REVISTA VEJA
O custo Brasil continua afugentando novos investimentos
Empresas brasileiras estão à venda e vários grandes grupos já saíram à caça de bons alvos para aquisição. Em 16 de março foi anunciada a fusão da Fibria com a Suzano, operação que criou a maior empresa de celulose do mundo. O BNDES é acionista de ambas e, vale lembrar, a própria Fibria havia sido um dos “campeões nacionais” engendrados com capital do banco. O processo, entretanto, ainda deve passar pelo escrutínio do Cade, o órgão que examina e aprova movimentos que possam resultar em danos à concorrência. De fato, a entidade tem se mostrado bastante ativa no julgamento de aquisições. No começo do mês, o Cade já havia vetado a tentativa do grupo Ultra de comprar a Liquigás, empresa da Petrobras que vende gás de cozinha. Mais recentemente, embora tenha aprovado a compra da XP Investimentos pelo Itaú, o órgão impôs diversos condicionantes ao negócio.
No julgamento dessas compras, a principal preocupação é o poder que elas conferem às empresas por reduzirem a sua concorrência. No caso da Liquigás, por exemplo, a aquisição resultaria em uma empresa que dominaria cerca de 45% do mercado de gás de cozinha. O botijão poderia ficar mais caro porque as empresas teriam mais capacidade de influenciar preços ou quantidades. No caso da compra da XP Investimentos pelo Itaú, o Cade sugeriu medidas compensatórias para evitar o aumento de taxas e ações comerciais que amarrem os clientes das duas empresas. O caso da Fibria e da Suzano é um pouco menos preocupante na ponta da venda, pois se trata de grandes exportadoras. Mas ambas são compradoras relevantes no Brasil e fornecedoras de diversas empresas locais.
Do lado positivo, a criação de grandes empresas permite compartilhar custos, otimizar operações e transferir melhores práticas — as conhecidas “sinergias”. Várias fusões ocorrem justamente porque algumas empresas se tornam progressivamente mais eficientes e naturalmente veem oportunidade de abarcar mais fatias de mercado. Esse efeito positivo é particularmente importante quando maiores empresas adquirem competidores menos produtivos. Mais ainda, mesmo que um mercado se concentre em poucas empresas, é possível, em tese, arejar a concorrência com a atração de mais entrantes. Porém, como teria dito Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O custo Brasil continua afugentando novos investimentos e criando vantagem para quem já está estabelecido no país há um bom tempo e conhece o caminho das pedras dos negócios.
Talvez seja realmente mais saudável para o Brasil se os atos de concentração setorial forem julgados com alto rigor, especialmente em se tratando de grandes empresas com vantagens naturais no contexto local. E isso pode, ao final, incentivá-las a continuar crescendo, mas de outra forma. Após o Cade vetar a compra da Liquigás, o grupo Ultra declarou que vai buscar oportunidades de expansão no exterior. Com tanta ânsia de crescer no Brasil, parece que muitos esqueceram que é possível também expandir-se com aquisições pelo mundo. Esses serão os verdadeiros campeões nacionais, crescendo em função das próprias competências em lugar de fazê-lo com ajuda do governo ou tentativas de atenuar a competição.
sexta-feira, março 23, 2018
Economia da campanha eleitoral - ROGÉRIO WERNECK
ESTADÃO - 23/03
Para garantir acesso a recursos públicos no futuro, muitos partidos devem concentrar recursos no financiamento das campanhas de deputados federais.
Em 2015, preocupado em coibir o abuso de poder econômico no processo eleitoral, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de doações de pessoas jurídicas a partidos políticos e a candidatos a cargos eletivos. Em movimento reativo a essa decisão, o Congresso concebeu e aprovou, às pressas, em outubro do ano passado, o novo sistema de financiamento público de campanhas eleitorais que está em vigor.
O problema é que a forma com que o novo sistema assegura a transferência de recursos do Tesouro aos partidos vem impondo distorções ao processo político-eleitoral, na esteira de efeitos colaterais induzidos pelas regras que agora pautam o financiamento público de campanhas.
Não chegam a ser efeitos surpreendentes. Qualquer economista minimamente familiarizado com a área de regulação bem sabe que, diante de mudanças de regras regulatórias que lhes cerceiam o comportamento, empresas e indivíduos costumam rever decisões prévias para se adaptar da melhor forma possível às novas restrições.
É exatamente isso que agora vem sendo observado à medida que os partidos políticos se adaptam às novas regras que delimitam e regulam o financiamento público de campanhas eleitorais.
Como grande parte dos recursos que estarão disponíveis passará a ser distribuída, entre partidos, com base no tamanho de suas bancadas na Câmara, a importância relativa do deputado federal na esfera política tornou-se, de repente, muito maior do que jamais foi.
É essa distorção induzida pelas regras de acesso aos recursos que explica a acirrada disputa por deputados federais que vem tendo lugar desde o início de março, quando, afinal, foi aberta a janela de infidelidade que, por um mês, permitirá que políticos troquem à vontade de partido. A deputados com boa votação vêm sendo oferecidos mais de R$ 2 milhões de verba para campanha, para que troquem de partido.
Mas a distorção imposta pelas novas regras não para por aí. Como passou a ser fundamental eleger uma bancada na Câmara tão grande quanto possível, para garantir acesso a recursos públicos no futuro, muitos partidos devem concentrar parte substancial dos montantes a que terão direito no financiamento das campanhas de deputados federais.
No PT, esse efeito já aflorou com especial nitidez. Já ficou estabelecido que, na distribuição dos R$ 210 milhões que estarão à disposição do partido, em 2018, a prioridade caberá às campanhas para presidente e deputado federal. E, a esta altura, não falta quem argua que o PT já passou a ver sua participação na campanha presidencial como mero artifício para conter o encolhimento da sua bancada na Câmara. Seja como for, outros candidatos do partido – a governador, senador e deputado estadual – ficaram sumariamente relegados ao final da fila.
São poucos os partidos que parecem de fato dispostos a ter candidato a presidente. Como o grosso do financiamento da campanha eleitoral deverá provir de recursos públicos já definidos, os partidos vêm sendo expostos ao duro choque de realidade da restrição orçamentária rígida com que terão de lidar em 2018. E vêm constatando que bancar uma campanha presidencial implicará severa restrição de recursos para campanhas de candidatos a deputado, senador e governador.
