terça-feira, abril 09, 2019

O futuro do passado já mudou irremediavelmente - CORA RONAI

O GLOBO - 09/04

Não há máquinas de busca nem inteligência artificial que consigam desenvacar vagas recordações


Houve um tempo em que as pessoas mais românticas - ou mais organizadas -- voltavam de viagem com grandes envelopes cheios de lembranças: passagens de trem e de avião, bilhetes de metrô, entradas de cinema e de museu, folhetos, embalagens de balinhas e de chocolates, programas de teatro, contas de restaurantes e de compras variadas, recortes de jornais e de revistas. A viagem continuava em casa, quando esses papeizinhos todos eram amorosamente colados em álbuns junto com as melhores fotos dotour .

Nos Estados Unidos, a partir desse hábito, criou-se todo um universo comercial multicolorido, com papelarias especializadas vendendo adesivos, folhas estampadas, etiquetas, acessórios, papéis artesanais. Em fins dos anos 1990, o scrapbooking virou febre, especialmente entre adolescentes.

É uma ironia imaginar que, naquele exato momento, a tecnologia também começava a se popularizar: em breve, a fotografia tradicional, em papel, seria apenas um retrato na parede.

O scrapbooking , porém, não morreu. É bonito e atraente demais para isso. Papelarias continuam vendendo material e, paralelamente, há milhões de páginas e de imagens para imprimir online.

Mas os dias de febre passaram. A própria natureza das nossas lembranças está mudando. No outro dia, Peter Funt lembrou, no "The New York Times", que tíquetes para antigos jogos de baseball valem milhares de dólares -- mas já não há mais tíquetes no nosso universo digital, em que a entrada para o estádio (e a passagem de avião e o bilhete do metrô) estão em códigos QR no celular.

Temos uma quantidade de material para memória muito maior do que jamais tivemos, porque as nossas mínimas conversas - "Traz pão quando vier para casa!" - estão armazenadas no WhatsApp, e fazemos centenas de fotos por dia, mas na verdade é como se nada existisse para além do momento da sua criação. Muita coisa se perde, de fato, por um ou outro motivo técnico, mas desde que o backup em nuvem se tornou automático, isso já não é uma preocupação.

O que ameaça a lembrança dos dados que geramos e que recebemos é o seu volume descomunal: o Google já é capaz de encontrar fotos de animais de estimação pelos seus nomes, mas não há máquinas de busca nem inteligência artificial que consigam desencavar vagas recordações.

A última cena de "Indiana Jones e os caçadores da arca perdida" mostra a Arca da Aliança sendo fechada num caixote de madeira, que é guardado entre milhares de outros caixotes de madeira iguais, armazenados em pilhas num remoto depósito do governo: naquele momento, temos certeza absoluta de que lá ela jamais será encontrada, nunca, em tempo algum... ainda que esteja em perfeita segurança.

Nossos emails e fotos estão em perfeita segurança na nuvem, e em tese estão à nossa disposição quando precisamos deles -- mas a questão é que nem só de precisão se fazem as lembranças. Elas tinham o hábito de morar em gavetas e em álbuns e de nos assaltar inesperadamente. Continuarão fazendo isso por mais algum tempo, enquanto as últimas gerações que cresceram num mundo analógico ainda andarem sobre a Terra, mas o futuro do passado já mudou irremediavelmente.

Plebeus do Brasil inteiro, uni-vos! - FERNÃO LARA MESQUITA

ESTADÃO - 09/04

A capitalização é a fronteira entre o fim previsível e o nunca acabar da privilegiatura


O presidente ainda não decidiu o que quer ser depois que cresceu. Sob a regência dele e família a “direita” e a “esquerda” velhinhas esbofeteiam as paixões vintage uma da outra via internet. Já o Brasil “indignado” ataca pessoas, mas não ataca problemas. E a imprensa, participando ou não dela, só vê a política como disputa. Abriu mão do 4.º Poder. Dispensa-se de buscar soluções; de informar como funciona o mundo que funciona. “O governo ganhou...”, “O governo perdeu...”. Brasil e brasileiros nem há...

É tudo isso junto que proporciona que a privilegiatura não seja denunciada como sistema e possa continuar defendendo anonimamente seus privilégios.

Na tradição política brasileira, onde quem não pede aceita, da extrema-direita à extrema-esquerda e mais quase tudo o que há no meio, todos mutuamente se arrimam no quesito defesa de privilégios. O instinto natural do Congresso é ver como entregar o mínimo para não matar a galinha dos ovos de ouro já e o resto é circo. É uma cultura. O que é a debandada dos substitutos dos médicos cubanos três meses depois de contratados, senão o aproveitamento de mais uma oportunidade de pôr um pé dentro da nau dos exploradores pelos “concurseiros”, seguido do efeito obrigatório da garantia de que nada, pela eternidade, poderá tirar de lá quem conseguir essa proeza? O que mais é preciso para explicar por que mais de 100% do que arrecada o País expulso do mercado global pelos impostos mais altos do mundo já não basta para pagar os privilégios dos “embarcados”, aposentados ou não?

