segunda-feira, novembro 05, 2012

O enrosco do subsídio - REVISTA VEJA

Revista Veja

Dilma manda a Petrobras segurar o preço dos combustíveis para conter a inflação, mas isso debilita a empresa e mata a autossuficiência

HELENA BORGES


Foi bom enquanto durou. No próximo ano, o Brasil voltará a ser dependente da importação de petróleo. Adeus, autossuficiência, celebrada com fervor nacionalista em 2006, quando o país passou a produzir mais petróleo do que consumia. O então presidente Lula deu contornos épicos ao feito, que comparou à "segunda independência do Brasil". A propaganda escondia que a conquista da autossuficiência ainda deixava um déficit na conta externa de energia, pois o Brasil continuaria a vender petróleo cru e a importar gasolina e diesel. Porém, apesar do saldo externo negativo, produzir tanto petróleo internamente ajudou a diminuir a vulnerabilidade da economia a choques externos, como os catastróficos eventos das décadas de 70 e 80, quando a produção brasileira de petróleo totalizava menos de um décimo da atual. Voltar a ser dependente da importação é, portanto, uma má notícia.

Um estudo inédito do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), obtido com exclusividade por VEJA, mostra que, já em 2013, o Brasil estará, consumindo mais óleo do que será capaz de produzir. Se teve seus méritos na conquista da autossuficiência, o governo também é culpado pela perda desse privilégio. Por duas razões: a primeira foi forçar a Petrobras a subsidiar o preço ao consumidor da gasolina e do diesel, mantendo-o estável mesmo com o aumento do custo internacional do petróleo: a segunda foi incentivar a venda de carros novos com crédito farto e corte de impostos, o que aumentou a frota nacional e, claro, o consumo.

Essas feitiçarias heterodoxas têm efeitos imprevisíveis. Ao proibir a Petrobras de repassar os aumentos ao preço do petróleo, o governo conseguiu impedir um acréscimo médio de cerca de 0,4 ponto porcentual no índice de inflação, que já está bem acima da meta de 4,5% estipulada para 2012. Mas, ao bancar o subsídio, que só neste ano já provocou um prejuízo de 12,8 bilhões de reais, a Petrobras perdeu sua capacidade de investimento, não modernizou os poços já produtivos, interrompeu a prospecção de novas jazidas e atrasou a extração da riqueza do óleo de grande profundidade, o pré-sal. Como despiu um santo para vestir outro, a presidente Dilma Rousseff se encontra agora em um dilema severo. Se desafogar o caixa da Petrobras autorizando o repasse dos preços externos, a inflação subirá mais rapidamente. Se mantiver a política de subsídio pela companhia, vai se arriscar não apenas a perder a autossuficiência como a entrevar irreparavelmente a empresa que é orgulho nacional, o retrato a óleo do Brasil emoldurado pelos sonhos de grandeza de tantas gerações. Esse dilema não tem solução fácil nem indolor. É uma daquelas situações em que as opções são perder ou perder.

Se não tem solução, ele oferece a chance de refletir sobre, afinal, por que razão chegamos a essa situação negativa. A verdade pura e cristalina vem do fato de a presidente Dilma ter se servido da Petrobras como um braço de sua política econômica — no caso, como arma para conter a inflação, uma vez que foi descartada a opção clássica de segurar o dragão com o aumento dos juros básicos da economia, a taxa Selic. Diz Adriano Pires, diretor do CBIE, que patrocinou o estudo que aponta a volta da dependência brasileira do petróleo importado: "Ao pesar a mão sobre a Petrobras, o governo não prejudicou só a empresa, mas emperrou o aproveitamento de todo o potencial do pré-sal e comprometeu o crescimento do país".

Os últimos resultados da Petrobras, anunciados no dia 26 de outubro, expuseram o estrago dessa política. O lucro diminuiu, os custos subiram e o endividamento bateu no limite. No último trimestre, a produção de petróleo caiu 3%, chegando ao menor patamar desde 2008. Se estivesse investindo no pré-sal, como previsto, o Brasil deveria estar produzindo neste ano 6.8% mais do que em 2011 e continuaria autossuficiente, mesmo com o salto no consumo de combustível devido ao aumento da frota. As dificuldades de gestão já estão sendo sentidas no preço das ações da estatal, que chegaram a cair 3.39% em um único dia. Comparado a 2009, o valor de mercado da Petrobras foi reduzido a menos da metade.

Recentemente, Maria das Graças Foster, presidente da companhia, admitiu a perda de eficiência média de 10% nas plataformas. Em alguns casos, chega a 50%. Uma das causas é o declínio natural da produtividade de poços mais antigos, mas influíram também as transferências e a aposentadoria de equipes de manutenção e operação altamente treinadas. A extinção do bônus por desempenho individual dos funcionários, trocado pela participação nos lucros, uma exigência sindical, quebrou uma das vigas mestras do sucesso da Petrobras: a meritocracia. O novo sistema desestimula a excelência individual e, pior, dilui as responsabilidade quando ocorrem falhas graves. A tudo isso, somou-se o atraso na entrega de plataformas e sondas para novos campos no pré-sal, fruto de uma contingência do mercado internacional — o que tornará ainda mais difícil fazer a produção voltar a subir. O atual estrangulamento financeiro da estatal é apontado como uma das razões para o fato de o governo ter suspendido, há quatro anos, novos leilões de campos de petróleo, que exigiriam ainda mais investimentos. Sem eles, a produção não avança, desencadeando um ciclo vicioso que agrava a dependência de importações.

Os sinais do fim da autossuficiência já aparecem. Há um mês, seis estados das regiões Sul e Norte ficaram sem gasolina. A própria Petrobras reconhece que só em 2014 a produção voltará a crescer A autossuficiência poderia ser reconquistada em 2015. Mas isso depende de a estatal cumprir os próprios planos, o que não tem ocorrido faz um bom tempo. Diz o economista Luiz Caetano, analista da corretora Planner Prosper: “Há pelo menos cinco anos a Petrobras não honra suas metas. Esse histórico não anima ninguém".

COM MARCELO SAKATE

O futuro da imprensa - PAULO BROSSARD

ZERO HORA - 05\11


Lembro-me, como se fosse hoje, de quando entrou a circular o Jornal da Tarde (JT); com os primeiros exemplares que ganharam as ruas o jornal adquiriu sua reputação, tamanha a diferença entre ele e os muitos até legendários periódicos editados no Rio de Janeiro e em São Paulo, sem falar nos dos Estados; não se confundia sequer com o O Estado de S. Paulo, de cuja ilharga se despregara; seu perfil era novo, salvo quanto à filosofia de ambos, pois a ambos era comum.

O “Estadão”, com suas cicatrizes havidas em situações inenarráveis e a altivez centenária a enfrentar novos desafios, continuava a ser o que sempre fora, fazendo lembrar um cedro majestoso. O JT começava a vida a espargir talento e graça, com prosa corrente e concepções elegantes, enfim, com finura e arte em um mundo que mudava todos os dias.

Quando todas as folhas disputavam milímetro a milímetro os espaços, o JT deixava vazios desde a primeira página a encher de vozes os mudos espaços desocupados. Não sei por que o jornal me fez lembrar um breve ensaio, menos de cem páginas, de um homem de letras moço e já consagrado, hoje quase esquecido, Ronald de Carvalho, intitulado Rabelais et le Rire de la Renaissance.

Guardadas as devidas proporções, também um riso parecia ouvir-se até nos espaços vazios distribuídos pelas sisudas páginas dos melhores periódicos. E, como as coisas boas e belas também se apagam, é triste o dia em que se extingue um jornal inovador e fecundo.

Enquanto isso, a liberdade de imprensa sofre penas a que está sujeita na Venezuela, Equador, Argentina, sem falar em Cuba, como penou entre nós, durante anos, e ainda agora não faltam os que pretendem a “regulação dos meios de comunicação”.

Os caminhos da vida me foram afastando de muitas coisas, inclusive a de acompanhar jornais e jornais da melhor qualidade, até ter a triste notícia que anunciava o iminente encerramento do JT.

O termo vital de um jornal como foi o Jornal da Tarde tem a plangência de finados, tanto mais quando ocorrido no maior Estado da federação econômica e culturalmente, assim como em valores nos mais variados setores do saber humano; qual a explicação? De mais a mais, se isto ocorre em São Paulo, que se pode esperar em outros de notórias carências?

Eu teria observações a acrescentar, mas prefiro reproduzir os períodos finais do editorial “O JT sai da cena”, que O Estado de S. Paulo estampou no dia em que o Jornal da Tarde emudeceu.

“(...) No momento em que não só o jornalismo, ferramenta essencial da democracia, mas o pensamento escrito como um todo se debatem novamente numa crise que é, essencialmente, uma crise universal de desajuste de velocidades, vale a pena nos determos mais uma vez nesse aspecto que, para o bem e para o mal (quando a vantagem do tempo de processamento lhe foi suprimida), definiu a história e a trajetória do Jornal da Tarde.

(...) A submissão acrítica ao fascínio da velocidade sem rumo devolve a humanidade a uma crescente incapacidade de pensar e vai reduzindo a vida a uma sucessão de reações automatizadas de sobrevivência onde somos nós que, em bando, servimos às máquinas e não elas que nos acrescentam à individualidade, à segurança e ao conforto material ou espiritual.

Superar a barbárie e dar a cada homem as rédeas do seu próprio destino é o objetivo da democracia. O jornalismo está a serviço dela e esta, há 137 anos, tem sido a casa do jornalismo.

É nossa a responsabilidade, agora discutindo o papel central que nós próprios temos tido na construção dessa nova Babel, de contribuir para deter essa voragem e devolver aos homens o grau possível de controle sobre suas vidas.

O JT fez parte desta obra ao abrir novos caminhos. Cabe-nos continuar a percorrê-los.”

O resto é o resto - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA 


Nada mais natural que depois de uma eleição para prefeitos e vereadores, como a de ago­ra, ou para governadores, deputados e presi­dente. como se fará daqui a dois anos, cada um diga o que bem entender sobre o verdadeiro significado do que aconteceu, com os costumeiros cálculos para estabelecer “quem ganhou e quem perdeu”; deveria ser uma tarefa bem simples con­cluir que ganhou quem teve mais votos e perdeu quem teve menos, mas esse debate é um velho há­bito nacional, e não vai mudar. Outra coisa, muito diferente, é acreditar naquilo que se diz. Traia-se de uma liberdade de duas mãos: cada um fala o que quiser e, em compensação, cada um entende o que quiser daquilo que foi falado. Na recém-terminada eleição municipal de 2012, como de costume, não ficou claro, nem vai ficar, quanta atenção o público deveria realmente prestar a toda essa conversa que está ouvindo agora. É certo, desde já, que está ou­vindo coisas que não fazem nenhum sentido — e. por isso mesmo, provavelmente não perderia nada se prestasse o mínimo de atenção a elas.

