ESTADÃO - 19/04
Talvez tenha chegado a hora de ensinar os processos que envolvem tarefas
Você já assistiu ao filme Feitiço do Tempo? O protagonista, o homem do clima/tempo de um canal de televisão, vai a uma pequena cidade para fazer uma reportagem sobre uma marmota que faz a previsão do tempo, e realiza esse compromisso profissional visivelmente contrariado. O repórter é prepotente, rabugento, mal-humorado, grosseiro e sem compaixão e empatia em seus relacionamentos. Mas aí, ocorre o inesperado: ele acorda todos os dias no mesmo dia em que chegou à cidade e passa pelos mesmos fatos já vividos que o contrariaram tanto. Inicialmente, ele responde ao feitiço tornando suas características ainda mais fortes: passa de grosso a violento, rouba, mente, tenta acabar com a própria vida, mas nada lhe devolve a possibilidade de superar aquele dia. Até que ele escolhe ser melhor do que já fora naquele dia que não termina nunca. Mas, qual a relação do filme com nossas vidas na atualidade?
Para começar, a sensação de muitas mães e pais de que todo santo dia acordamos no mesmo dia. Sabemos os fatos que nos aguardam; só não sabemos como estará a dinâmica familiar com mudanças de humores de seus integrantes. Vamos pensar em como usar esses dias parecidos, mas não iguais, em favor dos mais novos? Podemos começar com a tão falada autonomia.
Para começo de conversa, não vamos confundir a capacidade de crianças e adolescentes de realizar tarefas sozinhos: isso não é autonomia. Autonomia seria, mais ou menos, a conquista da capacidade de planejar e realizar por conta própria o necessário para permitir que a vida caminhe da melhor forma possível. E como estamos todos interligados – e a pandemia nos mostrou isso – não teremos nunca autonomia completa e absoluta.
Utilizei acima a palavra conquista para que os pais não fiquem com a ideia de que eles precisam dar autonomia aos filhos. São os mais novos que precisam conquistá-la, ou seja, precisam mostrar que já são capazes de se organizar em determinadas situações e se responsabilizar por elas. Quando o filho adolescente deve ter autonomia para viajar só com colegas? Somente após cumprir, mais de uma vez, horários previamente combinados com os pais quando sair na cidade em que mora, quando se mostrar responsável com o uso – ou o não – de bebidas alcoólicas nas festas, quando aceitar a incumbência de atender ao celular sempre que os pais o chamarem. Percebem que, nesse caso, o jovem pode conquistar sua autonomia, e não ganhá-la?
Agora é uma boa hora para dar aos filhos a oportunidade de eles conquistarem autonomia em casa, não é? Principalmente porque a maioria dos pais, independentemente de classe social, sequestraram as melhores possibilidades de os filhos avançarem, na prática, nos processos de autonomia. Por quê?
Porque escolhemos fazer por eles muito daquilo que eles já poderiam – e deveriam – fazer por conta própria. Considerando o processo de desenvolvimento dos mais novos, tudo o que eles já podem fazer sozinhos e alguém faz por eles, acaba por atrapalhar seu crescimento.
Talvez tenha chegado a hora de ensinar a eles os processos que envolvem atividades ou tarefas. Tomar banho, por exemplo, é mais do que tirar a roupa e ir para debaixo do chuveiro: envolve separar a roupa que será vestida após o banho, colocar a roupa usada no local adequado para ser lavada, limpar o banheiro, colocar toalha para secar.
Quando dou a sugestão a mães que levem o filho pra cozinha, invariavelmente escuto: “Nem pensar, deixam a cozinha muito suja.”. Mas limpar faz parte do processo de ir para a cozinha! Temos lembrado desses detalhes preciosos que mostram ao filho que realizar uma atividade agrega uma série de tarefas no conjunto? Que tal aproveitar esse feitiço do tempo em que nos vemos para investir nesses ensinamentos?
É PSICÓLOGA
domingo, abril 19, 2020
Daqui pra frente - MARTHA MEDEIROS
ZERO HORA - 19/08
Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar - não me entregou em mãos por motivos óbvios.
Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar a distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa.
Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo. Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.
Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.
A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.
Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada - e reescrita.
Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar - não me entregou em mãos por motivos óbvios.
Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar a distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa.
Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo. Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.
Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.
A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.
Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada - e reescrita.
O 1º programa de caça ao coronavírus - VINICIUS TORRES FREIRE
Folha de S. Paulo - 19/04
Governo federal vai fazer testes de pessoas sob risco, analisadas por robôs
O governo federal vai começar o primeiro programa de rastreamento de possíveis doentes de Covid-19 casado com testes da doença.
O rastreamento já existe, argumenta Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde. A novidade é que a procura de doentes deve ser associada à realização de até 30 mil testes por dia.
O governo firmou uma parceria público-privada com uma rede de laboratórios para fazer os exames.
Desde o início de abril, existe um sistema em que o governo procura possíveis doentes pelo telefone e oferece consultas automáticas por meio de um aplicativo de celular, por ligações telefônicas ou por um “chat”. É o TeleSUS.
Em um primeiro momento, as pessoas falam com um robô. Se o sistema de inteligência artificial identifica um caso grave, a gente é automaticamente encaminhada para falar com enfermeiros ou médicos.
Se houver risco de síndrome respiratória grave, o sistema monitora o caso sob suspeita a fim de saber se a pessoa procurou ajuda médica —volta a ligar em uma hora. Quem tem sintomas de gripe e coisa similar é monitorado a cada 24 horas ou 48 horas.
Agora, pessoas com mais de 60 anos e de grupos de risco que tiverem “sinais e sintomas de síndrome gripal” identificados pelo TeleSUS serão encaminhadas para fazer o teste de Covid-19. Haverá postos móveis de coleta nas capitais e cidades com 500 mil habitantes, conta Harzheim.
O governo fez uma chamada de emergência para contratar até 3 milhões de exames do tipo RT-PCR, 30 mil por dia. Esse teste, em suma, procura sinais de pedaços de vírus. Não é aquele chamado “teste rápido” (que detecta anticorpos).
Até sexta-feira (17), 5,2 milhões de pessoas haviam sido atendidas no TeleSUS. Cerca de 128 mil procuraram o serviço. A maioria, 4,8 milhões, recebeu ligações do sistema do governo. Outras 297,4 mil estavam sob monitoramento.
Das atendidas, 93% eram saudáveis e 3% eram de risco moderado ou alto. Cerca de 118 mil pessoas tiveram teleconsulta com profissionais de saúde.
Desde o início de abril, o Ministério da Saúde e o IBGE melhoraram e ampliaram os cadastros nacionais de saúde (CadSUS e Sisab), conta Harzheim. O ministério teria dados individuais da população quase inteira, inclusive telefone, tratados de forma anônima, diz o governo.
O governo telefona e recebe ligações pelo número 136, pelo qual é possível fazer uma análise de risco de modo automático, usando teclas de opções. É possível fazer essa espécie de exame, digamos, por um aplicativo de celular (Coronavírus SUS, que pode ser baixado em qualquer loja de apps) e pelo chat do ministério (https://coronavirus.saude.gov.br/telesus).]
Este jornalista testou o serviço e pediu a pessoas com sintomas que fizessem o teste. O sistema pareceu funcionar, pelo menos nessas sete experiências. Atenção: já existe bandido tentando dar golpe se passando por gente da Saúde.
Ignore ligações que não venham do número 136 ou 00136.
Os dados coletados pelas consultas devem alimentar uma central de análise, informações em tese relevantes para localizar o avanço da epidemia e procurar quem teve contatos com pessoas talvez infectadas. Ainda não se sabe como será a utilização prática dessas informações, segundo outro secretário do Ministério da Saúde, que preferiu não se identificar.
Sem testes e rastreamento de doentes e gente sob risco, não haverá modo seguro de relaxar os isolamentos. O Brasil ainda está entre os países que menos testam na América do Sul.
Governo federal vai fazer testes de pessoas sob risco, analisadas por robôs
O governo federal vai começar o primeiro programa de rastreamento de possíveis doentes de Covid-19 casado com testes da doença.
O rastreamento já existe, argumenta Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde. A novidade é que a procura de doentes deve ser associada à realização de até 30 mil testes por dia.
O governo firmou uma parceria público-privada com uma rede de laboratórios para fazer os exames.
Desde o início de abril, existe um sistema em que o governo procura possíveis doentes pelo telefone e oferece consultas automáticas por meio de um aplicativo de celular, por ligações telefônicas ou por um “chat”. É o TeleSUS.
Em um primeiro momento, as pessoas falam com um robô. Se o sistema de inteligência artificial identifica um caso grave, a gente é automaticamente encaminhada para falar com enfermeiros ou médicos.
Se houver risco de síndrome respiratória grave, o sistema monitora o caso sob suspeita a fim de saber se a pessoa procurou ajuda médica —volta a ligar em uma hora. Quem tem sintomas de gripe e coisa similar é monitorado a cada 24 horas ou 48 horas.
Agora, pessoas com mais de 60 anos e de grupos de risco que tiverem “sinais e sintomas de síndrome gripal” identificados pelo TeleSUS serão encaminhadas para fazer o teste de Covid-19. Haverá postos móveis de coleta nas capitais e cidades com 500 mil habitantes, conta Harzheim.
O governo fez uma chamada de emergência para contratar até 3 milhões de exames do tipo RT-PCR, 30 mil por dia. Esse teste, em suma, procura sinais de pedaços de vírus. Não é aquele chamado “teste rápido” (que detecta anticorpos).
Até sexta-feira (17), 5,2 milhões de pessoas haviam sido atendidas no TeleSUS. Cerca de 128 mil procuraram o serviço. A maioria, 4,8 milhões, recebeu ligações do sistema do governo. Outras 297,4 mil estavam sob monitoramento.
Das atendidas, 93% eram saudáveis e 3% eram de risco moderado ou alto. Cerca de 118 mil pessoas tiveram teleconsulta com profissionais de saúde.
Desde o início de abril, o Ministério da Saúde e o IBGE melhoraram e ampliaram os cadastros nacionais de saúde (CadSUS e Sisab), conta Harzheim. O ministério teria dados individuais da população quase inteira, inclusive telefone, tratados de forma anônima, diz o governo.
O governo telefona e recebe ligações pelo número 136, pelo qual é possível fazer uma análise de risco de modo automático, usando teclas de opções. É possível fazer essa espécie de exame, digamos, por um aplicativo de celular (Coronavírus SUS, que pode ser baixado em qualquer loja de apps) e pelo chat do ministério (https://coronavirus.saude.gov.br/telesus).]
Este jornalista testou o serviço e pediu a pessoas com sintomas que fizessem o teste. O sistema pareceu funcionar, pelo menos nessas sete experiências. Atenção: já existe bandido tentando dar golpe se passando por gente da Saúde.
