esta indignação, que aliás se espraiou em passeatas de solidariedade mundo afora, evoluiu na Índia para um movimento de tomada de consciência sem precedentes. O julgamento dos seis réus, um dos quais teria se suicidado - ou sido morto - na prisão, está recebendo cobertura cerrada da mídia mundial.
Com o Rio tendo virado grife internacional e o estupro se tornado o crime em evidência, era inevitável que a violência contra os dois jovens em temporada carioca tivesse o impacto que teve no exterior.
Só que uma semana antes, também na madrugada do sábado, foi uma brasileirinha que embarcou na mesma van. Apenas o sentido era inverso - Lapa-Copacabana. Em determinado momento, a jovem de pouco mais de 20 anos percebeu ser a única passageira ainda no veículo e tentou descer. Tarde demais. O motorista e o cobrador eram estupradores. Os mesmos que assaltariam a americana na semana seguinte.
Após ser violentada, a jovem procurou o IML e a delegacia mais próxima. Foi atendida com a indiferença burocrática tantas vezes reservada aos anônimos. A probabilidade de a denúncia que fizera ser investigada de imediato era pouca. Afinal, segundo o Instituto de Segurança Pública, o Estado do Rio registra uma média de 16 casos de estupro por dia.
Quis o acaso que a própria jovem reconheceu seus agressores ao vê-los retratados como os autores do atentado contra a americana. E mais desdobramentos deste fio de meada vão emergindo, com novas denúncias de vítimas que dizem ter sido assaltadas pela mesma gangue.
Cabe, aqui, um registro de louvor à chefe de Polícia Civil do Estado do Rio, delegada Martha Rocha. Informada do atendimento inadequado prestado à brasileira estuprada que buscou assistência numa Delegacia Especial de Atendimento à Mulher e num posto regional da Polícia Técnico-Científica, a xerifa convocou as titulares dos dois departamentos a seu gabinete. Exonerou as duas e ainda emitiu nota com pedido de desculpas à população pelo atendimento falho.
Com este tipo de postura, voltada para quem usa a cidade e lhe dá vida, a travessia até 2016 será mais fácil. Da imagem de cartão-postal do Rio, a natureza já cuidou.
Sequestro de oportunidades - RONALDO DE BREYNE SALVAGNI
FOLHA DE SP - 07/04
Jovens esforçados impedidos de se desenvolver por causa de uma educação pública básica e média medíocres: esse é o problema real
Temos, sem dúvida, sérios problemas de discriminação e exclusão na sociedade brasileira, que se refletem também nas universidades. Mas frequentemente parece que eles são abordados de forma desfocada.
A composição racial da sociedade brasileira tem forte presença de negros, pardos e minorias. Diz-se que esse perfil não se repete na universidade. Mas por que razão a composição geral da sociedade deve se repetir em seus contextos e recortes específicos? Ela se repete em times de futebol ou na seleção brasileira?
Se acreditarmos que o perfil étnico ou econômico do conjunto da população seja, ou deva ser, uma "invariante social", repetindo-se em qualquer recorte ou subgrupo, a consequência óbvia disso é a generalização da prática de cotas.
Além de cotas no vestibular, em breve teremos propostas de cotas de formatura, para compensar injustiças e discriminações ocorridas ao longo do curso. Em seguida, cotas para times de futebol, cotas para funcionários das empresas, cotas para sócios de clubes, cotas em academias de ginástica, cotas para fiéis de cada religião e culto e por aí vai.
A grande injustiça é ver a quantidade de pessoas, especialmente os jovens inteligentes e esforçados, sendo impedidas de se desenvolver. Não é dada a elas a oportunidade de aprender e crescer, por causa de uma educação pública básica e média medíocres. Esse é o problema real.
O contrário do racismo e da discriminação social não é uma "discriminação positiva", mas sim a ausência dessas classificações. Qualquer solução que envolva critérios de raça ou pobreza não contribui para eliminar a discriminação. Pelo contrário, reafirma, reforça e pereniza esses conceitos básicos dos mecanismos de exclusão.