A fórmula é sempre a mesma. Cientistas polí­ticos, pescados em alguma universidade ou insti­tuto superior disso ou daquilo, aparecem de repen­te nos meios de comunicação para explicar, depois de encerrada a batalha, como. por que e por quem ela foi ganha ou perdida. É uma estranha ciência, essa, que. em vez de lidar com fatos comprovados, lida com opiniões. Na anatomia, por exemplo, está dito que o homem tem dois pulmões: não pode ha­ver outra “opinião" quanto a isso. Na ciência polí­tica pode. Juntam-se a esses cientistas os políticos propriamente ditos, os comentaristas da imprensa e mais uma porção de gente, e de tudo oque dizem resulta uma salada que a mídia serve ao público como se estivesse transmitindo ao vivo o Sermão da Montanha. Uma demonstração clara desse tu­multo mental é a conclusão, por pane de muitas cabeças coroadas do mundo político, de que a vitó­ria pessoal do ex-presidente Lula na eleição de São Paulo, onde levou para a prefeitura uma nulidade eleitoral que ninguém conhecia três meses atrás, apagou as condenações que seu partido e seu go­verno receberam no julgamento do mensalão. Está na cara que o resultado não apagou nem acendeu nada. pois eleição não é feita para separar o certo do errado, nem para decidir se houve ou não hou­ve um crime — serve, unicamente, para escolher quem vai governar. Dizer o que está certo ou erra­do é tarefa exclusiva da Justiça; no caso, o STF já decidiu que foi cometida no governo Lula uma ca­tarata de crimes, sobretudo de corrupção. Não há, simplesmente, como mudar isso. A Justiça pode funcionar muito mal no Brasil, mas é o único meio que se conhece para resolver quem tem razão — assim como eleição é o único meio que se conhe­ce para escolher governos.

Não foi o “povo brasileiro", além disso, quem “absolveu** o PT—ou concorda quando o partido diz que seus chefes são “prisioneiros políticos” condenados por um “tribunal de exceção", e não por corromperem e serem corrompidos. É curio­so, aliás, como os políticos deste país ficam à vontade para falar em “povo brasileiro”. O PT ga­nhou esta última eleição em 10% dos municípios. E os eleitores dos outros 90%, com 80% do elei­torado, que povo seriam? Esquimós? É dado co­mo um fato científico, também, que Lula foi o maior ganhador da eleição, por causa do resultado em São Paulo. Por que isso? Porque ele próprio, o PT e outros tantos vinham dizendo, desde o começo, que só o município de São Paulo, com pouco mais de S% dos eleitores brasileiros, importava; o resto era apenas o resto. De tan­to repetirem isso, virou verdade. Mas é falso: não dá para dizer que não houve eleição em Salvador ou Fortaleza, no Recife, em Belo Horizonte e Porto Alegre, onde o PT apresentou candidatos com pleno apoio de Lula e da presi­dente Dilma Rousseff. e perdeu em todas — nas três últimas, inclusive, não sobreviveu nem ao primeiro turno. No mapa mental de Lula é como se nenhuma dessas cidades estivesse em território brasileiro; o Brasil, em sua geografia, começa e acaba em São Paulo. Cinco das principais capitais brasileiras, por esse modo de medir as coisas, são tratadas como se ficassem em Mane.

O que Lula e seu partido fizeram foi construir a ideia de que São Paulo, sozinha, vale mais que todo o restante do Brasil somado — e nisso, real­mente, tiveram sucesso, pois nove entre dez “pro­fissionais” da política dizem mais ou menos a mesma coisa. Assim é. se lhes parece. Mas o pú­blico não tem a menor obrigação de acreditar no que estão dizendo.

Chantagem no Palácio - REVISTA VEJA


REVISTA VEJA

O publicitário Marcos Valério afirma que o PT lhe pediu para conseguir dinheiro para calar um empresário que ameaçava envolver Lula no caso Celso Daniel. Ele disse não.

RODRIGO RANGEL


O empresário Marcos Valério sempre se comportou como um arquivo vivo. Todas as vezes que enfrentava dificuldades financeiras, ameaçava revelar os segredos que guardou do período em que era um dos homens mais influentes do governo Lula. Sempre que problemas cobriam o horizonte, ele o clareava lembrando os antigos camaradas das coisas que sabe e pode revelar. Nas circunstâncias em que era tomado pelo medo de que algo lhe acontecesse, saber muitos segredos o tranquilizava. Agora, condenado a quarenta anos de prisão por operar o maior esquema de corrupção da história, o mensalão, o empresário ameaça de novo contar o que sabe. Uma reportagem da última edição de VE JA mostrou que em setembro Valério mandou um fax ao Supremo Tribunal Federal pedindo proteção de vida em troca de informações. Ele também procurou o Ministério Público citando três personagens sobre os quais teria muito que dizer: o ex-presidente Lula, o ex-ministro Antonio Palocci e o ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel. Valério diz ter muito a contar, inclusive sobre outros episódios que mancharam a reputação do PT e, assim como o mensalão, envolvem desvio de recursos públicos e corrupção.

Entre 2002 e 2005, quando explodiu o escândalo da compra de apoio no Congresso Nacional, Marcos Valério participava de um restrito grupo encarregado de arrecadar dinheiro para financiar ações clandestinas do PT e de seus dirigentes. Segundo relato do próprio publicitário, foi nessa condição que ele testemunhou uma cena de chantagem contra o então presidente Lula e seu chefe de gabinete, o ministro Gilberto Carvalho. Os dois estavam sendo extorquidos por pessoas envolvidas no caso de corrupção e morte do ex-prefeito Celso Daniel, ocorrida em janeiro de 2002. Marcos Valério afirma que foi chamado pelo PT para ajudar a resolver o problema. Era início de 2003, nos primeiros meses do governo Lula. O empresário contou que foi convocado para uma reunião com o então secretário-geral do PT, Silvio Pereira, e o empresário Ronan Maria Pinto, apontado pelo Ministério Público como integrante de um esquema de recolhimento de propina montado pelos petistas na prefeitura de Santo André. O empresário Ronan Pinto, conta Valério, ameaçava envolver Lula e Gilberto Carvalho no episódio. O publicitário relata como reagiu quando lhe pediram para levantar o dinheiro necessário para apaziguar o empresário. “Eles achavam que (o pagamento) ia ser através de mim, e eu falei assim: ‘Nisso aí eu não me meto, não’.”

Valério não dá mais detalhes, mas se mostra disposto a contar tudo o que sabe do caso à Justiça. Até hoje as circunstâncias da morte de Celso Daniel são intrigantes. O prefeito foi sequestrado em 18 de janeiro de 2002. Dois dias depois, o corpo foi encontrado numa estrada em Juquitiba, município da Grande São Paulo. No momento em que foi sequestrado, Celso Daniel estava acompanhado do amigo e empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra. A investigação policial concluiu que Celso Daniel foi mais uma vítima de crime comum. O Ministério Público, porém, discordou dos policiais. Os promotores sustentam que o ex-prefeito de Santo André teria sido morto pelo grupo que se beneficiava de um esquema irregular de propina na prefeitura. Sérgio Sombra teria armado a cena do crime. O amigo do prefeito integrava o esquema de corrupção junto com Ronan Maria Pinto, dono do maior jornal da cidade, de empresas de ônibus e de uma empresa de coleta de lixo. Bruno Daniel, irmão do prefeito, disse às autoridades que o ex-chefe de gabinete de Lula e atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, conhecia bem o esquema de corrupção.

Marcos Valério afirma que, apesar do apelo que recebeu de Silvio Pereira, preferiu não participar da operação. Embora negue que tenha conseguido o dinheiro, Valério diz que, no fim das contas, Ronan Pinto foi atendido. Ele garante que sabe quem pagou e, principalmente, como foi a guerra para acertar as contas com o empresário. O pagamento, afirma, foi feito por um amigo pessoal de Lula. “Envolve um banco que não faz parte do mensalão.” Valério diz que esse é apenas um “pedacinho” da história. Os personagens da trama têm outros pontos de contato. Silvio Pereira, o petista que Marcos Valério diz ter conduzido a negociação da chantagem, foi denunciado como integrante da cadeia de comando do mensalão, mas fez acordo com o Ministério Público, prestou 750 horas de serviços comunitários e, com isso, se livrou de ser julgado pelo crime de formação de quadrilha. Silvinho, como é chamado pelos companheiros, era um dos encarregados de gerir a lista de indicados para cargos na máquina federal nos primeiros anos do governo Lula.

Gilberto Carvalho, fiel escudeiro de Lula, era um dos mais poderosos secretários da gestão de Celso Daniel. Ronan Pinto era da cozinha do PT. Para o Ministério Público paulista, ele era um dos responsáveis pela coleta de propina entre empresários de Santo André e pela distribuição do dinheiro a pessoas do partido. Esse mesmo esquema, esquadrinhado na esteira das investigações do assassinato de Celso Daniel, também promoveu desvios milionários na prefeitura.

Na semana passada, VE JA revelou que o Supremo Tribunal Federal recebeu um fax assinado por Marcelo Leonardo, advogado de Valério, informando que o empresário estava com a vida em risco e mencionando a lei da delação premiada, instrumento pelo qual criminosos podem ter a pena reduzida caso auxiliem as autoridades contando o que sabem. O presidente do tribunal, Ayres Britto, enviou o ofício ao relator do processo do mensalão, ministro Joaquim Barbosa. De pronto, os dois ministros suspeitaram que poderia se tratar de uma artimanha de Valério para atrapalhar o julgamento. Ainda assim, e como havia menção a risco de morte, decidiram encaminhar o documento ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel. O conteúdo do fax está protegido por sigilo judicial.

Naqueles mesmos dias, Marcos Valério bateu à porta do procurador-geral. A um amigo, ele disse que viajou para Brasília em segredo e que entrou no prédio da Procuradoria pela garagem, sem se identificar. Relatou que disse ao procurador aquilo que vinha dizendo em privado já havia algum tempo: que tem revelações importantes a fazer sobre o mensalão, inclusive sobre o verdadeiro papel do então presidente Lula no esquema. Valério diz ter como provar que Lula sabia de tudo. O empresário conta, ainda, que pelo caixa do mensalão passaram 350 milhões de reais, muito mais do que o valor rastreado até agora pelos investigadores, e que figurões do PT ligados ao ex-presidente Lula se revezavam na missão de mantê-lo em silêncio com a promessa de impunidade — o que não aconteceu. 

Na última quinta-feira, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que o encontro de Valério com o procurador-geral da República foi mais do que uma conversa preliminar de um condenado com o seu algoz na tentativa de negociar um acordo. Diz a reportagem que Valério chegou a prestar um depoimento formal, devidamente assinado por ele e por seu advogado, em que fala de Lula, do ex-ministro Antonio Palocci e do caso Celso Daniel. Sobre Palocci, o publicitário conta que o ex-ministro participava do esquema de arrecadação de fundos que abastecia os cofres do PT. Marcos Valério também tem o que revelar sobre outro rumoroso escândalo do governo passado — os aloprados. Em setembro de 2006, militantes petistas foram presos em um hotel de São Paulo com 1,7 milhão de reais. O dinheiro seria usado para comprar um falso dossiê contra adversários políticos do partido. Valério garante que sabe o nome do empresário que arrumou o dinheiro — um mistério que até hoje a polícia não conseguiu desvendar.

