domingo, junho 09, 2019

Nota do Sindicato dos Ladrões - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 09/06


Lula disse que não é ladrão nem pombo correio para usar tornozeleira. Foi uma declaração um pouco enigmática, mas logo os esclarecimentos surgiram. O Sindicato dos Pombos Correios soltou uma nota oficial confirmando que a instituição não aceita filiados ficha suja – já basta a porcariada no chão da praça. Já o Sindicato dos Ladrões, também em nota oficial, declarou que Lula continua filiado e provavelmente está negando isso por se encontrar inadimplente.

“Não vamos aceitar calote só porque Lula é a maior referência da nossa categoria”, reagiu o presidente do Sindicato dos Ladrões. “É verdade que ele não está podendo ir ao banco pagar o nosso boleto. Mas por que não manda o Haddad, que não está fazendo nada?”

A nota do Sindicato lembra ainda que há vários filiados em situação de inadimplência por terem gasto todo o produto dos seus roubos – e esses merecem a solidariedade da instituição. “Mas não é, absolutamente, o caso do Sr. Luiz Inácio da Silva”, continua a nota, “que coordenou um assalto bilionário aos cofres públicos, do qual todos nos orgulhamos. Mas se formos abrir exceção para todo filiado multimilionário iremos à falência, que nem o Brasil depenado magistralmente pelo próprio Lula”, argumenta a nota.

Procurado pela imprensa, o presidente do Sindicato dos Ladrões informou que sua posição sobre o caso está integralmente exposta na nota oficial da instituição. Mas não se furtou a um apelo de viva voz:

“Não vamos anistiar o Lula. Se ele quer declarar que não pertence mais à nossa categoria, não vou negar que isso dói na gente. São muitos anos de cumplicidade e formação de quadrilha, muitos momentos felizes com o dinheiro dos outros, e essas coisas o ser humano não esquece. Mas nem tudo é festa. É preciso um mínimo de seriedade e compromisso com as instituições – e o Sindicato dos Ladrões, como todos sabem, é uma instituição milenar. Então não tem conversa. O companheiro Lula está cansado de saber que aquela lei dos cem anos de perdão já foi revogada há muito tempo. Hoje, ladrão que rouba ladrão tem que pagar. Pague ao Sindicato os boletos em aberto, Sr. ex-presidente”.

Questionado se não estava sendo rigoroso demais com o membro mais ilustre da categoria, o presidente do Sindicato encerrou:

“Não tenho nada pessoal contra ele. Mas é que no nosso meio, se não cobrar com energia, ninguém paga. É da nossa natureza, entende? O Lula é um ídolo, mas é muito evasivo. Se alguém cobra alguma coisa dele, já monta um teatro, faz uma quizumba, joga areia nos olhos da plateia e sai de fininho. Então estou avisando: não vai adiantar chamar a ONU, a Folha, o El País ou o Papa pra contar história triste. Lula, sabemos que o seu sol está nascendo quadrado, mas sabemos também que o seu boi está na sombra. Portanto, pare de reclamar e pague o que deve”.

Em off, o presidente do Sindicato dos Ladrões acrescentou que acha essa história da tornozeleira uma grande bobagem. Segundo ele, Lula sabe que não vai precisar de tornozeleira nenhuma, porque já está condenado a mais 12 anos no processo de Atibaia – e a menos que conseguisse comprar todo mundo na segunda instância, terá a pena de reclusão confirmada. Fora os outros seis processos nos quais é réu.

“Esse papo de progressão pro semiaberto é só pra animar os moradelaços e os festivais Lula Livre”, explicou o sindicalista da ladroagem, arrematando em tom confessional: “O que seria da nossa categoria sem os trouxas?”

Ele disse achar válidos esses alarmes falsos de soltura do ex-presidente, em ações cirúrgicas de petistas infiltrados no Judiciário e no Ministério Público. “Isso mantém elevado o moral da tropa imoral”, esclareceu sorridente – orgulhoso da tirada. Mas fez um alerta: esse aparelhamento da era de ouro do parasitismo, que protegeu democraticamente tantos delinquentes do bem, pode estar com os dias contados.

“O fascismo tá aí”, afirmou o presidente do Sindicato dos Ladrões, agora com lágrimas nos olhos. “Se ninguém der uma bagunçada no país, o bicho vai pegar pra nós. Cadê o Janot?”"

Grande ideia - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA , edição nº 2638

A mais rica cidade do Brasil é atravessada de ponta a ponta, ao longo de quase 25 quilômetros, por um dos mais extensos, perigosos e sinistros esgotos a céu aberto do planeta — o Rio Tietê. Essa fossa, riquíssima em tudo o que pode haver em matéria de coisa podre, de lixo e de tóxicos em seu estado mais agressivo, é confinada entre avenidas gigantes dos dois lados, as célebres “Marginais”, pelas quais passam diariamente cerca de 2 milhões de veículos com toda a emissão de gás carbônico a que têm direito. Um sujeito que cair ali dentro pode perfeitamente não ter tempo de se afogar — corre o risco real de morrer envenenado antes, no meio da pasta química mortal que substitui há décadas a água corrente do rio. Nenhuma forma conhecida de vida sobrevive nesse horror. Isso é só uma parte do problema. Pouco antes de sair do município de São Paulo, em direção à sua foz, 1 100 quilômetros adiante, o Tietê encontra o canal do Rio Pinheiros — outro sério concorrente ao título de Oitava Maravilha da Poluição Urbana do Mundo, negro de imundície e igualmente ladeado por duas avenidas de tráfego insano. Sua única vantagem: é um pouco mais curto que a cloaca irmã.

Parece claro que existe aí um problema ambiental monstruoso, desses que teriam de ser resolvidos antes de quaisquer outros pelas autoridades e defensores da natureza em qualquer país mais ou menos civilizado — até porque prejudica diretamente os 21 milhões de brasileiros que moram na área metropolitana de São Paulo. Parece, mas não é. Não apenas não é: não passa pela cabeça de ninguém que possa ser assim, entre os milhares de ambientalistas, ecologistas, engenheiros ambientais, naturalistas, indigenistas, procuradores, fiscais e o resto dos burocratas que infestam as repartições de defesa do meio ambiente nos três níveis da administração. Isso sem contar, naturalmente, com as ONGs “do verde”; para essas, então, falar em poluição urbana é praticamente um crime. A única questão ambiental válida, em tal mundo, é o pacote que engloba florestas, cerrados, mangues, ilhas perdidas, fauna, flora, bagres de rio — tudo, em suma, que não inclua o ser humano, salvo se ele for índio. O Rio Tietê que se dane. O que interessa é pegar o cidadão que cortou um pé de gabiroba num sítio perdido em algum fim de mundo, ou exigir prisão inafiançável para o infeliz que matou um macaco-prego no sertão do Ceará.