Nesse cenário de sequestro de oportunidades, há um grupo de jovens mais velhos que já foi prejudicado pelas péssimas escolas públicas. E há outro grupo, bem maior, das crianças que ainda enfrentarão o problema. Para as pessoas já prejudicadas, as cotas são um mecanismo compensatório, que pode reduzir, mas não eliminar, o prejuízo.
Se houver uma proposta cujo cerne seja a melhoria efetiva do atual ensino público de primeiro e segundo grau, com parâmetros objetivos e seguindo modelos que comprovadamente já deram excelentes resultados em várias partes do mundo, e que parte dessa proposta seja um sistema de cotas, emergencial e provisório (com prazo limitado), visando apenas aquela população que já foi prejudicada, essa proposta merece não apenas a nossa aprovação, mas também o nosso aplauso.
Existem algumas (raras) escolas públicas muito boas, de modo que não deve ser tão difícil generalizar esses exemplos. Também é bom lembrar que existem escolas privadas péssimas (não tão raras), que também devem ser melhoradas.
Já uma proposta que contemple apenas a questão das cotas de forma isolada ou é ingênua ou é demagógica. Anestesia as consciências, acomoda as queixas, reduz as pressões -é a solução mais fácil e barata para os governantes. Mas mantém a condenação de milhões de crianças a precisar de cotas no futuro, sempre em ciclos sem fim, sequestrando suas oportunidades e seus sonhos. Não podemos concordar com isso.
Jovens esforçados impedidos de se desenvolver por causa de uma educação pública básica e média medíocres: esse é o problema real
Temos, sem dúvida, sérios problemas de discriminação e exclusão na sociedade brasileira, que se refletem também nas universidades. Mas frequentemente parece que eles são abordados de forma desfocada.
A composição racial da sociedade brasileira tem forte presença de negros, pardos e minorias. Diz-se que esse perfil não se repete na universidade. Mas por que razão a composição geral da sociedade deve se repetir em seus contextos e recortes específicos? Ela se repete em times de futebol ou na seleção brasileira?
Se acreditarmos que o perfil étnico ou econômico do conjunto da população seja, ou deva ser, uma "invariante social", repetindo-se em qualquer recorte ou subgrupo, a consequência óbvia disso é a generalização da prática de cotas.
Além de cotas no vestibular, em breve teremos propostas de cotas de formatura, para compensar injustiças e discriminações ocorridas ao longo do curso. Em seguida, cotas para times de futebol, cotas para funcionários das empresas, cotas para sócios de clubes, cotas em academias de ginástica, cotas para fiéis de cada religião e culto e por aí vai.
A grande injustiça é ver a quantidade de pessoas, especialmente os jovens inteligentes e esforçados, sendo impedidas de se desenvolver. Não é dada a elas a oportunidade de aprender e crescer, por causa de uma educação pública básica e média medíocres. Esse é o problema real.
O contrário do racismo e da discriminação social não é uma "discriminação positiva", mas sim a ausência dessas classificações. Qualquer solução que envolva critérios de raça ou pobreza não contribui para eliminar a discriminação. Pelo contrário, reafirma, reforça e pereniza esses conceitos básicos dos mecanismos de exclusão.
Nesse cenário de sequestro de oportunidades, há um grupo de jovens mais velhos que já foi prejudicado pelas péssimas escolas públicas. E há outro grupo, bem maior, das crianças que ainda enfrentarão o problema. Para as pessoas já prejudicadas, as cotas são um mecanismo compensatório, que pode reduzir, mas não eliminar, o prejuízo.
Se houver uma proposta cujo cerne seja a melhoria efetiva do atual ensino público de primeiro e segundo grau, com parâmetros objetivos e seguindo modelos que comprovadamente já deram excelentes resultados em várias partes do mundo, e que parte dessa proposta seja um sistema de cotas, emergencial e provisório (com prazo limitado), visando apenas aquela população que já foi prejudicada, essa proposta merece não apenas a nossa aprovação, mas também o nosso aplauso.