Em nota, o ministro Gilberto Carvalho informou que “nunca teve conhecimento de qualquer ameaça ou chantagem feita por Ronan Maria Pinto, diretamente ou por terceiros”. O Instituto Lula não quis se manifestar. Silvio Pereira não foi localizado. O procurador-geral da República evitou falar sobre a conversa com Valério, mas tem dito que só depois do julgamento do mensalão ele vai decidir se o que Valério tem a dizer é suficiente para a abertura de um novo inquérito. O julgamento recomeça nesta semana, com a definição das penas dos 25 réus condenados. Terminada a fase das penas, a chamada dosimetria, os ministros vão analisar os recursos dos advogados de defesa, redigir a decisão definitiva e, por fim, expedir os mandados de prisão. Mesmo que acelerado, esse processo pode consumir pelo menos mais cinco meses de trabalho. Ou seja, os mensaleiros só começariam a pagar suas penas em meados do próximo ano — um tempo longo demais, segundo alguns ministros, que vão adotar duas medidas de segurança para evitar fugas: o recolhimento do passaporte dos condenados e a obrigação de comparecer à Justiça a cada quinze dias. Até lá, Valério estará em liberdade e, como sempre afirma, temente pela sua saúde e sua vida.

COM ADRIANO CEOLIN E HUGO MARQUES.

Dividindo a culpa I - ANCELMO GOIS


O GLOBO - 05/11


O STJ criou semana passada uma jurisprudência que torna o clube de futebol corresponsável pela atitude dos jogadores em campo.
É que o tribunal condenou o América-RN a indenizar um PM insultado de “macaco” pelo ex-volante Ivo, em abril de 2008.

Foi assim...
Num jogo do estadual de lá, o jogador foi expulso e, a pedido do juiz, foi retirado pela polícia.
Ofendeu o PM e foi preso.

Dividindo a culpa II
Lembra o caso do empresário Ulrich Rosenzweig, de 85 anos, que em 2008 foi morto num assalto dentro do Edifício Largo da Carioca, no Rio?
Pois bem, a 16ª Câmara Cível do Rio condenou o edifício a indenizar a viúva e uma das filhas, autoras da ação, em R$ 100 mil cada, mais correção e juros desde o crime.

Aliás...
O advogado João Frederico Trotta calcula que o valor final da indenização chegue a uns R$ 350 mil.
A decisão deve obrigar que condomínios cuidem mais da segurança em suas dependências.

Parabéns pra você
A Sextante já está com os originais da biografia de Reynaldo Gianecchini, o ator que faz 40 anos dia 12. É do jornalista Guilherme Fiuza e vai se chamar “Giane — Vida, arte e luta”.
O lançamento será em dezembro.

Para os miúdos...
O ator vai festejar a data sábado, no Espaço Mega, em São Paulo.
Pede aos convidados que, em vez de presente, levem doação às crianças do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer. “A vida já me deu tanta coisa”, escreve Giane. Não é fofo?

Marquês de Pombal
Três livros manuscritos pelo Marquês de Pombal (1699-1782) foram encontrados na biblioteca da ABL e serão restaurados: “Vida de Sebastião de Carvalho e Mello”, “Representações que tive agora, depois das viagens” e “Apresentação do Marquês de Pombal”.
São escritos com tinta antiga, ferruginosa, que corrói as folhas.

Segue...
Segundo o acadêmico Alberto da Costa e Silva, um deles tem prefácio com ortografia que parece ser a do Conde de Linhares (1755-1812), “o que, por si só, é uma preciosidade bibliográfica”.

O TELHADO DO NOVO MARACA
A nova cobertura do Maracanã, o estádio que está quase matando os cariocas de saudade, começa a ser içada este mês. A Secretaria estadual de Obras e o Consórcio Rio Maracanã 2014 recorreram a alpinistas, veja acima, para instalar os cabos de aço que vão sustentar a cobertura de fibra de vidro e teflon que terá 68,4m de comprimento, 38,4m a mais que a antiga. Agora, 76 mil dos 79 mil assentos do novo Maraca ficarão cobertos, o que vai reduzir aquele velho corre-corre nas arquibancadas em dias de chuva. Vamos torcer, vamos cobrar 

Uma costela
Um jantar, quinta, no Ici Bistrô, em São Paulo, reuniu FH e Mohamed ElBaradei, o egípcio que é Prêmio Nobel da Paz.
Traçaram uma costela.

Salve Jorge
Dalal Achcar e Kátia Mindlin Leite Barbosa lançam amanhã o livro “A Turquia de Salve Jorge”, da Editora Addresses com a Globo Marcas.
O livro delas, parceiras em “Istambul, uma cidade fascinante”, traz depoimento de Glória Perez, autora de “Salve Jorge”.

Perigo baiano
Do mestre Lan, 87 anos, mulatólogo, que vai pela primeira vez à Bahia, dia 20, para a abertura de uma exposição sobre sua obra:
— Nunca fui à Bahia com medo de encontrar uma mulata e não voltar. Agora, já estou velho e vou me aventurar.
Mas nunca se sabe, não é, Lan?

UPP na Maré
A Anistia Internacional, com ajuda da Redes da Maré e do Observatório de Favelas, começa amanhã, no Complexo da Maré, no Rio, uma campanha para orientar os moradores sobre os direitos do cidadão numa abordagem policial.
Serão distribuídos 50 mil folhetos. É que, como se sabe, a Maré, que tem 16 comunidades, deve ser pacificada muito em breve.

Apito final
Corre na Rádio Mengo que Adriano, o Imperador, será dispensado amanhã do clube. A conferir.

Voltaram
Henri Castelli, o ator, e Isabeli Fontana, a modelo, reataram o romance, interrompido há cinco anos.
Eles, pais de Lucas, de 6, têm sido vistos em clima de muito amor.

No mais
De um maldoso: “Os EUA vão ver o que é bom quando, depois de Sandy, aparecer por lá o... Michel Teló.”

Passando dos 90 - GEORGE VIDOR

O GLOBO - 05\11

No Brasil ainda não há produtos financeiros programados para assegurar renda satisfatória aos que viverão muito


Planos de saúde, de seguros e previdência privada não tinham considerado a hipótese de um número considerável e crescente de pessoas passar dos 90 anos. Mesmo em um país não desenvolvido como o Brasil, o número de pessoas com mais de 100 anos dobra a cada censo demográfico. Para garantir uma renda vitalícia que leve em conta os muito idosos, empresas seguradoras e de previdência complementar terão de repensar seus produtos financeiros, para evitar o fenômeno conhecido informalmente no mercado como "Jorginho Guinle". Conhecido bon vivant , e de família originalmente rica, Jorginho era de uma geração cuja expectativa de vida dos homens não chegava aos 80 anos, e não havia o hábito de se preocupar com a velhice. Jorginho curtiu muito a vida, mas quando chegou aos 80, o dinheiro havia acabado...

A igreja católica chegou a criar em Copacabana, bairro carioca com maior percentagem de idosos, uma pastoral voltada para a pobreza envergonhada, para auxiliar pessoas não tão notórias que viram seu padrão financeiro despencar na velhice e não querem confessar isso a amigos e parentes.

As famílias hoje já não são mais numerosas, e os idosos urbanos não terão mais com quem se abrigar (no campo, a aposentadoria rural das pessoas mais velhas é importante para o orçamento doméstico, mas nas cidades, nem tanto). Então, cada casal ou indivíduo de classe média, com renda mensal acima do teto dos benefícios da previdência social - atualmente na faixa de R$ 3.900 - precisará fazer seu próprio pé de meia. Com a queda das taxas reais de juros e o retorno incerto no mercado de ações, a tendência é que poucos consigam acumular patrimônio financeiro suficiente para assegurar o mesmo padrão de vida durante toda a aposentadoria. Um exemplo prático: com juros reais de 6% ao ano, quem tivesse uma renda mensal da ordem de R$ 5 mil poderia chegar a um patrimônio financeiro de R$ 1 milhão, em 35 anos, poupando menos de R$ 800 por mês. Com juros reais na faixa de 2%, o esforço de poupança teria de se multiplicar por seis vezes, durante o mesmo período, para se atingir o mesmo valor, o que é inviável.

A companhia centenária Mongeral Aegon reuniu recentemente no Rio estudiosos do tema, vindos da Inglaterra e da Holanda, para debater o assunto. Eles apontaram alguns caminhos para se chegar a uma solução que assegure uma renda vitalícia capaz de atender dignamente pessoas que alcançarem idade muito avançada.

No caso da Europa, os especialistas consideram que a idade de aposentadoria teria de saltar para 71 anos. Na Inglaterra, a aposentadoria compulsória agora é aos 75 anos. Feito o ajuste para um país com o perfil demográfico brasileiro, essa idade aqui seria de 67 anos.

Os planos de previdência complementar geralmente se programam para que seus participantes formem um patrimônio financeiro que lhes assegurem renda até 80, 90 anos, no máximo. Para a hipótese de essa faixa de idade ser ultrapassada, o participante teria que "comprar" uma renda posterior vitalícia, pagando por ela, no ato da aposentadoria, o correspondente a 15% do que tiver acumulado no seu fundo de previdência complementar. É uma possibilidade que já começa a ser adotada no mercado europeu, mas que ainda não existe no Brasil.

Futebol potencialmente rico

Os clubes brasileiros de futebol faturam cerca de US$ 1 bilhão por ano, enquanto na Inglaterra a receita do esporte é o dobro, e na Alemanha, o triplo. Mas especificamente no patrocínio estampado nas camisas dos atletas os clubes brasileiros já superam os europeus. Como esse filão é importante, os patrocinadores acham que poderiam ter ainda mais retorno nos investimentos que fazem nos clubes. Uma das possibilidades está no aumento do público que frequentará os estádios modernizados para a realização da Copa do Mundo, pois a ideia é que sejam transformados em centros de entretenimento para toda a família. O Footecon, evento que tem o ex-técnico da seleção brasileira Carlos Alberto Parreira como "embaixador", este ano se propõe a ouvir, nos dias 4 e 5 de dezembro, no Copacabana Palace, o que as empresas esperam do marketing no futebol.

O morro tem vez

A agência de fomento Investe Rio, do governo do Estado, espera ampliar de 300 para duas mil as operações de crédito nas favelas já pacificadas da cidade. A agência trabalha para que redes tradicionais se interessem por franquias nessas comunidades, aceitando, por exemplo, que as lojas tenham apenas 9 metros quadrados (e não o mínimo de 16) e que o capital investido se reduza de R$ 250 mil para R$ 50 mil.

Na memória do tempo - LUÍS EDUARDO ASSIS


O Estado de S. Paulo - 05/11



Com tripé ou sem tripé, a política econômica mudou. O câmbio ficou praticamente fixo, os juros caíram muito, o superávit primário foi reduzido e a inflação será o que for possível, A queda dos juros é particularmente impressionante. Em setembro, a taxa Selic ficou em 0,54%, a mais baixa da série histórica (“nunca na história deste país..”). Ficaremos assim por muito tempo, até as circunstâncias exigirem o contrário.