Tudo indica que a temida proliferação de candidaturas de centro, com surgimento de outsiders, acabará contida por este choque de realidade. Não é uma restrição que afete apenas os pequenos partidos. Basta ter em conta a falta de entusiasmo do PSD com a candidatura de Henrique Meirelles. Ou o apoio pouco convincente que o DEM vem dando às aspirações de Rodrigo Maia. Ou, ainda, a indisfarçável reticência com que boa parte do complexo arquipélago de forças políticas regionais que formam o MDB vem reagindo à ideia de que o partido deve ter candidato a presidente.
São efeitos colaterais importantes do novo sistema de financiamento público de campanhas eleitorais, que parecem não ter sido devidamente antevistos quando o sistema foi concebido.
* ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
Para garantir acesso a recursos públicos no futuro, muitos partidos devem concentrar recursos no financiamento das campanhas de deputados federais.
Em 2015, preocupado em coibir o abuso de poder econômico no processo eleitoral, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de doações de pessoas jurídicas a partidos políticos e a candidatos a cargos eletivos. Em movimento reativo a essa decisão, o Congresso concebeu e aprovou, às pressas, em outubro do ano passado, o novo sistema de financiamento público de campanhas eleitorais que está em vigor.
O problema é que a forma com que o novo sistema assegura a transferência de recursos do Tesouro aos partidos vem impondo distorções ao processo político-eleitoral, na esteira de efeitos colaterais induzidos pelas regras que agora pautam o financiamento público de campanhas.
Não chegam a ser efeitos surpreendentes. Qualquer economista minimamente familiarizado com a área de regulação bem sabe que, diante de mudanças de regras regulatórias que lhes cerceiam o comportamento, empresas e indivíduos costumam rever decisões prévias para se adaptar da melhor forma possível às novas restrições.
É exatamente isso que agora vem sendo observado à medida que os partidos políticos se adaptam às novas regras que delimitam e regulam o financiamento público de campanhas eleitorais.
Como grande parte dos recursos que estarão disponíveis passará a ser distribuída, entre partidos, com base no tamanho de suas bancadas na Câmara, a importância relativa do deputado federal na esfera política tornou-se, de repente, muito maior do que jamais foi.
É essa distorção induzida pelas regras de acesso aos recursos que explica a acirrada disputa por deputados federais que vem tendo lugar desde o início de março, quando, afinal, foi aberta a janela de infidelidade que, por um mês, permitirá que políticos troquem à vontade de partido. A deputados com boa votação vêm sendo oferecidos mais de R$ 2 milhões de verba para campanha, para que troquem de partido.
Mas a distorção imposta pelas novas regras não para por aí. Como passou a ser fundamental eleger uma bancada na Câmara tão grande quanto possível, para garantir acesso a recursos públicos no futuro, muitos partidos devem concentrar parte substancial dos montantes a que terão direito no financiamento das campanhas de deputados federais.
No PT, esse efeito já aflorou com especial nitidez. Já ficou estabelecido que, na distribuição dos R$ 210 milhões que estarão à disposição do partido, em 2018, a prioridade caberá às campanhas para presidente e deputado federal. E, a esta altura, não falta quem argua que o PT já passou a ver sua participação na campanha presidencial como mero artifício para conter o encolhimento da sua bancada na Câmara. Seja como for, outros candidatos do partido – a governador, senador e deputado estadual – ficaram sumariamente relegados ao final da fila.
São poucos os partidos que parecem de fato dispostos a ter candidato a presidente. Como o grosso do financiamento da campanha eleitoral deverá provir de recursos públicos já definidos, os partidos vêm sendo expostos ao duro choque de realidade da restrição orçamentária rígida com que terão de lidar em 2018. E vêm constatando que bancar uma campanha presidencial implicará severa restrição de recursos para campanhas de candidatos a deputado, senador e governador.
Tudo indica que a temida proliferação de candidaturas de centro, com surgimento de outsiders, acabará contida por este choque de realidade. Não é uma restrição que afete apenas os pequenos partidos. Basta ter em conta a falta de entusiasmo do PSD com a candidatura de Henrique Meirelles. Ou o apoio pouco convincente que o DEM vem dando às aspirações de Rodrigo Maia. Ou, ainda, a indisfarçável reticência com que boa parte do complexo arquipélago de forças políticas regionais que formam o MDB vem reagindo à ideia de que o partido deve ter candidato a presidente.
São efeitos colaterais importantes do novo sistema de financiamento público de campanhas eleitorais, que parecem não ter sido devidamente antevistos quando o sistema foi concebido.
* ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD, PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
O tombo dos juros e seus impactos - CELSO MING
ESTADÃO - 23/03
Há a a redução do retorno das aplicações financeiras e, aí, o que faz o investidor?
A forte derrubada da inflação é o principal indicador entre os que medem o desempenho da economia que atesta a solidez da recuperação.
Inflação ao redor de 3%, pelo segundo ano consecutivo, numa situação em que os preços estão inteiramente soltos e não há quaisquer atrasos nos reajustes, tem de ser considerada importante alavancadora de novos negócios.
Os juros básicos (Selic) mergulharão no dia 16 de maio para abaixo dos 6,5%, como indicou o Banco Central após a reunião do Copom na quarta-feira. É verdade que, na ponta do crédito, a queda dos juros ainda está bem atrasada. A principal explicação para isso é a ainda forte inadimplência que obrigou os bancos a reforçar provisões e, assim, enfrentar atrasos e calotes dos clientes. Mas é inevitável que, cedo ou tarde, o custo do crédito aos clientes dos bancos também caia e sejam estimulados investimentos na atividade econômica, por conta de custos de crédito mais baixos.
Outra consequência importante é a redução do retorno das aplicações financeiras. Ficaram para trás os tempos em que um dinheiro aplicado em renda fixa praticamente sem risco proporcionou excelente retorno real. Uma conta simplificada mostra que com juros de 6,5% ao ano, o retorno real em aplicações de renda fixa tende a ser inferior a 1% ao ano. Desses 6,5% ao ano têm de ser descontados a inflação de 3,0%, o Imposto de Renda e, no caso dos fundos de investimento oferecidos pelos bancos de varejo a pequenos investidores, a elevada taxa de administração.
É um resultado que empurra os aplicadores à renda variável e, portanto, para mais risco (veja mais no Confira). Já os empreendedores tendem a aplicar mais recursos em seus negócios do que a deixá-los no pinga-pinga da renda fixa.