Existem algumas (raras) escolas públicas muito boas, de modo que não deve ser tão difícil generalizar esses exemplos. Também é bom lembrar que existem escolas privadas péssimas (não tão raras), que também devem ser melhoradas.
Já uma proposta que contemple apenas a questão das cotas de forma isolada ou é ingênua ou é demagógica. Anestesia as consciências, acomoda as queixas, reduz as pressões -é a solução mais fácil e barata para os governantes. Mas mantém a condenação de milhões de crianças a precisar de cotas no futuro, sempre em ciclos sem fim, sequestrando suas oportunidades e seus sonhos. Não podemos concordar com isso.
Saúde! - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 07/04
Hoje, cativante leitora, airoso leitor, é o Dia Mundial da Saúde. Eu não sabia, descobri enquanto estava na cozinha, esperando a água do café esquentar e, por falta do que fazer, lendo uma folhinha de padaria pendurada atrás da porta. Imagino que, pelo país afora, devem estar sendo realizados inúmeros eventos oficiais para dar serventia à data, conforme é costumeiro em nossa diligente administração pública. Tomada da pressão arterial na pracinha, fornecimento gratuito de camisinhas à juventude, palestras sobre alimentação sadia e exercícios físicos, caminhadas coletivas em parques públicos, farta distribuição de escovas de dente e lenços de papel e o que mais ocorrer à renomada criatividade nacional, principalmente se render uma propagandazinha comercial, uns votinhos ou um desviozinho de verba maneiro.
Não me informei sobre se certas iniciativas de natureza sanitária, algumas envoltas em controvérsias acaloradas, foram ou serão retomadas este ano. Falha minha, porque bem que eu podia ter dado uns telefonemas investigativos para Itaparica, onde pelo menos dois exemplos são notórios. O primeiro é a questão da vacinação para idosos.
Oculta-se entre segredos e cochichos a origem da postura hoje majoritária na ilha, segundo a qual o terceiro-idadista de juízo não toma essa vacina oficial nem que lhe confisquem a dentadura ou acabem de destroncar-lhe o joelho reumático, visto tratar-se tal vacinação de escabrosíssimo plano governamental para eliminar os aposentados e assim aliviar as contas da Previdência e sobrar mais para quem está no poder e precisa se fazer. Há quem sustente que os velhos assim inoculados começam logo a padecer de abestalhamento galopante e, nos meses seguintes, perecem aos magotes, entre risadas dementes, babação caudalosa, tremeliques, caganeiras, águas soltas, ventos soltos e outras aflições deploráveis.
Tenho uma certa justificativa para não haver telefonado para me inteirar da situação desse problema no momento. Não apenas creio que ela pouco terá mudado, como ninguém quer complicações com o governo, de maneira que as perguntas sobre o assunto causam algum constrangimento, que achei melhor evitar. Mais ou menos o mesmo pode ser dito do segundo problema, qual seja o do sempre debatido exame da dedada. As lembranças do último exame coletivo da dedada, em Itaparica, até hoje fazem parte de cicatrizes traumáticas, ou mesmo feridas da alma que talvez jamais se curem. Acho que, na ocasião, tive a oportunidade de reportar aqui os dramas vividos pelos que se enfileiraram para o exame, notadamente Magno do Siri-boia, a quem o destino traiçoeiro reservou um digitador de fiofó, como são lá conhecidos os profissionais da dedada, dos mais temidos em todo o Recôncavo, com um dedo futucador de dimensões comparáveis às de um salame. Até hoje, Magno empalidece e dá a impressão de que pode correr a qualquer momento, quando lhe lembram o doloroso transe. É, como se vê, um tema muito malvisto na ilha e não vale a pena mexer em sentimentos tão doridos.