“O verdadeiro desastre ambiental do Brasil não está no meio do mato”

O verdadeiro desastre ambiental do Brasil do século XXI não está no meio do mato, e sim na cara de todo mundo, todos os dias; não afeta sapos ou papagaios, mas mata gente de carne e osso. Centenas de cidades brasileiras com mais de 50 000 habitantes são envenenadas por rios mortos como o Tietê e o Pinheiros. Não menos que 50% da população, ou 100 milhões de pessoas, não dispõe de esgoto. Uns outros 40 milhões, possivelmente, não têm acesso a água tratada de boa qualidade. Há 3 000 lixões em pleno funcionamento em 1 600 cidades pelo país inteiro — aterros ao ar livre onde lixo e detritos de todo tipo são jogados e abandonados, sem tratamento algum. Desde 2014 não deveria mais existir nenhum lixão aberto no Brasil, por exigência da lei; só que há mais lixões hoje do que havia cinco anos atrás. Essas cordilheiras de dejetos contaminam a água, poluem o ar e envenenam o solo. Cerca de 95 milhões de cidadãos, segundo cálculos das empresas de limpeza pública, têm sua saúde e qualidade de vida diretamente prejudicadas pelo descarte do lixo no meio da população em geral.

Mas quem é que está ligando para isso, entre os autocratas ambientais? Suas paixões são outras. Em meio aos surtos que vivem tendo, tornou­-se conhecido, recentemente, o bloqueio que o Ministério Público comanda há oito anos contra a construção da linha mestra de transmissão de energia elétrica em Roraima. Como os 350 índios uaimiris — isso mesmo, 350 — que vivem nos 225 000 quilômetros quadrados de Roraima têm objeções ao linhão, o MP vem vetando sistematicamente as obras, desde sua aprovação, em 2011. Com isso, a maior parte do território do estado e seus 500 000 habitantes não recebem um único watt de eletricidade brasileira. São obrigados a depender de fornecimento importado da Venezuela — que hoje não consegue produzir nem papel higiênico, e vive falhando na entrega. Há, agora, um esboço de solução. A população de Roraima reza. O universo ecológico diz que o Brasil deveria, ao mesmo tempo, eliminar seus problemas ambientais urbanos, permitir o progresso e preservar a natureza. Grande ideia. É só executá-la.

Adiamento e incertezas - ROBERTO RODRIGUES

ESTADÃO - 09/06

São muitas as nuvens cinzentas no horizonte dos produtores brasileiros

Foi adiado o esperado anúncio do novo Plano de Safra para 2019/20, que aconteceria na semana que terminou.

A ministra Tereza Cristina, prudentemente, decidiu não avançar o sinal porque não ficou definido o volume e o custo dos recursos a serem disponibilizados: isso depende da aprovação pelo Congresso Nacional, de projeto de lei (PLN 4) que autoriza um crédito suplementar de R$ 248,9 bilhões para a safra.

Qual é o efeito disso quanto ao ânimo dos produtores rurais? Vai atrapalhar a decisão sobre o que e quanto plantar? Vai alterar os investimentos planejados? Há outros temas muito mais relevantes para essas e outras definições, num horizonte pouco inspirador.

Vamos aos custos: com o dólar em torno de R$ 4, os insumos importados estão mais caros. Não faltam “previsões” de um câmbio pior do que isso na hora da venda da safra, e como já vivemos esse desastroso “descasamento” em outras ocasiões no passado, fica uma grande incerteza no ar. Como dizemos na roça, “cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça”...

Mas tem mais: os preços agrícolas das principais commodities não são animadores, dados os estoques globais elevados. Mesmo com as enchentes no “corn belt” americano que atrasaram o plantio de grãos lá, sinalizando redução das colheitas de milho e soja, os preços não reagiram na proporção esperada.

Talvez isso esteja ligado à inquietação quanto aos resultados da guerra comercial entre Estados Unidos e China, que hipoteticamente beneficiaria o Brasil no curto prazo, com os asiáticos buscando maiores volumes aqui (e na Argentina). Mas, no longo prazo, o mundo dos emergentes pode perder muito mais, dado um crescente neoprotecionismo nos países mais ricos determinado pela referida guerra.

A explosão da peste suína na China e em outros países asiáticos trouxe uma crescente angústia quanto aos preços: se a China tiver mesmo de eliminar milhões de cabeças de suínos, certamente reduzirá suas gigantescas (e para nós majoritárias) importações de soja. Que fazer com a sobra da soja produzida? Exportá-la a outros países que aumentariam espetacularmente suas produções de frangos e suínos? Quanto seria o volume necessário? Ou vamos ampliar aqui mesmo essas criações para exportar carnes, o que seria maravilhoso por causa do valor agregado? Mas que aconteceria se e quando a China voltasse a ter porcos suficientes, inclusive com um novo modelo produtivo? Teríamos uma “ressaca” insuportável por aqui? Que faríamos com os milhares de pintinhos e leitõezinhos excedentes?

O que vai acontecer com o frete? Haverá outra greve de caminhoneiros na boca da colheita, disparando os custos?

Como vai ficar a questão da reforma da Previdência, essencial para o equilíbrio das contas públicas, mas insuficiente para a retomada de investimentos que gerariam empregos e maior consumo das famílias? Vai sair a reforma tributária tão importante quanto a outra? E os investimentos em infraestrutura? O cenário político doméstico permite otimismo quanto ao rápido andamento disso tudo, e mais as privatizações prometidas? Aliás, onde encontrar confiança quanto à economia global, com incertezas políticas de todo o lado?

São muitas as nuvens cinzentas no horizonte dos produtores brasileiros, que já se debatem com preços ruins para o café, a cana-de-açúcar e o leite.

O adiamento não é, portanto, um grande problema. E até pode ser a alavanca para discutir temas mais relevantes. Temos, isso sim, de montar um seguro rural efetivo, com recursos para o prêmio da ordem de alguns bilhões, que é o tamanho do nosso agro. Tais recursos podem sair da redução paulatina dos subsídios ao crédito de grandes produtores. Os juros terão de baixar com a inflação declinante, e os bancos precisam entender isso de uma vez por todas. A própria Febraban já produziu, diligentemente, uma cartilha orientando seus associados nesse sentido. O que falta para implementá-la?