No Brasil, muitos fundos de investimento de renda fixa têm taxas de administração superiores a 1% ao ano. Quando a inflação era de 10%, essa taxa comia 10% do rendimento nominal. Mas agora, a garfada tende a ser superior a 35%, o que caracteriza apropriação indébita de patrimônio alheio. O aplicador deve fugir dos fundos de investimento de renda fixa que cobram taxa de administração superior a 1%.
A opção por aplicações em renda variável, tanto diretamente em ações como em fundos multimercado, pode, assim, ficar inevitável. Nesse caso, o aplicador tem de contar com os solavancos das cotações, próprios do segmento.
Quando se fala em opções de aplicação de reservas em dinheiro se pergunta: por que não o mercado imobiliário? No momento, o principal fator inibidor é o mau estado das finanças da Caixa Econômica, depois de alguns anos de dilapidação promovida pelos administradores anteriores, cujo critério de utilização dos ativos era majoritariamente determinado por politicagem. Explica-se: a Caixa é o principal agente de financiamento de casa própria no País e, se suas finanças estão em desordem, não vale contar com sólida recuperação do mercado imobiliário.
Enfim, não haverá moleza aos aplicadores de reserva pessoal ou familiar no mercado financeiro.
CONFIRA:
O desempenho da Bolsa
O mercado de ações mostra a maior procura por renda variável. O Índice Bovespa, que mede o comportamento das ações mais importantes, já havia avançado 26,8% em 2017. Neste ano (até quinta-feira), registrou valorização de 10,9%, mostrando forte apetite dos investidores. Fica raquítico o retorno das aplicações em renda fixa quando em comparação ao segmento de ações. O que pode inibir novos avanços são eventuais trombadas na área política que apontem para ainda maior desorganização das contas públicas.
Há a a redução do retorno das aplicações financeiras e, aí, o que faz o investidor?
A forte derrubada da inflação é o principal indicador entre os que medem o desempenho da economia que atesta a solidez da recuperação.
Inflação ao redor de 3%, pelo segundo ano consecutivo, numa situação em que os preços estão inteiramente soltos e não há quaisquer atrasos nos reajustes, tem de ser considerada importante alavancadora de novos negócios.
Os juros básicos (Selic) mergulharão no dia 16 de maio para abaixo dos 6,5%, como indicou o Banco Central após a reunião do Copom na quarta-feira. É verdade que, na ponta do crédito, a queda dos juros ainda está bem atrasada. A principal explicação para isso é a ainda forte inadimplência que obrigou os bancos a reforçar provisões e, assim, enfrentar atrasos e calotes dos clientes. Mas é inevitável que, cedo ou tarde, o custo do crédito aos clientes dos bancos também caia e sejam estimulados investimentos na atividade econômica, por conta de custos de crédito mais baixos.
Outra consequência importante é a redução do retorno das aplicações financeiras. Ficaram para trás os tempos em que um dinheiro aplicado em renda fixa praticamente sem risco proporcionou excelente retorno real. Uma conta simplificada mostra que com juros de 6,5% ao ano, o retorno real em aplicações de renda fixa tende a ser inferior a 1% ao ano. Desses 6,5% ao ano têm de ser descontados a inflação de 3,0%, o Imposto de Renda e, no caso dos fundos de investimento oferecidos pelos bancos de varejo a pequenos investidores, a elevada taxa de administração.
É um resultado que empurra os aplicadores à renda variável e, portanto, para mais risco (veja mais no Confira). Já os empreendedores tendem a aplicar mais recursos em seus negócios do que a deixá-los no pinga-pinga da renda fixa.
No Brasil, muitos fundos de investimento de renda fixa têm taxas de administração superiores a 1% ao ano. Quando a inflação era de 10%, essa taxa comia 10% do rendimento nominal. Mas agora, a garfada tende a ser superior a 35%, o que caracteriza apropriação indébita de patrimônio alheio. O aplicador deve fugir dos fundos de investimento de renda fixa que cobram taxa de administração superior a 1%.
A opção por aplicações em renda variável, tanto diretamente em ações como em fundos multimercado, pode, assim, ficar inevitável. Nesse caso, o aplicador tem de contar com os solavancos das cotações, próprios do segmento.
Quando se fala em opções de aplicação de reservas em dinheiro se pergunta: por que não o mercado imobiliário? No momento, o principal fator inibidor é o mau estado das finanças da Caixa Econômica, depois de alguns anos de dilapidação promovida pelos administradores anteriores, cujo critério de utilização dos ativos era majoritariamente determinado por politicagem. Explica-se: a Caixa é o principal agente de financiamento de casa própria no País e, se suas finanças estão em desordem, não vale contar com sólida recuperação do mercado imobiliário.
Enfim, não haverá moleza aos aplicadores de reserva pessoal ou familiar no mercado financeiro.
CONFIRA:
O desempenho da Bolsa
O mercado de ações mostra a maior procura por renda variável. O Índice Bovespa, que mede o comportamento das ações mais importantes, já havia avançado 26,8% em 2017. Neste ano (até quinta-feira), registrou valorização de 10,9%, mostrando forte apetite dos investidores. Fica raquítico o retorno das aplicações em renda fixa quando em comparação ao segmento de ações. O que pode inibir novos avanços são eventuais trombadas na área política que apontem para ainda maior desorganização das contas públicas.
EUA e China, nossos maiores parceiros globais, se movimentam, e nós só olhamos - PEDRO LUIZ PASSOS
FOLHA DE SP - 23/03
Agora, mais do que nunca, estamos pagando o preço por se manter à margem do processo de globalização
O mundo está ficando mais complexo do que sempre foi, agora sob o risco de conflitos comerciais em grande escala. É uma razão a mais para apressarmos o passo das mudanças no Brasil antes que o atraso econômico e tecnológico que fomos acumulando nos últimos 15 anos se torne uma barreira intransponível a qualquer reação.
Nas últimas três décadas, o protecionismo e o mercantilismo assumidos em certos episódios pelos EUA e de forma mais aberta e frequente pela China ao longo de sua meteórica ascensão não impediram a proliferação de acordos de livre-comércio que deram ritmo e moldaram a globalização. Mas a chegada de Donald Trump à Casa Branca provocou fissuras na coexistência até agora relativamente harmônica nessa espécie de G2 do poder mundial.