Essa mudança radical é uma decisão técnica ou meramente política? Essa pergunta é ingênua, mas traz uma série de implicações. Pode-se escapar da dúvida argumentando que a administração da política econômica é sempre (logo, nunca “meramente”) política, mas a dúvida persiste. Por decisão “política” pode-se entender duas coisas, parecidas, mas diferentes; algo que convenha apenas ao governo, em detrimento da maioria dos eleitores, e algo que surta resultados positivos no curto prazo, mas que acarrete dificuldades no futuro.

A primeira alternativa tem vida curta em regimes democráticos. A segunda é mais interessante e remete ao clássico dilema intertemporal. Sem considerar a eficácia da política monetária em economias indexadas e como política fiscal frouxa, o uso de juros altos pode ser visto como um preço a ser pago no presente para ter o benefício de uma inflação mais baixa adiante. Uma escolha em tudo assemelhada à decisão de comer fruta ou doce na sobremesa. Dilemas intertemporais são objeto de estudo recente por alguns economistas, que conseguiram complicar bastante este assunto simples. Os curiosos poderão se socorrer no interessante texto de Daniel Read, da London School of Economics (Intertemporal Choice, Working Paper LSEOR 03.58).

A questão é que a conveniência “política” dos juros baixos, ainda que seja picante, pressupõe duas hipóteses. A primeira é que os eleitores se deixam enganar repetidamente, da mesma forma que Gharlie Brown sempre acreditou que Lucy seguraria a bola até ele chutar. A segunda é que o Banco Central teria abandonado sua função institucional, que é a de, justamente, arbitrar esse conflito intertemporal e antecipar os efeitos colaterais de uma política voltada para o crescimento no curto prazo.

Não faltará quem pense que essa mediação é desnecessária e que as pessoas em geral podem se responsabilizar por suas escolhas coletivas. No limite da imaginação, seria possível conceber que decisões sobre juros poderiam ser tomadas diretamente pela população. O que aconteceria se todo cidadão fosse membro do Comitê de Política Monetária (Copom)? Qual é a chance de que decisões tomadas por um grande grupo de pessoas sejam melhores que as tomadas por um pequeno grupo de especialistas? James Surowiecki, jornalista da revista The New Yorker, gastou um livro inteiro para defender a tese de que isso é viável (The Wisdom ofCrowdSy 2004). Por meio de uma série de evidências anedóticas, ele tenta vender a ideia de que a inteligência coletiva gera soluções superiores, mesmo para questões que envolvem complexidade técnica. O argumento contrário - de que a voz do povo não é a voz de Deus - é mais fácil de defender.

Os exemplos históricos de democracia direta sugerem que a sabedoria popular é duvidosa e rarefeita. O caso da Proposição 13, aprovada na Califórnia em 1978, é sugestivo. Por meio dessa iniciativa, limitou-se o poder de taxar os imóveis. O que parecia inicialmente interessante - pagar menos impostos - acabou resultando em crise financeira no setor público e forte transferência do poder local para a esfera estadual, algo antagônico ao credo conservador que inspirou a proposta. Nos mercados financeiros, os exemplos de loucura coletiva são abundantes, como mostram as bolhas especulativas, que estão longe de ser um fenômeno da modernidade e retratam o “carnaval do capitalismo”, nas palavras do historiador Edward Chancellor (The De: vil Take the Hindmost, 1999).

Aceita a desconfortável hipótese de que os economistas são socialmente úteis no uso de sua capacidade de ajudar uma democracia representativa a tomar decisões cujas consequências se desdobram no tempo, como mitigar o risco da prevalência sistemática dos interesses de curto prazo? No caso da inflação brasileira, seria conveniente começar pela singela admissão pelo governo de que uma inflação baixa é um bem público que beneficia mais que proporcionalmente as pessoas de menor renda.

Combater a inflação não é limitar o crescimento, mas garantir que ele seja perene. Também não seria demais atribuir responsabilidades e estabelecer uma “política de consequências”. Em apenas 4 dos 13 anos em que vivemos sob o regime de metas, a inflação ficou abaixo do alvo. Para uma meta acumulada desde 1999 de 81,4%, registramos um índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)de 146%, um desempenho, digamos, menos que espetacular. Pelas regras atuais, isso é resolvido por meio de uma explicação protocolar do Banco Central e causa menos comoção do que um gol anulado na Série B.

Falta também ambição (“ousar lutar, ousar vencer”, diziam as pichações na USP nos anos 70). Desde 2005 a meta está empacada nos 4,5% ao ano, muito mais alta que a inflação dos nossos principais parceiros comerciais, o que é particularmente preocupante depois que a flutuação do câmbio foi restringida. A responsabilização do Banco Central pelo cumprimento rigoroso da meta não seria razoável, por outro lado, se não houvesse uma convergência de esforços da política fiscal. Tudo isso está longe da agenda atual.

O sistema de governança que escolhemos não estimula a perseguição de objetivos de longo prazo. É fácil prometer e não cumprir. Resta confiar na memória do eleitor e na sua capacidade coletiva de aprender com os erros do governo.

Os rios dentro de nós - IVAN MARTINS

REVISTA ÉPOCA

Afeto e desejo raramente se encontram na vida dos homens



Afeto e desejo são sentimentos gêmeos. Em alguns momentos da existência eles se ignoram, em outros parecem inseparáveis. Na vida dos homens, mais do que das mulheres, eles são como rios paralelos que às vezes se esbarram, mas raramente se encontram. Por isso é tão mais difícil para os homens encontrar prazer e sentimentos duradouros. Por isso não conseguem estar inteiros nas relações – porque vivem divididos por dentro.

Acho que essa dificuldade explica parte das contradições que os homens exibem o tempo inteiro. “Ele disse que estava apaixonado, mas logo depois mostrou que não estava”: era o desejo falando, sem o amparo duradouro do sentimento. “Ele foi embora, mas voltou logo depois, dizendo que me amava”: o corpo da outra precisou estar ausente para o sujeito perceber os próprios sentimentos. “Ele parecia tão interessado quando eu não queria, depois que eu me apaixonei ele sumiu”: o desejo enlouquece com o que ainda não tem, e pode se cansar rapidamente depois de saciado. Afetos são mais constantes e duradouros.

Nenhum desses comportamentos é exclusivamente masculino, mas eles são mais visíveis nos homens – embora a gente escute reclamações, cada vez mais frequentes, de que as mulheres estão agindo de forma igualmente egoísta e superficial. Num mundo ordenado cada vez mais profundamente pela lógica da posse e do consumo, ninguém está imune a se portar como colecionador serial de corpos e pessoas descartáveis. Pode ser, mas o convívio sugere que mulheres ainda são mais atentas aos próprios sentimentos, e que eles falam mais de perto com as sensações delas de prazer.

Outro dia, uma aluna de jornalismo que está fazendo um trabalho de conclusão de curso me fez a pergunta de um milhão de reais: o que é o amor para você? Na hora, claro, eu respondi bobagens prolixas. Horas depois me ocorreu uma resposta mais simples, que tem a ver com o assunto do qual estamos tratando. Amor é foco. Amar é sentir que a vida se condensa em torno de um sentimento e de uma pessoa, e por isso se torna deliciosamente simples, tanto quanto intensa. As dúvidas e os problemas recuam para o segundo plano. O tédio, o medo, a confusão se dissolvem num grande sentimento claro e límpido. Ele é como o facho de luz que atravessa uma lente e se transforma, do outro lado, num único ponto rutilante. Dou um exemplo: mesmo homens maduros podem se descobrir à beira de um colapso nervoso ou de uma depressão enquanto se relacionam, simultaneamente, com um bando de mulheres. O sujeito está péssimo, mas continua ali, tentando resolver sua angústia num mar de... mulheres. É mais difícil achar uma mulher numa situação dessas. Mesmo aquelas que poderiam abusar do corpo ou do carisma agem de outra forma. Uma rápida peneira afetiva faz com que o bando de candidatos ou fiquetes seja reduzido a um (ou dois) que tenham significado emocional. O resto dança. As mulheres são menos propensas a se perder num mar de corpos. Os homens, para o bem e para o mal, parecem às vezes ter nascido para isso - ainda que os corpos sejam somente imaginários.

Essa definição de amor significa o contrário da multidão de corpos. Ela é sinônimo de escolha e singularização. Talvez por isso seja difícil de atingir, e ainda mais difícil de manter. O desejo que se desloca de um corpo para outro, sem passar pelo filtro rigoroso e constante do afeto, é o contrário da seleção. Ele não implica em renúncia nenhuma, e talvez não leve a lugar algum.

Não sei se o desejo inquieto dos homens algum dia será coletivamente diferente, mas, pessoalmente, individualmente, ele muda. Com o passar do tempo, cresce de maneira imperceptível a vinculação entre sentimento e desejo na vida dos homens. O sujeito não se torna necessariamente mais constante, mas o desejo dele começa a ser subordinado a critérios que as mulheres talvez reconheçam, por serem afetivos – ele deseja quem conhece melhor, deseja mulheres de quem gosta. Aquela dona escultural de quem ele nem sabe o nome é uma delícia, mas não é com ela que ele sonha embaixo do chuveiro. O desejo profundo passa a incluir formas de intimidade e acolhimento. Continua volátil, ainda insiste em ser voraz, mas cada vez está mais vinculado aos afetos. Os rios do amor e do desejo cuidadosamente se aproximam. Talvez uma vida não seja suficiente para que se juntem, mas quem realmente sabe?

Lá e cá - DENISE ROTHENBURG

Correio Braziliense - 05/11


Os estadunidenses estão há alguns dias em processo de votação. Lá, diferentemente do Brasil, não tem essa de caracterizar o dia da eleição como "a festa da democracia". Amanhã, data oficial do pleito, não será feriado e, quem preferir cuidar da própria vida em vez de votar, ok. O voto não é obrigatório. Também não se escolhe diretamente o presidente. O eleitor elege os delegados de cada estado. Quem obtiver mais votos num estado, leva todos os delegados que aquela unidade da Federação tem direito dentro do colégio eleitoral. Bem diferente do nosso sistema: um eleitor, um voto. Apesar do sistema diferente, brasileiros e americanos têm um sentimento em comum na hora do voto: a economia.

O empate nas pesquisas entre o presidente Barack Obama e o republicano Mitt Romney nada mais é do que reflexo da incerteza sobre o futuro nessa seara. No Brasil, sempre que a situação é boa, o eleitor não arrisca. Não por acaso, elegeu Fernando Henrique Cardoso em 1994, o fiador do Plano Real, e o reelegeu em 1998. Só quando a economia deu aquela sacudida, embalada pela série de crises externas, é que o eleitor optou por Lula. Da mesma forma, em 2010, a situação não estava das piores e o Brasil escapou da crise internacional. Portanto, entre a mudança representada por Serra e a continuidade, representada por Dilma, o eleitor preferiu não arriscar.