Os papéis para comercialização (LCA, CRA, CDCA) criados em 2005 pelo Mapa tiveram suas gêneses na crença de que nosso modelo de crédito rural tinha os dias contados. E já se foram 14 anos bem contados.

A ministra Tereza Cristina está disposta a essa discussão, incluindo planos de safra plurianuais, que também zerariam adiamentos como o atual. Mãos a obra, todo mundo junto.

EX-MINISTRO DA AGRICULTURA E COORDENADOR DO CENTRO DE AGRONEGÓCIOS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

A Suíça é aqui - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 0906

Presidente age como se não houvesse desemprego ou crise das contas públicas


Nada como saber que moramos na Suíça. A pobreza é preocupação de países distantes. A nossa economia cresce consistentemente, não há desemprego relevante e o setor público pode executar com eficiência as suas obrigações, como cuidar da saúde, da segurança pública e da infraestrutura.

Com razão, em um país com muitos ricos, boas escolas e civilidade de fazer inveja, o presidente da República se dedica aos temas que restam, como propor aumentar a leniência com os motoristas que ferem as regras de trânsito.

Faz todo o sentido. Nosso país tem infratores de menos e poucos acidentes. Há regras demais e muita punição a cidadãos inocentes. Faltou o governo combinar com a realidade.

O desemprego insiste em não cair, o país não volta a crescer e as péssimas regras para os negócios asfixiam o setor produtivo. O setor público não tem recursos para cumprir as suas obrigações comezinhas, como pagar benefícios sociais ou financiar ciência e tecnologia, e o governo acha que relevante são as multas de trânsito.

Se o Poder Executivo deseja rever as penalidades insensatas ao setor privado, poderia começar pelas normas tributárias.

Ao comparar os dados daqui com os de outros países, descobrimos que a nossa tributação se tornou disfuncional. O contencioso fiscal apenas no governo federal chegou a 12% do PIB em 2014, 60 vezes mais do que a mediana de uma amostra de 17 países desenvolvidos ou em desenvolvimento, como constata Lorreine Messias.

O exame de alguns casos concretos, como as disputas acerca do pagamento de contribuições previdenciárias sobre a participação nos lucros e resultados, revela a extensão do problema.

Um sistema de contribuição mal desenhado, mudanças frequentes nas regras de custeio e a jurisprudência oscilante resultam em insegurança jurídica, que penaliza o setor privado e desestimula a produção.

Há uma regra extensa e pouco precisa, além de seguidas interpretações inovadoras por parte da Receita para restringir o benefício. Existem decisões a favor e contra os contribuintes no mesmo ano sobre casos semelhantes nos tribunais administrativos.

Para quem quiser um aperitivo dos problemas que afetam quem produz no Brasil, aqueles que pagam tributos e sustentam a farra, vale conhecer o estudo coordenado por Vanessa Rahal Canado.

O país tem muito a fazer para enfrentar a crise das contas públicas, a começar pela reforma da Previdência, assim como para melhorar o ambiente de negócios e permitir a retomada do crescimento econômico e da geração de empregos.

Relaxar a punição aos motoristas infratores definitivamente não está na lista.

Resta a dúvida inquietante: o Palácio do Planalto tem ciência dos graves problemas que afetam o país?

Mesmos sintomas, causas distintas - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 09/06

Ajuste fiscal estrutural é condição para perenizar os juros básicos mais baixos

No Brasil, convivemos há muitas décadas com juros muito elevados. Na coluna de hoje, não quero tratar da formação dos juros ao consumidor —o spread bancário dado pela diferença entre a taxa de captação dos bancos e o juro cobrado do tomador de empréstimos—, mas tratarei da taxa básica, a Selic, que é a taxa pela qual o Banco Central remunera as reservas bancárias excedentes.

Apesar de elevada, a taxa Selic tem caído. O objetivo da coluna é entender melhor o processo de queda da Selic e também o processo de formação dos juros básicos da economia.

Uma situação particularmente difícil ocorre quando temos um mesmo sintoma que tem diferentes causas. É a difícil situação de um médico que tem de fazer um diagnóstico. O sintoma é o mesmo, mas a doença muda.

Ocorreu um fato como esse nos elevados juros básicos do Brasil.

Inicio a análise no segundo mandato de FHC, após a construção das instituições de política macroeconômica que temos hoje: Banco Central com independência operacional e regime de metas de inflação; câmbio flutuante e política fiscal responsável. Este último item com muitas restrições e qualificações ao longo desses anos. Em particular, o período que coincide com a passagem de Arno Augustin na Secretaria do Tesouro Nacional não pode ser qualificado como de política fiscal responsável.

Nesse período que vai de 1999 até hoje, há dois subperíodos bem diversos. No primeiro, até 2002, os juros básicos eram elevados pois o prêmio de risco era elevado. Subtraindo do juro doméstico o prêmio de risco internacional e o juro externo, não sobrava muita coisa. Ou seja, os juros básicos brasileiros eram elevados essencialmente devido ao elevado prêmio de risco.

Em 2003, após sabermos que tínhamos um governo de esquerda fiscalmente responsável, o risco-país caiu muito. No entanto o juro básico não caiu na mesma proporção.

O que ocorreu?

Meu colega do Ibre Braulio Borges matou a charada há algum tempo. Bráulio mostrou que nos dez anos de 2004 até 2014 a economia brasileira operou a pleno emprego de fatores. No jargão da profissão, foram anos em que não havia nenhuma ociosidade. Pelo contrário.

Por que a inflação não estourou? Primeiro motivo, os juros foram elevados. Mas somente os juros elevados não seriam suficientes, pois, como vimos, aqueles foram anos de economia acima do pleno emprego.

O que manteve a inflação relativamente estável, mesmo com a economia permanentemente operando além de suas capacidades, foi a enorme virada nas contas externas. Segundo as Contas Nacionais do IBGE, em 2003 a economia exportou 3,3% do PIB de poupança para o resto do mundo.

No ano de 2014, importamos 3,6%. Ou seja, nesses dez anos, houve uma virada nas contas externas de 6,9 pontos percentuais do PIB. Esses números já se encontram a preços constantes e, portanto, já consideram o efeito da subida dos preços das commodities sobre as nossas contas externas.

Ou seja, a inflação não estourou de 2004 até 2014 pois a oferta internacional supriu o excesso de demanda sobre a oferta doméstica.