Ignore ligações que não venham do número 136 ou 00136.
Os dados coletados pelas consultas devem alimentar uma central de análise, informações em tese relevantes para localizar o avanço da epidemia e procurar quem teve contatos com pessoas talvez infectadas. Ainda não se sabe como será a utilização prática dessas informações, segundo outro secretário do Ministério da Saúde, que preferiu não se identificar.
Sem testes e rastreamento de doentes e gente sob risco, não haverá modo seguro de relaxar os isolamentos. O Brasil ainda está entre os países que menos testam na América do Sul.
O inimigo somos nós - ALBERT FISHLOW
ESTADÃO - 19/04
Com o novo coronavírus, o nacionalismo parece bater à porta em quase todo lugar
Os acontecimentos dos meses mais recentes ameaçam recriar o mundo. Quem poderia imaginar que um simples coronavírus teria um impacto tão extraordinário. Afinal, era apenas uma gripe, exagerada pelos intelectuais para inibir a nova liderança da direita.
A globalização, fonte de impulso positivo para a economia global durante 75 anos, está agora sob séria ameaça. O comércio internacional foi um mecanismo central da expansão econômica no período do pós-guerra, crescendo a um ritmo médio duas vezes mais rápido que o PIB mundial. A eficiência cada vez melhor é descartada em favor do estímulo local.
Agora, o nacionalismo parece bater à porta, em quase todo lugar. Não existe nenhum grau de cooperação entre os membros do G-20. A imigração é desencorajada. Mesmo dentro dos próprios países, os deslocamentos foram limitados. Estão sob ameaça o processo de crescimento acelerado nos países em desenvolvimento e as infusões de mais capital e tecnologia externos.
Os juros caíram a patamares mínimos, e a política monetária perdeu sua influência. Nem o grande aumento nos déficits fiscais foi capaz de estimular a produção. A falta de confiança disparou. O setor de serviços, importante fonte de expansão, foi dizimado. Os menos qualificados são empurrados para a pobreza, além de uma mortalidade muito mais alta. O que fazer? A receita não é inovadora. Confrontados com essa doença, alguns países fizeram boas escolhas; outros, infelizmente – incluindo os Estados Unidos e o Brasil – decidiram acreditar que estão imunes.
Primeiro vem a necessidade de testes em massa e a distribuição eficiente do essencial para um tratamento eficaz: equipamento de proteção individual para médicos e enfermeiros, como máscaras e aventais, bem como espaço nos hospitais e equipamento adequado, os respiradores, para os casos mais graves. Ligadas a isso temos as restrições ao livre deslocamento de indivíduos: máscaras para o rosto, distanciamento ao fazer compras e, principalmente, ficar em casa. Isso também significa o fechamento de muitas instalações industriais e praticamente todos os serviços.
Um segundo estágio ocorre quando há um declínio regular e contínuo na mortalidade e no número de novos casos. Isso pode permitir mais contato, ainda que limitado, e a abertura de estabelecimentos antes fechados. A participação em larga escala continuará uma raridade. Teremos mais uso das informações particulares de contato para localizar e limitar o ritmo de contágio geograficamente conforme o necessário. Eis aqui um ponto em que os países divergem: alguns usam meios eletrônicos para rastrear indivíduos, enquanto outros exigem participação telefônica.
Um terceiro estágio consiste em um retorno prolongado à normalidade. A vigilância seguirá necessária para evitar um ressurgimento. Ao mesmo tempo, a abundância de pesquisas científicas acabará resultando em uma vacina para evitar que a doença se torne recorrente. No Brasil e nos Estados Unidos, Bolsonaro e Trump desdenharam regularmente de todos os limites a suas decisões e ao seu poder pessoal. Apenas a família conta. E as próximas eleições ocorrem daqui a meses.
Relutantemente, Trump foi obrigado a ceder parte do controle ao dr. Anthony Fauci, apesar de uma preferência por criticar os outros por seus erros imaginários. Assim, em vez de igrejas lotadas na Páscoa, ele aceitou contrariado o conselho dos especialistas e prorrogou a quarentena até o dia 1.º de maio. Do ponto de vista ético, ele não está perturbado pela grande necessidade de conter o desemprego ao custo de muitas mortes adicionais.
Seu ganho temporário de popularidade foi perdido conforme o contágio se espalhou, enquanto a popularidade da maioria dos governadores aumentou substancialmente. Foram eles que obtiveram os suprimentos necessários e os distribuíram de maneira eficiente. Os prefeitos também tiveram seus esforços reconhecidos.
O que segue aparente é a continuidade da divisão política. Desta vez, Trump enfrenta um rival que esperava evitar. Lidou com os governadores democratas com críticas, desdém e a falta da distribuição de suprimentos necessários. Em vez disso, quando disponíveis, esses recursos foram destinados aos seus defensores republicanos, preparados para reabrir tudo rapidamente. Ele fará qualquer coisa para vencer Biden.
No Brasil, Bolsonaro tem se comportado de maneira semelhante. Relutantemente, permitiu que o Congresso lidasse com os grandes gastos necessários para a resposta à disseminação da doença. Ele demitiu o ministro da saúde (Luiz Henrique) Mandetta por causa de seus esforços pessoais na tentativa de obter recursos do Congresso e sua cooperação com os governos estaduais na imposição de limites à livre circulação do público.
Bolsonaro também é tido como figura heroica entre seus partidários, e também defende o uso de remédios contra a malária para aliviar rapidamente os sintomas.
Haverá um imenso déficit no ano que vem e um crescente endividamento líquido e bruto. Será que o Brasil conseguirá retornar a um orçamento mais reduzido já em 2021, como insiste Mansueto Almeida, ou será que a decisão de Bolsonaro de lançar sua campanha terá precedência? A resposta é fácil, mas o problema contínuo é difícil. / TRADUÇÃO AUGUSTO CALIL
ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY.
Com o novo coronavírus, o nacionalismo parece bater à porta em quase todo lugar
Os acontecimentos dos meses mais recentes ameaçam recriar o mundo. Quem poderia imaginar que um simples coronavírus teria um impacto tão extraordinário. Afinal, era apenas uma gripe, exagerada pelos intelectuais para inibir a nova liderança da direita.
A globalização, fonte de impulso positivo para a economia global durante 75 anos, está agora sob séria ameaça. O comércio internacional foi um mecanismo central da expansão econômica no período do pós-guerra, crescendo a um ritmo médio duas vezes mais rápido que o PIB mundial. A eficiência cada vez melhor é descartada em favor do estímulo local.
Agora, o nacionalismo parece bater à porta, em quase todo lugar. Não existe nenhum grau de cooperação entre os membros do G-20. A imigração é desencorajada. Mesmo dentro dos próprios países, os deslocamentos foram limitados. Estão sob ameaça o processo de crescimento acelerado nos países em desenvolvimento e as infusões de mais capital e tecnologia externos.
Os juros caíram a patamares mínimos, e a política monetária perdeu sua influência. Nem o grande aumento nos déficits fiscais foi capaz de estimular a produção. A falta de confiança disparou. O setor de serviços, importante fonte de expansão, foi dizimado. Os menos qualificados são empurrados para a pobreza, além de uma mortalidade muito mais alta. O que fazer? A receita não é inovadora. Confrontados com essa doença, alguns países fizeram boas escolhas; outros, infelizmente – incluindo os Estados Unidos e o Brasil – decidiram acreditar que estão imunes.
Primeiro vem a necessidade de testes em massa e a distribuição eficiente do essencial para um tratamento eficaz: equipamento de proteção individual para médicos e enfermeiros, como máscaras e aventais, bem como espaço nos hospitais e equipamento adequado, os respiradores, para os casos mais graves. Ligadas a isso temos as restrições ao livre deslocamento de indivíduos: máscaras para o rosto, distanciamento ao fazer compras e, principalmente, ficar em casa. Isso também significa o fechamento de muitas instalações industriais e praticamente todos os serviços.
Um segundo estágio ocorre quando há um declínio regular e contínuo na mortalidade e no número de novos casos. Isso pode permitir mais contato, ainda que limitado, e a abertura de estabelecimentos antes fechados. A participação em larga escala continuará uma raridade. Teremos mais uso das informações particulares de contato para localizar e limitar o ritmo de contágio geograficamente conforme o necessário. Eis aqui um ponto em que os países divergem: alguns usam meios eletrônicos para rastrear indivíduos, enquanto outros exigem participação telefônica.
Um terceiro estágio consiste em um retorno prolongado à normalidade. A vigilância seguirá necessária para evitar um ressurgimento. Ao mesmo tempo, a abundância de pesquisas científicas acabará resultando em uma vacina para evitar que a doença se torne recorrente. No Brasil e nos Estados Unidos, Bolsonaro e Trump desdenharam regularmente de todos os limites a suas decisões e ao seu poder pessoal. Apenas a família conta. E as próximas eleições ocorrem daqui a meses.
Relutantemente, Trump foi obrigado a ceder parte do controle ao dr. Anthony Fauci, apesar de uma preferência por criticar os outros por seus erros imaginários. Assim, em vez de igrejas lotadas na Páscoa, ele aceitou contrariado o conselho dos especialistas e prorrogou a quarentena até o dia 1.º de maio. Do ponto de vista ético, ele não está perturbado pela grande necessidade de conter o desemprego ao custo de muitas mortes adicionais.
Seu ganho temporário de popularidade foi perdido conforme o contágio se espalhou, enquanto a popularidade da maioria dos governadores aumentou substancialmente. Foram eles que obtiveram os suprimentos necessários e os distribuíram de maneira eficiente. Os prefeitos também tiveram seus esforços reconhecidos.
O que segue aparente é a continuidade da divisão política. Desta vez, Trump enfrenta um rival que esperava evitar. Lidou com os governadores democratas com críticas, desdém e a falta da distribuição de suprimentos necessários. Em vez disso, quando disponíveis, esses recursos foram destinados aos seus defensores republicanos, preparados para reabrir tudo rapidamente. Ele fará qualquer coisa para vencer Biden.
No Brasil, Bolsonaro tem se comportado de maneira semelhante. Relutantemente, permitiu que o Congresso lidasse com os grandes gastos necessários para a resposta à disseminação da doença. Ele demitiu o ministro da saúde (Luiz Henrique) Mandetta por causa de seus esforços pessoais na tentativa de obter recursos do Congresso e sua cooperação com os governos estaduais na imposição de limites à livre circulação do público.
Bolsonaro também é tido como figura heroica entre seus partidários, e também defende o uso de remédios contra a malária para aliviar rapidamente os sintomas.
Haverá um imenso déficit no ano que vem e um crescente endividamento líquido e bruto. Será que o Brasil conseguirá retornar a um orçamento mais reduzido já em 2021, como insiste Mansueto Almeida, ou será que a decisão de Bolsonaro de lançar sua campanha terá precedência? A resposta é fácil, mas o problema contínuo é difícil. / TRADUÇÃO AUGUSTO CALIL
ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY.