Zecamunista até que apareceu com a conversa de que a Organização Mundial da Saúde havia declarado desaconselhável o exame periódico da dedada, a não ser para quem está com os baixios mostrando sintomas ou se comportando de maneira inconveniente. E, digam dele o que disserem - de raposa do carteado a flagelo dos maridos, de subversivo insidioso a agitador de massas inocentes -, ninguém nega que Zeca é homem de grande conhecimento e elevada estatura intelectual, dificilmente derrotável em qualquer debate. Mas a reputação de demolidor da ordem leva a que suas ponderações sejam ouvidas com alguma cautela, de forma que Toinho Sabacu, homem austero em cujo testemunho todos confiam, foi encarregado de ouvir um respeitado urologista em Salvador.
- Infelizmente você não tem razão - disse Sabacu a Zeca, depois de cumprida a missão, sob grande interesse dos circunstantes. - Perguntei a um grande urologista na Bahia e ele garantiu que o exame anual de toque é indispensável para todo homem depois dos cinquentinha. Tem que tomar a dedada, porque, se não tomar, está sujeito a encarar a catraca antes do que gostaria.
- E pra isso você foi à cidade falar com um urologista? - desdenhou Zeca, girando na cabeça seu novo boné do Exército Vermelho. - Podia ter poupado essa viagem, a resposta dele eu mesmo podia lhe dar. Me compreenda uma coisa, você está me desconhecendo a medicina capitalista? A quinhentos contos a dedada, era pra ele responder o quê?
- Então você acha que não é para ninguém fazer o exame da dedada.
- Eu não, quem acha é a Organização Mundial da Saúde. Mas sou um defensor da liberdade, faz quem quer, quem gosta ou quem pode. E, além disso, a oportunidade política não pode ser perdida, tem que ter visão política.
- Não percebi. - Claro que não percebeu, você é um alienado. A dedada, principalmente quando é ministrada pelo SUS e recebe o nome jocoso de carcada, é uma esplêndida metáfora do que os governantes fazem com os governados, acho que qualquer um concorda, você não?
- É, é muito usada.
- E então, a oportunidade política é clara.
Vou superar Pavlov, vou criar um reflexo condicionado em todos os homens que tomarem a dedada. Eu vou fazer um panfleto ilustrado, inclusive com versão para smartphone, para ser lido ou visto exatamente na hora da carcada. Acho que o primeiro vai ser sobre os impostos. Sentiu o impacto? A lembrança dos impostos e a carcada impiedosa. Ninguém vai mais aguentar, a revolução fiscal vai começar!
Não me informei sobre se certas iniciativas de natureza sanitária, algumas envoltas em controvérsias acaloradas, foram ou serão retomadas este ano. Falha minha, porque bem que eu podia ter dado uns telefonemas investigativos para Itaparica, onde pelo menos dois exemplos são notórios. O primeiro é a questão da vacinação para idosos.
Oculta-se entre segredos e cochichos a origem da postura hoje majoritária na ilha, segundo a qual o terceiro-idadista de juízo não toma essa vacina oficial nem que lhe confisquem a dentadura ou acabem de destroncar-lhe o joelho reumático, visto tratar-se tal vacinação de escabrosíssimo plano governamental para eliminar os aposentados e assim aliviar as contas da Previdência e sobrar mais para quem está no poder e precisa se fazer. Há quem sustente que os velhos assim inoculados começam logo a padecer de abestalhamento galopante e, nos meses seguintes, perecem aos magotes, entre risadas dementes, babação caudalosa, tremeliques, caganeiras, águas soltas, ventos soltos e outras aflições deploráveis.
Tenho uma certa justificativa para não haver telefonado para me inteirar da situação desse problema no momento. Não apenas creio que ela pouco terá mudado, como ninguém quer complicações com o governo, de maneira que as perguntas sobre o assunto causam algum constrangimento, que achei melhor evitar. Mais ou menos o mesmo pode ser dito do segundo problema, qual seja o do sempre debatido exame da dedada. As lembranças do último exame coletivo da dedada, em Itaparica, até hoje fazem parte de cicatrizes traumáticas, ou mesmo feridas da alma que talvez jamais se curem. Acho que, na ocasião, tive a oportunidade de reportar aqui os dramas vividos pelos que se enfileiraram para o exame, notadamente Magno do Siri-boia, a quem o destino traiçoeiro reservou um digitador de fiofó, como são lá conhecidos os profissionais da dedada, dos mais temidos em todo o Recôncavo, com um dedo futucador de dimensões comparáveis às de um salame. Até hoje, Magno empalidece e dá a impressão de que pode correr a qualquer momento, quando lhe lembram o doloroso transe. É, como se vê, um tema muito malvisto na ilha e não vale a pena mexer em sentimentos tão doridos.