Da mesma forma que os brasileiros, os americanos também não ligam muito para a parte comercial da política externa na hora de escolher seu candidato. "Política externa envolvendo acordos comerciais não mexe com o eleitor. Esse tema só entra quando mexe na segurança nacional, caso, por exemplo, do ataque à embaixada americana na Líbia", comenta o analista político Lucas de Aragão, da Consultoria Arko Advice, que está em Nova York e de lá acompanha cada lance da disputa entre Romney e Obama. Ele cita como exemplo os 50 eleitores indecisos que nem moveram o ponteiro de seus sensores, quando Romney declarou num dos debates que iria promover mais acordos de livre comércio com a América Latina.

A declaração de Romney foi registrada aqui no Brasil. Afinal, reza a tradição que os republicanos são menos protecionistas que os democratas na hora de cuidar dos acordos comerciais, o que é bom para o Brasil. Mas, lá, o que interessa aos americanos são os seus próprios empregos. Nesse sentido, depois de analisar os mapas dos estados e as perspectivas de cada candidato, o analista da Arko coloca Obama na condição de favorito, embora as pesquisas demonstrem empate técnico. "O comparecimento dos democratas geralmente é maior, e Obama precisa de 27 votos para vencer, uma vez que já tem os maiores estados. Romney precisa caminhar mais", afirma.

Enquanto isso, no Brasil...
Por aqui, o resultado da eleição americana, seja qual for, não influenciará. Até porque, com a taxa de desemprego em 7,8%, o presidente dos Estados Unidos estará mais preocupado em colocar a sua economia em dia do que cuidar da relação com América Latina. Da mesma forma, o governo Dilma Rousseff está mais voltado à manutenção do poder de compra do brasileiro e de projetos que alavanquem o PIB. Não por acaso, Dilma recebe amanhã num jantar a cúpula do PMDB e a do PT. A ideia é deixar a base mais azeitada nesse período de conversas sobre a presidência da Câmara e do Senado, em que começa a surgir um zum-zum-zum sobre candidaturas alternativas até mesmo dentro do PT, embora ninguém acredite que exista alguma brecha para isso.

Além de deixar claro o apoio aos candidatos do PMDB para presidir o Senado e a Câmara, Dilma deseja fortalecer a relação entre os dois partidos para evitar rusgas que possam comprometer o bom andamento de projetos importantes para o governo no Congresso. Nesse pacote está, por exemplo, a distribuição dos royalties do petróleo, que entra na pauta amanhã. Vamos aguardar os desdobramentos.

Tiros de rolha - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 05\11


RIO DE JANEIRO - Do além-túmulo, William Faulkner (1897-1962) processa Woody Allen! Segundo o noticiário, a agência Faulkner Literary Rights, que controla os direitos do autor de "Luz de Agosto" e "O Som e a Fúria", está processando Woody pelo uso não autorizado de uma frase do romance "Réquiem para uma Freira", de 1950, em seu filme "Meia-Noite em Paris", de 2011. Qual será a próxima? Gertrude Stein processando Charlie Sheen? Oswald de Andrade processando Marcelo Madureira?
Todos se lembram da história do filme: um escritor (Owen Wilson) viaja no tempo para a mágica Paris dos anos 1920 e fica amigo de Hemingway, Fitzgerald, Picasso, Salvador Dali e Cole Porter, figurinhas fáceis da cidade naquela época. O enredo é um show de referências literárias. A folhas tantas, o protagonista comenta: "O passado não está morto. Aliás, nem sequer passou. Sabe quem disse isso? O Faulkner. Ele tem razão. Conheci-o outro dia num jantar".
A frase foi usada num contexto simpático e serve para que nos lembremos de Faulkner, num filme em que os demais bambambãs aparecem fisicamente, interpretados por atores muito parecidos com os próprios. Os agentes deveriam ser gratos a Woody por isso -mesmo porque não consta que Faulkner, endeusado até os anos 70, esteja com seu prestígio póstumo em alta. Ao contrário, já foi amplamente ultrapassado por Fitzgerald em matéria de interesse acadêmico.
A citação de uma frase num filme delicioso gera um processo contra um diretor reconhecido e estimado. Em vista disso, imagino o chumbo grosso que os agentes de Faulkner devem assestar contra os piratas da internet, que "disponibilizam" livros inteiros do escritor para ser baixados de graça e sem autorização.
Chumbo grosso, que nada. Contra esses piratas, mesmo os tiros de canhão equivalem aos de uma espingardinha de rolha.

O poste - JOSÉ DE SOUZA MARTINS


O Estado de S.Paulo - 05/11



Não só de luminárias são feitos os postes. Em São Paulo, poste sofre, mas não reclama. Cachorro desamparado mija no poste. Marmanjo sem educação, também, atrás do poste. Em que lado do poste fica a frente? Os cansados se escoram no poste. Entende-se por que tantos postes não estão no prumo. Anunciante pobre apregoa novidades e ideias colando cartaz no poste: bailes, mercadorias, mensagens religiosas, propaganda eleitoral, amarrações de amor, anúncios de cachorro perdido, tudo vai para o poste, a mais democrática instituição brasileira.

O que seria de nós sem o poste? Até ditos populares se valem do poste: "Não sou poste pra que você venha se encostar em mim", diz a vítima da preguiça alheia. "Sou poste de Lula", foi o primeiro discurso do prefeito que acaba de ser eleito em São Paulo. Se o prefeito é poste, quem será o prefeito?

Anúncio de poesia também vai pro poste: "Pai Maicknuclear lê poema, amarra prosa, traz seu texto de volta em sete dias", li num poste no bairro do Ibirapuera. O pai do anúncio identifica-se como membro de um movimento de "terrorismo poético". Ainda bem: melhor do que terrorismo impoético, com sangue de inocentes e sem rima.

Da São Paulo romântica sobrevivem alguns postes. Os mais belos são, sem dúvida, aqueles dois postes ornamentais que ladeiam a escadaria de acesso à entrada principal do Theatro Municipal. São antigos, centenários. Esses postes têm uma figura feminina como suporte, nas duas faces, em que se apoia a coluna que sustenta as luminárias. Foram entalhados em imbuia do Paraná, em 1910, por Affonso Adinolfi, professor de escultura em madeira e diretor técnico do Liceu de Artes e Ofícios. Era a técnica que se utilizava antes de fundir a obra de arte.

O Theatro foi inaugurado em 1911, pouco depois do término do mandato do Conselheiro Antônio da Silva Prado, primeiro prefeito de São Paulo, que o mandara construir. Prado foi patrono de medidas que, no Império, transformaram o Brasil no país que conhecemos e de que gostamos: a abolição da escravatura e a imigração estrangeira para os cafezais do interior. Era filho de Dona Veridiana Prado. Morava em um palacete na Chácara do Carvalho, lá para os lados da Barra Funda.

Os postes foram fundidos pela firma Lidgerwood Limited, com estabelecimentos em Nova York, na Escócia e em Java. No Brasil, foi seu fundador William Van Vleck Lidgerwood, inicialmente com casa de importação no Rio de Janeiro. Em 1868, abriu um depósito de máquinas agrícolas em Campinas e, em 1884, ali instalou a fundição de onde sairiam os postes do Municipal de São Paulo.

Já vi mocinhas acariciando o seio de uma das figuras femininas dos postes. Dizem que é para ter sorte no amor, como fazem os apaixonados na escultura da casa de Julieta, em Verona. O problema é se o Romeu que aparecer for um poste.

Os simplismos e a saúde - JANUARIO MONTONE

FOLHA DE SP - 05/11


As OSs fizeram a gestão Serra/Kassab ir bem na saúde. O bom atendimento abre as comportas da demanda reprimida, então há filas, mas o avanço é nítido



É preciso reforçar e ampliar o alerta do editorial "Saúde sem simplismo", publicano nesta Folha no dia 25 de outubro.

A gestão Marta Suplicy teve o mérito de reverter o desastroso PAS (Plano de Atendimento à Saúde) de Maluf, mas foi só.

Em 2005, a rede municipal estava em péssimas condições, desprestigiada e desmotivada. A gestão Serra/Kassab iniciou um processo de melhoria capaz de construir uma saúde digna aos paulistanos. Fez isso porque sabia, desde o início, o que e como fazer.

O projeto de lei das organizações sociais (OSs) foi encaminhado à Câmara em maio de 2005 e aprovado em janeiro de 2006, enfrentando a oposição feroz dos 11 vereadores do PT -que no final votaram mesmo contra a proposta!

Toda parceria precisa de parceiros que aceitem o desafio. Em 2006, são qualificadas as primeiras OSs. Em 2007, assinados os primeiros contratos de gestão. Quatro anos depois, já eram mais de 500 unidades gerenciadas por parceiros.

Os números: em 2011, eles executaram 24% do orçamento próprio da secretaria e responderam por 68% das 24,8 milhões de consultas médicas no município, por 24% das 161 mil internações, por 38% das 49,5 mil cirurgias e por 36% dos 32 mil partos.

Em 2004, a rede municipal tinha 545 unidades. Hoje, são 945.

Priorizando a atenção básica, com 500 novas equipes de saúde da família, com 120 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial), com a distribuição gratuita de 5 milhões de medicamentos por mês e com o programa Mãe Paulistana. Foram criados ainda três novos hospitais e uma clínica de apoio aos dependentes químicos.

A queda da mortalidade infantil significa também a redução da desigualdade regional. Em 2004, apenas 15 dos 96 distritos paulistanos tinham um coeficiente abaixo de dez óbitos por mil nascidos vivos -35 estavam acima de 15 óbitos por mil. Em 2011, invertemos tal estatística: 37 distritos tinham um coeficiente menor do que dez, enquanto 12 estavam acima de 15.

É preciso planejamento, competência e coragem para priorizar a área de saúde, porque quando são abertas as comportas da demanda reprimida, como fizemos, a primeira onda é um tsunami.

Afinal, onde eram atendidas as 11 milhões de consultas antes das AMAs, por exemplo?

E são tsunamis sucessivos. Fica claro que agora a demanda é pelas especialidades e por exames de maior complexidade.

Quase não eram feitos exames de ressonância na prefeitura de 2004, apenas 1,6 mil. Em 2011, esse valor chegou a 17,4 mil. As tomografias passaram de 38,5 mil para 106 mil. Isso não significa que não existam filas -e elas geram manchetes, pois são fatos jornalísticos.

Planejamos e estamos implantando a rede de especialidades. Planejamos, mas não conseguimos implantar, a modernização e ampliação da rede hospitalar.

A saúde teve um plano estratégico, projetos, capacidade de ação, recursos financeiros e um novo modelo de gestão capaz de potencializar esses recursos, baseado na Constituição de 1988, que criou um SUS público, não um SUS estatal.

É preciso fugir dos simplismos. Sêneca ensinava que "não existe vento favorável para o marinheiro que não sabe aonde ir". Assim, não basta "manter" as parcerias com OSs. É preciso incorporar o modelo, avançar com ele e aperfeiçoá-lo sempre, porque ele inegavelmente pode melhorar mais rápido a vida das pessoas.