Previsões pós-pandêmicas - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 19/04
Temos a tendência de reagir exageradamente a crises que evoquem ameaça existencial
Leio com doses iguais de interesse e ceticismo as opiniões de filósofos, cientistas políticos e economistas sobre as grandes mudanças sociais que a pandemia deixará como herança. É claro que algumas coisas vão mudar. Como dizia Heráclito, nunca tomamos banho duas vezes no mesmo rio. Mas receio que previsões feitas no olho do furacão carreguem uma probabilidade ainda maior do que o normal de dar com os burros n’água.
Humanos temos a tendência de reagir de forma exagerada a crises que evoquem algum tipo de ameaça existencial. E temos bons motivos para isso. Todos os que caminhamos hoje sobre a Terra somos descendentes diretos daqueles que não brincavam com o perigo, ainda que eventualmente tenham pagado mico por correr da própria sombra. Nossos parentes mais relaxados não deixaram progênie.
Aqui temos de tomar cuidado para não misturar as estações. O fato de termos uma propensão inata ao superdimensionamento não implica necessariamente que haja histeria com a Covid-19, como sugere o presidente. É preciso separar nossos impulsos valorativos daquilo que efetivamente sabemos sobre a doença, que é pouco.
As estimativas para os parâmetros epidemiológicos do vírus variam enormemente. Podemos estar tanto diante de um cenário em que a Covid-19 se mostrará de três a quatro vezes pior do que uma gripe sazonal até algo mais próximo da gripe espanhola. Realmente, não se sabe ainda.
O que já dá para descartar é que estejamos lidando com uma peste negra, que ceifou 1/3 da população da Europa e da Ásia no século 14. Essa, sim, foi uma epidemia que deixou marcas profundas e duradouras na sociedade. Outros surtos produziram efeitos reais, mas bem mais sutis.
A imagem que me vem à cabeça é a dos motoristas apressados. Depois que veem um acidente grave na estrada, costumam respeitar os limites de velocidade, mas o bom comportamento só dura alguns quilômetros.
Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Temos a tendência de reagir exageradamente a crises que evoquem ameaça existencial
Leio com doses iguais de interesse e ceticismo as opiniões de filósofos, cientistas políticos e economistas sobre as grandes mudanças sociais que a pandemia deixará como herança. É claro que algumas coisas vão mudar. Como dizia Heráclito, nunca tomamos banho duas vezes no mesmo rio. Mas receio que previsões feitas no olho do furacão carreguem uma probabilidade ainda maior do que o normal de dar com os burros n’água.
Humanos temos a tendência de reagir de forma exagerada a crises que evoquem algum tipo de ameaça existencial. E temos bons motivos para isso. Todos os que caminhamos hoje sobre a Terra somos descendentes diretos daqueles que não brincavam com o perigo, ainda que eventualmente tenham pagado mico por correr da própria sombra. Nossos parentes mais relaxados não deixaram progênie.
Aqui temos de tomar cuidado para não misturar as estações. O fato de termos uma propensão inata ao superdimensionamento não implica necessariamente que haja histeria com a Covid-19, como sugere o presidente. É preciso separar nossos impulsos valorativos daquilo que efetivamente sabemos sobre a doença, que é pouco.
As estimativas para os parâmetros epidemiológicos do vírus variam enormemente. Podemos estar tanto diante de um cenário em que a Covid-19 se mostrará de três a quatro vezes pior do que uma gripe sazonal até algo mais próximo da gripe espanhola. Realmente, não se sabe ainda.
O que já dá para descartar é que estejamos lidando com uma peste negra, que ceifou 1/3 da população da Europa e da Ásia no século 14. Essa, sim, foi uma epidemia que deixou marcas profundas e duradouras na sociedade. Outros surtos produziram efeitos reais, mas bem mais sutis.
A imagem que me vem à cabeça é a dos motoristas apressados. Depois que veem um acidente grave na estrada, costumam respeitar os limites de velocidade, mas o bom comportamento só dura alguns quilômetros.
Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.
Da tragédia para as novas perguntas - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
ESTADÃO - 19/04
Na crise, crescem os segmentos onde a ciência e a tecnologia foram aplicadas
Este é o terceiro artigo desde o aparecimento do novo coronavírus no Brasil.
Vimos que a pandemia se tornou uma ameaça global e provocou a parada súbita no sistema econômico, o que precipitou uma recessão.
Nesta semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) deu uma ideia da dimensão do problema, que é, sem dúvida, a maior ameaça para a economia mundial desde a 2.ª Guerra. No caso básico, o PIB global cairá 3%, sendo que os números serão muito piores para as economias ricas: -5,9% nos EUA, -7,5% na zona do euro, -5,2% no Japão. China e Índia, os gigantes emergentes crescerão 1,2% e 1,9%, respectivamente. A América Latina vai na mesma direção, encolhendo 5,2%. Um show de horror.
A pergunta é o que acontece no ano que vem, isto é, se a recuperação será rápida ou relativamente lenta. No modelo do FMI, a recuperação será bem significativa, com o PIB global, crescendo 5,8% em 2021.
Tenho grande dificuldade em aceitar essa projeção, uma vez que ela tem como base algumas hipóteses que são heroicas para mim, a começar da ideia de que não haverá uma segunda onda do ataque do vírus. Em segundo lugar, haverá um número enorme de quebra de empresas de todos os tamanhos, em muitos lugares do mundo, especialmente, nos Estados Unidos, onde a dívida corporativa é a maior da história. Em terceiro lugar, o crescimento do desemprego e o grande desarranjo que acontecerá nos orçamentos familiares.
Depois de sairmos de uma experiência tão dramática, colocam-se algumas perguntas a respeito de para onde irá a economia global.
Nesta semana, duas reuniões patrocinadas pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) foram particularmente úteis para ter uma visão do problema. Na segunda-feira, participei de um debate com Demétrio Magnoli e Pedro Malan e na quarta-feira assisti a um belíssimo diálogo entre Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Marcos Azambuja. Desses eventos saem quatro grandes questões:
1 - Para onde irá o conflito China / Estados Unidos: serão competidores, adversários ou inimigos?
2 - O nacionalismo e o protecionismo seguirão prevalecendo sobre o multilateralismo?
3 - As cadeias de produção globais vão ou não se reconstituir?
4 - Como as ameaças globais, clima e aquecimento, pandemias, pobreza e migração, serão tratadas?
Naturalmente, a pergunta que se segue é como deverá o Brasil proceder perante essas questões? Minha percepção é que o governo atual nem sequer compreende qual é o problema, especialmente, no Planalto e no Itamaraty.
A parada súbita pegou o Brasil numa situação pior do que a de muitos países, porque não estávamos crescendo, mas tentando juntar as condições para tanto.
Após certa hesitação inicial, o governo foi desenvolvendo políticas que acabaram por cobrir as áreas necessitadas de atenção. A grande questão agora é a execução desses programas até chegar na ponta final.
Entretanto, mesmo com todos esses gastos a queda da atividade será enorme: o FMI projeta -5,3%, o Banco Mundial -5,0% e a MB -4,7%.
É também quase um consenso que o déficit primário será maior do que R$ 500 bilhões e que a relação dívida/PIB subirá para algo entre 85% e 90%.
O pior é que voltaremos após a emergência sanitária à árdua tarefa de reconstruir as condições de retomada do crescimento, mais pobres e num mundo que será diferente.
O governo Bolsonaro não tem mais chances de mostrar um crescimento relevante. Continuaremos numa trajetória medíocre, que vem desde 2014.
A revolução liberal sonhada pela equipe econômica naufragou totalmente. Ela nunca teve mesmo muita chance com um chefe do executivo iliberal.
Apesar de toda crítica de Paulo Guedes à social-democracia, nossa má distribuição de renda é grande o suficiente para não ser ignorada. Imagine o que estaria acontecendo no País se não tivéssemos o Bolsa Família e o SUS.
Em vez da abertura externa, o que vimos foi uma grande coalizão do Ministério da Economia com a Fiesp.
Poucos setores estão conseguindo enfrentar a crise. Os mais relevantes são o agronegócio e a logística, o sistema financeiro, as telecomunicações (que estão suportando o home office em massa, apesar de sua insuficiência), as empresas com plataformas mais sólidas de e-commerce.
A educação a distância, a telemedicina e outros serviços remotos explodiram. Todos esses segmentos têm um enxame de startups em torno de si.
Ou seja, apenas onde a ciência e a tecnologia foram sistematicamente aplicadas na elevação da produtividade, na criação de competências e na inserção no mundo.
Espero que na penosa reconstrução da capacidade de crescer, esses sejam os segmentos com mais voz, em vez das tradicionais corporações que nos dominam.
Aí, teremos mais chances.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS.
Na crise, crescem os segmentos onde a ciência e a tecnologia foram aplicadas
Este é o terceiro artigo desde o aparecimento do novo coronavírus no Brasil.
Vimos que a pandemia se tornou uma ameaça global e provocou a parada súbita no sistema econômico, o que precipitou uma recessão.
Nesta semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) deu uma ideia da dimensão do problema, que é, sem dúvida, a maior ameaça para a economia mundial desde a 2.ª Guerra. No caso básico, o PIB global cairá 3%, sendo que os números serão muito piores para as economias ricas: -5,9% nos EUA, -7,5% na zona do euro, -5,2% no Japão. China e Índia, os gigantes emergentes crescerão 1,2% e 1,9%, respectivamente. A América Latina vai na mesma direção, encolhendo 5,2%. Um show de horror.
A pergunta é o que acontece no ano que vem, isto é, se a recuperação será rápida ou relativamente lenta. No modelo do FMI, a recuperação será bem significativa, com o PIB global, crescendo 5,8% em 2021.
Tenho grande dificuldade em aceitar essa projeção, uma vez que ela tem como base algumas hipóteses que são heroicas para mim, a começar da ideia de que não haverá uma segunda onda do ataque do vírus. Em segundo lugar, haverá um número enorme de quebra de empresas de todos os tamanhos, em muitos lugares do mundo, especialmente, nos Estados Unidos, onde a dívida corporativa é a maior da história. Em terceiro lugar, o crescimento do desemprego e o grande desarranjo que acontecerá nos orçamentos familiares.
Depois de sairmos de uma experiência tão dramática, colocam-se algumas perguntas a respeito de para onde irá a economia global.
Nesta semana, duas reuniões patrocinadas pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) foram particularmente úteis para ter uma visão do problema. Na segunda-feira, participei de um debate com Demétrio Magnoli e Pedro Malan e na quarta-feira assisti a um belíssimo diálogo entre Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Marcos Azambuja. Desses eventos saem quatro grandes questões:
1 - Para onde irá o conflito China / Estados Unidos: serão competidores, adversários ou inimigos?