A “desarticulação política do Planalto” se dá em torno daquilo que nem ele, nem a oposição, nem a imprensa estão pedindo que mude desde a raiz, nem hoje, nem muito menos quando o problema era o excesso de “articulação política” entre o Palácio e o Congresso. Não há “desinteresse do presidente pelas tarefas inerentes ao cargo que ocupa”. O que há é o desinteresse de Brasília inteira, e adjacências, em acabar com esse nosso feudalismo extemporâneo.

O Congresso é a frente mais vulnerável dessa resistência. Todo mundo exposto ao voto sabe que o que lhe está sendo pedido não é nenhuma revolução, é apenas, como já tinha sido na reforma trabalhista, que remova da cena institucional aquilo que já está morto e nada poderá fazer reviver porque o dinheiro acabou. A confusão do presidente com seu novo papel é que reabriu a controvérsia. Jair Bolsonaro nunca saiu do território da privilegiatura. É até por balda, mais que por convicção, que é ele quem rege a pauta das capitulações. Ninguém exigiu nenhuma, ele é que ofereceu todas. Mas agora passou da conta. O sistema de capitalização é a fronteira real entre o fim previsível e o nunca acabar da privilegiatura. O regime de repartição mantém aberto o componente aleatório da conta da Previdência que os políticos “arbitram”, ou seja, mantém aberto o comércio de favores que cria castas privilegiadas e arrebenta países como o Brasil. O de capitalização impõe o realismo matemático que mata esse comércio e, de troco, cria uma poderosa rede de fundos de poupança que provê o financiamento barato do desenvolvimento futuro. O “elevado custo de transição” alegado é para quem tem o que perder nesta parada, que certamente não é o povo que já não tem nada.

Paulo Guedes também nunca saiu do País Real, esse mundo onde a realidade é senhora e ninguém dá murro em ponta de faca. Mas na arena da luta pelo poder aquilo que parece pesa muito mais que aquilo que é. Logo, submeter-se a longas sessões de teatro sem ser ator não é o melhor meio de passar a reforma. Convencer o povo, que tira e põe políticos no poder, da indispensabilidade e da boa-fé dos componentes essenciais da sua proposta é que é o caminho para extrair indiretamente dos deputados o voto que o Brasil precisa.

Uma imprensa que se negasse a disparar tiros alheios pelo “acesso” a dossiês nunca 100% desaloprados montados pelas facções em luta pelo poder; uma imprensa que resistisse a tomar 200 milhões de brasileiros por otários voluntários recusando o mito da “impopularidade” do fim da privilegiatura que todas as pesquisas mostram que não vai além das salas onde deveriam trabalhar mas estão dispensados de fazê-lo os “estáveis no emprego” para todo o sempre; uma imprensa que tudo referisse, enfim, à meta sacrossanta do privilégio zero poderia fazer essa ponte. É pela falta dela que o povo tornou-se uma ficção distante para Brasília, assim como Brasília tornou-se uma ficção distante para o povo. Não há nenhuma comunicação entre eles porque a intocabilidade de todos quantos conseguem pôr um pé dentro do Estado, um dia, nunca é posta em xeque. Excluído o único remédio que cura, tudo o que resta para a análise dos eruditos do nada são os protocolos da Corte. O que diz a regra (que nos mata)? De quem é a competência (de nos ferrar desta vez)? Os parênteses não sobem nunca às manchetes. Só o que não interessa interessa.

Levantar a censura sobre como funciona o mundo que funciona pouparia o País de ter de reinventar a roda. Mas, se apenas a imprensa passasse a atribuir o comportamento da Corte às suas causas evidentes, já começaríamos automaticamente a nos dirigir para a saída, que consiste apenas e tão somente em condicionar todos os dias, dia após dia, a permanência no emprego de políticos e funcionários públicos à obrigação de agradar os “clientes” que lhes pagam os salários, como acontece aqui fora.

Democracia, no más...

Plebeus do Brasil inteiro, uni-vos! Este país está aquém do século 19 das revoluções democráticas. A parada aqui ainda é “nobreza, unida, jamais será vencida”. Pelo povão ninguém “é”, senão o ministro que os deputados hereditários da bancada dos gigolôs de miséria querem carimbar como “rentista” ou “agente dos bancos”, a apelação que resta no seu arsenal esvaziado de argumentos. Paulo Guedes terá de recorrer a uma campanha profissional de esclarecimento do povo se quiser conseguir dar o seu recado inteiro. Nenhum dinheiro público poderia ser mais bem gasto.

*JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

"Bolsonaro tem razão" - GUSTAVO NOGY

GAZETA DO POVO - PR - 09/04

"Enfim, sou capaz de concordar sem avarentas restrições ou manhosas adversativas com o presidente Jair Bolsonaro. Nosso acordo é mútuo e pleno de verdade. Ouso dizer: mais do que concordar com ele, ele concorda comigo. Não nos conhecemos, mas estamos em sintonia.

Num gesto de invulgar nobreza, afirmou sobre si o que eu sempre afirmei sobre ele: não nasceu para ser presidente, não faz ideia do que está fazendo no posto, não sabia que os problemas eram tantos e tamanhos. Que lhe desculpemos as caneladas, ele pede. Não é do ramo.

Antes tarde do que nunca, embora não precisasse demorar tanto. Tivesse reconhecido um pouquinho mais cedo sua dificuldade de dominar uma bola e ninguém teria incomodado ninguém: nem ele ao governo, nem o governo a ele. No fundo, de acordo com sua declaração, quem não votou em Bolsonaro lhe fez mesmo um favor. Não precisa agradecer, presidente, eu compreendo suas aflições. Também são minhas.