Um caso de esquizofrenia? - MOACYR SERVILHA DUARTE


O ESTADÃO - 05/11


Ao se reconhecer como necessário contar com recursos financeiros e gerenciais da iniciativa privada para investimentos em infraestrutura, lançou-se um amplo programa para obras e melhorias nas áreas rodoviária e ferroviária e se anunciaram novos projetos para portos e aeroportos, além de se aproveitar o próximo fim de contratos de concessões de energia elétrica para reformular o setor.

As ideias já divulgadas vêm provocando grandes discussões entre especialistas e possíveis investidores, que, reservadamente, não manifestam entusiasmo pelas condições que se pretende estabelecer. Não apenas pela modelagem anunciada, mas por uma diferença substancial entre o que estabelece a legislação e o que é pretendido por setores importantes da burocracia governamental no que se refere à política tarifária.

De certa maneira, parece que se está buscando a volta a um modelo que vigorou no passado em nosso país e que é objeto de trabalhos acadêmicos e suas consequentes discussões. Trata-se do que foi aplicado às concessões de energia elétrica e de ferrovias implantadas a partir dos fins do século 19, outorgadas a empresas privadas, na maior parte, estrangeiras. A prática tarifária nessas concessões, em especial no setor elétrico, era baseada na remuneração pelo custo, sem maiores riscos, portanto, para os investidores.

Esse modelo funcionou bem até a década de 1940, quando as tarifas deixaram de ser atualizadas na forma prevista nos contratos. As concessionárias não puderam realizar investimentos e os serviços começaram a se deteriorar. A solução adotada foi encampar a maioria delas, com o governo assumindo o controle. Isso levou a uma situação paradoxal: o Estado passou a ser, ao mesmo tempo, concedente e concessionário. Um dos primeiros a chamar a atenção para esse problema foi o saudoso professor Ignácio Rangel, que passou a defender, na década de 1980, a volta da concessão de serviços públicos à iniciativa privada.

A confusão na mesma pessoa jurídica - o Estado - do poder concedente e do concessionário causou inúmeras distorções, sendo a principal delas o controle da tarifa para o combate à inflação, como o modelo propiciava. Isso gerou um crédito descomunal das concessionárias perante o poder concedente, o qual faria frente, contabilmente, às dívidas decorrentes dos investimentos feitos e dos custos operacionais não cobertos pela tarifa. Era a fatídica Conta de Resultados a Compensar (CRC), que correspondia à dívida do poder concedente para com a concessionária pela não atualização das tarifas. A situação só foi resolvida no início dos anos 1990, com a emissão de títulos do governo federal, entregues às concessionárias, que os utilizaram para liquidar as dívidas decorrentes da insuficiência da remuneração.

Foi sob o impacto dessa situação calamitosa, particularmente nos setores ferroviário e elétrico, que se elaborou a Lei das Concessões, quando se fez a opção, para as atualmente denominadas "concessões comuns", de definir a tarifa pelo preço resultante de processo licitatório, e não mais pelo custo.

Isso foi expressamente reconhecido na promulgação da Lei n.º 8.987, de 1995, como consta na página 21 da publicação Concessões de Serviços Públicos, da Presidência da República (Brasília, 1995): "Além desses aspectos, a lei inova, ainda, em quatro pontos importantes. Primeiro, todas as concessões passam a ter prazo determinado, renovando-se mediante licitação. Segundo, não há subsídios governamentais, impondo-se ao concessionário o risco empresarial. Terceiro, o usuário participa oficialmente da fiscalização da prestação dos serviços. Quarto, no que se refere à política tarifária para as novas concessões, será abandonada a regra de tarifação que garante uma remuneração fixa calculada com base nos custos incorridos - o que incentivava a ineficiência das empresas. A partir de agora adotar-se-á o critério do preço definido em contrato. Na revisão das tarifas é que se considerará a evolução dos custos das concessionárias".

Foi sob esses princípios que se realizaram as licitações para as concessões de rodovias, ferrovias e energia elétrica.

O que parece estar ocorrendo é que parte da burocracia governamental não concorda com as regras dessa legislação, que seriam parte do modelo "neoliberal" ou do "Consenso de Washington". Assim, desejar-se-ia voltar às condições das concessões de serviço público nos fins do século 19 e início do século 20.

A mudança pode ser feita mediante alteração da atual legislação, mas não pelo seu descumprimento, como parece ser o caminho preferido, possivelmente para não se abrir uma discussão clara a esse respeito. E talvez por falta de segurança quanto ao resultado de uma proposta de reforma da lei vigente, ainda que por medida provisória. Diante disso, buscar-se-ia limitar, utilizando vários artifícios, a remuneração do concessionário a um teto definido unilateralmente, o que, implicaria minimizar, também, os riscos para a iniciativa privada.

Como dizia o professor Ignácio Rangel, "a discussão entre privatistas e estatistas é uma tolice ou uma questão religiosa e não é disso que se trata. É uma questão de escolher o melhor caminho para desenvolver o País".

Se a opção é atrair a iniciativa privada para investimentos em infraestrutura, não bastam boas conversas, deve-se definir claramente a política tarifária a ser aplicada. As duas alternativas mencionadas são defensáveis, mas não se pode escolher a que se vai aplicar pelas circunstâncias do momento, especialmente após a celebração dos contratos de concessão.

Ter uma regra e não obedecê-la vai, a curto prazo, dificultar a atração de investidores e, a médio e longo prazos, trazer problemas para o próprio Estado e para os usuários, como a História ensina. A situação, abusando de terminologia da medicina, pode ser caracterizada como de "esquizofrenia burocrática". E quem vai sofrer as consequências do tratamento é toda a sociedade.

A verdade das urnas - AÉCIO NEVES

FOLHA DE SP - 05/11


Recentemente, me lembrei de uma citação folclórica que volta e meia é repetida no meio político e refere-se a uma proposta para encerrar a guerra do Vietnã nos anos 60, atribuída a um senador dos EUA.

A sugestão dele era que o presidente americano devia simplesmente declarar vitória, unilateralmente, e retirar as tropas daquele país do Sudeste Asiático, colocando um ponto final no confronto.

No plano das alegorias, é mais ou menos isso que o PT tenta fazer ao propagar que dizimou os adversários nas eleições municipais de 2012.

O fato de ter vencido em cidades importantes do país não autoriza o partido a generalizar o resultado. Pelo menos não com o amparo da realidade.

A principal característica das eleições municipais deste ano é a distribuição equilibrada entre os partidos que obtiveram as maiores votações. O PMDB foi o partido que elegeu o maior número de prefeitos, seguido pelo PSDB e pelo PT.

Mas, na política, a criatividade é grande e surgem análises de todos os tipos, prontas para atender o gosto do freguês. Há quem prefira somar o número das cidades sob o comando de cada legenda para apontar vencedores ou derrotados. Há aqueles que analisam resultados sob a ótica das alianças políticas e não das legendas isoladas. Quem não pode somar cidades, opta por somar a população a ser governada por um partido. Não falta, inclusive, quem, na ausência de ter o que contabilizar, defenda o caráter estratégico de suas conquistas.

Na verdade, o resultado político dessas eleições é muito mais complexo do que pode apontar esse tipo de análise. Talvez porque não exista um, mas diversos resultados.

Se a discussão em torno dos números não se mostra tão favorável ao PT como seus dirigentes se esforçam em demonstrar, há uma derrota política que certamente incomoda mais nesse momento ao Planalto.

Ao transformar algumas disputas em verdadeiros plebiscitos, o PT colheu a derrota direta do ex-presidente Lula ou da presidente Dilma em locais de forte simbolismo. Em Manaus e Salvador, assim como nas três principais cidades de Minas -Belo Horizonte,

Betim e Contagem-, de forma especial, o que prevaleceu foi o não ao PT.

Ao PSDB, cabe agradecer os 13,9 milhões de votos em nossos candidatos a prefeito, no primeiro turno das eleições, e 5,6 milhões, no segundo. Isso sem levar em consideração os incontáveis apoios que tivemos nas alianças firmadas com outros partidos pelo país afora.

Com erros e acertos, o PSDB reafirmou sua posição de principal polo de oposição no país. O partido precisa agora entender o que disseram as urnas. Inclusive o recado dos milhões de brasileiros que preferiram não votar, descrentes da política.

O vendedor agressivo - WALCYR CARRASCO

REVISTA ÉPOCA
Aconteceu recentemente. Um amigo fez aniversário. Queria dar uma camisa. Mas não sabia seu número. Fui a uma loja do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, de uma grife importante de que sou cliente há mais de dez anos. Deixei uma autorização para o aniversariante escolher uma camisa. Dias depois, o presenteado me telefona da loja. Queria permissão para ficar com um casaco oferecido pelo vendedor. Fiquei na saia justa. Concordei. Dias depois, tomei coragem e falei com ele pessoalmente: não era demais ganhar uma camisa e escolher um casaco?

– O vendedor só me ofereceu as peças mais caras, disse ele. Quando pedi para ver as camisas, disse que não havia nenhuma que valesse a pena, por ser fim de estação.

E se ofereceu para pagar a metade. Recusei. Voltei à loja e reclamei:

– Eu havia autorizado uma camisa. Vocês quebraram uma relação de confiança comigo, como cliente. No mínimo, em vez de deixar o presenteado ligar, deveriam ter me chamado em particular para explicar o que acontecia.

Ouvi desculpas. Paguei. Não volto mais lá.

Foi uma situação radical. Sinto cada vez menos confiança nos vendedores de lojas, principalmente de grifes e marcas conhecidas. Antes, se eu entrava num estabelecimento elegante, costumavam me deixar à vontade. A moça, ou o rapaz, se apresentava e dizia, educadamente, que estava à disposição. E me deixava observar as peças, sapatos, acessórios. Hoje, camelôs se tornaram um primor de delicadeza diante desses vendedores. Eles se atiram em cima da gente! Mesmo que eu diga que “estou só olhando” começam com um “já viu isso, já viu aquilo?”. Sem dúvida, existem clientes que apreciam uma assistência feroz. Fujo correndo de vendedores extremamente solícitos.

E a confiança, para onde foi? Outro dia experimentei um paletó. Impossível fechar. “Esse paletó fica muito bem usado aberto”, disse o vendedor. Observei minha barriga, que brotava como um cogumelo na abertura. “Eu jamais compraria uma peça que não posso fechar”, disse. “Quero um número maior.”

O rapaz rugiu:

– Não temos, mas esse ficou muito bem você. Perfeito nos ombros!

Respondi:

– Nunca mais vou acreditar quando você disser que alguma coisa está ótima!

– Essa aí não caiu bem.Ele me olhou com desprezo, como se eu nada soubesse de moda. Posso não ser delicado. É que perdi a paciência. Vejo as pessoas comprar roupas que nunca vão usar, instigadas por profissionais insistentes. Já houve um tempo em que eu confiava inteiramente em vendedores. Experimentava uma camisa e ouvia:

Eu me sentia confiante. Os profissionais das lojas onde era cliente tornaram-se amigos. Não sentiam necessidade de me empurrar o mais caro. O importante, eu percebia, era que me tornasse um cliente satisfeito. Certa vez, no Shopping Paulista, numa grife nacional, ouvi o conselho:

– Você levou um casaco muito parecido com esse faz seis meses.