2 - O nacionalismo e o protecionismo seguirão prevalecendo sobre o multilateralismo?
3 - As cadeias de produção globais vão ou não se reconstituir?
4 - Como as ameaças globais, clima e aquecimento, pandemias, pobreza e migração, serão tratadas?
Naturalmente, a pergunta que se segue é como deverá o Brasil proceder perante essas questões? Minha percepção é que o governo atual nem sequer compreende qual é o problema, especialmente, no Planalto e no Itamaraty.
A parada súbita pegou o Brasil numa situação pior do que a de muitos países, porque não estávamos crescendo, mas tentando juntar as condições para tanto.
Após certa hesitação inicial, o governo foi desenvolvendo políticas que acabaram por cobrir as áreas necessitadas de atenção. A grande questão agora é a execução desses programas até chegar na ponta final.
Entretanto, mesmo com todos esses gastos a queda da atividade será enorme: o FMI projeta -5,3%, o Banco Mundial -5,0% e a MB -4,7%.
É também quase um consenso que o déficit primário será maior do que R$ 500 bilhões e que a relação dívida/PIB subirá para algo entre 85% e 90%.
O pior é que voltaremos após a emergência sanitária à árdua tarefa de reconstruir as condições de retomada do crescimento, mais pobres e num mundo que será diferente.
O governo Bolsonaro não tem mais chances de mostrar um crescimento relevante. Continuaremos numa trajetória medíocre, que vem desde 2014.
A revolução liberal sonhada pela equipe econômica naufragou totalmente. Ela nunca teve mesmo muita chance com um chefe do executivo iliberal.
Apesar de toda crítica de Paulo Guedes à social-democracia, nossa má distribuição de renda é grande o suficiente para não ser ignorada. Imagine o que estaria acontecendo no País se não tivéssemos o Bolsa Família e o SUS.
Em vez da abertura externa, o que vimos foi uma grande coalizão do Ministério da Economia com a Fiesp.
Poucos setores estão conseguindo enfrentar a crise. Os mais relevantes são o agronegócio e a logística, o sistema financeiro, as telecomunicações (que estão suportando o home office em massa, apesar de sua insuficiência), as empresas com plataformas mais sólidas de e-commerce.
A educação a distância, a telemedicina e outros serviços remotos explodiram. Todos esses segmentos têm um enxame de startups em torno de si.
Ou seja, apenas onde a ciência e a tecnologia foram sistematicamente aplicadas na elevação da produtividade, na criação de competências e na inserção no mundo.
Espero que na penosa reconstrução da capacidade de crescer, esses sejam os segmentos com mais voz, em vez das tradicionais corporações que nos dominam.
Aí, teremos mais chances.
ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS.
Os sonhos dos pais - LEANDRO KARNAL
ESTADÃO - 19/04
Ideia de que possamos controlar todas as variáveis é um delírio de Narciso e nunca de amor
Tomo a liberdade de narrar o que ouvi de um casal em um parque de Orlando, EUA, quando ainda era possível estar lá. Os pais da linda menina Cecília são de Sorocaba. Amorosos, anunciaram que a filha receberia uma grande surpresa em alguns dias. A criança marcou com um X no calendário cada dia que faltava para a revelação do presente. Chegou a data esperada. Os pais declaram felizes: “Filha, você vai para a Disney!”. A menina pergunta com algum desapontamento: “O que é Disney?”.
Nos parques eu vi centenas de carrinhos de bebês. Muitos gêmeos (e alguns trigêmeos) que indicavam, talvez, um recurso maior a tratamentos de fertilidade. Para quem nunca foi, existem áreas (grandes) de estacionamento de carrinhos. O que uma criança de 1 ou 2 anos aproveitaria daquele modelo de viagem? Claro, o mesmo pode ser perguntado das quase sempre assustadoras festas de um ano de vida: um bebê aterrorizado, irritado com o barulho e louco para defecar com tranquilidade. Festas de 1 ano não comemoram a vida que veio ao mundo, exibem o orgulho de quem a gerou. Talvez ocorra algo similar com grandes parques de diversão.
Meu sobrinho tem 9 anos e não conhecia Mickey, Pateta, Donald ou Pluto. Os ídolos infantis eram mais estáveis antes. Minha mãe viu, na infância, Branca de Neve no cinema. Eu vi na televisão. Hoje, Harry Potter é indicativo, em geral, de alguém entre 20 e 30 anos, que era pequeno no início deste século. O castelo da Cinderela deve ser lido de muitas formas por faixas etárias distintas. Em Frankfurt, fui ao museu sobre a obra de Hoffmann, fascinado pelo Struwwelpeter (algo como Pedro Escabelado) que minha vó Edyth contava. Hoje, os ídolos são muito geracionais.
Vi muitos adolescentes e adultos felizes na Flórida. As crianças pequenas dormiam, ou choravam. A corajosa Cecília desafiou a montanha-russa chamada Everest, com narrativas teatrais sobre o abominável homem das neves e muita velocidade. O estômago sobe ao esôfago e o esfíncter ameaça rebelião generalizada. Grita-se para interpretar alguma dignidade. A pequena enfrentou bem a provação. Teria gostado?
Permito-me ampliar o raciocínio como professor. O sonho das crianças coincide com o sonho/desejo de pais e de mestres? Em qual medida devemos transmitir nossos anseios e nossas inevitáveis frustrações? Aqui, entra a mais terrível contradição: ter filhos e educar implica uma ligação muito especial, simbiótica por vezes. Você sente a dor deles, chora e ri em uníssono e, com sorte, a recíproca é verdadeira. Porém, educar é um gesto de individuação e não de simbiose. Seus valores existem. Eles serão testados, julgados e criticados, adotados e abandonados em um sistema de autonomia dos filhos. Por doloroso que seja, a rebeldia é sintoma de humanidade.
Dolorosa e fundamental conclusão: educar é preparar para a ausência, para o afastamento, para a liberdade. Educar é amar muito, ser ao lado, ser sempre e nunca ser no lugar de quem se ama. Quando seu filho estará apto a distinguir de forma clara o bem do mal? Tal como você: nunca. De forma clara e absoluta, jamais. Morreremos errando. Nunca seremos perfeitos. Tentando ajudar, cometemos erros permanentes. Só existe uma maneira de educar: deixando agir. Eu sei: é muito angustiante supor que alguém que amamos possa deslizar na vida. Fere a alma e o narciso. Separar o que é preocupação genuína de tentativa de controle é algo tão complicado que parece exceder nosso sentido humano.
Não imagine que eu esteja recomendando algo como afastamento. Amar implica proximidade. Conselhos podem e devem ser dados. Há coisas que excedem até a ideia de liberdade, como dar uma vacina. A criança esperneia, grita e chora? Sem problema, a saúde é mais importante do que um exercício aeróbio de birra. Sempre ressaltei: regras circunscrevem o vazio, normas colocam moldura no caos. Sem elas, claras e racionais, o ser humano se perde por completo. Não estou aqui defendendo o vazio, todavia o reconhecimento de que o processo educacional é crescentemente libertador e que se ama alguém para que essa pessoa saia do ninho um dia, voe sozinha, seja feliz longe das luzes e sombras familiares. Princípios claros (e sanções plausíveis) são fundamentais. Até hoje corto as unhas regularmente, lembrando do Struwwelpeter que citei. Um homem como eu, a caminho das bodas de diamante com a vida, dialoga com o menino que ouvia o conto assustado. Valores ficam, porém a ideia de que possamos controlar todas as variáveis é um delírio de narciso e nunca de amor.
Para muitos religiosos, Deus criou o homem e não retirou dele o livre-arbítrio. O Criador permitiu que errássemos, dando-nos um privilégio único entre as criaturas. Somos livres, irremediavelmente livres, condenados à liberdade. Como ser um pai perfeito e uma mãe perfeita? Talvez, não buscando o ideal, porém o real. Acima de tudo, jamais tentando ser mais do que Deus. Com sorte, filhos e alunos sobreviverão a nós e, talvez, um dia, até desejem conhecer a Disney. Boa semana para todos.
Ideia de que possamos controlar todas as variáveis é um delírio de Narciso e nunca de amor
Tomo a liberdade de narrar o que ouvi de um casal em um parque de Orlando, EUA, quando ainda era possível estar lá. Os pais da linda menina Cecília são de Sorocaba. Amorosos, anunciaram que a filha receberia uma grande surpresa em alguns dias. A criança marcou com um X no calendário cada dia que faltava para a revelação do presente. Chegou a data esperada. Os pais declaram felizes: “Filha, você vai para a Disney!”. A menina pergunta com algum desapontamento: “O que é Disney?”.
Nos parques eu vi centenas de carrinhos de bebês. Muitos gêmeos (e alguns trigêmeos) que indicavam, talvez, um recurso maior a tratamentos de fertilidade. Para quem nunca foi, existem áreas (grandes) de estacionamento de carrinhos. O que uma criança de 1 ou 2 anos aproveitaria daquele modelo de viagem? Claro, o mesmo pode ser perguntado das quase sempre assustadoras festas de um ano de vida: um bebê aterrorizado, irritado com o barulho e louco para defecar com tranquilidade. Festas de 1 ano não comemoram a vida que veio ao mundo, exibem o orgulho de quem a gerou. Talvez ocorra algo similar com grandes parques de diversão.
Meu sobrinho tem 9 anos e não conhecia Mickey, Pateta, Donald ou Pluto. Os ídolos infantis eram mais estáveis antes. Minha mãe viu, na infância, Branca de Neve no cinema. Eu vi na televisão. Hoje, Harry Potter é indicativo, em geral, de alguém entre 20 e 30 anos, que era pequeno no início deste século. O castelo da Cinderela deve ser lido de muitas formas por faixas etárias distintas. Em Frankfurt, fui ao museu sobre a obra de Hoffmann, fascinado pelo Struwwelpeter (algo como Pedro Escabelado) que minha vó Edyth contava. Hoje, os ídolos são muito geracionais.
Vi muitos adolescentes e adultos felizes na Flórida. As crianças pequenas dormiam, ou choravam. A corajosa Cecília desafiou a montanha-russa chamada Everest, com narrativas teatrais sobre o abominável homem das neves e muita velocidade. O estômago sobe ao esôfago e o esfíncter ameaça rebelião generalizada. Grita-se para interpretar alguma dignidade. A pequena enfrentou bem a provação. Teria gostado?