Modelos que temos desenvolvido no Ibre sugerem que a alteração na política fiscal no governo Temer —emenda constitucional 95, que estabelece limite ao crescimento da despesa pública— e o ajuste fiscal que temos promovido —bem menos intenso do que se pensa, pois ainda não foram aprovadas reformas que reduzam o gasto público estrutural— têm sido suficientes para promover uma nova redução do juro básico de nossa economia.

O ajuste fiscal estrutural é condição para perenizarmos os juros básicos mais baixos.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Bolsonaro acha que peso real é uma nota com as caras de Pelé e Maradona - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 09/04

Moeda única seria o ponto final de uma longa e malparada integração econômica


Jair Bolsonaro talvez acredite que, se puder pagar um bife em Buenos Aires com um papel colorido chamado “peso real”, Brasil e Argentina terão uma moeda única. Bastaria imprimir, sei lá, 1 trilhão de papeizinhos com a cara de Pelé de um lado e a de Maradona de outro e chamar isso de moeda única.

Tal como foi proposta, essa ideia é outra das fantasias deste governo que regularmente aparece com um plano infalível, como aqueles de arrumar 1 trilhão (com privatização, petróleo ou mágica bolsonariana). Qual o motivo desses despautérios é uma questão.

Um exemplo prático ajuda a entender o disparate.

Bancos centrais têm a tarefa de manter o poder de compra da moeda. Quando a inflação sobe, aumentam os juros básicos da economia (e vice-versa). Assim, regulam mais ou menos o ritmo da atividade econômica, que em geral deve ser freado caso a inflação suba demais.

Esse é um meio importante pelo qual o poder público pode regular a velocidade da economia, no curto prazo: é a política monetária. Um outro é a política de gastos e impostos do governo (política fiscal).

A política fiscal e a monetária se influenciam; devem ser coordenadas ou equilibradas. Gastar mais e elevar juros, como se fez sob Dilma Rousseff, equivale a comer para emagrecer.

Pois bem. Imagine-se o caso de dois países com ritmos de atividade econômica e de inflação diferentes: um precisa de juros mais altos; o outro, o contrário. Ou, então, o de um país que está gastando até a falência, enquanto o outro cuida de suas contas e, assim, entre outros motivos, pode manter juros mais baixos.

Esses dois países não podem ter uma política monetária única (a de juros), pois precisam de dietas diferentes. Para que possam, suas economias devem convergir até que seja razoável ter um único banco central (e, pois, uma moeda única).

Como fazer a convergência é um problema. Para que não batam cabeça, esses países precisam coordenar suas políticas de gastos públicos. Mais tarde, devem submeter suas políticas fiscais às mesmas regras (e, idealmente, ter um sistema de transferências de receitas de impostos entre os países, “socorros”).

Não só. Precisam ter economias integradas, girando mais ou menos no mesmo ritmo, além de uma taxa de câmbio fixa (ou quase) entre suas moedas e inflação similar.

Uma condição para integrar a economia de dois países é a livre circulação de trabalhadores e de mercadorias. Isto é, não há impostos de importação entre eles; as demais normas de comércio são as mesmas entre os dois e entre eles e o resto do mundo.

Faz quase 30 anos, Argentina e Brasil limitam o livre-comércio de veículos, por exemplo, por um acordo especial que está em sua 42ª versão. Note-se a dificuldade. Liberar o comércio é politicamente difícil. Ao menos na transição, causa dores sociais e econômicas.

Uma integração prudente ou factível leva tempo. Caso o comércio fosse de fato livre, a indústria automotiva argentina seria reduzida, mesmo destino da indústria do vinho tinto brasileiro, digamos.

Os governos também teriam de obedecer aos mesmos limites de déficits e dívidas. O Brasil não cumpre nem suas leis fiscais. A Argentina quebra com frequência faz décadas. Nem mesmo tem moeda (ou tem duas, uma ruim, o peso, e o dólar), e o banco central financia o governo regularmente (o que se fazia aqui no tempo da inflação).

Economias integradas precisam de leis tributárias, previdenciárias e trabalhistas idênticas ou quase. O Brasil não consegue nem acabar com a guerra fiscal entre os estados, que têm ICMS loucamente diferentes. A União Europeia levou 30 anos para integrar seus mercados e outros dez para criar a moeda única.

Dá para ter moeda única amanhã? Dá. Tente emagrecer fazendo jejum. Enquanto você não morrer, funciona.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Não existe sobremesa grátis - ALEXANDRE BARRETO DE SOUZA

FOLHA DE SP - 09/06

Passageiros pagarão pela bagagem de qualquer jeito


Todo serviço ou produto oferecido no mercado possui um preço. Imagine que você seja proprietário de um restaurante e o governo estabeleça que, a partir de hoje, deva fornecer as sobremesas gratuitamente.

Como empresário, seu objetivo não é fazer caridade nem ter prejuízos. Para compensar a sobremesa “gratuita”, certamente você irá diluir os custos em outros produtos ou serviços do estabelecimento, como bebidas ou prato principal, por exemplo.

E como fica o cliente que não gosta de sobremesa? Ele será obrigado a pagar pela sobremesa dos outros, simples assim. A princípio, parece que os clientes terão um benefício na concessão de algo grátis, quando, na verdade, haverá clientes pagando por algo que não estão consumindo. Isso seria justo?

O raciocínio é o mesmo quando se analisa o mercado de transporte aéreo de passageiros e todo o debate sobre a franquia no despacho de bagagens. O ponto central é simples: nós pagaremos pelas bagagens de qualquer maneira. Resta saber se queremos ter transparência na composição dos preços ou não.

A maioria dos consumidores escolhe a passagem aérea pelo preço. A definição das tarifas conforme o perfil do cliente —aquele que carrega mais bagagem ou aquele que precisa ou gosta de mais espaço— beneficia diretamente o consumidor, que paga somente pelo serviço que está efetivamente utilizando.

A proibição de cobrança por franquia de bagagem por parte das companhias aéreas afeta o mercado de maneira extremada e negativa. A medida é prejudicial à concorrência e também aos passageiros.

Todos queremos serviços de melhor qualidade e menores preços. Porém, não existe mágica em economia. Os preços são resultado, além da estrutura de custos, da dinâmica entre oferta e procura. As tentativas do Estado em intervir na vida empresarial e impor preços quase sempre dão mau resultado. O papel que cabe ao Estado é garantir a segurança jurídica para o ambiente de negócios e assegurar uma concorrência justa no mercado.