Agradeci a lembrança. Realmente, tenho de me policiar para não comprar roupas parecidas. É claro que voltei outras vezes, pedi conselhos e comprei.

A relação entre cliente e profissional de vendas não pode ser tão selvagem. O papel de um vendedor é, sim, oferecer as peças, mas também aconselhar com franqueza sobre o que ficou bem ou não. Suponho que a mudança tenha um bom motivo. Há algum tempo as grifes internacionais, aqui no Brasil, vêm deixando de ser representadas por empresas locais. As corporações assumem os controles de suas marcas em território nacional. O resultado imediato é que os preços das peças importadas baixaram. A concorrência se tornou maior. Também suspeito que tanto as grifes internacionais como as brasileiras estabelecem cotas de desempenho mais árduas para os vendedores. Isso levou a um salve-se quem puder quando entra um cliente na loja. A ponto de já ter ouvido várias histórias de brigas entre vendedores, porque um “rouba” a vez do outro, quando consegue. O espírito natalino já está chegando à decoração dos shoppings. Mas o comércio se transformou numa praça de guerra entre vendedores, na tentativa de arrebatar o melhor cliente. E num assédio a quem entra numa loja. Quem tenta comprar só um par de meias corre o risco de sufocar num mar de veludos, jeans, carteiras, bolsas, tênis, botões!

E, quando um vendedor me garante que uma peça de roupa ficou bem, eu penso:

– Será verdade? Ou ele só está tentando me empurrar mais alguma coisa?

Algumas lições do mensalão - EVERARDO MACIEL

O Estado de S.Paulo - 05/11


Talleyrand, célebre chanceler de Napoleão, ao censurar a dinastia dos Bourbons, dizia que eles nunca aprendiam e nunca esqueciam. Para evitar que a sociedade brasileira seja estigmatizada por esse conceito, convém que sejam extraídas algumas lições do julgamento, embora inconcluso, do mensalão.

Sem lugar a dúvidas, esse episódio é um dos mais importantes acontecimentos da nossa Justiça. Pela primeira vez estão sendo julgados, simultaneamente, importantes próceres políticos, banqueiros, profissionais liberais e, para usar uma qualificação utilizada pela defesa, mequetrefes. Cada réu com sua pena ou juízo absolutório.

O julgamento está sendo enriquecido por memoráveis manifestações sobre a ética e a República, como um sopro alentador em favor da restauração de valores que vêm sendo vilipendiados seguidamente e comprometem a formação das gerações mais jovens.

É sagrado o direito de ficar inconformado com as sentenças (jus sperniandi) ou, em nome da liberdade de expressão, criticá-las. Não é aceitável, contudo, proferir invectivas contra a convicção dos magistrados, porque, além da possibilidade de enquadramento por crimes contra a honra, constitui uma afronta ao Judiciário.

As divergências nos entendimentos dos magistrados, malgrado os dispensáveis preciosismos e discursos confusos, devem ser vistas como prova de vitalidade da instituição. O dissenso é mais rico, como ensinamento, que o consenso. A verdade tem muitas faces.

O julgamento, em virtude da transmissão ao vivo, expôs ao público conceitos antes confinados aos recintos dos tribunais e pôde arrostar a velha tese que entendia a condenação como algo destinado a pobre, preto e prostituta, segundo a perspicaz observação de um magistrado mineiro.

Dirão alguns que outras pessoas cometeram crimes idênticos ou assemelhados. É verdade. Que se julguem todos, então! O mensalão deve ser tido não como uma exceção, mas como um precedente.

Rejubilo-me com a repulsa da Corte ao caixa 2, como crime em si ou manobra diversionista para dissimular a prática de outros crimes. A alegação dessa malfadada "tese", caso fosse razoável, deveria ter trilhado os caminhos da modéstia e da contrição, sem manifestações de entusiasmada esperteza.

O Supremo Tribunal Federal não devia, contudo, ser onerado com um longo julgamento de um volumoso processo criminal, de forma estranha à sua vocação de elucidar controvérsias constitucionais e em detrimento da apreciação de relevantes demandas.

Na explicação desse fato se encontra o instituto do foro privilegiado, que pretendeu (ainda que não se diga abertamente) evitar o julgamento dos "condestáveis" da República pelos magistrados de primeira instância, na presunção de que ocorreriam excessos.

É razoável que determinadas autoridades tenham prerrogativas no atendimento de requisições judiciais. Eventuais excessos de magistrados, por sua vez, devem ser corrigidos por uma adequada lei de abuso de autoridade e por uma correição efetiva. O privilégio de foro, entretanto, é deplorável e acarreta, como se pôde ver no mensalão, julgamento em instância única e sobrecarga de trabalhos para o Supremo.

A metodologia dos julgamentos revelou-se modorrenta, repetitiva e arcaica. O cansaço visível na face de alguns ministros é apenas consequência de sua condição humana. Um laudo sobre determinada instituição financeira foi lido mais de uma dúzia de vezes. Existe alguém capaz de ouvir atentamente um relatório de mais de mil páginas? Por que reproduzir, literalmente, depoimentos contidos nos autos? Não bastaria uma ilação referenciada aos autos? Por que dispensar a utilização de modernos meios de exposição que favoreçam a compreensão das intervenções orais?

A fixação das penas (dosimetria) deveria pautar-se pela concisão, sendo expressa numa tabela, que conteria a pena-base e as circunstâncias, se for o caso, que a agravam. Além disso, parece-me que, na determinação da pena, seria aconselhável adotar o voto médio, e não o modal, como bem aconselharia a ciência estatística no trato de situações análogas.

O julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro produz controvérsias que revelam claramente as deficiências da legislação, agravadas por mudanças recentes, que podem resultar em sérios percalços para determinados profissionais (notadamente, advogados e contadores), ainda que não tenham tido participação no ciclo criminoso. A legislação é claudicante e merece ser revista. Não há jurisprudência boa que salve uma lei ruim.

À margem desses comentários, não se pode desperdiçar a oportunidade de enfrentar as causas dos crimes que deram origem ao mensalão. Na essência, tudo gravita em torno de questões políticas e eleitorais. A prevenção desse tipo de crime aponta para o reexame da legislação relativa às prestações de contas de candidatos e partidos políticos, nela incluída a obrigação de fiscalização sistemática pela Receita Federal, e as malsinadas "emendas parlamentares" - fonte inesgotável de corrupção e de abjetas barganhas políticas.

A sedução fatal do PMDB - RENATO JANINE RIBEIRO

Valor Econômico - 05/11


Perguntem a quase qualquer partido político brasileiro o que ele quer ser quando crescer, se crescer, para crescer. É quase certo que, se ele for sincero, responderá: "PMDB". Chamo de "PMDB" um partido de pouca definição ideológica, capaz de sustentar um governo de direita ou esquerda, mas formado por tantas alianças regionais que consegue um bom retorno da União em troca de seu apoio.

Em 2011 foi criado um segundo PMDB, com o nome de "PSD", a maior realização do prefeito Gilberto Kassab - um partido que, em sua certidão de nascimento, conseguiu se definir como não sendo "de direita, de centro nem de esquerda". Nos últimos meses, o Partido Socialista Brasileiro, que pelo nome deveria ter posição ideológica de esquerda, caminhou para ser nosso terceiro e simultâneo PMDB. Nas eleições deste ano, o PSB fez alianças as mais diversas, ampliando o contingente de seus prefeitos e também, o que pode ser um sinal, aliando-se ao PSD em várias cidades.

Por que vivemos essa peemedebeização dos partidos? Na década de 1980, o Brasil parecia caminhar no rumo oposto. Foi quando nasceram os dois partidos que, nas últimas duas décadas, governaram o país. Em 1980, surgiu o Partido dos Trabalhadores. Demorou a ter uma bancada parlamentar digna de nota. Mas desde o começo conheceu um sucesso de crítica. Nasceu, em certa medida, contra o PMDB. Pretendeu, quando a democratização despontava no Brasil, libertar as causas trabalhistas e populares da dependência em face dos projetos apenas liberais da oposição então existente. A par disso, se caracterizou pela ética e mesmo pela intransigência. Queria mobilizar as pessoas, mais do que ganhar eleições ou benesses. O PSDB nasce depois do fim da ditadura, em 1988. Seus fundadores eram membros históricos do PMDB, mas romperam com ele por divergências que seriam éticas com as lideranças do partido original.

Sem identidade, os partidos são bons coadjuvantes

Com suas diferenças, PT e PSDB mostravam forte preocupação ética e convicções ideológicas. Por isso mesmo, continuam tendo as personalidades mais marcantes de nossa política. Esta continua a se polarizar em torno deles. Vejam a questão das coligações possíveis. Por mais de dez anos, tivemos quatro grandes partidos, o PMDB, o PSDB, o PT e o PFL (depois, DEM). Pois bem: deles, o PT podia se aliar apenas ao PMDB; o PSDB, ao PMDB e ao PFL; o PFL, somente ao PSDB - e o PMDB a qualquer um dos outros três. O PT e o DEM eram os mais consistentes em ideologia, o PMDB o menos. Ora, hoje, com a queda do DEM para a oitava posição na Câmara, após a criação do PSD, quase todos os nossos partidos podem se aliar a qualquer um. Mesmo o PCdoB, que por ser comunista deveria ter fronteiras ideológicas nítidas, entrou para a administração Kassab em São Paulo. Numa conta rápida, que não deve esquecer as diferenças internas a cada partido, dos 513 deputados federais apenas 164 pertencem a agremiações exigentes em termos de alianças - repito, o PT (87 deputados), o PSDB (49) e o DEM (28).

Quer dizer que, na década de 1980, ante o fim do regime militar e a eleição da Constituinte, queria-se mais dos partidos. Hoje, após três décadas de avanços democráticos, com eleições mais limpas, forte inclusão social e até sinais de que a corrupção poderá começar a ser punida, os partidos políticos têm ambições rasteiras. Querem o poder, claro. Isso é de sua natureza. Mas dizem cada vez menos para que desejam o poder. Projetos para o país melhorar, têm poucos. Nesta eleição, o próprio PSDB só conseguiu apresentar seu programa para a prefeitura de São Paulo em cima da hora.

Por que essa queda em ambição, em projeto, em idealismo? Por que esse avanço do interesse, da busca da oportunidade, da aliança sem muito pudor? Sem dúvida o fenômeno não é positivo. Mas pode dever-se, em parte, à consolidação do PT e do PSDB como os partidos ideológicos ou, embora a palavra cada vez valha menos até para eles, idealistas de nosso espectro politico. Para os outros, não vale a pena ter ideais ou ideologias. É o que sucedeu, na esquerda, com os partidos socialista e comunista, e, na direita, com o PP e agora o PSD, criado para eleitos da direita poderem apoiar o governo Dilma (ou qualquer governo).