Permito-me ampliar o raciocínio como professor. O sonho das crianças coincide com o sonho/desejo de pais e de mestres? Em qual medida devemos transmitir nossos anseios e nossas inevitáveis frustrações? Aqui, entra a mais terrível contradição: ter filhos e educar implica uma ligação muito especial, simbiótica por vezes. Você sente a dor deles, chora e ri em uníssono e, com sorte, a recíproca é verdadeira. Porém, educar é um gesto de individuação e não de simbiose. Seus valores existem. Eles serão testados, julgados e criticados, adotados e abandonados em um sistema de autonomia dos filhos. Por doloroso que seja, a rebeldia é sintoma de humanidade.
Dolorosa e fundamental conclusão: educar é preparar para a ausência, para o afastamento, para a liberdade. Educar é amar muito, ser ao lado, ser sempre e nunca ser no lugar de quem se ama. Quando seu filho estará apto a distinguir de forma clara o bem do mal? Tal como você: nunca. De forma clara e absoluta, jamais. Morreremos errando. Nunca seremos perfeitos. Tentando ajudar, cometemos erros permanentes. Só existe uma maneira de educar: deixando agir. Eu sei: é muito angustiante supor que alguém que amamos possa deslizar na vida. Fere a alma e o narciso. Separar o que é preocupação genuína de tentativa de controle é algo tão complicado que parece exceder nosso sentido humano.
Não imagine que eu esteja recomendando algo como afastamento. Amar implica proximidade. Conselhos podem e devem ser dados. Há coisas que excedem até a ideia de liberdade, como dar uma vacina. A criança esperneia, grita e chora? Sem problema, a saúde é mais importante do que um exercício aeróbio de birra. Sempre ressaltei: regras circunscrevem o vazio, normas colocam moldura no caos. Sem elas, claras e racionais, o ser humano se perde por completo. Não estou aqui defendendo o vazio, todavia o reconhecimento de que o processo educacional é crescentemente libertador e que se ama alguém para que essa pessoa saia do ninho um dia, voe sozinha, seja feliz longe das luzes e sombras familiares. Princípios claros (e sanções plausíveis) são fundamentais. Até hoje corto as unhas regularmente, lembrando do Struwwelpeter que citei. Um homem como eu, a caminho das bodas de diamante com a vida, dialoga com o menino que ouvia o conto assustado. Valores ficam, porém a ideia de que possamos controlar todas as variáveis é um delírio de narciso e nunca de amor.
Para muitos religiosos, Deus criou o homem e não retirou dele o livre-arbítrio. O Criador permitiu que errássemos, dando-nos um privilégio único entre as criaturas. Somos livres, irremediavelmente livres, condenados à liberdade. Como ser um pai perfeito e uma mãe perfeita? Talvez, não buscando o ideal, porém o real. Acima de tudo, jamais tentando ser mais do que Deus. Com sorte, filhos e alunos sobreviverão a nós e, talvez, um dia, até desejem conhecer a Disney. Boa semana para todos.
Longo inverno - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 19/04
É bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta
A maior diferença da crise atual em relação à crise das hipotecas norte-americana, também conhecida por grande crise global (GCG) e que explodiu em setembro de 2008, é que a atual se iniciou no setor real da economia, enquanto a fonte da CGC foi o forte desequilíbrio nos bancos. Aquela foi uma crise financeira, fruto de regulação deficiente.
Assim, na crise atual os mercados financeiros foram muito menos atingidos do que em 2008. Por exemplo, a queda da Bolsa norte-americana entre janeiro de 2008 e março de 2009 foi de 52%. No evento atual, entre 12 de dezembro e 23 de março, a queda foi de 34%. Por aqui, a Bovespa caiu 60% em 2008, ante 47% no atual episódio.
Se olharmos o impacto sobre as taxas de juros, tanto no mercado de empréstimos entre bancos, também chamado de mercado de moedas, quanto no de títulos de dívida emitidos por empresas com pior qualidade de crédito, a alta no atual episódio foi muito menor do que na crise financeira global.
Apesar de o impacto no setor financeiro ter sido muito menor, aparentemente o impacto na economia real da atual crise é, na melhor das hipóteses, equivalente ao da crise anterior.
Na semana passada, o FMI divulgou suas novas projeções de crescimento econômico. A economia mundial deve recuar 3%, uma piora de cenário, em comparação ao que prevalecia antes do agravamento da crise, de 6,3 pontos percentuais.
No biênio 2008-2009 —lembremos que a crise estourou no fim de 2008—, o crescimento, com relação à tendência anterior, reduziu-se em 7 pontos percentuais.
Adicionalmente, hoje sabemos que o crescimento da economia no período logo anterior à crise de 2008 era insustentável. A crise, de certa forma, resultou dos desequilíbrios produzidos na década anterior.
Mesmo o cenário básico de FMI, de retração da economia mundial de 3% em 2020, com crescimento de 5,8% em 2021, pode ser muito otimista. Supõe que haverá devolução de boa parcela da perda do ano anterior.
Mas é bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta. De fato, o próprio Fundo considerou outros três cenários, todos eles piores do que o cenário básico. Em todos eles a taxa de crescimento da economia ainda seria negativa em 2021.
Com a informação que temos agora, é muito difícil saber como será o desempenho da economia no período posterior à saída da política extrema de distanciamento social. Em algumas semanas, teremos as projeções para o desempenho da China no segundo trimestre, que poderá dar uma ideia.
Por aqui o Congresso Nacional tem trabalhado. A Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados e municípios. A ideia foi promover um seguro por seis meses em razão da queda de arrecadação de ICMS e de ISS que já ocorre.
Devido ao nosso federalismo truncado —os entes subnacionais não são integralmente responsáveis pelos seus atos, e, portanto, não são autorizados a contrair dívidas—, a União cobrirá parte das perdas.
Pela nova legislação, a União assegurará a receita nominal observada em 2019. O grande risco com o seguro é os estados serem estimulados a conceder desonerações, dado que a compensação será de acordo com a receita observada.
O projeto aprovado na Câmara está na direção correta, mas há espaço para aperfeiçoamento no Senado.
O professor da Universidade de Brasília José Luis Oreiro fez inúmeras críticas à minha coluna anterior em seu blog. Reagi a elas no Blog do Ibre.
Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
É bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta
A maior diferença da crise atual em relação à crise das hipotecas norte-americana, também conhecida por grande crise global (GCG) e que explodiu em setembro de 2008, é que a atual se iniciou no setor real da economia, enquanto a fonte da CGC foi o forte desequilíbrio nos bancos. Aquela foi uma crise financeira, fruto de regulação deficiente.
Assim, na crise atual os mercados financeiros foram muito menos atingidos do que em 2008. Por exemplo, a queda da Bolsa norte-americana entre janeiro de 2008 e março de 2009 foi de 52%. No evento atual, entre 12 de dezembro e 23 de março, a queda foi de 34%. Por aqui, a Bovespa caiu 60% em 2008, ante 47% no atual episódio.
Se olharmos o impacto sobre as taxas de juros, tanto no mercado de empréstimos entre bancos, também chamado de mercado de moedas, quanto no de títulos de dívida emitidos por empresas com pior qualidade de crédito, a alta no atual episódio foi muito menor do que na crise financeira global.
Apesar de o impacto no setor financeiro ter sido muito menor, aparentemente o impacto na economia real da atual crise é, na melhor das hipóteses, equivalente ao da crise anterior.
Na semana passada, o FMI divulgou suas novas projeções de crescimento econômico. A economia mundial deve recuar 3%, uma piora de cenário, em comparação ao que prevalecia antes do agravamento da crise, de 6,3 pontos percentuais.
No biênio 2008-2009 —lembremos que a crise estourou no fim de 2008—, o crescimento, com relação à tendência anterior, reduziu-se em 7 pontos percentuais.
Adicionalmente, hoje sabemos que o crescimento da economia no período logo anterior à crise de 2008 era insustentável. A crise, de certa forma, resultou dos desequilíbrios produzidos na década anterior.
Mesmo o cenário básico de FMI, de retração da economia mundial de 3% em 2020, com crescimento de 5,8% em 2021, pode ser muito otimista. Supõe que haverá devolução de boa parcela da perda do ano anterior.
Mas é bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta. De fato, o próprio Fundo considerou outros três cenários, todos eles piores do que o cenário básico. Em todos eles a taxa de crescimento da economia ainda seria negativa em 2021.
Com a informação que temos agora, é muito difícil saber como será o desempenho da economia no período posterior à saída da política extrema de distanciamento social. Em algumas semanas, teremos as projeções para o desempenho da China no segundo trimestre, que poderá dar uma ideia.
Por aqui o Congresso Nacional tem trabalhado. A Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados e municípios. A ideia foi promover um seguro por seis meses em razão da queda de arrecadação de ICMS e de ISS que já ocorre.
Devido ao nosso federalismo truncado —os entes subnacionais não são integralmente responsáveis pelos seus atos, e, portanto, não são autorizados a contrair dívidas—, a União cobrirá parte das perdas.
Pela nova legislação, a União assegurará a receita nominal observada em 2019. O grande risco com o seguro é os estados serem estimulados a conceder desonerações, dado que a compensação será de acordo com a receita observada.
O projeto aprovado na Câmara está na direção correta, mas há espaço para aperfeiçoamento no Senado.
O professor da Universidade de Brasília José Luis Oreiro fez inúmeras críticas à minha coluna anterior em seu blog. Reagi a elas no Blog do Ibre.
Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Mandetta fritou Bolsonaro - ELIO GASPARI
O Globo/ Folha de SP - 19/04
Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi o contrário
Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi Luiz Henrique Mandetta quem fritou Jair Bolsonaro. Ele saiu maior e o capitão ficou menor. Tendo-se colocado numa posição teatral que ofendeu a ciência e a opinião pública, o presidente abandonou a piada da “gripezinha”. Boa notícia.
Bolsonaro fritou-se porque quis. Conduziu-se de maneira leviana e criou um antagonismo desnecessário com Mandetta. Em nenhum país a discussão da calibragem do isolamento, bem como a das virtudes da cloroquina levaram a fricções como as que Bolsonaro produziu. (Se Donald Trump pudesse, teria cortado a língua do doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas desde 1984, mas preferiu calibrar seus próprios delírios.)
Pode-se atribuir as falas da “gripezinha” a um estilo próprio de Bolsonaro, mas no domingo passado, quando ele disse que “parece que o vírus começa a ir embora”, lidou com fatos. Até aquele dia haviam morrido 1.233 pessoas, o contágio estava em expansão e como se esperava, poderia bater a marca dos 2 mil óbitos.
Bolsonaro vive numa realidade paralela. Isso não é de hoje. Em maio do ano passado ele disse o seguinte: “Brevemente, estará sendo apresentado aos senhores um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão é de termos dinheiro em caixa maior do que a reforma previdenciária em dez anos”. Cadê? (Provavelmente, era a ideia de se legalizar o jogo.)
