O GLOBO - 05/11
Uma coisa é o ministro da Justiça receber grupos com demandas insensatas. Que ele assuma essa insensatez, é algo totalmente diferente
Quando tudo parece já ser conhecido, causa espanto, senão surpresa, observar que ministros e titulares de órgãos do Estado agem à revelia de si mesmos e de decisões maiores do Supremo Tribunal Federal. Refiro-me, em particular, à edição e à suspensão da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), normatizando as condicionantes do STF relativas ao julgamento do caso da Raposa Serra do Sol.
Na edição dessa Portaria, a AGU nada mais fez do que regulamentar um Acórdão do Supremo, seguindo as suas determinações. Cumpriu um preceito constitucional. Em nota Nº24/ 2012/DENOR/CGU/AGU, ao responder solicitação da Funai, pedindo a revogação dessa Portaria 303, constam, no seu arrazoado, importantes considerações.
O texto da AGU, em seu inciso 3: “Seu texto segue rigorosamente o que foi determinado pelo STF no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em 2009, pois é mera reprodução de sua decisão na Petição 3.388/RR.” Trata-se de uma decisão da mais alta corte do país sendo aplicada. É o estado de direito em funcionamento.
Em seu inciso 5, frisa que o seu principal objetivo, “ao publicar essa Portaria, é a promoção da estabilidade das relações jurídicas”. Observe-se que a segurança jurídica é o seu objetivo maior. Logo, há um marco a partir do qual os conflitos podem ser equacionados no estrito cumprimento da lei.
Não obstante essas considerações, a mesma AGU conclui pela suspensão dessa Portaria considerada tão necessária. A contradição é flagrante. Ela deixa de seguir o que foi fixado pelo STF, não mais se preocupa com a estabilidade jurídica apregoada, dissemina a insegurança jurídica e aumenta os conflitos existentes nessa área. O que era um marco constitucional deixa, abruptamente, de sê-lo.
A questão é a seguinte: o que levou a AGU a agir contra si mesma, na verdade, contra o próprio governo? Convém salientar que a suspensão dessa Portaria atinge não somente agricultores (familiares, pequenos e médios) e o agronegócio, mas a construção de hidrelétricas, hidrovias e estradas, a mineração e, de modo mais geral, a soberania nacional e a presença das Forças Armadas, em particular o Exército, em todo o território nacional.
Para responder a essa questão, é necessário remontar ao Ofício nº260/ GAB/PRES-FUNAI, assinado pela presidente, Marta Maria do Amaral Azevedo, e dirigido ao ministro Luis Inácio Adams, advogado-geral da União.
Em sua consideração nº1, consta: “Em atenção às reivindicações apresentadas pelos povos indígenas e organizações da sociedade civil e considerando os compromissos e esforços do Estado brasileiro para a regulamentação e implementação do direito de consulta dos povos indígenas, previsto na Convenção 169 da OIT, solicito a suspensão temporária dos efeitos da Portaria AGU nº303/2012, que foi publicada no DOU de 17/07/ 2012.” Posteriormente, em declarações publicadas em jornais, é advogada a suspensão definitiva dessa mesma Portaria.
Observe-se que uma decisão do Supremo, seguida pela AGU, deveria ser submetida à apreciação e aprovação dos povos indígenas e organizações da sociedade civil. O STF não seria instância máxima do país na interpretação constitucional das leis, mais deveria ser referendada por outras instâncias. O Supremo deixaria de ser supremo.
Note-se o eufemismo “organizações da sociedade civil” para designar, na verdade, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da Igreja Católica, o Instituto Socioambiental e outras ONGs indigenistas, nacionais e internacionais, além dos ditos movimentos sociais. Eles se tornariam, então, a instância máxima para a decisão dessas questões. A insensatez é total.
O ofício ainda recorre à Convenção 169 da OIT, como se ela estivesse acima da Constituição nacional e da decisão do STF. De nova conta, nossa mais alta corte aparece como instância subordinada. Ocorre aqui uma transferência de soberania.
Em sua consideração nº 2 consta que “tal medida [de suspensão] se justifica em razão da repercussão negativa que a edição da Portaria causou em âmbito nacional e internacional, fato atestado, inclusive, pela Secretaria Geral da Presidência da República”.
Ora, ora! Uma Portaria da AGU normatizando uma decisão do Supremo deveria estar condicionada às suas repercussões em ONGs nacionais e estrangerias, graças às suas influências em certos jornais, revistas e meios de comunicação no país e em escala global. A mensagem é a seguinte: Brasil, não exerça a sua soberania e siga essas ONGs e movimentos sociais!
Mais estarrecedor ainda é o fato de o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assumir para si essa posição de um órgão de seu ministério, a Funai. Em seu aviso nº 1744/2012/MJ, de 14 de setembro de 2012, endereçado ao advogado-geral da União, Luis Inácio Lucena Adams, é dito ter ele recebido no ministério a presidente da Funai, o ministro substituto da Advocacia- Geral da União, vários representantes de etnias indígenas que “solicitaram a revogação da Portaria nº303”. Ou seja, órgãos estatais e representantes de algumas etnias apregoam a revogação da portaria, o que significa dizer que a decisão do STF não deve ser normatizada, logo, seguida.
Que o ministro receba grupos com demandas insensatas, pode perfeitamente fazer parte do seu trabalho. Que ele assuma essa insensatez, é algo totalmente diferente. Assim, escreve após ter ouvido as lideranças: “Declarei de próprio punho” que encaminharia à AGU a proposta de “criação de um Grupo de Trabalho composto pelo Ministério da Justiça, AGU, Funai e representantes dos povos indígenas com o objetivo de discutir as condicionantes estabelecidas na Portaria nº303/2012 e outras formas de viabilização de processos de demarcação de terras indígenas, na conformidade com o estabelecido na Constituição Federal.”
Como assim? Agir em conformidade com o estabelecido na Constituição Federal submetendo a consulta uma decisão do Supremo, como se essa corte não tivesse seguido a nossa Lei maior? A instância máxima do país tornou-se mínima?
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