Zecamunista até que apareceu com a conversa de que a Organização Mundial da Saúde havia declarado desaconselhável o exame periódico da dedada, a não ser para quem está com os baixios mostrando sintomas ou se comportando de maneira inconveniente. E, digam dele o que disserem - de raposa do carteado a flagelo dos maridos, de subversivo insidioso a agitador de massas inocentes -, ninguém nega que Zeca é homem de grande conhecimento e elevada estatura intelectual, dificilmente derrotável em qualquer debate. Mas a reputação de demolidor da ordem leva a que suas ponderações sejam ouvidas com alguma cautela, de forma que Toinho Sabacu, homem austero em cujo testemunho todos confiam, foi encarregado de ouvir um respeitado urologista em Salvador.
- Infelizmente você não tem razão - disse Sabacu a Zeca, depois de cumprida a missão, sob grande interesse dos circunstantes. - Perguntei a um grande urologista na Bahia e ele garantiu que o exame anual de toque é indispensável para todo homem depois dos cinquentinha. Tem que tomar a dedada, porque, se não tomar, está sujeito a encarar a catraca antes do que gostaria.
- E pra isso você foi à cidade falar com um urologista? - desdenhou Zeca, girando na cabeça seu novo boné do Exército Vermelho. - Podia ter poupado essa viagem, a resposta dele eu mesmo podia lhe dar. Me compreenda uma coisa, você está me desconhecendo a medicina capitalista? A quinhentos contos a dedada, era pra ele responder o quê?
- Então você acha que não é para ninguém fazer o exame da dedada.
- Eu não, quem acha é a Organização Mundial da Saúde. Mas sou um defensor da liberdade, faz quem quer, quem gosta ou quem pode. E, além disso, a oportunidade política não pode ser perdida, tem que ter visão política.
- Não percebi. - Claro que não percebeu, você é um alienado. A dedada, principalmente quando é ministrada pelo SUS e recebe o nome jocoso de carcada, é uma esplêndida metáfora do que os governantes fazem com os governados, acho que qualquer um concorda, você não?
- É, é muito usada.
- E então, a oportunidade política é clara.
Vou superar Pavlov, vou criar um reflexo condicionado em todos os homens que tomarem a dedada. Eu vou fazer um panfleto ilustrado, inclusive com versão para smartphone, para ser lido ou visto exatamente na hora da carcada. Acho que o primeiro vai ser sobre os impostos. Sentiu o impacto? A lembrança dos impostos e a carcada impiedosa. Ninguém vai mais aguentar, a revolução fiscal vai começar!
Direto no bolso - VERA MAGALHÃES
FOLHA DE SP - 07/04
No bojo do pacote pró-consumidor lançado por Dilma Rousseff no mês passado, o governo estuda incluir na lista de produtos com devolução ou troca imediata em caso de defeito, além do telefone celular, o trio fogão, geladeira e televisão. A ideia será discutida com o mercado nesta semana e, se aprovada, constará em decreto previsto para ser publicado no próximo dia 15. Segundo interlocutores da presidente, a lista terá poucos itens, todos imprescindíveis à vida cotidiana.
Operação...
Com a bênção do Planalto, Michel Temer negocia para que o empresário Júnior Batista, um dos donos do grupo J&F, troque o PSB pelo PMDB. Júnior é um dos trunfos de Eduardo Campos no Centro-Oeste, já que deve disputar o governo de Goiás no ano que vem.