Em fevereiro, Bolsonaro anunciou que iria aos Estados Unidos, onde visitaria uma empresa de militares que lhe apresentariam uma “transmissão de energia elétrica sem meios físicos”: “Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta”. Não era real, era conversa de maluco, e Bolsonaro foi aos Estados Unidos, mas não visitou a tal empresa. De lá, sua comitiva trouxe apenas 25 infectados pelo coronavírus.
Até a semana passada Bolsonaro cultivou a ideia da “gripezinha”. Pode ser que tenha moderado sua fé médica, mas quando a pandemia estiver controlada ele terá no colo uma inédita recessão. Antes do vírus, ele administrava um pibinho com 12 milhões de desempregados. Depois dele, seu “Posto Ipiranga” está tonto, à frente de um superministério travado, encrencando com o Congresso.
Luiz Henrique Mandetta era uma solução e Bolsonaro resolveu fritá-lo. Fritou-se. Não se pode saber o que fará Nelson Teich, o novo ministro da Saúde. Ele sabe que Rivotril não resolve, assumiu distribuindo platitudes e revelou que saúde e economia são complementares. (Em outra ocasião, usou a ciência econômica para justificar o descarte dos velhos doentes.)
Teich defendeu um amplo programa de testes para identificar pessoas contaminadas ou imunes ao vírus. Amanhã o doutor poderá telefonar ao seu colega Paulo Guedes para saber o que aconteceu com a proposta de um empresário inglês que há uma semana lhe ofereceu 40 milhões de kits de testes por mês.
Mourão lembrou uma regra do polo
Quando o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o ministro Luiz Henrique Mandetta “cruzou a linha da bola” com sua entrevista de domingo, antecipou que ele seria demitido. O general explicou: “Cruzar a linha da bola é uma falta grave no polo. Nenhum cavaleiro pode cruzar na frente da linha da bola”. De fato, o regulamento desse esporte diz que “se um jogador comete uma falta grave, o juiz poderá aplicar o cartão amarelo ou optar pela expulsão de forma direta, aplicando o cartão vermelho.”
Chega a ser pitoresco que no país do futebol, com suas regras elegantes, o general tenha recorrido a um exemplo desse excêntrico esporte. Mourão é um oficial da cavalaria e, no Rio, montava no Centro Hípico do Exército.Apesar de as tropas Aliadas terem surpreendido os alemães em 1944 porque desembarcaram na Normandia sem trazer cavalos (só veículos), no Brasil os regimentos de cavalaria só adotaram o transporte mecanizado nos anos 1960. “A tradição hipomóvel” foi mantida, contou Mourão ao repórter Fabio Victor, que o acompanhou numa competição com seu animal, “Ídolo do Rincão”. No Centro Hípico havia cinco banheiros-vestiários, o dos generais, o dos oficiais superiores, o dos sargentos e tenentes, o dos soldados e cabos, e o dos paisanos.
Em Brasília, Mourão cavalga “Rincão” no 1º Regimento de Cavalaria de Guarda. No século passado, lá montava o general-presidente João Baptista Figueiredo. Ele contava que não foi para a Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial porque não tinha o curso de Motomecanização.
Para paisanos, cavalo é coisa cara. Um quadrúpede qualquer pode custar R$ 2 mil mensais. Um cavalo de polo, por baixo, custa entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.
O hipismo é uma tradição militar em quase todo o mundo. O general americano George Patton jogava polo, montava um magnífico cavalo branco, mas celebrizou-se com seus tanques, desembarcando na Sicília, até entrar na Alemanha, atravessando o Rio Reno, no qual urinou.
De uma serpente:
“Se o Getulio Vargas tivesse feito com a Força Expedicionária Brasileira o que Bolsonaro faz com os profissionais de saúde, as tropas alemãs teriam desfilado na Avenida Rio Branco.”
Os tablets de Moro
Como os relógios parados, que estão certos duas vezes por dia, a turma do ódio bolsonarista acertou quando reclamou por que o Ministério da Justiça compraria 600 tablets para que presos tivessem visitas virtuais de parentes.
A ideia seria aceitável se as pessoas isoladas em UTIs tivessem o mesmo amparo. Afinal, há brasileiros hospitalizados porque acreditaram que a Covid seria uma “gripezinha”, enquanto os presos ofenderam as leis.
Pernil Brasil
Seja qual for a crise, a turma do andar de cima aproveita o barulho para tirar mais uma fatia do grande pernil em que se transforma a Bolsa da Viúva.
Os produtores de etanol pediram ao governo que estude uma redução nos seus impostos por causa da retração do consumo do combustível.
Tudo bem, mas os produtores de etanol levaram uma pancada do mercado antes da chegada do vírus ao Brasil, quando o preço do barril do petróleo caiu.
Bolsonaro e Brás Cubas
Um observador da conduta de Bolsonaro sugere que ele dê uma olhada nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Brás havia sido deputado e criado um emplastro que lhe “garantiria a glória entre os homens”. Ele seguia os ensinamentos de Quincas Borba, um filósofo doido.
O “defunto-autor” de Machado resfriou-se e “no outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou.”
O delírio de Brás Cubas matou-o, mas não matou os outros.
Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi o contrário
Até a semana passada presidentes fritavam ministros. Desta vez, foi Luiz Henrique Mandetta quem fritou Jair Bolsonaro. Ele saiu maior e o capitão ficou menor. Tendo-se colocado numa posição teatral que ofendeu a ciência e a opinião pública, o presidente abandonou a piada da “gripezinha”. Boa notícia.
Bolsonaro fritou-se porque quis. Conduziu-se de maneira leviana e criou um antagonismo desnecessário com Mandetta. Em nenhum país a discussão da calibragem do isolamento, bem como a das virtudes da cloroquina levaram a fricções como as que Bolsonaro produziu. (Se Donald Trump pudesse, teria cortado a língua do doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas desde 1984, mas preferiu calibrar seus próprios delírios.)
Pode-se atribuir as falas da “gripezinha” a um estilo próprio de Bolsonaro, mas no domingo passado, quando ele disse que “parece que o vírus começa a ir embora”, lidou com fatos. Até aquele dia haviam morrido 1.233 pessoas, o contágio estava em expansão e como se esperava, poderia bater a marca dos 2 mil óbitos.
Bolsonaro vive numa realidade paralela. Isso não é de hoje. Em maio do ano passado ele disse o seguinte: “Brevemente, estará sendo apresentado aos senhores um projeto que, com todo o respeito ao Paulo Guedes, a previsão é de termos dinheiro em caixa maior do que a reforma previdenciária em dez anos”. Cadê? (Provavelmente, era a ideia de se legalizar o jogo.)
Em fevereiro, Bolsonaro anunciou que iria aos Estados Unidos, onde visitaria uma empresa de militares que lhe apresentariam uma “transmissão de energia elétrica sem meios físicos”: “Se for real, de acordo com a distância, que maravilha! Vamos resolver o problema de energia elétrica de Roraima passando por cima da floresta”. Não era real, era conversa de maluco, e Bolsonaro foi aos Estados Unidos, mas não visitou a tal empresa. De lá, sua comitiva trouxe apenas 25 infectados pelo coronavírus.
Até a semana passada Bolsonaro cultivou a ideia da “gripezinha”. Pode ser que tenha moderado sua fé médica, mas quando a pandemia estiver controlada ele terá no colo uma inédita recessão. Antes do vírus, ele administrava um pibinho com 12 milhões de desempregados. Depois dele, seu “Posto Ipiranga” está tonto, à frente de um superministério travado, encrencando com o Congresso.
Luiz Henrique Mandetta era uma solução e Bolsonaro resolveu fritá-lo. Fritou-se. Não se pode saber o que fará Nelson Teich, o novo ministro da Saúde. Ele sabe que Rivotril não resolve, assumiu distribuindo platitudes e revelou que saúde e economia são complementares. (Em outra ocasião, usou a ciência econômica para justificar o descarte dos velhos doentes.)
Teich defendeu um amplo programa de testes para identificar pessoas contaminadas ou imunes ao vírus. Amanhã o doutor poderá telefonar ao seu colega Paulo Guedes para saber o que aconteceu com a proposta de um empresário inglês que há uma semana lhe ofereceu 40 milhões de kits de testes por mês.
Mourão lembrou uma regra do polo
Quando o vice-presidente Hamilton Mourão disse que o ministro Luiz Henrique Mandetta “cruzou a linha da bola” com sua entrevista de domingo, antecipou que ele seria demitido. O general explicou: “Cruzar a linha da bola é uma falta grave no polo. Nenhum cavaleiro pode cruzar na frente da linha da bola”. De fato, o regulamento desse esporte diz que “se um jogador comete uma falta grave, o juiz poderá aplicar o cartão amarelo ou optar pela expulsão de forma direta, aplicando o cartão vermelho.”
Chega a ser pitoresco que no país do futebol, com suas regras elegantes, o general tenha recorrido a um exemplo desse excêntrico esporte. Mourão é um oficial da cavalaria e, no Rio, montava no Centro Hípico do Exército.Apesar de as tropas Aliadas terem surpreendido os alemães em 1944 porque desembarcaram na Normandia sem trazer cavalos (só veículos), no Brasil os regimentos de cavalaria só adotaram o transporte mecanizado nos anos 1960. “A tradição hipomóvel” foi mantida, contou Mourão ao repórter Fabio Victor, que o acompanhou numa competição com seu animal, “Ídolo do Rincão”. No Centro Hípico havia cinco banheiros-vestiários, o dos generais, o dos oficiais superiores, o dos sargentos e tenentes, o dos soldados e cabos, e o dos paisanos.
Em Brasília, Mourão cavalga “Rincão” no 1º Regimento de Cavalaria de Guarda. No século passado, lá montava o general-presidente João Baptista Figueiredo. Ele contava que não foi para a Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial porque não tinha o curso de Motomecanização.
Para paisanos, cavalo é coisa cara. Um quadrúpede qualquer pode custar R$ 2 mil mensais. Um cavalo de polo, por baixo, custa entre R$ 5 mil e R$ 10 mil.
O hipismo é uma tradição militar em quase todo o mundo. O general americano George Patton jogava polo, montava um magnífico cavalo branco, mas celebrizou-se com seus tanques, desembarcando na Sicília, até entrar na Alemanha, atravessando o Rio Reno, no qual urinou.
De uma serpente:
“Se o Getulio Vargas tivesse feito com a Força Expedicionária Brasileira o que Bolsonaro faz com os profissionais de saúde, as tropas alemãs teriam desfilado na Avenida Rio Branco.”
Os tablets de Moro
Como os relógios parados, que estão certos duas vezes por dia, a turma do ódio bolsonarista acertou quando reclamou por que o Ministério da Justiça compraria 600 tablets para que presos tivessem visitas virtuais de parentes.