E isso é curioso, porque tanto se cantou o fim da polarização, tantos quiseram ou querem uma terceira via na política brasileira... O PMDB tem falado em lançar, talvez em 2018, um nome próprio para a presidência da República; isso parece indicar que o principal cargo do país, o que define o rumo político do Brasil, poderia ser preenchido só na base de alianças, sem projeto. Resta ver se isso dará certo. Pessoalmente, duvido. Creio que o avanço dos grupos de interesses, dos partidos em que o projeto cede lugar ao lobismo, também os incapacita para voos mais altos. O PSB pode, sim, aumentar seu cacife pedindo a Vice-Presidência da República para escolher se apoia um tucano ou um petista para a sucessão de Dilma. Mas isso não o converte em cabeça de chapa - ao contrário. Isso o limita a uma posição secundária.

Por mais que o modelo PMDB ofereça ganhos tangíveis e certos, os dois partidos que, somados, ou melhor, brigados, chefiam o Estado há quase 20 anos, só conseguiram isso porque não foram nem são PMDB. Nosso grande partido-ônibus é vantajoso para apoiar, não para liderar. Lutar pela hegemonia, como fazem PT e PSDB, tem um custo. Você pode perder. Já fazer alianças com qualquer lado (exagero um pouco no "qualquer") tem suas vantagens, mas traz um custo: você não disputa a final do campeonato. Pode até se manter na primeira divisão, mas não chega à final do Brasileirão.

O custo da infraestrutura ruim - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 05/11


O Brasil paga muito caro pelas deficiências da infraestrutura de transportes. A mais recente pesquisa da Fundação Dom Cabral sobre o tema mostra que, se o sistema brasileiro de transportes e logística tivesse a eficiência do sistema dos Estados Unidos - país tomado como comparação por causa de suas dimensões, comparáveis às do Brasil -, as empresas economizariam R$ 83,2 bilhões por ano. O valor corresponde, por exemplo, ao orçamento anual do Ministério da Saúde.

A instituição responsável pela pesquisa ouviu 126 grandes empresas, responsáveis por cerca de 20% do PIB brasileiro, e constatou que, enquanto o custo logístico nos EUA se limita a 8% do PIB, no Brasil chega a 12% de tudo o que se produz. Obviamente, esse gasto adicional retira competitividade da economia brasileira, além de retardar o crescimento, pois reduz a capacidade de investimento das empresas.

As perdas impostas às empresas brasileiras pela ineficiência do sistema de transportes e de logística mostram a urgência da execução do plano para o setor, anunciado em agosto pelo governo. O crescimento sustentável, admitiu o ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos, em entrevista à revista Conjuntura Econômica, exige uma infraestrutura maior, mais moderna, conjugada a um sistema de logística eficiente. É preciso que, conhecido o problema, o governo passe à ação, e aja com a eficácia exigida pelas necessidades do País. E elas são muitas.

Estradas ruins, malha ferroviária insuficiente, baixa competitividade no setor e custos operacionais elevados em portos, entre outros fatores, exigem que as empresas gastem com logística 13% de sua receita, contra 7,5% gastos pelas empresas americanas. Alguns setores são mais prejudicados que outros e gastam bem mais, como a indústria de bens de capital (gastos de 22,7% da receita com logística), construção (20,9%) e mineração (14,6%).

Há uma grande diferença no uso das diversas modalidades de transportes no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui, é destacada a predominância das rodovias, por onde trafegam praticamente dois terços de toda a carga movimentada no País. Nos EUA, as rodovias respondem por 38% da matriz de transportes. As ferrovias respondem por 19,5% da carga transportada no Brasil, índice que, nos EUA, chega a 28,7%. A parcela do transporte aquaviário é parecida nos dois países. A maior diferença surge no transporte por dutos, que, no Brasil, responde por 3,5% da matriz de transportes e, nos EUA, por 21,5%.

A má situação das estradas - retratada no número de acidentes e nas pesquisas feitas anualmente pela Confederação Nacional do Transporte ao longo de quase 100 mil quilômetros de rodovias - eleva os custos de manutenção da frota de caminhões e, assim, do custo do transporte, sobretudo o de longa distância, item que mais pesa nas despesas operacionais das empresas. As empresas não se queixam de pagar pedágios, desde que a rodovia esteja em bom estado.

Em seguida, as empresas apontam os custos de armazenagem como item importante de suas despesas de transportes e logística. Além do transporte de longa distância, as empresas mencionam como outro grande fator de aumento de custos os problemas de distribuição de seus produtos nos centros urbanos, decorrentes das restrições impostas pelas autoridades municipais das áreas de trânsito e de preservação ambiental.

"Da porteira para dentro, a indústria se moderniza e investe", ressalvou o coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, Paulo Rezende. "Na hora que vai transportar, muitos ganhos são perdidos." Quando conseguem, as empresas repassam os custos adicionais para os consumidores; caso contrário, são obrigadas a absorvê-los, o que dificulta a modernização e a expansão de suas atividades.

A solução apontada pelas empresas é conhecida: expandir a oferta de serviços mais baratos, o que significa ampliação da malha ferroviária, permitir maior integração de diferentes meios de transportes e aumentar a concorrência, para reduzir custos. A disposição do governo de abrir mais espaço para o investimento privado no setor é um bom sinal.

A conta não fecha - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 05/11

Gastos do governo federal continuam a subir mais que as suas receitas, buraco que só a contabilidade criativa do Planalto consegue preencher



O descumprimento iminente da meta fixada para o saldo das contas do Tesouro Nacional em 2012 será o terceiro em quatro anos, se descontadas dos cálculos as manobras contábeis da gestão petista.

De janeiro a setembro, a receita superou em R$ 55 bilhões as despesas com pessoal, programas sociais, custeio administrativo e investimentos. É pouco, diante dos R$ 97 bilhões que precisariam ser poupados até dezembro.

Em igual período de 2011, o superavit somava R$ 75 bilhões, o que permitiu cumprir, com pequena folga, a meta final de R$ 92 bilhões.

Num cenário de estagnação econômica, é razoável que haja mais despesas e alívio tributário para reativar o consumo e os investimentos. Infelizmente, há mais vícios renitentes do que estímulos saudáveis por trás dos números.

O pagamento de benefícios previdenciários, assistenciais e trabalhistas vinculados ao salário mínimo, que responde por quase metade das despesas federais, cresceu 13% -o dobro das variações da inflação e do PIB somadas. A expansão foi impulsionada pela política de valorização do salário mínimo, que vincula o reajuste ao crescimento passado, independentemente da situação orçamentária.

A raiz do excesso de gastos, porém, é uma legislação permissiva, que teve seu efeito mais caricato, nos últimos anos, no aumento do número de beneficiários do seguro-desemprego, enquanto crescia a ocupação no mercado de trabalho.

Os encargos com subsídios e subvenções subiram 60% no ano, ou R$ 7 bilhões, sobretudo devido a compromissos do programa Minha Casa, Minha Vida represados em anos anteriores.

Investimentos em infraestrutura, que deveriam ter prioridade em uma estratégia de estímulo à demanda, tiveram incremento modesto, de 6,5% (R$ 2 bilhões), abaixo do aumento da despesa. Em ministérios cruciais, os montantes direcionados a obras e compras de equipamentos estão em queda.

As receitas da União, mesmo sob efeito da desaceleração econômica e das desonerações, se comportam bem e seguem estáveis como proporção do PIB. Só estão aquém do necessário porque o governo não consegue elaborar Orçamentos sem prever desempenhos espetaculares da arrecadação para compensar gastos exagerados.

Necessárias, mas lentas - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 05\11


De 83 obras de infraestrutura que eliminariam os gargalos de transporte no Nordeste nos próximos cinco anos e reduziriam os custos das empresas, aumentando a competitividade da região e do País, apenas um quarto está contratado. Pior ainda, algumas das que são classificadas como "em andamento" nos relatórios oficiais (o setor público é responsável por 85% das obras contratadas) estão atrasadas ou paradas por problemas diversos.

O problema já é grave e, se investimentos não forem feitos com urgência e eficácia, pode gerar gargalos e elevar ainda mais os custos de transporte e logística. "A baixa eficiência de transporte de cargas compromete o esforço de adequação do setor produtivo aos padrões de competição e qualidade internacionais", observou o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, no lançamento do Projeto Nordeste Competitivo, trabalho que resultou de uma parceria da CNI com as Federações das Indústrias da região.

Trata-se de um estudo sobre as necessidades atuais e futuras da região na área de infraestrutura de transportes, baseado na movimentação de cargas para a região e dela para outras partes do País e para o exterior, levando-se em conta a produção atual e a projetada.

Parte da infraestrutura atual já está sendo utilizada no limite de sua capacidade ou acima dela. É o que ocorre com dois trechos da Estrada de Ferro Carajás, entre São Luís e Açailândia, no Maranhão, e entre Açailândia e Marabá (PA). Este último tem capacidade para o transporte de 311 mil toneladas por dia, e já opera normalmente com 279 mil toneladas diárias. As projeções para a produção das cargas transportadas pela ferrovia indicam que, em 2020, o total chegará a 877 mil toneladas diárias.

Dois portos da região, o de São Luís e o do Recife, já operam além de sua capacidade. Nos próximos anos, outros seis portos do Nordeste chegarão a essa situação e mais dois estarão no limite de sua capacidade.

Quanto a rodovias, três já apresentam gargalos. A utilização ultrapassa em até 65% sua capacidade de suportar peso por determinado período, o que resulta em redução de velocidade, congestionamentos e desgate excessivo. Se nada for investido na expansão da malha, outras nove estradas serão utilizadas além do limite em 2020.

Foi com base em conclusões como essas, combinadas com o estudo da evolução da produção, do consumo e da movimentação de cargas pela região, que o trabalho da CNI identificou 196 projetos que reduziriam os custos logísticos, melhorariam o fluxo de mercadorias e contribuiriam para aumentar a competitividade do Nordeste. Esses projetos necessitariam, no entanto, de investimentos de R$ 71 bilhões em nove anos, valor excessivo para os cofres públicos e para o setor privado.

Por isso, o estudo selecionou 83 obras prioritárias, que custariam R$ 25,8 bilhões. Considerando-se que essas obras permitiriam a redução dos custos logísticos em R$ 5,9 bilhões por ano, teoricamente se poderia dizer que elas seriam "pagas" em menos de cinco anos.

Na proposta da CNI, ferrovias e portos absorveriam 90% dos recursos; 9% seriam aplicados em rodovias e 1% em hidrovias. É pequena a parte dos projetos selecionados no estudo que já está contratada, sobretudo pelo governo federal, e algumas obras andam muito lentamente ou estão paradas.

A construção da Ferrovia Transnordestina tem problemas no trecho cearense, por causa da negociação de preços entre o governo e a concessionária. A Ferrovia de Integração Oeste-Leste, entre Ilhéus (BA) e Figueirópolis (TO), que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento, tem sua execução considerada "preocupante" pelo governo, pois vários trechos estão paralisados. Obras do Porto de Ilhéus, por sua vez, enfrentam a resistência de entidades ambientalistas.

"A infraestrutura não está colaborando como poderia, e deveria, para aumentar a competitividade do País", queixou-se o presidente da Federação das Indústrias da Bahia, José de Freitas Mascarenhas. Pelo andar das obras públicas, a colaboração ainda demora.