Trata-se de um risco latente para o Brasil. O país se manteve à margem da globalização e não colheu os frutos desse movimento, nada fazendo para assumir um papel relevante no comércio internacional, equivalente ao porte de sua economia. Não é de hoje que carecemos de uma política externa que promova nossa inserção no cenário de intenso intercâmbio comercial, produtivo, tecnológico e cultural que floresceu no mundo nos últimos tempos.
O isolamento, agora, cobra seu preço e injeta alta dose de urgência na necessidade de abrir a economia. Os instrumentos para levar tal processo adiante têm sido utilizados com sucesso por outros países e se encontram à nossa disposição. Basta querer usá-los.
A integração aos grandes acordos comerciais, por exemplo, representa uma etapa essencial nessa trajetória. Nesse sentido, o recente progresso nas negociações entre Mercosul e União Europeia serve como alento, assim como os primeiros acenos do governo brasileiro em direção ao CPTPP, o Tratado Transpacífico, assinado dias atrás por 11 países das Américas, da Ásia e da Oceania.
Não bastam, porém, boas intenções para romper o isolamento e a letargia que o país impôs a si mesmo. Gestos mais efetivos serão necessários para demonstrar claramente a disposição de dar mais fluidez às relações com parceiros internacionais.
A redução das alíquotas de importação para níveis mais próximos dos padrões internacionais em prazo definido seria um sinal inequívoco de mudança na orientação da atual política do toma lá dá cá. Além disso, essa medida é, por si só, um bem para a economia, devido aos benefícios provenientes do maior acesso a insumos, bens de capitais e tecnologias mais baratos e mais avançados.
Esses seriam passos iniciais para o Brasil se reposicionar na economia mundial, cujo modelo de funcionamento é cada vez mais ditado pelas duas potências globais. Ignorá-las não é solução, sob o risco de ficar sem abrigo no fogo cruzado de decisões sobre as quais não tem nenhum controle. Qualquer movimento brusco entre os dois titãs é para preocupar.
Com a China, deveríamos buscar maior refinamento nas relações, hoje assentadas nas vendas de commodities e compras de manufaturas. No investimento, os aportes chineses têm visado áreas de menor dinamismo tecnológico. Tais assimetrias não nos convêm.
Com histórico de decisões unilaterais, China e EUA exigem atenção. Imprevistos de qualquer ordem poderão agravar-se no Brasil, que se ressente do atraso no campo das tecnologias disruptivas e da frágil projeção global decorrente da miopia da política externa. É questão a ser tratada pelos candidatos na corrida presidencial.
Por via da dúvida, é prudente passarmos a checar o humor de Trump e Xi Jinping, ao menos enquanto persistir a ideia de que somos apenas coadjuvantes no palco da geopolítica global e anões no comércio mundial.
Pedro Luiz Passos-É empresário e conselheiro da Natura.
Agora, mais do que nunca, estamos pagando o preço por se manter à margem do processo de globalização
O mundo está ficando mais complexo do que sempre foi, agora sob o risco de conflitos comerciais em grande escala. É uma razão a mais para apressarmos o passo das mudanças no Brasil antes que o atraso econômico e tecnológico que fomos acumulando nos últimos 15 anos se torne uma barreira intransponível a qualquer reação.
Nas últimas três décadas, o protecionismo e o mercantilismo assumidos em certos episódios pelos EUA e de forma mais aberta e frequente pela China ao longo de sua meteórica ascensão não impediram a proliferação de acordos de livre-comércio que deram ritmo e moldaram a globalização. Mas a chegada de Donald Trump à Casa Branca provocou fissuras na coexistência até agora relativamente harmônica nessa espécie de G2 do poder mundial.
Trata-se de um risco latente para o Brasil. O país se manteve à margem da globalização e não colheu os frutos desse movimento, nada fazendo para assumir um papel relevante no comércio internacional, equivalente ao porte de sua economia. Não é de hoje que carecemos de uma política externa que promova nossa inserção no cenário de intenso intercâmbio comercial, produtivo, tecnológico e cultural que floresceu no mundo nos últimos tempos.
O isolamento, agora, cobra seu preço e injeta alta dose de urgência na necessidade de abrir a economia. Os instrumentos para levar tal processo adiante têm sido utilizados com sucesso por outros países e se encontram à nossa disposição. Basta querer usá-los.
A integração aos grandes acordos comerciais, por exemplo, representa uma etapa essencial nessa trajetória. Nesse sentido, o recente progresso nas negociações entre Mercosul e União Europeia serve como alento, assim como os primeiros acenos do governo brasileiro em direção ao CPTPP, o Tratado Transpacífico, assinado dias atrás por 11 países das Américas, da Ásia e da Oceania.
Não bastam, porém, boas intenções para romper o isolamento e a letargia que o país impôs a si mesmo. Gestos mais efetivos serão necessários para demonstrar claramente a disposição de dar mais fluidez às relações com parceiros internacionais.
A redução das alíquotas de importação para níveis mais próximos dos padrões internacionais em prazo definido seria um sinal inequívoco de mudança na orientação da atual política do toma lá dá cá. Além disso, essa medida é, por si só, um bem para a economia, devido aos benefícios provenientes do maior acesso a insumos, bens de capitais e tecnologias mais baratos e mais avançados.
Esses seriam passos iniciais para o Brasil se reposicionar na economia mundial, cujo modelo de funcionamento é cada vez mais ditado pelas duas potências globais. Ignorá-las não é solução, sob o risco de ficar sem abrigo no fogo cruzado de decisões sobre as quais não tem nenhum controle. Qualquer movimento brusco entre os dois titãs é para preocupar.
Com a China, deveríamos buscar maior refinamento nas relações, hoje assentadas nas vendas de commodities e compras de manufaturas. No investimento, os aportes chineses têm visado áreas de menor dinamismo tecnológico. Tais assimetrias não nos convêm.
Com histórico de decisões unilaterais, China e EUA exigem atenção. Imprevistos de qualquer ordem poderão agravar-se no Brasil, que se ressente do atraso no campo das tecnologias disruptivas e da frágil projeção global decorrente da miopia da política externa. É questão a ser tratada pelos candidatos na corrida presidencial.
Por via da dúvida, é prudente passarmos a checar o humor de Trump e Xi Jinping, ao menos enquanto persistir a ideia de que somos apenas coadjuvantes no palco da geopolítica global e anões no comércio mundial.
Pedro Luiz Passos-É empresário e conselheiro da Natura.