A ideia seria aceitável se as pessoas isoladas em UTIs tivessem o mesmo amparo. Afinal, há brasileiros hospitalizados porque acreditaram que a Covid seria uma “gripezinha”, enquanto os presos ofenderam as leis.
Pernil Brasil
Seja qual for a crise, a turma do andar de cima aproveita o barulho para tirar mais uma fatia do grande pernil em que se transforma a Bolsa da Viúva.
Os produtores de etanol pediram ao governo que estude uma redução nos seus impostos por causa da retração do consumo do combustível.
Tudo bem, mas os produtores de etanol levaram uma pancada do mercado antes da chegada do vírus ao Brasil, quando o preço do barril do petróleo caiu.
Bolsonaro e Brás Cubas
Um observador da conduta de Bolsonaro sugere que ele dê uma olhada nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Brás havia sido deputado e criado um emplastro que lhe “garantiria a glória entre os homens”. Ele seguia os ensinamentos de Quincas Borba, um filósofo doido.
O “defunto-autor” de Machado resfriou-se e “no outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou.”
O delírio de Brás Cubas matou-o, mas não matou os outros.
De caminhões a aviões - ELIANE CANTANHÊDE
ESTADÃO - 19/04
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores. Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199 mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11 de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia – por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia, que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando.
E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA, sossegar no resto das Américas e desabar na África? Não haverá caminhões do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total” com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o “risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse: “Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso barrariam. Oremos!
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores. Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199 mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11 de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia – por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia, que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando.
E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA, sossegar no resto das Américas e desabar na África? Não haverá caminhões do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total” com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o “risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse: “Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso barrariam. Oremos!
Bolsonaro contra todos - MERVAL PEREIRA
O Globo - 19/04
Confrontando os demais poderes da República, Bolsonaro insiste na retomada da economia dizendo estar ciente de que corre um risco, caso a pandemia de Covid-19 se agrave. Mas o risco é de todos os brasileiros
O presidente Bolsonaro, insistindo em politizar o combate à Covid-19, continua defendendo a retomada da economia sem base em dados reais, e admite candidamente que se a situação piorar ele será responsabilizado: “É um risco que corro”, disse, como se fosse um herói correndo riscos para salvar o emprego dos mais pobres.
Mas o risco não é dele, não, o risco é nosso, de todo o povo brasileiro, especialmente daqueles mais pobres que supostamente estaria defendendo. Na sua cruzada contra os governadores e os demais poderes da República, Bolsonaro acusa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de querer derrubá-lo em conluio com o Supremo Tribunal Federal.
Já havia se lamentado publicamente pelo fato de o STF ter dado aos governadores e prefeitos autonomia para definir regras de defesa sanitária em seus estados e municípios. Num populismo descarado, critica as medidas repressivas dos governos, para fazer com que os recalcitrantes cumpram o isolamento social ficando em casa.
As autoridades têm o poder, dado pela Constituição, de tomar medidas legais contra aqueles que põem em risco a vida da coletividade, tanto que o Código Penal considera crime “infringir determinação do poder publico destinada a impedir a introdução ou propagação de doenças contagiosas”.
Embora ressalvasse que não estava querendo incentivar a desobediência civil, incentivou na prática ao dizer que “prisões ilegais devem ser rechaçadas”. Talvez tenha sido um mero erro de português, mas não há maneira de rechaçar uma ação repressora sem um enfrentamento.
Bolsonaro posa de defensor dos direitos individuais, logo ele, que defende a tortura e a ditadura, vem agora falar em direito de ir e vir, em liberdades individuais. Não passa de uma jogada política arriscadíssima dele, que resolveu acelerar o processo de confronto com os outros poderes da República.
Claramente, sente a necessidade de se impor diante dos outros poderes, e não se conforma com a ideia de que existem limites numa democracia. A briga com o Congresso já é muito longa, mas na quinta-feira, em entrevista à CNN, sugeriu que o deputado Rodrigo Maia queria uma negociação na base da corrupção, e que o Congresso só o deixa trabalhar se fizer concessões não republicanas.
Com isso, joga o povo contra o Congresso e os governadores, numa disputa política que pode nos levar a um beco sem saída. Na democracia, não há como governar contra todas as instituições e todos os poderes. Creio que o espírito reformista continuará prevalecendo, mas o caminho que Bolsonaro está escolhendo para negociar com o Congresso indica mais um erro de estratégia.
Ele está chamando ao Planalto líderes do centrão, oferecendo cargos em troca de apoio parlamentar. Dificilmente conseguirá montar uma maioria estável dessa maneira, e talvez já seja tarde demais para isso. A previsão de que o pico da pandemia ainda está por vir fragiliza sua tentativa de abrir a economia em curto prazo, pois esse gesto temerário poderá deteriorar ainda mais sua imagem pública.
A perspectiva de crescimento do número de infectados e de mortes isolará o país se oficializarmos uma política sanitária contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O presidente Bolsonaro falou em abrir as fronteiras do país, mas do jeito que as coisas vão, temo que os países fronteiriços é que controlarão a entrada e saída pelo Brasil, com receio da medidas de relaxamento sanitário.
Uma coisa é preparar um planejamento para a volta gradativa à normalidade, outra é decidir esse passo sem cumprir as exigências mínimas da própria OMS, que prevê capacidade do sistema de saúde de testagem para controle da transmissão; minimizar surtos em asilos de idosos; administrar a importação dos casos; engajamento da sociedade e prevenção no trabalho e escolas.
Caso aconteça uma saída da quarentena não negociada com toda a sociedade, e apoiada pela maioria, estaremos diante de um impasse constitucional, pois nem o Congresso nem o Supremo aprovarão. Impasse fomentado por Bolsonaro com segundas intenções – de ganhar cada vez mais poderes.
Confrontando os demais poderes da República, Bolsonaro insiste na retomada da economia dizendo estar ciente de que corre um risco, caso a pandemia de Covid-19 se agrave. Mas o risco é de todos os brasileiros
O presidente Bolsonaro, insistindo em politizar o combate à Covid-19, continua defendendo a retomada da economia sem base em dados reais, e admite candidamente que se a situação piorar ele será responsabilizado: “É um risco que corro”, disse, como se fosse um herói correndo riscos para salvar o emprego dos mais pobres.
Mas o risco não é dele, não, o risco é nosso, de todo o povo brasileiro, especialmente daqueles mais pobres que supostamente estaria defendendo. Na sua cruzada contra os governadores e os demais poderes da República, Bolsonaro acusa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de querer derrubá-lo em conluio com o Supremo Tribunal Federal.
Já havia se lamentado publicamente pelo fato de o STF ter dado aos governadores e prefeitos autonomia para definir regras de defesa sanitária em seus estados e municípios. Num populismo descarado, critica as medidas repressivas dos governos, para fazer com que os recalcitrantes cumpram o isolamento social ficando em casa.
As autoridades têm o poder, dado pela Constituição, de tomar medidas legais contra aqueles que põem em risco a vida da coletividade, tanto que o Código Penal considera crime “infringir determinação do poder publico destinada a impedir a introdução ou propagação de doenças contagiosas”.
Embora ressalvasse que não estava querendo incentivar a desobediência civil, incentivou na prática ao dizer que “prisões ilegais devem ser rechaçadas”. Talvez tenha sido um mero erro de português, mas não há maneira de rechaçar uma ação repressora sem um enfrentamento.
Bolsonaro posa de defensor dos direitos individuais, logo ele, que defende a tortura e a ditadura, vem agora falar em direito de ir e vir, em liberdades individuais. Não passa de uma jogada política arriscadíssima dele, que resolveu acelerar o processo de confronto com os outros poderes da República.
Claramente, sente a necessidade de se impor diante dos outros poderes, e não se conforma com a ideia de que existem limites numa democracia. A briga com o Congresso já é muito longa, mas na quinta-feira, em entrevista à CNN, sugeriu que o deputado Rodrigo Maia queria uma negociação na base da corrupção, e que o Congresso só o deixa trabalhar se fizer concessões não republicanas.
Com isso, joga o povo contra o Congresso e os governadores, numa disputa política que pode nos levar a um beco sem saída. Na democracia, não há como governar contra todas as instituições e todos os poderes. Creio que o espírito reformista continuará prevalecendo, mas o caminho que Bolsonaro está escolhendo para negociar com o Congresso indica mais um erro de estratégia.
Ele está chamando ao Planalto líderes do centrão, oferecendo cargos em troca de apoio parlamentar. Dificilmente conseguirá montar uma maioria estável dessa maneira, e talvez já seja tarde demais para isso. A previsão de que o pico da pandemia ainda está por vir fragiliza sua tentativa de abrir a economia em curto prazo, pois esse gesto temerário poderá deteriorar ainda mais sua imagem pública.
A perspectiva de crescimento do número de infectados e de mortes isolará o país se oficializarmos uma política sanitária contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). O presidente Bolsonaro falou em abrir as fronteiras do país, mas do jeito que as coisas vão, temo que os países fronteiriços é que controlarão a entrada e saída pelo Brasil, com receio da medidas de relaxamento sanitário.
Uma coisa é preparar um planejamento para a volta gradativa à normalidade, outra é decidir esse passo sem cumprir as exigências mínimas da própria OMS, que prevê capacidade do sistema de saúde de testagem para controle da transmissão; minimizar surtos em asilos de idosos; administrar a importação dos casos; engajamento da sociedade e prevenção no trabalho e escolas.
Caso aconteça uma saída da quarentena não negociada com toda a sociedade, e apoiada pela maioria, estaremos diante de um impasse constitucional, pois nem o Congresso nem o Supremo aprovarão. Impasse fomentado por Bolsonaro com segundas intenções – de ganhar cada vez mais poderes.
Paranoia de Estado - VERA MAGALHÃES
ESTADÃO - 19/04
Instrumentos públicos não podem ficar à mercê de delírios do governante
Derrubado Luiz Mandetta, o inimigo interno que Jair Bolsonaro resolveu combater em meio à maior emergência de saúde do planeta, os esforços do presidente da República se voltam agora para uma tríade de adversários: Rodrigo Maia, João Doria e o STF, com menor intensidade (até porque, desde que assumiu, ele mostra certo temor de atacar o Judiciário com a sem-cerimônia com que atinge outros Poderes e instituições).
A razão é a velha paranoia presidencial. Acossado por fantasmas persecutórios desde muito antes de ser presidente, Bolsonaro vê um complô para derrubá-lo. O foco do momento é o presidente da Câmara, até pela importância do cargo para um eventual processo de impeachment.
Para atiçar ainda mais o medo do capitão, a sexta-feira foi o aniversário de quatro anos da queda de Dilma Rousseff. À parte pedaladas e economia em frangalhos, a condição definitiva para o impeachment avançar foi a decisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, de levá-lo a cabo depois de a presidente o desafiar.