Não pensem vocês que ele está de brincadeira. Ele fala a sério, mortalmente a sério. Catapultado ao imaginário nacional diretamente dos programas de humor e entretenimento, Bolsonaro parece ter proposto candidatura com a certeza de que não corria risco nenhum de ser eleito, como adolescente que vai à rua procurar emprego temendo encontrar emprego.

Pois encontrou emprego.

Nós ficamos espantados.

Ele ficou espantado.

Irmanados no espanto, temos aí um inconveniente país com o qual lidar.

A prova de que Bolsonaro tem razão e fala a verdade é que nunca soube explicar de que se trata, afinal de contas, essa treta de governar. Quando lhe perguntavam sobre Previdência, ele remetia ao Paulo Guedes. Saúde? Falem com o Paulo Guedes. Privatizações? Guedes. Infraestrutura? Vão logo ao inferno ou ao Instituto Millenium.

Para quem insistia, tinha uma resposta na ponta da retórica: um presidente não precisa, e nem se quisesse conseguiria, saber tudo sobre todos os assuntos. O que é verdade. Contudo, é também verdade que um presidente carece de saber algo mais do que os nomes das pessoas e o número das respetivas salas. Precisa perceber algo de gestão, de princípios elementares de administração, de movimentos básicos do xadrez político.

Ele tem mostrado que sabe? Mistérios.

O affair Velez Rodriguez é mais eloquente que um Socrates na praça. O colombiano putativamente conhecedor de pensamento brasileiro foi escolhido não pelo presidente, que o ignorava, mas por aqueles que o presidente escolheu. Disseram a ele que o historiador de filosofia sabia tudo o que o presidente não sabia.

A fé move montanhas e nomeia ministros, sabemos todos.

Em três meses, o ministério com segundo maior orçamento e complexidade sem igual está à deriva. Sem planos, sem metas, sem projetos. O ministro, que fazia ponta de morto-vivo há semanas, foi demitido. Garanto que a culpa não é minha; não sou Charles Xavier nem Magneto, e o poder do meu pensamento negativo não chega a tanto. O fato é que quem o indicou já tinha se apressado a desindicar, quem viu fez de conta que não viu, quem sabia garante que não sabe do que estão falando.

Jair Bolsonaro afirmou que não nasceu para ser presidente. Finalmente está coberto, sufocado, soterrado de razão.

Reforma da Previdência livra o Brasil do atraso - JOÃO DORIA

FOLHA DE SP - 09/04

Vale a pena comprometer o futuro de gerações?


O debate econômico no Brasil está paralisado por duas questões: quando a reforma da Previdência vai passar no Congresso e qual o tamanho do impacto fiscal dessa mudança.

Apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional, a reforma da Previdência prevê que o governo federal economize R$ 1 trilhão em dez anos. É uma urgência de nosso tempo. Ela exige a união daqueles que desejam outro ritmo no desenvolvimento do Brasil. Os números não mentem: o sistema atual levará à insolvência do Estado e a uma nova recessão econômica, ainda mais grave.

Em São Paulo, temos mantido o equilíbrio orçamentário. Mas, em sete estados, o peso das despesas de Previdência já compromete os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Cinco estados já possuem mais servidores aposentados do que na ativa —aqueles que atendem diariamente a população. O prejuízo coletivo causado pelas distorções desse sistema é evidente.

Faz dois anos que temos um crescimento pífio, apenas uma ínfima parte do potencial do país. Então, se por um lado é necessário diálogo e união entre os que desejam um Brasil mais próspero, é também obrigatório desnudar quem pensa apenas nos seus interesses.

Infelizmente há aqueles que se uniram para atrasar a mudança. Falseiam números e fraudam o debate para manter privilégios indefensáveis e interesses mesquinhos. Retardam uma agenda fundamental, condenando o Brasil ao baixo crescimento e à perpetuação de modelo injusto e desigual, que tira dos pobres para dar aos ricos. Trabalham para o “quanto pior, melhor”.

Em Davos, no Fórum Econômico Mundial, em janeiro último, tive 23 encontros com investidores estrangeiros, executivos de grandes empresas globais e líderes políticos mundiais. Todos, sem exceção, tinham unânime expectativa de retomada dos investimentos no Brasil —mas com a reforma da Previdência aprovada.

O investimento estrangeiro no Brasil vai aumentar ou vai diminuir? Depende da Previdência. A bolsa de valores, que alcançou o recorde histórico de 100 mil pontos, vai manter a arrancada ou vai murchar? Depende da Previdência.

A Previdência é um ponto de inflexão para o Brasil. Ela define o rumo de um país para as próximas gerações. E nunca estivemos tão próximos de um cenário positivo. Aprovar a reforma o mais rápido possível é ingressar no círculo virtuoso de crescimento contínuo. É abrir as portas para retomar o grau de investimento perdido pelos desarranjos do passado, é matar o chamado voo de galinha da economia, que asfixia nosso desenvolvimento desde a crise do petróleo, nos anos 70.