Intervenção não é desejável, é inevitável - ROBERTO MEDINA
O Globo - 23/03
Em vez de guerra ideológica, precisamos de choque de gestão, sem tempo a perder.
De repente uma execução bárbara, e Marielle torna-se símbolo de qualquer rótulo que se queira pregar nela, em seu louvor ou seu apedrejamento. Enquanto viva, defendendo causas, exigindo ações, acertando aqui, errando ali, não me lembro de ter lido qualquer texto abordando sua luta, e a importância desta luta para o Rio encurralado. Nunca deparei nas redes sociais com alguém que a defendesse ou a atacasse. E, no entanto, não importa nas mãos de quem, as armas que a mataram há muito já disparavam contra cada carioca.
Estamos vivendo um momento trágico, em que o nosso estado agoniza e precisa de união de todos, acima das divergências, em defesa da causa maior. Marielles, Marias, Andersons, Antônios, universitários, operários. Marielles e Marias que temem levar filhos à escola ou ao parquinho, Andersons e Antônios que recebem seus salários atrasados e não têm outra fonte para sustentar suas famílias, Marielles brancas, negras, morenas, sem oportunidades pelo que não aprenderam na escola, Marielles com alta escolaridade e assim mesmo desempregadas pela estagnação econômica.
Quando fui sequestrado, decidi que, se saísse daquilo com vida, iria fazer o que pudesse por um Rio mais seguro e mais feliz. Libertado, me uni ao Movimento Viva Rio e promovemos um evento pela paz que reuniu 400 mil pessoas vestidas de branco e de emoção. Era um começo. Foi ali que entrou em minha história uma das pessoas mais admiráveis que já encontrei: o sociólogo Betinho. E ele me disse: “Roberto, passamos tempo demais sem nos conhecer”. Daí para frente, nossa cidade foi a nossa ponte.
Em vez de guerra ideológica, precisamos de um choque de gestão, sem tempo a perder. Não há bala de esquerda ou de direita. O direito de ir e vir foi usurpado por bandos de ladrões e assassinos. A população não pede favor para ser socorrida — exige! Não há um plano B para a intervenção federal na segurança pública. Não há dinheiro, competência administrativa ou liderança para substituí-la. Ela tem que ficar pelo tempo necessário para que as polícias recuperem sua capacidade de proteger a vida do cidadão. E é imperativo que receba todo o apoio do governo federal, do governo estadual e das vítimas em potencial, que chamamos de sociedade.
Teremos neste ano a oportunidade de escolher nossos representantes no poderes do estado e da República. Aproveitemos, com lucidez cidadã e sem desperdício do voto, esta oportunidade de nos reinventar. Acima de qualquer radicalismo, os valores que devem prevalecer na escolha são a capacidade de gestão e a honestidade, a criatividade e a coragem, a determinação e o bom senso.
Vamos olhar com lupa os candidatos, antes de decidir a quem delegaremos nosso poder de mudar. Vamos abrir espaço para ouvir o que as Marielles e Andersons de todas as classes e todos os lugares têm a dizer e a cobrar, antes que seja tarde demais. Vamos eleger um novo amanhã para nosso estado, com a firmeza da razão e a energia da esperança.
De repente uma execução bárbara, e Marielle torna-se símbolo de qualquer rótulo que se queira pregar nela, em seu louvor ou seu apedrejamento. Enquanto viva, defendendo causas, exigindo ações, acertando aqui, errando ali, não me lembro de ter lido qualquer texto abordando sua luta, e a importância desta luta para o Rio encurralado. Nunca deparei nas redes sociais com alguém que a defendesse ou a atacasse. E, no entanto, não importa nas mãos de quem, as armas que a mataram há muito já disparavam contra cada carioca.
Estamos vivendo um momento trágico, em que o nosso estado agoniza e precisa de união de todos, acima das divergências, em defesa da causa maior. Marielles, Marias, Andersons, Antônios, universitários, operários. Marielles e Marias que temem levar filhos à escola ou ao parquinho, Andersons e Antônios que recebem seus salários atrasados e não têm outra fonte para sustentar suas famílias, Marielles brancas, negras, morenas, sem oportunidades pelo que não aprenderam na escola, Marielles com alta escolaridade e assim mesmo desempregadas pela estagnação econômica.
Quando fui sequestrado, decidi que, se saísse daquilo com vida, iria fazer o que pudesse por um Rio mais seguro e mais feliz. Libertado, me uni ao Movimento Viva Rio e promovemos um evento pela paz que reuniu 400 mil pessoas vestidas de branco e de emoção. Era um começo. Foi ali que entrou em minha história uma das pessoas mais admiráveis que já encontrei: o sociólogo Betinho. E ele me disse: “Roberto, passamos tempo demais sem nos conhecer”. Daí para frente, nossa cidade foi a nossa ponte.
Em vez de guerra ideológica, precisamos de um choque de gestão, sem tempo a perder. Não há bala de esquerda ou de direita. O direito de ir e vir foi usurpado por bandos de ladrões e assassinos. A população não pede favor para ser socorrida — exige! Não há um plano B para a intervenção federal na segurança pública. Não há dinheiro, competência administrativa ou liderança para substituí-la. Ela tem que ficar pelo tempo necessário para que as polícias recuperem sua capacidade de proteger a vida do cidadão. E é imperativo que receba todo o apoio do governo federal, do governo estadual e das vítimas em potencial, que chamamos de sociedade.
Teremos neste ano a oportunidade de escolher nossos representantes no poderes do estado e da República. Aproveitemos, com lucidez cidadã e sem desperdício do voto, esta oportunidade de nos reinventar. Acima de qualquer radicalismo, os valores que devem prevalecer na escolha são a capacidade de gestão e a honestidade, a criatividade e a coragem, a determinação e o bom senso.
Vamos olhar com lupa os candidatos, antes de decidir a quem delegaremos nosso poder de mudar. Vamos abrir espaço para ouvir o que as Marielles e Andersons de todas as classes e todos os lugares têm a dizer e a cobrar, antes que seja tarde demais. Vamos eleger um novo amanhã para nosso estado, com a firmeza da razão e a energia da esperança.
Que as mortes não nos separem - FERNANDO GABEIRA
ESTADÃO - 23/03
Prevalecem discursos de ódio e a exploração política descarada do assassinato de Marielle
A morte de Marielle Franco e 60 mil mortes estúpidas registradas anualmente no Brasil deveriam unir-nos. Ou, pelo menos, nos aproximar. Mas não é isso que acontece no momento. Prevalecem discursos de ódio e a exploração política mais descarada.