... palanque
Temer almoçou na quinta-feira, em São Paulo, com Josué Gomes da Silva, filho do ex-vice-presidente José Alencar. O empresário pode ser candidato ao governo de Minas, se Fernando Pimentel (PT) decidir ficar no ministério e atuar na campanha de Dilma à reeleição.
Vai ter bolo
Depois da incursão pelo eixo Rio-SP, Eduardo Campos irá amanhã ao aniversário de 50 anos de seu líder na Câmara, Beto Albuquerque, em Porto Alegre. Entre os 2.000 convidados esperados estará Carlos Lupi, presidente do PDT, partido cortejado pelo pessebista.
Prévia 1
Quatro cidades de Minas realizam hoje novas eleições para prefeito: Diamantina, São João do Paraíso, Biquinhas e Cachoeira Dourada. Todas reeditam o confronto entre aliados de Aécio Neves (PSDB) e Dilma.
Prévia 2
Os tucanos esperam vencer nas três primeiras cidades. Em Cachoeira Dourada, o favorito é do PTB, mas aliado do presidenciável tucano, que monitora as novas disputas como parte da estratégia de garantir uma maioria folgada de votos em seu Estado em 2014.
Colegas
Servidores do cerimonial do Planalto foram notificados para testemunhar em processo interno contra Rosemary Noronha, ex-chefe de gabinete da Presidência exonerada em 2012 após ser incluída em investigação da Polícia Federal.
Tartaruga
Na Justiça, as investigações decorrentes da Operação Porto Seguro estão paradas, aguardando a apresentação das defesas administrativas de servidores acusados de beneficiar quadrilha que praticava tráfico de influência em órgãos federais.
Não desistem...
Advogados dos réus do mensalão vão apresentar nos próximos dias novo recurso ao STF. Querem impedir que o presidente da corte, Joaquim Barbosa, seja o relator dos embargos do processo.
... nunca
Segundo o entendimento dos criminalistas, após a publicação do acórdão do mensalão deveria haver uma redistribuição dos embargos, que ficariam, então, com o ministro sucessor de Carlos Ayres Britto, ainda não designado por Dilma.
Tá escrito
O novo recurso dirá que há jurisprudência determinando que embargos não se enquadram nas hipóteses do artigo 75 do regimento interno do STF, que determina os casos em que um ministro eleito presidente mantém a relatoria de processos.
Calendário 1
Fernando Haddad não fará balanço de cem dias à frente da prefeitura de São Paulo, mas pretende marcar a efeméride com uma maratona de audiências sobre o plano de metas.
Calendário 2
Serão 16 no próximo sábado, dia 13, e 16 no dia 20, em todas as subprefeituras. Outros quatro encontros temáticos serão realizados até o final do mês.
Tiroteio
Parece ameaça da Coreia do Norte: rende manchetes, mas nada acontece na prática. A biografia de Lula é um escudo antinuclear.
DO SENADOR LINDBERGH FARIAS (PT-RJ), sobre decisão do Ministério Público de pedir investigação sobre denúncias de Marcos Valério contra o petista.
Contraponto
Novos tempos
Durante lançamento de programa de atendimento de emergências médicas em Curitiba, na semana passada, Beto Richa (PSDB) abriu o discurso pedindo desculpas por sua mulher, que teria de deixar a solenidade:
-Vou dispensar a Fernanda, que está impaciente porque ela precisa fazer o almoço do Rodrigo-disse o governador, se referindo ao filho caçula.
Fazendo referência indireta à emenda constitucional que amplia os direitos trabalhistas das empregadas domésticas, Richa arrematou:
-E não é brincadeira. Estamos sem empregada...
No bojo do pacote pró-consumidor lançado por Dilma Rousseff no mês passado, o governo estuda incluir na lista de produtos com devolução ou troca imediata em caso de defeito, além do telefone celular, o trio fogão, geladeira e televisão. A ideia será discutida com o mercado nesta semana e, se aprovada, constará em decreto previsto para ser publicado no próximo dia 15. Segundo interlocutores da presidente, a lista terá poucos itens, todos imprescindíveis à vida cotidiana.