Os erros econômicos do passado recente e a renitente demora em fazer o que é certo comprometeram duas gerações de brasileiros. Vale a pena comprometer o futuro de outras duas? O Brasil precisa olhar para os bons exemplos do mundo. Enquanto países como Chile e Coreia do Sul, que eram menos desenvolvidos do que o Brasil, arrancaram para anos de crescimento contínuo, nós ficamos parados, amarrados pelo corporativismo e pela visão ideológica equivocada e atrasada.

A necessidade de se reformar a Previdência já passou pelo teste das ruas. É preciso agora, passar pelo teste do Congresso. O modelo de crescimento ancorado no Estado, via subsídios do BNDES, com empresas estatais e fundos públicos, se esgotou.

As propostas para fortalecer uma economia liberal, com mais iniciativa privada e menos Estado, são defendidas pelos brasileiros de São Paulo. Mas, para construir esse novo modelo, precisamos de inflação sob controle, juros mais baixos, regras claras e mercado competitivo.

O novo ciclo de crescimento do Brasil só de dará quando os agentes privados, daqui e do mundo, tiverem confiança na recuperação das contas públicas.

Está na hora de a reforma da Previdência libertar o Brasil do atraso crônico e projetar o país para um futuro próspero, com menos pobreza e mais crescimento.

João Doria

Governador de São Paulo (PSDB), ex-prefeito de São Paulo (jan.2017 a abr.2018) e empresário

Agenda nova na economia - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 09/04

Equipe econômica tem pronta agenda pós-Previdência, com divisão de receita de petróleo, reforma tributária, desvinculação e abertura comercial


A área econômica tem uma série de propostas para os próximos meses. A avaliação feita é que a reforma da Previdência vai ser aprovada neste primeiro semestre e depois virá a agenda que eles acham que será nova e positiva. O governo pretende propor a reforma tributária, a abertura comercial, o chamado “pacto federativo”, que tem como ponto mais atraente para estados e municípios a descentralização dos recursos. Essa nova divisão do bolo começaria com algo concreto, que é a distribuição de 70% dos recursos do pré-sal do megaleilão previsto para outubro.

A Previdência é sempre um assunto difícil, e por isso tanto o presidente Bolsonaro quanto o ex-presidente Lula começaram com ela. Mas já está em preparação o cardápio das próximas medidas. Na visão dos economistas do governo, todas serão assuntos mais populares do que a reforma da Previdência. A verdade não é tão simples. Algumas podem provocar muito debate, divisão e polêmica. Não é assim que a agenda é vista na área econômica.

O que eles chamam de novo pacto federativo inclui a desvinculação das receitas e a redistribuição de recursos. Para estados e municípios, falar em nova divisão das receitas é, de fato, muito atraente até porque começa pela divisão da renda do petróleo que fica com a União. O argumento na equipe é que quem centralizou foi o governo militar e que o ideal é fortalecer a Federação.

Já a desvinculação, que o ministro Paulo Guedes sempre apresenta como a devolução ao Congresso do poder de decidir sobre os recursos, sempre será polêmica. As bancadas temáticas que têm recursos carimbados, como educação e saúde, não vão querer, evidentemente, abrir mão da garantia constitucional à parcela dos recursos. Se realizado, dará mais poderes ao Congresso, de fato. Hoje, o Orçamento é feito por técnicos do Planejamento e a decisão está nas mãos de poucas pessoas. Antes eram o ministro da Fazenda e do Planejamento que decidiam o Orçamento. Hoje, os dois ministérios estão na mão de Paulo Guedes. Ele, por sua vez, tem um falso poder, já que tudo está definido previamente por regras, muitas vezes, estabelecidas na Constituição. O discurso de que desengessar será bom para os políticos acaba de ter um sinal contrário, porque a Câmara e o Senado votaram a favor de engessar ainda mais a destinação das receitas. Mas, nas conversas com os líderes do Congresso, o ministro Paulo Guedes repete sempre que essa agenda é positiva porque aumenta os poderes do parlamento.

A reforma tributária é outro tema que já estará ocupando a pauta nos próximos dias. Ideias começaram a ser discutidas. O próprio presidente Jair Bolsonaro falou recentemente em taxação de dividendos, sem entrar em detalhes. Esse é um ponto que esteve em quase todos os programas da última campanha eleitoral, do PT ao PSL. A ideia é reduzir o imposto sobre as empresas e aumentar a taxação sobre o acionista através do tributo sobre dividendos.

A reforma incluirá também alguns pontos que têm estado em todos os estudos sobre a estrutura de impostos brasileira: a de unificação de vários tributos num só para redistribui-los pelos estados e municípios. A grande vantagem é a da simplificação, e quando se tratar apenas de impostos federais, haverá acordo em todas as unidades da federação. Quando envolver o ICMS, estadual, ou o ISS, municipal, a avaliação das cidades e dos estados poderá ser bem diferente.

Outro ponto da agenda econômica de Paulo Guedes é a abertura comercial, que o ministério acredita que terá um efeito “exponencial”. Se, por um lado, essa reforma tem a chance de elevar a competitividade dos produtos brasileiros, por outro, tem perdedores e mexe com lobbies cristalizados. É apresentada na área econômica como agenda positiva, mas ela provocará muito debate, pressão e divisão. A última vez que o Brasil fez um forte movimento de abertura foi no governo Fernando Collor. O Brasil precisa se abrir e integrar-se a outros mercados. O fechamento nos trouxe até aqui: a uma indústria que encolhe como percentual do PIB a cada ano. A indústria tem dito é que antes de abrir será necessário mudar a economia.