Até autoridades engrossam o coro dos que tentam reescrever a história da vereadora, atribuindo-lhe um passado inexistente. O PT afirma que a morte de Marielle e a pena de Lula são faces de uma mesma moeda. Dilma a considera uma parte do golpe.
A sensação de emergência com que vejo o problema da segurança pública no Rio às vezes me faz sonhar romanticamente com uma solução parecida com a que demos ao surto de febre amarela. Havia um problema, definiu-se a saída – vacinação – e as pessoas foram aos postos saúde. Nas filas, ninguém gritando “fora Temer”.
Era um tipo de problema que precisava ser enfrentado, não importa quem estivesse lá em cima. Restou apenas uma pequena minoria contra vacinas que defendeu suas ideias na rede, democraticamente, sem agressividade.
É impossível transplantar esse comportamento para a segurança pública. As saídas são mais complexas. E há um pesado clima político-ideológico em torno delas.
No entanto, não creio que o Brasil se resuma ao debate ensandecido, com tanta gente zangada e os robôs incendiando a discussão. Existe um espaço racional de conversa, sobretudo para um tema tão atacado pela esquerda e pela própria Marielle: a intervenção federal na segurança do Rio.
O primeiro desafio é desvendar o crime. Houve um debate inicial sobre federalizar ou não as investigações. Temo que isso nos leve aos impasses de quando surgiu a dengue: estadual ou federal?
A hipótese indicada, creio, é reunir o que há de melhor tanto na polícia do Rio quanto nos quadros federais. Mesmo porque a polícia do Rio tem experiência no campo.
Todavia é razoável desconfiar da possibilidade de um trabalho isolado. Mas não deixa de ser uma contradição aparente: combater a intervenção federal e duvidar da capacidade da polícia. Os que o fazem desprezam a desconfiança que grande parte dos cariocas tem na capacidade da polícia de deter sozinha o avanço da ocupação armada.
Usei a expressão aparente contradição porque cabe argumentar que uma coisa é a investigação técnico-científica e outra, a crítica à presença do Exército nas favelas do Rio.
O argumento dos defensores dos pobres, às vezes sem consultar realmente os pobres, é de que a presença do Exército traz ameaças aos direitos humanos. Mas a presença de um Exército que cumpre as leis, que tem regras de engajamento transparentes, não pode ser comparada à presença de traficantes com fuzis ou milicianos armados.
Entre um Exército ostentando a bandeira do Brasil e outro exército, de boné e sandálias, mas com modernos fuzis, parece existir uma hesitação. Como explicar isso?
De um lado, a dificuldade de compreender que os anos passaram e o Exército Brasileiro está comprometido com a democracia. De outro está a romantização dos bandidos. Não me refiro apenas às conversas em torno do chope nos botequins da vida. Nem à simples interpretação vulgar do marxismo. Essa romantização está presente em textos de eruditos de esquerda, como o historiador Eric Hobsbawn. Ele via o banditismo como reação a certas condições sociais. Apesar de brilhante, interpretava o mundo apenas com os olhos do marxismo.
No cenário cultural brasileiro, discutiu-se muito a frase de Hélio Oiticica “seja marginal, seja herói”, como um exemplo disso. Nesse caso específico, entretanto, creio que Oiticica falava do criador e sua relação com o mercado de artes plásticas.
O argumento dos opositores da presença militar é o de que os favelados são incomodados pelo Exército. A verdade é que, às vezes, são estuprados por traficantes, achacados pelas milícias, que vendem de tudo, do gás ao acesso à televisão fechada. E não há espaço para a sociedade monitorá-los amplamente, como o faz com o Exercito.
Um dos argumentos do PSOL é que a intervenção não é necessária. Talvez ele se apoie nos índices de homicídios mais altos, como os do Ceará e de outros Estados do Nordeste, por exemplo. Mas não enfrenta a questão específica do Rio: a ocupação armada. Como resolvê-la?
A resposta, nesse caso, costuma estar na ponta da língua: educação, saúde, saneamento, cultura. Mas como chegar lá com isso tudo?
A presença dos militares em si também não resolve o problema de fundo. Mas abre caminho para que a polícia estadual se recupere e tente reduzir a mancha territorial ocupada.
Alguns traficantes toleram o trabalho político em suas áreas. No caso da Vila Cruzeiro, do Complexo do Alemão, liberavam algumas ruas para o corpo a corpo eleitoral. Mas isso são concessões, migalhas de liberdade, pois não só o governo, como todos os candidatos devem ter acesso irrestrito a todos os pontos da cidade.
Às vezes, alguns mais exaltados nos dão a impressão de que, se a favela de repente tivesse segurança e todos os serviços básicos assegurados, seu discurso cairia no vazio, não saberiam mais para onde apontar a luta. Quando Temer decretou a intervenção na segurança, Bolsonaro disse que estava roubando sua bandeira.
Todos sabemos que Temer não se preocupa senão com a própria sorte e a do seu bando, já dizimado pela Lava Jato. Se a intervenção conseguir equilibrar as forças no Rio e contribuir para o longo processo de libertação de parte do território, muitas bandeiras podem ser roubadas também.
Não há nada a temer. Outras virão. Uma delas, congelada há algum tempo, são os escritórios de arquitetura destinados a orientar construções e reformas. Beleza, funcionalidade e conforto, de alguma forma, podem ser acrescentados aos morros pacificados.
Prevalecem discursos de ódio e a exploração política descarada do assassinato de Marielle
A morte de Marielle Franco e 60 mil mortes estúpidas registradas anualmente no Brasil deveriam unir-nos. Ou, pelo menos, nos aproximar. Mas não é isso que acontece no momento. Prevalecem discursos de ódio e a exploração política mais descarada.
Até autoridades engrossam o coro dos que tentam reescrever a história da vereadora, atribuindo-lhe um passado inexistente. O PT afirma que a morte de Marielle e a pena de Lula são faces de uma mesma moeda. Dilma a considera uma parte do golpe.
A sensação de emergência com que vejo o problema da segurança pública no Rio às vezes me faz sonhar romanticamente com uma solução parecida com a que demos ao surto de febre amarela. Havia um problema, definiu-se a saída – vacinação – e as pessoas foram aos postos saúde. Nas filas, ninguém gritando “fora Temer”.