O mercado interno de transporte aéreo de passageiros é dominado por poucas empresas, cenário agravado pela crise da Avianca. O setor apresenta inúmeras condições que limitam a concorrência e, por esses e outros motivos, trata-se de um mercado concentrado que, por ter a competição prejudicada, atinge drasticamente o consumidor final.

O Brasil precisa amadurecer com relação aos princípios concorrenciais e entender seus benefícios. Sob uma perspectiva concorrencial, retirar reservas de mercado e trazer mais transparência sobre a composição dos serviços prestados traria inúmeros impactos positivos para a economia e para o consumidor.

Diversas companhias aéreas estrangeiras têm mostrado interesse em ingressar no mercado brasileiro após a abertura do setor ao capital estrangeiro. Mas é importante lembrar que grande parte dessas companhias adotam o modelo de negócio “low cost”, no qual o valor da bagagem não está embutido no preço final do bilhete aéreo, o que permite ofertas mais atrativas.

Portanto, a atual regulação, que possibilita a cobrança por bagagem despachada e outros serviços, caso mantida, facilitará a entrada de novas empresas no setor, o que gerará aquecimento no mercado, acirrará a concorrência e se refletirá no preço das passagens. Em contrapartida, a volta da franquia de bagagens afetaria negativamente o investimento de empresas internacionais no mercado brasileiro, uma vez que esse tipo de regulamento impacta diretamente o seu modelo de negócios.

Importante destacar que as empresas precisam observar as regras de mercado e toda a legislação vigente. Além da queda do preço da passagem, destacam-se dois pontos importantes que afetam diretamente o consumidor: a informação —por parte das empresas— prestada com clareza no momento da compra de passagem, bagagem, assento ou qualquer outro item que a empresa ofereça; e os valores cobrados pela bagagem despachada, que não podem ser abusivos.

A gratuidade de qualquer coisa (de sobremesas em restaurantes a bagagens despachadas) pode parecer ótima, mas nem tudo é o que parece.

Definitivamente, não existe sobremesa grátis.


Alexandre Barreto de Souza
Presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)

Não há substituto - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 09/06

Sistema político flexível acomoda presidentes sem apetite ou força para costura parlamentar


A aprovação da reforma constitucional que obriga o governo a honrar as emendas coletivas dos congressistas não deve ser vista apenas como resposta circunstancial ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Inscreve-se num longo processo de ascendência do Legislativo federal em que superpoderes presidenciais vieram sendo mitigados.

Nessa marcha, asfixiou-se a margem para o Executivo negociar liberação de verbas por apoio parlamentar. Limitou-se sua prerrogativa de editar medidas provisórias.

A Lei de Responsabilidade Fiscal minou o arbítrio dos administradores. Regulamentos e movimentações de parlamentares e operadores do direito inibiram o uso de canais extraorçamentários, como a Petrobras e o BNDES, pelo mandonismo do presidente da República.

O sistema resultante parece ter-se tornado plástico o suficiente para lidar com presidentes fracos, como foram Dilma Rousseff (PT) após a reeleição e Michel Temer (MDB) após o escândalo da JBS.

Também mostra flexibilidade para acomodar-se à simbiose entre a maioria do Legislativo e o Executivo —marca da primeira fase da gestão do emedebista— e, agora, à sua antítese. Bolsonaro, afinal, montou o ministério à revelia do Congresso, onde não faz questão de apoio majoritário regular.

Mas uma coisa é o Legislativo, fortalecido no processo, exibir capacidade de absorver choques sem produzir ruptura —e de preencher, até certo ponto, lacunas deixadas por presidentes sem força ou apetite para a costura parlamentar.

Outra, diversa, é esse dispositivo oferecer as respostas certas e tempestivas aos desafios do desenvolvimento do país. Apenas metaforicamente esse arranjo pode ser chamado de parlamentarismo branco. Na verdade, trata-se de um modo pouco produtivo e estável de operação do nosso presidencialismo.

Recordem-se as pautas destrutivas para as finanças públicas aprovadas no Congresso nos estertores do governo Dilma. Ou o parasitismo autoritário de caminhoneiros sob um Temer inerte em 2018.

O fato de hoje haver dois presidentes bem mais responsáveis na Câmara e no Senado representa um alívio apenas relativo e temporário, pois eles não comandam a maioria dos legisladores nem estarão no posto daqui a dois anos.

Se o objetivo é estabilizar as expectativas da população e dos agentes econômicos sobre o avanço da agenda reformista para tirar o país do buraco, nada é mais eficaz que a atuação decidida do presidente da República no sentido de estabelecer e manter uma base sólida de apoio no Congresso Nacional.

Jair Bolsonaro dá sinais de ter melhorado sua conduta. Diminuíram nas últimas semanas os estampidos de desarmonia vindos do seu governo. Falta assumir a tarefa de coordenar o pacto político no Congresso. No Brasil, não há substituto perfeito para semipresidentes.

O Supremo dificulta as privatizações - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR - 09/06

Parafraseando o ex-ministro Roberto Campos, os últimos dias mostraram que o estatismo no Brasil tem “um passado glorioso e um futuro promissor”. Quando finalmente o brasileiro elege um chefe do Poder Executivo que traz consigo uma pauta liberalizante, o Supremo Tribunal Federal se encarrega de desfazer o otimismo – e, pior ainda, mais uma vez inventando regras que os legisladores não tinham a menor intenção de impor ao poder público. Trata-se do julgamento encerrado na quinta-feira, dia 6, envolvendo a necessidade de aval do Poder Legislativo para a realização de privatizações e venda de subsidiárias de empresas estatais. Seu resultado, apesar de destravar no curto prazo os programas de desinvestimento de Petrobras e Eletrobrás, cria um novo obstáculo ao programa de desestatização do governo.

A Constituição Federal é muito clara a respeito dos processos de surgimento de estatais, exigindo, em seu artigo 173, a aprovação do Congresso para que o governo possa, por meio de decreto, criar uma empresa. Mas em nenhum momento a Carta Magna faz essa mesma exigência para que o poder público se desfaça de uma estatal. Não se trata de omissão ou esquecimento, mas de uma decisão consciente do constituinte, baseada no que afirma o mesmíssimo artigo 173: a “exploração direta de atividade econômica” por parte do Estado é uma excepcionalidade, um ponto fora da curva, uma circunstância extraordinária. O normal é que essa função caiba à iniciativa privada. Podemos afirmar, com toda a certeza, que o legislador não quis condicionar uma privatização ao aval do Legislativo, com a exceção dos casos previstos no artigo 177 da Constituição, que trata dos monopólios da União, e daquelas empresas que o Congresso incluiu nominalmente na Lei 9.491/97, que criou o Programa Nacional de Desestatização. Entram nesses critérios, por exemplo, Petrobras, Eletrobrás, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, mas não as suas subsidiárias, e nem a esmagadora maioria das quase 140 estatais federais existentes hoje.