Essa nova agenda será apresentada aos poucos. No governo se diz que não tirará o foco da Previdência, que continuará sendo a primeira das reformas.

Brincando com a verdade - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 09/04

O discurso pós-moderno da nova esquerda emigrou para a nova direita


“Fatos alternativos.” Adoro essa expressão. Pelo menos, desde o momento em que a escutei pela boca tenebrosa da sempre tenebrosa Kellyanne Conway, conselheira política de Donald Trump.

O pretexto, se bem me lembro, era saber quantas pessoas haviam estado na posse de Trump, em Washington. Os jornalistas diziam um número (modesto). Kellyanne dizia outro (estratosférico). O âncora que a entrevistava na TV insistia na verdade dos fatos. Kellyanne, perfeitamente blasé, respondia que os números em que acreditava eram “fatos alternativos”.

Naquele momento, ri alto e murmurei: quem diria que os novos conservadores eram tão pós-modernos? Uso a expressão no sentido próprio: se a verdade não passa de uma quimera, o que resta são as múltiplas verdades que a minha subjetividade produz.

O discurso pós-moderno que a “nova esquerda” abraçou na década de 1960 tinha agora emigrado para a “nova direita” do século 21.

Nunca mais voltei a pensar no assunto. Até encontrar, com surpresa, o livro de Michiko Kakutani, “A Morte da Verdade: Notas sobre a Mentira na Era Trump”.

Conhecia Kakutani das páginas do New York Times, onde o seu chicote crítico não poupava alguns escritores consagrados (Norman Mailer, John Updike, Jonathan Franzen etc.).

O livro exibe a mesma erudição e a mesma inteligência ferina, procurando explicar as raízes históricas e intelectuais dos “fatos alternativos” de Donald Trump e sua turma.

E, entre essas raízes, Kakutani, uma progressista imaculada, não hesita em fazer um “mea culpa”. Na década de 1960, a contracultura foi importante ao questionar velhas convenções morais, sem falar do seu espírito saudavelmente anarquista e antiautoritário.

Mas a contracultura também legou —ou, melhor dizendo, ressuscitou— uma desconfiança instintiva da razão e da racionalidade, entendendo ambas como meras construções burguesas, ocidentais, opressivas, ao serviço da classe dominante.

Na ânsia de derrubar falsos ídolos, o relativismo que brotou das universidades americanas, e que tanto desesperava conservadores como Irving Kristol ou Allan Bloom, defendia a radical subjetividade do eu, princípio e fim de todo o conhecimento e de toda a verdade.

Pois bem: os novos conservadores parecem ter aprendido a lição com os pós-modernistas do passado. Nada é sagrado para eles: nem a razão, nem a moral, nem a ciência, muito menos as elites intelectuais ou esses antros de criminalidade que dão pelo nome de “universidades”.

E quando escutamos os “fatos alternativos” de Kellyanne Conway ou as incontáveis “inverdades” do seu patrão, perguntamos seriamente se eles alguma vez leram Derrida.

A verdade, para eles, também se abre a uma multiplicidade de interpretações, a uma infinitude de sentidos, porque a “instabilidade” e a “indeterminação” das palavras autorizam tudo e o seu contrário.

No seu livro, Michiko Kakutani cita Mike Cernovich, um nome conhecido entre os “trolls” da alt-right e, segundo palavras do próprio, um fã das teorias pós-modernas.

“Se tudo é uma narrativa”, afirmou Cernovich em entrevista, “então precisamos de novas narrativas contra a narrativa dominante”. As palavras poderiam ter sido escritas por Jean-François Lyotard “lui-même”.

As consequências dessa atitude deságuam no mar do niilismo. Não no sentido em que a “intelligentsia” russa do século 19 usava o vocábulo, ou seja, como recusa de tudo aquilo que não pode ser provado cientificamente.

O niilismo contemporâneo nem a ciência respeita. A ciência é apenas mais uma forma discursiva entre várias formas possíveis. Sim, que interessa vacinar as crianças contra o sarampo quando a internet garante que as vacinas provocam autismo?

Estamos afundados em mentiras. Ou, polindo a linguagem, estamos rodeados de “pós-verdades” que marcham continuamente contra a “tirania da logocracia”.

Michiko Kakutani não oferece nenhuma resposta para o problema —a sua hostilidade a Trump não lhe permite ver um pouco mais longe.

Mas eu, com a devida vênia a Kakutani, acredito que só é possível voltar a “construir” algumas verdades quando muitos intelectuais ou acadêmicos contemplarem seriamente onde nos trouxe a “desconstrução” da verdade. As ideias têm consequências, já dizia um (velho) conservador americano.

Em 1838, no seu célebre discurso ao Lyceum de Springfield, no estado de Illinois, Abraham Lincoln avisou: a sobrevivência da República depende da razão, de uma moral sadia e da reverência pela Constituição e pelas leis.