Era um tipo de problema que precisava ser enfrentado, não importa quem estivesse lá em cima. Restou apenas uma pequena minoria contra vacinas que defendeu suas ideias na rede, democraticamente, sem agressividade.
É impossível transplantar esse comportamento para a segurança pública. As saídas são mais complexas. E há um pesado clima político-ideológico em torno delas.
No entanto, não creio que o Brasil se resuma ao debate ensandecido, com tanta gente zangada e os robôs incendiando a discussão. Existe um espaço racional de conversa, sobretudo para um tema tão atacado pela esquerda e pela própria Marielle: a intervenção federal na segurança do Rio.
O primeiro desafio é desvendar o crime. Houve um debate inicial sobre federalizar ou não as investigações. Temo que isso nos leve aos impasses de quando surgiu a dengue: estadual ou federal?
A hipótese indicada, creio, é reunir o que há de melhor tanto na polícia do Rio quanto nos quadros federais. Mesmo porque a polícia do Rio tem experiência no campo.
Todavia é razoável desconfiar da possibilidade de um trabalho isolado. Mas não deixa de ser uma contradição aparente: combater a intervenção federal e duvidar da capacidade da polícia. Os que o fazem desprezam a desconfiança que grande parte dos cariocas tem na capacidade da polícia de deter sozinha o avanço da ocupação armada.
Usei a expressão aparente contradição porque cabe argumentar que uma coisa é a investigação técnico-científica e outra, a crítica à presença do Exército nas favelas do Rio.
O argumento dos defensores dos pobres, às vezes sem consultar realmente os pobres, é de que a presença do Exército traz ameaças aos direitos humanos. Mas a presença de um Exército que cumpre as leis, que tem regras de engajamento transparentes, não pode ser comparada à presença de traficantes com fuzis ou milicianos armados.
Entre um Exército ostentando a bandeira do Brasil e outro exército, de boné e sandálias, mas com modernos fuzis, parece existir uma hesitação. Como explicar isso?
De um lado, a dificuldade de compreender que os anos passaram e o Exército Brasileiro está comprometido com a democracia. De outro está a romantização dos bandidos. Não me refiro apenas às conversas em torno do chope nos botequins da vida. Nem à simples interpretação vulgar do marxismo. Essa romantização está presente em textos de eruditos de esquerda, como o historiador Eric Hobsbawn. Ele via o banditismo como reação a certas condições sociais. Apesar de brilhante, interpretava o mundo apenas com os olhos do marxismo.
No cenário cultural brasileiro, discutiu-se muito a frase de Hélio Oiticica “seja marginal, seja herói”, como um exemplo disso. Nesse caso específico, entretanto, creio que Oiticica falava do criador e sua relação com o mercado de artes plásticas.
O argumento dos opositores da presença militar é o de que os favelados são incomodados pelo Exército. A verdade é que, às vezes, são estuprados por traficantes, achacados pelas milícias, que vendem de tudo, do gás ao acesso à televisão fechada. E não há espaço para a sociedade monitorá-los amplamente, como o faz com o Exercito.
Um dos argumentos do PSOL é que a intervenção não é necessária. Talvez ele se apoie nos índices de homicídios mais altos, como os do Ceará e de outros Estados do Nordeste, por exemplo. Mas não enfrenta a questão específica do Rio: a ocupação armada. Como resolvê-la?
A resposta, nesse caso, costuma estar na ponta da língua: educação, saúde, saneamento, cultura. Mas como chegar lá com isso tudo?
A presença dos militares em si também não resolve o problema de fundo. Mas abre caminho para que a polícia estadual se recupere e tente reduzir a mancha territorial ocupada.
Alguns traficantes toleram o trabalho político em suas áreas. No caso da Vila Cruzeiro, do Complexo do Alemão, liberavam algumas ruas para o corpo a corpo eleitoral. Mas isso são concessões, migalhas de liberdade, pois não só o governo, como todos os candidatos devem ter acesso irrestrito a todos os pontos da cidade.
Às vezes, alguns mais exaltados nos dão a impressão de que, se a favela de repente tivesse segurança e todos os serviços básicos assegurados, seu discurso cairia no vazio, não saberiam mais para onde apontar a luta. Quando Temer decretou a intervenção na segurança, Bolsonaro disse que estava roubando sua bandeira.
Todos sabemos que Temer não se preocupa senão com a própria sorte e a do seu bando, já dizimado pela Lava Jato. Se a intervenção conseguir equilibrar as forças no Rio e contribuir para o longo processo de libertação de parte do território, muitas bandeiras podem ser roubadas também.
Não há nada a temer. Outras virão. Uma delas, congelada há algum tempo, são os escritórios de arquitetura destinados a orientar construções e reformas. Beleza, funcionalidade e conforto, de alguma forma, podem ser acrescentados aos morros pacificados.
Um Poder que não se respeita - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 23/03
Bate-boca entre ministros do STF prestou-se a simbolizar a degradação de um Poder que hoje é fonte e motor de grande parte das crises que infelicitam o País
A vergonhosa troca de ofensas entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), quarta-feira passada, foi a culminação de um dia de infâmia para o Judiciário pátrio. Menos do que revelar a deselegância e o destempero dos magistrados, comportamento lamentavelmente já conhecido de outras ocasiões, o bate-boca prestou-se a simbolizar a degradação de um Poder que, em vez de garantir o império da lei, hoje é fonte e motor de grande parte das crises que infelicitam o País. Tudo isso graças a uma soma de despreparo técnico, prevalência de interesses políticos e corporativos e voluntarismo irresponsável.
Na mesma sessão em que os ministros Mendes e Barroso se trataram como dois valentões na saída da escola, preservando da etiqueta do Supremo somente o uso do pronome de tratamento “Vossa Excelência”, o ministro Luiz Fux protagonizou um dos maiores vexames da história recente daquela Corte, ao retirar da pauta de votação os processos que discutem o pagamento de auxílio-moradia a juízes.
Relator das ações que discutem a constitucionalidade do auxílio-moradia, o ministro Fux, em vez de colocá-las em votação, cedeu a um pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para remeter os processos para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, da Advocacia-Geral da União.
Ora, o ministro Fux deveria saber que a Câmara de Conciliação não se presta a mediar conflitos de caráter trabalhista, e sim a solucionar questões entre a União e órgãos da administração federal indireta, como autarquias e empresas estatais. Prebendas para magistrados obviamente não são uma dessas querelas.