Operação...
Com a bênção do Planalto, Michel Temer negocia para que o empresário Júnior Batista, um dos donos do grupo J&F, troque o PSB pelo PMDB. Júnior é um dos trunfos de Eduardo Campos no Centro-Oeste, já que deve disputar o governo de Goiás no ano que vem.
... palanque
Temer almoçou na quinta-feira, em São Paulo, com Josué Gomes da Silva, filho do ex-vice-presidente José Alencar. O empresário pode ser candidato ao governo de Minas, se Fernando Pimentel (PT) decidir ficar no ministério e atuar na campanha de Dilma à reeleição.
Vai ter bolo
Depois da incursão pelo eixo Rio-SP, Eduardo Campos irá amanhã ao aniversário de 50 anos de seu líder na Câmara, Beto Albuquerque, em Porto Alegre. Entre os 2.000 convidados esperados estará Carlos Lupi, presidente do PDT, partido cortejado pelo pessebista.
Prévia 1
Quatro cidades de Minas realizam hoje novas eleições para prefeito: Diamantina, São João do Paraíso, Biquinhas e Cachoeira Dourada. Todas reeditam o confronto entre aliados de Aécio Neves (PSDB) e Dilma.
Prévia 2
Os tucanos esperam vencer nas três primeiras cidades. Em Cachoeira Dourada, o favorito é do PTB, mas aliado do presidenciável tucano, que monitora as novas disputas como parte da estratégia de garantir uma maioria folgada de votos em seu Estado em 2014.
Colegas
Servidores do cerimonial do Planalto foram notificados para testemunhar em processo interno contra Rosemary Noronha, ex-chefe de gabinete da Presidência exonerada em 2012 após ser incluída em investigação da Polícia Federal.
Tartaruga
Na Justiça, as investigações decorrentes da Operação Porto Seguro estão paradas, aguardando a apresentação das defesas administrativas de servidores acusados de beneficiar quadrilha que praticava tráfico de influência em órgãos federais.
Não desistem...
Advogados dos réus do mensalão vão apresentar nos próximos dias novo recurso ao STF. Querem impedir que o presidente da corte, Joaquim Barbosa, seja o relator dos embargos do processo.
... nunca
Segundo o entendimento dos criminalistas, após a publicação do acórdão do mensalão deveria haver uma redistribuição dos embargos, que ficariam, então, com o ministro sucessor de Carlos Ayres Britto, ainda não designado por Dilma.
Tá escrito
O novo recurso dirá que há jurisprudência determinando que embargos não se enquadram nas hipóteses do artigo 75 do regimento interno do STF, que determina os casos em que um ministro eleito presidente mantém a relatoria de processos.
Calendário 1
Fernando Haddad não fará balanço de cem dias à frente da prefeitura de São Paulo, mas pretende marcar a efeméride com uma maratona de audiências sobre o plano de metas.
Calendário 2
Serão 16 no próximo sábado, dia 13, e 16 no dia 20, em todas as subprefeituras. Outros quatro encontros temáticos serão realizados até o final do mês.
Tiroteio
Parece ameaça da Coreia do Norte: rende manchetes, mas nada acontece na prática. A biografia de Lula é um escudo antinuclear.
DO SENADOR LINDBERGH FARIAS (PT-RJ), sobre decisão do Ministério Público de pedir investigação sobre denúncias de Marcos Valério contra o petista.
Contraponto
Novos tempos
Durante lançamento de programa de atendimento de emergências médicas em Curitiba, na semana passada, Beto Richa (PSDB) abriu o discurso pedindo desculpas por sua mulher, que teria de deixar a solenidade:
-Vou dispensar a Fernanda, que está impaciente porque ela precisa fazer o almoço do Rodrigo-disse o governador, se referindo ao filho caçula.
Fazendo referência indireta à emenda constitucional que amplia os direitos trabalhistas das empregadas domésticas, Richa arrematou:
-E não é brincadeira. Estamos sem empregada...
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