Como programa para a América pós-Trump, melhor é impossível.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

O radicalismo prejudica a economia - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 09/04

Será difícil avançar nessa agenda legislativa num ambiente de conflagração


Eu fiquei impressionado, chegando ao Brasil em 1976 fugindo do drama da Argentina, em ver como, mesmo no regime militar, havia diálogo no Congresso. Acompanhei uma geração que cultuava a conversa, com figuras da estirpe de um Célio Borja ou Petrônio Portela, de um lado; e mestres da boa prosa política, como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, de outro. Aquilo foi uma lição, que conservo até hoje como filosofia: a de que pessoas com visões diferentes podem se entender e ter um denominador comum.

Por que a economia brasileira está crescendo tão pouco desde que saiu da recessão em 2017? O que vou tentar expor não é algo acerca do qual haja uma explicação clara, até porque os fatos são recentes, e não há uma reflexão sedimentada, mas é evidente que a recuperação em curso não guarda qualquer relação com outras experiências anteriores. Enquanto que a saída das crises pós-estabilização (1998, 2001/2003 e 2008) foi bastante rápida, depois da desaceleração do crescimento de 2011/2013, da estagnação de 2014 e dos anos terríveis de 2015/2016, temos tido um crescimento raquítico, agora pelo terceiro ano consecutivo. Todas as explicações que vinham sendo dadas para entender as razões da falta de dinamismo foram sendo superadas — e nada de o Brasil crescer. O que está acontecendo com nossa economia? Eu arriscaria uma interpretação: há anos, o país está no “modo wait and see ”. O risco é ficar esperando Godot.

Coloque-se o leitor na situação de um grupo empresarial que está cogitando investir R$ 500 milhões. O que o leitor faria? Qualquer economia vive desse tipo de decisões. Elas foram tomadas no passado. O que havia então que não temos agora? Duas coisas: 1) perspectiva de futuro; e 2) um governo com controle sobre o Congresso. Ou seja, era um país que funcionava. O que temos agora? Uma incerteza intensa e uma fragmentação político-partidária enorme. Se listarmos os partidos em ordem de deputados eleitos em 2018 e excluirmos os oposicionistas que tendem a votar contra, vamos precisar de 11 partidos para alcançar 308 votos na Câmara. As 11 maiores agremiações não oposicionistas somaram 312 deputados ao sair das eleições de 2018, o que dá uma média de 28 parlamentares por partido. A reforma da Previdência é essencial, mas é uma entre várias. Depois, ainda que com lei, e não com uma PEC, será preciso encarar a nova Lei do Salário Mínimo, os reajustes do funcionalismo para 2020/2023, a reflexão sobre nossas regras de seguro-desemprego etc. De pouco adiantará aprovar a nova Previdência se o governo sucumbir em outras votações importantes.

Vale a pena aqui lembrar as lições de FH, expostas na apresentação das suas memórias da Presidência sobre 1999/2000: “Em nossa cultura política e com o desenho partidário em vigor, o Presidente ou o Governo só obtém maioria congressual com alianças. Precisam entrar no corpo a corpo com os parlamentares para obter resultados legislativos, com toda a carga tradicional de redes de clientelismo e troca de favores. Com isso, ganham, senão o repúdio, o distanciamento da sociedade. Para aprovar medidas legislativas, ou o Governo tem o apoio de partidos e líderes, ou fica isolado e perde”.

Chegamos ao ponto crítico: será difícil avançar nessa agenda legislativa durante quatro anos no contexto de um ambiente permanente de conflagração e exacerbação da discórdia. A política nos últimos anos foi dominada pela polarização e pelo ódio. É muito complicado formar maiorias nesse clima. A liderança política deve trabalhar no sentido de articular uma maioria ampla que transmita a percepção de que o governo terá chão firme pela frente para aprovar uma pauta legislativa modernizante. O país precisa tanto de uma agenda reformista como de uma maioria sólida. Ambos são requisitos para o sucesso: com propostas de reforma sem maioria ou com maioria sem reformas, o país só colherá fracassos. Já acumulamos muitos nos últimos anos para continuar perdendo tempo em brigas inúteis.

Choque de acomodação - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 09/04

O ministro Paulo Guedes considera que as desavenças entre o presidente da Câmara Rodrigo Maia e o presidente Bolsonaro são consequências de um “choque de acomodação” resultante da nova composição de forças políticas vitoriosas nas eleições de outubro, com a centro-direita tomando o lugar da centro-esquerda que governou o pais nos últimos 30 anos.

O que se viu ontem, no debate promovido pelo Globo e Valor Econômico dentro do projeto “E Agora, Brasil?”, foi um ministro da Economia utilizando-se de uma veia política que ele nega existir, e um presidente da Câmara mostrando-se preocupado com a viabilização de aspectos econômicos dos projetos do governo.

Para Maia, uma visão do conjunto das reformas deve ser a prioridade na análise dos parlamentares, que poderão ser beneficiados com os avanços da economia, mas o governo tem que focar também na discussão do pacto federativo, uma consequência natural da aprovação da nova Previdência.

A campanha pela nova Previdência, apresentada como combate aos privilégios, “com um gari ganhando tanto quanto um deputado”, parece estar dando certo, pois o nome do ministro Guedes foi aclamado em passeata neste fim de semana em São Paulo por grupos de apoiadores de Bolsonaro.