Ao remeter as ações para a Câmara de Conciliação, o Supremo, na pessoa do ministro Fux, renunciou à sua tarefa básica de fazer valer a Constituição. Pois é disso que se trata: o auxílio-moradia, por obra de liminar do próprio ministro Fux, acabou incorporado desde 2014 aos vencimentos dos magistrados, sem o correspondente pagamento de imposto e em franco desrespeito ao teto salarial constitucional do funcionalismo. Caberia unicamente ao Supremo acabar com essa farra, mas parece que aquela Corte sucumbiu de vez à corporação togada, que até greve faz.
Diante dessa evidente degradação, que nem de longe se limita à infame jornada de anteontem, seria urgente que o órgão de controle externo do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se pronunciasse de alguma maneira, para constranger formalmente os que insistem em desmoralizar o Supremo Tribunal. Mas talvez seja esperar demais.
Afinal, um dia antes do triste espetáculo oferecido no STF, o plenário do CNJ rejeitou recurso do Ministério Público contra a punição excessivamente branda de três juízes federais que participaram de um esquema para desviar recursos da Fundação Habitacional do Exército. Em 2016, uma câmara administrativa do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região aplicou censura a dois dos juízes e advertência ao terceiro. Para o CNJ, essas “penas” foram adequadas, embora o Ministério Público calcule que as perdas com o esquema tenham superado R$ 20 milhões. Ou seja, dispensou os maus funcionários com dois tapinhas nas costas.
Quando o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, que estão no topo da estrutura judicial do País, são palco de tamanho desvirtuamento da noção de Estado de Direito, o mais recente entrevero entre ministros do STF é, por incrível que pareça, o de menos. Apenas expôs ao País o grau de aviltamento de parte do Judiciário, em que alguns magistrados, entre capas e rapapés, exigem reverência dos brasileiros em geral enquanto colaboram para piorar o que já está muito ruim. Comprovam que no Brasil não há segurança jurídica. O que há é insegurança judiciária e juízes que se sentem orgulhosos do que obram.
A judicialização de quase tudo na vida nacional, resultado da deterioração de outras instituições, expôs o despreparo da elite da magistratura para tamanho desafio. Mais do que demonstrar boa educação, serenidade e decoro, é preciso que os ministros do Supremo deem o exemplo e se empenhem em fazer valer o que está escrito na Constituição. Já seria um bom começo.
Bate-boca entre ministros do STF prestou-se a simbolizar a degradação de um Poder que hoje é fonte e motor de grande parte das crises que infelicitam o País
A vergonhosa troca de ofensas entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), quarta-feira passada, foi a culminação de um dia de infâmia para o Judiciário pátrio. Menos do que revelar a deselegância e o destempero dos magistrados, comportamento lamentavelmente já conhecido de outras ocasiões, o bate-boca prestou-se a simbolizar a degradação de um Poder que, em vez de garantir o império da lei, hoje é fonte e motor de grande parte das crises que infelicitam o País. Tudo isso graças a uma soma de despreparo técnico, prevalência de interesses políticos e corporativos e voluntarismo irresponsável.
Na mesma sessão em que os ministros Mendes e Barroso se trataram como dois valentões na saída da escola, preservando da etiqueta do Supremo somente o uso do pronome de tratamento “Vossa Excelência”, o ministro Luiz Fux protagonizou um dos maiores vexames da história recente daquela Corte, ao retirar da pauta de votação os processos que discutem o pagamento de auxílio-moradia a juízes.
Relator das ações que discutem a constitucionalidade do auxílio-moradia, o ministro Fux, em vez de colocá-las em votação, cedeu a um pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para remeter os processos para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, da Advocacia-Geral da União.
Ora, o ministro Fux deveria saber que a Câmara de Conciliação não se presta a mediar conflitos de caráter trabalhista, e sim a solucionar questões entre a União e órgãos da administração federal indireta, como autarquias e empresas estatais. Prebendas para magistrados obviamente não são uma dessas querelas.
Ao remeter as ações para a Câmara de Conciliação, o Supremo, na pessoa do ministro Fux, renunciou à sua tarefa básica de fazer valer a Constituição. Pois é disso que se trata: o auxílio-moradia, por obra de liminar do próprio ministro Fux, acabou incorporado desde 2014 aos vencimentos dos magistrados, sem o correspondente pagamento de imposto e em franco desrespeito ao teto salarial constitucional do funcionalismo. Caberia unicamente ao Supremo acabar com essa farra, mas parece que aquela Corte sucumbiu de vez à corporação togada, que até greve faz.
Diante dessa evidente degradação, que nem de longe se limita à infame jornada de anteontem, seria urgente que o órgão de controle externo do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se pronunciasse de alguma maneira, para constranger formalmente os que insistem em desmoralizar o Supremo Tribunal. Mas talvez seja esperar demais.
Afinal, um dia antes do triste espetáculo oferecido no STF, o plenário do CNJ rejeitou recurso do Ministério Público contra a punição excessivamente branda de três juízes federais que participaram de um esquema para desviar recursos da Fundação Habitacional do Exército. Em 2016, uma câmara administrativa do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região aplicou censura a dois dos juízes e advertência ao terceiro. Para o CNJ, essas “penas” foram adequadas, embora o Ministério Público calcule que as perdas com o esquema tenham superado R$ 20 milhões. Ou seja, dispensou os maus funcionários com dois tapinhas nas costas.
Quando o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, que estão no topo da estrutura judicial do País, são palco de tamanho desvirtuamento da noção de Estado de Direito, o mais recente entrevero entre ministros do STF é, por incrível que pareça, o de menos. Apenas expôs ao País o grau de aviltamento de parte do Judiciário, em que alguns magistrados, entre capas e rapapés, exigem reverência dos brasileiros em geral enquanto colaboram para piorar o que já está muito ruim. Comprovam que no Brasil não há segurança jurídica. O que há é insegurança judiciária e juízes que se sentem orgulhosos do que obram.
A judicialização de quase tudo na vida nacional, resultado da deterioração de outras instituições, expôs o despreparo da elite da magistratura para tamanho desafio. Mais do que demonstrar boa educação, serenidade e decoro, é preciso que os ministros do Supremo deem o exemplo e se empenhem em fazer valer o que está escrito na Constituição. Já seria um bom começo.
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