O Supremo mostrou ao investidor que a liberdade econômica continua a ser bem escasso neste país
A clareza do legislador sobre o que é necessário para criar uma estatal e para privatizá-la não foi suficiente para Ricardo Lewandowski, que em 2018 barrou liminarmente a venda de subsidiárias da Eletrobras argumentando que, se era preciso haver lei para criar, também seria preciso haver uma outra lei para vender, ainda que isso não estivesse escrito em nenhum lugar – na prática, o ministro inventou uma regra que o Congresso não estabeleceu, mais uma vez assumindo o papel de legislador no qual tantos membros do STF se sentem confortáveis. Mais recentemente, foi seguido por Edson Fachin, que, em outra liminar, barrou a venda de duas subsidiárias e três refinarias da Petrobras. No julgamento encerrado no dia 6, quem mais se aproximou da linha de Lewandowski e Fachin foi Rosa Weber, que defendeu apenas uma “lei genérica” para a venda de subsidiárias, com processos que garantam a concorrência.

Alexandre de Moraes abriu uma divergência, mas parcial. Para ele, a venda de subsidiárias não exigiria aval legislativo, como defenderam Lewandowski e Fachin, mas a privatização de uma “empresa-mãe” precisaria da autorização do Congresso. Foi acompanhado por Cármen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, somando nove ministros em defesa da necessidade de autorização para a privatização e seis ministros que votaram para não exigir lei no caso da venda de subsidiárias. Marco Aurélio Mello se pronunciou apenas sobre a questão das subsidiárias, mas referendou a liminar de Lewandowski.

A única voz do bom senso e do respeito à liberdade econômica e aos intenções do legislador foi a de Luís Roberto Barroso, para quem as privatizações – tanto de estatais quanto de subsidiárias – não precisam de nenhuma autorização do Congresso. O ministro defendeu que “para desinvestir, não vale a mesma regra que vale para criar” e ainda classificou como “fetiche” a visão que coloca o Estado como “protagonista de tudo”. Quanto menos uma corte constitucional interferir na ordem econômica, melhor, afirmou. Infelizmente, Barroso ficou sozinho.

A suprema corte pode até ter destravado os programas de desinvestimento de Petrobras e Eletrobrás, mas, ao decidir que toda estatal precisa de autorização do Congresso para ser vendida, o STF condena o país inteiro a continuar bancando empresas deficitárias, que poderiam muito bem ser recuperadas pela iniciativa privada, e coloca o destino do programa de privatizações do governo Bolsonaro na mão de dois tipos de congressistas: aqueles que, por razões ideológicas, alimentam o “fetiche” descrito por Barroso, o do protagonismo estatal na atividade econômica; e aqueles que enxergam as estatais como cabides de empregos onde podem pendurar apadrinhados em cargos de comando, em troca de apoio político, e que por isso resistirão às privatizações por ver nelas o fim de um instrumento de barganha. Uma decisão que já seria desastrosa em tempos de vacas gordas, porque representa uma inversão do saudável princípio da subsidiariedade, se revela ainda mais daninha nesta época de dificuldades fiscais, mostrando ao investidor que a liberdade econômica continua a ser bem escasso neste país.

A Reforma da Natureza - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 09/06

Em projetos e declarações, Bolsonaro troca dados por achismos e revoga bom senso



Em A Reforma da Natureza, um dos livros da saga do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Monteiro Lobato descreve como Emília, a partir de uma fábula contada por Dona Benta, se dispõe a mudar aquilo que ela julga estar errado na conformação da natureza. Tal como Américo Pisca-Pisca, o personagem da fábula, a boneca imagina alterar frutas, animais e tudo o mais e, na base da retórica inflamada e do voluntarismo, põe seu plano em marcha.

Pois Jair Bolsonaro parece ter se inspirado no método emiliano para decidir declarações e projetos de governo. Contra a tal “indústria da multa”? Aumentem-se os pontos para que se perca a carteira de motorista com 40, quiçá 60. Só faltou dizer que, liberados para correr, motoristas serão mais multados, e a tal arrecadação com multas pode subir.

O amigo Maurício Macri passa apuros na eleição argentina? Que tal dar uma forcinha reformando não a natureza, mas a moeda dos dois países? Mais! De todo o Mercosul. Assim como Emília rebatizou os bichos conforme sua conveniência, Bolsonaro também deu nome à sua moeda sonhada: peso real (que imediatamente virou surreal, porque os memes não perdoam).

Como se dará a sonhada integração monetária? Ele não sabe. Afinal, nosso reformador da natureza não entende de economia, como não se cansa de dizer. Mas acha, sabe-se lá baseado em que, que o peso real pode ser uma couraça para evitar a volta da esquerda aos países que o adotarem. Quase um amuleto.

O mais engraçado dos surtos de reformismo da natureza de Bolsonaro é que sempre há os acólitos desesperados para lhes conferir algum sentido. Então, no projeto da mudança nas regras de trânsito, os criativos passadores de pano viram um moderno liberalismo presidencial. Afinal (tentem acompanhar o raciocínio), não é função do Estado multar quem não colocar crianças em cadeirinhas, e deve ser interesse dos pais zelar pela segurança dos filhos.

Como se o trânsito fosse uma pista de autorama em que se controlam todas as variáveis e funcionasse no âmbito doméstico, em que as relações privadas – de fato – não carecem de regulação do Estado.

E para explicar para os liberais da brigada do Twitter – que diante de menções a John Locke ou Adam Smith perguntariam de que temporada de Game of Thrones eles eram – que os países com as economias de fato liberais do mundo têm leis de trânsito duríssimas simplesmente porque uma coisa não tem nada a ver com a outra?

Com a revogação do bom senso, lei número um da reforma da natureza bolsonarista, o óbvio deixa de ser assim tão óbvio. Como o fidalgo Visconde de Sabugosa, que tentava conferir alguma lógica às diatribes da Emília e tirá-la de enrascadas, ficam os providos de lógica no entorno presidencial tentando evitar o constrangimento de desmenti-lo ou minimizar o estrago de suas declarações. Nessa função se revezam os militares e os ministros que não duvidam que a Terra seja redonda, como Sérgio Moro, Paulo Guedes e Tarcísio Gomes de Freitas.