Bolsonaro estava lá. Ele sabe que, quando a Câmara vira, o presidente está em apuros. Um fato foi fator decisivo para o presidente pirar. A Câmara deu 30 dias para que ele apresente seu resultado do teste para covid-19. Desde que voltou dos Estados Unidos, após o Carnaval, o presidente se esquiva dessa exigência básica de transparência. Já alegou que fez teste com nome falso e que os exames são sigilosos por questão de Estado. A Câmara resolveu pagar para ver.
Ter mentido numa questão tão séria quanto a própria saúde em meio a uma pandemia, ainda mais quando apregoa por aí que se trata de uma “gripezinha”, que as pessoas devem “enfrentar o vírus” e sai pela rua cumprimentando pessoas após assoar o nariz seria, sim, crime de responsabilidade.
O Legislativo de 2020 está a léguas de distância do de 2016 quanto à disposição para um impeachment. Embora tenha grande ascendência sobre várias bancadas, Maia não é Cunha em termos de métodos de persuasão. Além disso, deputados e senadores avaliam que o momento de crise sanitária, humanitária, social, econômica e política agudas não combina com um processo de impeachment.
Mas Bolsonaro segue atormentado por seus fantasmas. Isso não seria um problema sério se os meios para demonstrar sua paranoia fossem os de sempre: guerrilha nas redes sociais e entrevistas descompensadas. Porém, há indícios de que aparelhos de Estado estão sendo usados para alimentar a paranoia, o que aumenta em muito a gravidade da situação. Há indícios de que a Abin, a agência de inteligência do governo, está sendo usada para espionar Maia, Doria e sabe-se lá mais quem.
Diante da reação até tímida do Congresso, pela gravidade da acusação, o Planalto desmentiu a informação, mas a total falta de transparência com que este governo trata a coisa pública não permite acreditar na negativa. É preciso cobrar e investigar o uso do Estado para saciar a fome de teorias da conspiração do capitão.
A Hungria é um caso a ter na mira. Lá, Viktor Orbán, um dos ídolos da família Bolsonaro, aproveitou a pandemia para dar um golpe de Estado.
Nesta semana, em meio a uma fala sem pé nem cabeça quando consumava sua birrenta troca de ministro da Saúde, Bolsonaro lembrou que é sua prerrogativa decretar estado de sítio. Não é a primeira vez que essa expressão aparece, meio “sem querer”, desde que a crise começou.
É preciso que as instituições reforcem a vigilância, porque chefe de Estado paranoico e autoritário, um risco de “golpe” inventado e sustentado nas redes sociais, Estado à mercê da paranoia e sociedade amedrontada formam um combo bastante propício a tentativas de virada de mesa.
Instrumentos públicos não podem ficar à mercê de delírios do governante
Derrubado Luiz Mandetta, o inimigo interno que Jair Bolsonaro resolveu combater em meio à maior emergência de saúde do planeta, os esforços do presidente da República se voltam agora para uma tríade de adversários: Rodrigo Maia, João Doria e o STF, com menor intensidade (até porque, desde que assumiu, ele mostra certo temor de atacar o Judiciário com a sem-cerimônia com que atinge outros Poderes e instituições).
A razão é a velha paranoia presidencial. Acossado por fantasmas persecutórios desde muito antes de ser presidente, Bolsonaro vê um complô para derrubá-lo. O foco do momento é o presidente da Câmara, até pela importância do cargo para um eventual processo de impeachment.
Para atiçar ainda mais o medo do capitão, a sexta-feira foi o aniversário de quatro anos da queda de Dilma Rousseff. À parte pedaladas e economia em frangalhos, a condição definitiva para o impeachment avançar foi a decisão de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, de levá-lo a cabo depois de a presidente o desafiar.
Bolsonaro estava lá. Ele sabe que, quando a Câmara vira, o presidente está em apuros. Um fato foi fator decisivo para o presidente pirar. A Câmara deu 30 dias para que ele apresente seu resultado do teste para covid-19. Desde que voltou dos Estados Unidos, após o Carnaval, o presidente se esquiva dessa exigência básica de transparência. Já alegou que fez teste com nome falso e que os exames são sigilosos por questão de Estado. A Câmara resolveu pagar para ver.
Ter mentido numa questão tão séria quanto a própria saúde em meio a uma pandemia, ainda mais quando apregoa por aí que se trata de uma “gripezinha”, que as pessoas devem “enfrentar o vírus” e sai pela rua cumprimentando pessoas após assoar o nariz seria, sim, crime de responsabilidade.
O Legislativo de 2020 está a léguas de distância do de 2016 quanto à disposição para um impeachment. Embora tenha grande ascendência sobre várias bancadas, Maia não é Cunha em termos de métodos de persuasão. Além disso, deputados e senadores avaliam que o momento de crise sanitária, humanitária, social, econômica e política agudas não combina com um processo de impeachment.
Mas Bolsonaro segue atormentado por seus fantasmas. Isso não seria um problema sério se os meios para demonstrar sua paranoia fossem os de sempre: guerrilha nas redes sociais e entrevistas descompensadas. Porém, há indícios de que aparelhos de Estado estão sendo usados para alimentar a paranoia, o que aumenta em muito a gravidade da situação. Há indícios de que a Abin, a agência de inteligência do governo, está sendo usada para espionar Maia, Doria e sabe-se lá mais quem.
Diante da reação até tímida do Congresso, pela gravidade da acusação, o Planalto desmentiu a informação, mas a total falta de transparência com que este governo trata a coisa pública não permite acreditar na negativa. É preciso cobrar e investigar o uso do Estado para saciar a fome de teorias da conspiração do capitão.
A Hungria é um caso a ter na mira. Lá, Viktor Orbán, um dos ídolos da família Bolsonaro, aproveitou a pandemia para dar um golpe de Estado.
Nesta semana, em meio a uma fala sem pé nem cabeça quando consumava sua birrenta troca de ministro da Saúde, Bolsonaro lembrou que é sua prerrogativa decretar estado de sítio. Não é a primeira vez que essa expressão aparece, meio “sem querer”, desde que a crise começou.
É preciso que as instituições reforcem a vigilância, porque chefe de Estado paranoico e autoritário, um risco de “golpe” inventado e sustentado nas redes sociais, Estado à mercê da paranoia e sociedade amedrontada formam um combo bastante propício a tentativas de virada de mesa.
Variações sobre o coronavírus - CELSO LAFER
ESTADÃO - 19/04
Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança
A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.
A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.
As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.
As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.
Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.
Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.
Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.
Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.
“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.
Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.
Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.
PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)
Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança
A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.
A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.
As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.
As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.
Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.
Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.
Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.
Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.
“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.
Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.
Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.
PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)
Os mortos de Bolsonaro - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 19/04
O presidente luta pela sua reeleição e o país se torna um jazigo ao ar livre
Jair Bolsonaro não é economista, historiador, sociólogo, advogado ou médico, o que lhe daria pelo menos instrução básica. Também não é empresário, fazendeiro ou banqueiro, com o que teria alguma visão do país. Sempre foi um político menor e da Velha Política —que, como candidato, fingia combater e, no Planalto, pratica nas barbas de seus seguidores.
Velho político, Bolsonaro deveria perceber uma oportunidade quando ela se apresentasse. Com a dissolução da economia, do meio ambiente, das relações exteriores, da educação e da cultura em seu governo, a Covid-19 seria um inimigo ideal a enfrentar —numa luta em que ele teria o país a seu favor e que, caso vitoriosa, apagaria as brutalidades que já cometeu.
No passado, outro presidente, Rodrigues Alves, sobre quem não pairava a menor nódoa, passou à história como o governante que mais combateu as epidemias no país. Em sua gestão, 1902-06, ele erradicou a febre amarela e a peste bubônica e, mesmo com enorme desgaste político, impôs a vacina obrigatória contra a varíola. Foram campanhas vitoriosas, graças ao homem que as criou e coordenou: seu diretor-geral da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, nomeado por ele. Não havia ciúme —eles lutavam a favor da vida.
Bolsonaro, ao contrário, prefere lutar a favor de sua miserável campanha pela reeleição em 2022. O preço disso já se faz sentir. O Comando da 1ª Região Militar, no Rio, está mandando os postos de recrutamento contar as sepulturas do estado. Também no Rio, o cemitério de S. Francisco Xavier apressa a construção de 2.000 gavetas. No de Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, os enterros estão sendo feitos em covas rasas e têm de levar no máximo dez minutos. Nos hospitais de Manaus, já há cadáveres no chão ao lado de pacientes nos leitos.
O país se torna um enorme jazigo ao ar livre. São os mortos da Covid —e de Bolsonaro.
Homens trabalham na construção de gavetas no cemitério de S. Francisco Xavier, no Rio - Ricardo Moraes - 17.abr.20/Reuters
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
O presidente luta pela sua reeleição e o país se torna um jazigo ao ar livre
Jair Bolsonaro não é economista, historiador, sociólogo, advogado ou médico, o que lhe daria pelo menos instrução básica. Também não é empresário, fazendeiro ou banqueiro, com o que teria alguma visão do país. Sempre foi um político menor e da Velha Política —que, como candidato, fingia combater e, no Planalto, pratica nas barbas de seus seguidores.
Velho político, Bolsonaro deveria perceber uma oportunidade quando ela se apresentasse. Com a dissolução da economia, do meio ambiente, das relações exteriores, da educação e da cultura em seu governo, a Covid-19 seria um inimigo ideal a enfrentar —numa luta em que ele teria o país a seu favor e que, caso vitoriosa, apagaria as brutalidades que já cometeu.
No passado, outro presidente, Rodrigues Alves, sobre quem não pairava a menor nódoa, passou à história como o governante que mais combateu as epidemias no país. Em sua gestão, 1902-06, ele erradicou a febre amarela e a peste bubônica e, mesmo com enorme desgaste político, impôs a vacina obrigatória contra a varíola. Foram campanhas vitoriosas, graças ao homem que as criou e coordenou: seu diretor-geral da Saúde Pública, Oswaldo Cruz, nomeado por ele. Não havia ciúme —eles lutavam a favor da vida.
Bolsonaro, ao contrário, prefere lutar a favor de sua miserável campanha pela reeleição em 2022. O preço disso já se faz sentir. O Comando da 1ª Região Militar, no Rio, está mandando os postos de recrutamento contar as sepulturas do estado. Também no Rio, o cemitério de S. Francisco Xavier apressa a construção de 2.000 gavetas. No de Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, os enterros estão sendo feitos em covas rasas e têm de levar no máximo dez minutos. Nos hospitais de Manaus, já há cadáveres no chão ao lado de pacientes nos leitos.
O país se torna um enorme jazigo ao ar livre. São os mortos da Covid —e de Bolsonaro.
Homens trabalham na construção de gavetas no cemitério de S. Francisco Xavier, no Rio - Ricardo Moraes - 17.abr.20/Reuters
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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