Paulo Guedes está convencido de que se forma no país uma compreensão da urgência de mudança do sistema, e ele não acredita que o Congresso vá decidir contrariamente à posição majoritária da população. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, rejeita a ideia de que muitos deputados, mesmo convencidos de que a reforma da Previdência é necessária, não darão tudo o que o governo pede apenas para não fortalecer politicamente o presidente Jair Bolsonaro, que se tornaria um candidato imbatível à reeleição se a economia deslanchar.

Seria um contra-senso, argumentou, já que se a reforma trouxer o crescimento econômico, os que a apoiaram tirarão benefícios disso juntamente com o presidente Bolsonaro. Já Paulo Guedes ressaltou em mais de uma ocasião que o Legislativo sairá ganhando com as reformas, que darão ao Congresso o controle do Orçamento.

Ele disse que a aprovação de uma reforma parcial, aquém da redução de despesas de 1 trilhão de reais em dez anos que considera necessária para o equilíbrio do sistema, terá como consequência natural a necessidade de uma nova reforma mais adiante. E o abandono do projeto de capitalização, que considera a grande chance de as novas gerações prepararem um futuro por conta própria.

Os que não tiverem condições de, ao final do tempo mínimo exigido para a aposentadoria, obter uma renda igual ao salário mínimo, terão a garantia do governo de complementação. Fazer uma reforma desidratada a esta altura pode dar um fôlego para o governo, mas aumenta a médio prazo a crise fiscal e o risco de uma crise institucional grave, ressaltou.

Guedes admitiu que está sendo difícil para o presidente Bolsonaro abraçar a reforma da Previdência, pois ele sempre votou contra quando era deputado. Mas garante que ele tem uma visão muito clara de que agora, presidente do país, precisa olhar para o conjunto do povo brasileiro, e não para a defesa de corporações, como fazia quando as representava como deputado.

O presidente da Câmara Rodrigo Maia admitiu que as diversas corporações pressionam os deputados e senadores em defesa de seus interesses, mesmo quando eles vão de encontro com às necessidades do país. Mas acredita que já existe uma compreensão maior da importância da reforma.

Rodrigo disse que, no entanto, desistiu de ajudar na coordenação política para angariar os votos necessários para a aprovação da emenda constitucional depois que o presidente Bolsonaro decidiu que seu governo não seria um presidencialismo de coalizão, em que o governo atuava em conjunto com o Parlamento.

Ele reafirmou que é favorável à reforma, mas não tem mais a responsabilidade de ajudar a formar a maioria. Apesar de dizer que aceita e compreende a escolha do presidente, Maia revelou descontentamento com o que chamou de mal-entendido provocado pela discussão que teve com Bolsonaro recentemente, o que provocou uma reação dos bolsonaristas pelas redes sociais. “Não tenho vocação para mulher de malandro”, afirmou.

Almas penadas - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 09/04

Assim como Vélez, há uma fila de embaixadores esperando o ‘bilhete azul’ que não vem



A demissão de Ricardo Vélez Rodríguez do MEC foi decidida antes da viagem a Israel, em 30 de março, e anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro três dias antes de ser formalizada e finalmente publicada ontem no Twitter e no Diário Oficial. Se parece esquisito, não é caso único e não será o último.

Bolsonaro também anunciou no dia 13 de março, antes da ida aos EUA, que iria trocar 15 embaixadores, inclusive Sérgio Amaral, de Washington. Deu um motivo para o “bilhete azul” num encontro com jornalistas: “Não está vendendo uma boa imagem do Brasil no exterior”. E para ser só na volta: ficaria muito ruim às vésperas de chegar ao país.

O presidente foi para os EUA no dia 17, voltou, foi ao Chile, voltou, foi a Israel, voltou. Mas os embaixadores continuam exatamente onde estavam, como almas penadas. O que mudou, nesse meio tempo, foi o número dos que estavam com os dias contados.

Se Bolsonaro havia falado em 15, a lista que o chanceler Ernesto Araújo enviou para a Casa Civil continha três vezes mais nomes, em torno de 45 embaixadores que ocupam efetivamente embaixadas ou consulados e chefias de representações do Brasil em organismos internacionais nos diferentes continentes. Entre eles, seis estão se aposentando neste ano. Os demais entram na dança das cadeiras.

Até agora, porém, praticamente um mês depois do anúncio feito pelo próprio presidente da República, ninguém veio, ninguém foi para posto nenhum. O próprio embaixador Sérgio Amaral, nomeado no governo Michel Temer, não só continua em Washington como participou ativamente da viagem de Bolsonaro e, agora, participa da visita do vice Hamilton Mourão.

O tempo vai passando e Amaral vai ficando. Ele já estava fazendo as malas, arrumando as gavetas, cuidando das conveniências da família, quando o Itamaraty deu uma contraordem, mandou parar tudo e aguardar novas orientações. Que ainda não chegaram, provavelmente porque alguém deve ter feito as contas: quanto custa a mudança de mais de 40 diplomatas?

Sérgio Amaral não é Vélez Rodríguez nem causou tanta confusão, tanto rebuliço, tantas demissões e tantos recuos, mas sofre nesses três meses o mesmo processo que atingiu o agora ex-ministro da Educação: fica no limbo, sabendo de seu destino pela mídia.