Já os entusiastas da reforma da natureza, que no reino bolsonarista às vezes ganha ares de cruzada pelos rabanetes ou qualquer outra bobajada ideológica, se sentem livres para voar diante dos inputs do chefe. O problema é que os arroubos desses reformadores não colocam abóboras no lugar de jabuticabas, como no sonho do Américo Pisca-Pisca da historinha da Dona Benta, mas religião, ideologia binária, vontade familiar e preconceito no lugar de dados, evidências, políticas públicas e pesquisas científicas.

É preciso que alguém convença o presidente que suas palavras e atos têm consequências. E que não se governa um País na base do achismo sem base concreta nenhuma.

Bolsonaro, muito pitaco e pouca noção de governo - ROLF KUNTZ

O Estado de S. Paulo - 09/06

O presidente confunde governar com mandar, desconhece gestão e embaralha prioridades



Rei dos pitacos e das palavras fora de hora e de lugar, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu numa única semana dizer aos argentinos como votar, propor a extinção de multa para quem levar criança no carro sem cadeirinha, proclamar a inocência de Neymar no caso da acusação de estupro, defender o afrouxamento das normas de trânsito e entrar numa conversa muito estranha sobre moeda única para Brasil e Argentina. Do lado brasileiro, o Banco Central (BC) logo negou haver qualquer estudo sobre o assunto. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, condenou a ideia e foi atacado por internautas, presumivelmente bolsonaristas. A criação da tal moeda, por enquanto chamada peso real, é e será por muito tempo apenas uma fantasia, uma ideia muito distante dos problemas e prioridades atuais e previsíveis. Mas será prioritário para o Brasil, neste momento, facilitar a posse e o porte de armas ou reduzir o número de radares em estradas? Nem se trata apenas de saber se essas inovações são positivas. Antes de mais nada, trata-se de avaliar a importância desses assuntos na ordem dos problemas brasileiros. Quando se trata de prioridades, as decisões do presidente Jair Bolsonaro podem ser surpreendentes, como têm notado muitos políticos e analistas de assuntos públicos.

Falar de prioridades é falar de agenda, e agenda parece algo desconhecido para o chefe de governo, segundo o deputado Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ambos filiados ao DEM. “Se o governo não tiver agenda, e parece que não tem, vamos fazer a nossa”, disse Alcolumbre à GloboNews. “Não vamos ficar esperando”, acrescentou. O senador poderia mencionar sem dificuldade uma lista de trapalhadas, o desarranjo do Executivo e a desarticulação da chamada base parlamentar. Cumpridos quase cinco meses e meio de mandato, a conclusão parece inevitável: o presidente Jair Bolsonaro chegou ao governo sem uma ideia clara dos desafios mais urgentes, sem uma lista de objetivos bem definidos e articulados e, mais importante, sem entender as funções presidenciais.

Ao defender sua interferência em anúncio do Banco do Brasil (BB), o presidente usou um argumento simples, primário e revelador. “Quem indica e nomeia presidente do BB – não sou eu? Não preciso falar mais nada, então.” Não precisaria, mesmo. Essa declaração, de 27 de abril, mostrou muito claramente a confusão entre governar e mandar. Na cabeça do atual chefe de governo, a função presidencial, tudo indica, consiste em ordenar e proibir – segundo suas preferências, seus impulsos e suas concepções ideológicas e religiosas.

Isso explica suas tentativas de intervir também na política de preços da Petrobrás e, mais timidamente, na orientação da Caixa Econômica. Cabem no mesmo quadro as tentativas de eliminação ou redução de radares nas estradas, de aumento dos pontos na carteira de motorista e de alteração da norma sobre transporte de crianças em carros.

Sem discutir esses temas, sem consultar especialistas e baseado apenas em sua opinião, ou em seu impulso, o presidente se pôs a intervir em todos esses assuntos. O uso frequente de decretos, também característico do estilo Bolsonaro, é compatível com a confusão entre governar e mandar. Esse tipo de ação pode resultar em tropeços, quando as decisões presidenciais são contestáveis com argumentos legais. Esse tipo de resistência forçou, por exemplo, a revisão do último decreto sobre armas. Poderá levar à anulação de outras decisões, mas é difícil dizer se o presidente entenderá, em algum momento, os limites de seu poder.

Mas a ignorância desses limites é apenas uma parte do problema. A questão mais grave e mais ampla é o desconhecimento do significado de governo e das funções da Presidência. O presidente Bolsonaro erraria muito menos se consultasse funcionários competentes em cada área. Quando interveio na publicidade do BB e tentou fixar normas para anúncios de empresas controladas pelo Tesouro, foi salvo de mais um erro pelo ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz. A intervenção violaria, advertiu o ministro, a Lei das Estatais.

Sem uma agenda clara, com objetivos ordenados, hierarquizados e vinculados a interesses permanentes e condições de funcionamento do Estado brasileiro, o presidente Bolsonaro e sua trupe ideológica só produziram confusões e problemas. Forçado a enxergar e a admitir erros desastrosos, o presidente já demitiu um ministro da Educação, substituído, no entanto, por uma figura igualmente mal escolhida. Na diplomacia, acabou aceitando a intervenção do vice-presidente, general Hamilton Mourão, empenhado em consertar erros graves e custosos e em prevenir novos desatinos. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem igualmente procurado salvar o relacionamento com relevantes clientes do Brasil.

Não está claro, no entanto, se o presidente de fato percebeu as tolices cometidas por ele mesmo, pelo ministro de Relações Exteriores e pelo filho Eduardo Bolsonaro, portavoz mais ostensivo da submissão bolsonariana às ideias do presidente Donald Trump.

Ao dar palpite sobre a eleição argentina e ao aceitar a conversa inconsequente sobre a moeda comum, o presidente Bolsonaro demonstrou, mais uma vez, sua dificuldade de perceber as limitações e obrigações de seu posto. Teria sentido estratégico, por exemplo, começar um esforço de resgate e de revigoramento do Mercosul.

Se iniciasse um trabalho firme e competente nessa direção, poderia, com apoio de Paraguai, Uruguai e de outros países da área, remodelar as condições de cooperação regional. Seria mais apropriado e eficiente do que agir como cabo eleitoral do presidente Mauricio Macri. Para ir além das declarações de ódio ao bolivarianismo e ao kirchnerismo, o presidente Bolsonaro precisaria, no entanto, formar uma visão menos tosca do governo, dos interesses do Estado e de suas potencialidades no quadro global. Quatro anos serão suficientes para isso?