Assim como ele, embaixadores brasileiros pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na África, nas Américas. E, claro, seus assessores diretos, sejam diplomatas, sejam funcionários. Em consequência, suas famílias.

Se há insegurança entre os que saem, há também entre os que podem entrar. Para Washington, o vice Mourão queria o cientista político Murillo de Aragão, da consultoria Arko Advice, um frequentador assíduo da Vice-Presidência. Já a cúpula do Itamaraty preferia o embaixador de carreira Nestor Forster, do grupo de Ernesto Araújo. Os dois enfrentam resistências e obstáculos concretos para assumir o que é, nada mais, nada menos, a embaixada mais importante do Brasil. Aliás, de todos os países.

No MEC, sai Vélez, filósofo, e entra Abraham Weintraub, um homem das finanças, mas uma coisa é certa: a ideologia fica. Além de professores universitários, ambos são também arraigadamente de direita, conservadores nos costumes, simpatizantes das ideias do tal guru Olavo de Carvalho. Lembram-se daquela velha corrente que via comunistas em toda a parte, até debaixo das camas das famílias brasileiras?

Agora, é acompanhar a montagem da equipe e identificar os impostos por Olavo de Carvalho, os indicados pelos militares e os simplesmente técnicos, que querem ver o ministério andar. Sim, porque a Educação está paralisada. Mas a guerra no ministério continua.

A lição dos 100 dias - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 09/04


A queda da popularidade do presidente mostra que a população não quer desculpas, mas resultados.


A pesquisa do Datafolha divulgada no domingo passado confirma o desprestígio de Jair Bolsonaro no exercício do cargo de presidente da República. Ele recebeu a pior avaliação após três meses de governo entre os presidentes eleitos para um primeiro mandato desde 1988. Cerca de um terço dos brasileiros (30%) considera o governo de Jair Bolsonaro ruim ou péssimo.

Também houve queda na expectativa da população com o novo governo. Antes da posse, 65% esperavam que Jair Bolsonaro realizasse um governo ótimo ou bom. Agora, são 59%. A queda indica um movimento de descontentamento diante do que foi feito até agora. Mas tempo ainda há para reagir. A maioria da população continua acreditando na possibilidade de um bom governo nos próximos quatro anos.

Os números aconselham cuidado ao presidente. Apenas um quarto dos entrevistados (27%) considera adequado o comportamento de Jair Bolsonaro no cargo. O restante vê erros na sua gestão. Ainda que entendam que ele acerta na maioria das vezes, 27% enxergam equívocos na sua atuação. Já 20% veem que o presidente erra na maioria das vezes e 23% dizem que ele nunca se comporta como o cargo exige.

A percepção da população indica que o presidente Jair Bolsonaro não pode continuar agindo como se sua inabilidade política fosse desculpa para um mau governo. “Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”, disse Jair Bolsonaro na sexta-feira passada, pedindo compreensão por seus erros. A pesquisa revela que a população não quer desculpas. Ela espera resultados.

Mas o presidente parece indiferente à mensagem da população e inclinado a seguir com as mesmas atitudes que levaram à queda de sua popularidade. Em vez de reconhecer que seu governo não vai bem, Bolsonaro optou por fazer troça dos resultados da pesquisa em sua conta no Twitter. Vale lembrar que outros institutos de pesquisa já captaram semelhante frustração da população com o novo governo.

O momento não é propício a brincadeiras por parte do presidente. A recuperação da economia perdeu fôlego, com vários sinais de lentidão e até mesmo de estagnação. O desemprego aumentou no trimestre passado, atingindo a taxa de 12,4% no final de fevereiro, de acordo com o IBGE.

Não bastassem esses dados, que afetam diretamente a população, o governo de Jair Bolsonaro foi pródigo em criar, sem a ajuda da oposição, crises políticas nesses primeiros três meses. A falta de coordenação política produziu algumas derrotas no Congresso e reforçou as dúvidas sobre a capacidade do governo de conseguir aprovar a reforma da Previdência. Manifestações de Jair Bolsonaro e de sua equipe geraram constrangimentos internacionais, envolvendo a China, o maior parceiro comercial do País, e os países árabes, importantes compradores de proteína animal. Desde janeiro, o Ministério da Educação (MEC) foi palco de confusões e voluntarismos, com muitas idas e vindas. O ministro da Educação foi demitido, mas ainda não há sinal de que as causas dos imbróglios no MEC tenham sido sanadas.

O protagonismo dos filhos do presidente em assuntos do Palácio do Planalto foi também causa de instabilidade e preocupação no período. Vieram à tona informações sobre a proximidade da família Bolsonaro com o entorno das milícias no Rio de Janeiro. Recrudesceram suspeitas de práticas irregulares no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, bem como de candidaturas de laranjas no PSL, partido do presidente.

Talvez Jair Bolsonaro queira ignorar o que as pesquisas dizem. Pode ser também que ele pretenda atribuir os resultados a uma suposta perseguição política, o que é também um modo de fechar os olhos à realidade. Logicamente, há tempo para Bolsonaro reagir. Não tem por que ele dar por certo que seu governo está fadado a ser o que foi nesses cem dias. Mas, para isso, é preciso querer enxergar erros e retificar rumos. A rigor, só depende dele querer aprender a lição dos primeiros cem dias. O País espera ansioso por esse esforço.