O primeiro inverno do governo Bolsonaro - PEDRO MALAN

O Estado de S. Paulo - 09/06

É difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas visto até aqui



“O orgulho nacional é, para os países, o que a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o autoaperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidade, excessiva autoestima pode produzir arrogância. Mas, assim como muito pouca autoestima torna difícil dispor de coragem moral, orgulho nacional insuficiente torna improváveis debates políticos vigorosos e eficazes” (Richard Rorty)

Há exatos 16 anos comecei a escrever neste espaço. Assim abria meu primeiro artigo (Falsos dilemas, difíceis escolhas): “Nos últimos 12 meses, o Brasil mostrou ao mundo que continua avançando em termos de maturidade política e nível do debate econômico – apesar das aparências em contrário”. Havia, então, razões para um realismo esperançoso; para crer que estávamos em processo de aprendizado que poderia vingar – se a ele fosse dada continuidade.

O governo Lula tinha, então, a mesma idade do governo Bolsonaro, que tem à frente problemas domésticos e internacionais não triviais. As circunstâncias de hoje são muito mais adversas que as de então. Ali, o contexto internacional era cada vez mais favorável, a herança não era maldita e a política macroeconômica não era aquela que o PT havia defendido – pelo contrário.

Dada a gravidade da hora, é valiosa a recomendação final da epígrafe de Rorty: tentar tornar prováveis debates políticos “vigorosos e eficazes”. Isso exige a superação da excessiva polarização atual e o gradual deslocamento para o centro; exige atenuar as posições extremadas que hoje marcam o precário debate nas redes sociais.

Rorty escreveu a propósito de seu país, os EUA. Argumentou que a “esquerda” americana não deveria deixar a “direita” se apropriar totalmente da bandeira do orgulho nacional e do patriotismo; e que os debates não seriam “imaginativos e produtivos” a menos que “o orgulho sobrepujasse a vergonha”. Raymond Aron, por sua vez, recomendava que espectadores engajados deveriam evitar excessos, tanto de entusiasmo quanto de indignação. E Eduardo Giannetti, que os dois gumes da lâmina contivessem os excessos, seja de otimismo seja de pessimismo. Todos – Rorty, Aron e Giannetti – tinham em mente a necessidade de evitar polarizações excessivas que impedissem o diálogo e a busca das convergências possíveis. Que sempre existem.

O importante é que ganhem espaço a moderação, o diálogo e a tolerância. Esse sonho tem de ser construído ao longo dos próximos meses e anos. Porque é difícil de imaginar que possamos seguir com o grau de surpresas e incertezas que marcou os primeiros seis meses deste governo. Seria possível argumentar que essas incertezas são apenas reflexo de longo processo de aprendizado em curso; dores do crescimento de uma ainda jovem República democrática. O fato é que antes de Bolsonaro, e desde 1945, o Brasil elegeu, pelo voto direto, oito presidentes da República. Quatro antes do regime militar de 1964-1985 (Dutra, Vargas, Juscelino e Jânio); e outros quatro desde então (Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma). Nada menos que quatro destes oito não terminaram seu mandato. O atual presidente desempatará este 4 x 4 – de uma maneira ou de outra.

Em qualquer país do mundo, a grande maioria da população tem pouca memória em relação ao passado geral e escasso horizonte de longo prazo à frente. Tomada pela vida privada, afazeres cotidianos, carece de paciência para conceitos, discussões técnicas e informações estatísticas. Apesar disso, pude perceber na prática, ao longo de décadas, o acerto da observação de um dos mais perspicazes analistas do desenvolvimento econômico, social e político. Refirome ao excelente texto de Albert Hirschman sobre democracia e debates públicos.

“Com grande frequência, os participantes desse debate têm apenas opinião inicial e incerta sobre as questões de políticas públicas. Anunciam com convicção sua visão, mas sua posição mais articulada surge apenas através da discussão, por vezes de prolongadas deliberações; cuja função é desenvolver argumentos, obter informações. Posições finais podem distar muito das iniciais – e não apenas como resultado de compromissos políticos com forças opostas.”

Neste processo estamos e não temos alternativa senão nele persistir. Há exatos quatro anos concluí com a seguinte observação o artigo Tudo muito pouco usual, neste espaço: “Estamos, talvez, no começo do fim de um ciclo, ao longo do qual uma determinada visão e uma determinada política ultrapassaram, por larga margem, sua funcionalidade, relevância e utilidade”. Não tenho nada a modificar nessa conclusão; exceto retirar a palavra talvez.

As razões para tal são hoje conhecidas: o investimento no Brasil começou a declinar no terceiro trimestre de 2013, caiu 26% até o final de 2015 e 33% até o final de 2016. Hoje, está ainda 27% abaixo de seu pico. A economia cresceu de 2011 até 2018, em média, 0,6% ao ano, o que significa uma queda da renda per capita, que ainda hoje é inferior ao nível de 2010. É a mais grave crise que jamais tivemos, e a de mais longa duração. São inegáveis as consequências em termos de desemprego, qualidade dos serviços públicos, desalento, distribuição de renda e carências sociais. Este 2019 será o sexto ano consecutivo de déficit fiscal primário do governo federal. Ao que tudo indica, 2020 será o sétimo e 2021, o oitavo, dada a crise das finanças estaduais e municipais. Turbulenta década esta segunda do século 21.

Ainda assim, neste primeiro dos invernos do governo Bolsonaro, o Brasil não tem alternativa senão continuar a tentar. Tentar mostrar, a si próprio e ao mundo, que é capaz de avançar em termos de maturidade política e de elevação do nível do debate econômico sobre questões fundamentais: por que crescemos tão pouco, por que é tão desigual a distribuição de oportunidades; por que é tão penoso fazer as reformas. Volto ao realismo esperançoso de Hirschman: há que tê-lo. Apesar – e por causa – das aparências em contrário.

Incentivos desastrosos - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 09/06

Estudo do governo confirma os efeitos danosos das políticas de incentivos que vigoraram de 2003 a 2015


O fracasso das políticas de incentivos tributários para setores específicos da economia que marcaram a era lulopetista e o papel que essas políticas tiveram na deterioração da situação fiscal do governo federal eram conhecidos. Instrumentos tributários de estímulo à atividade econômica produzem efeitos positivos quando bem utilizados, como mostram experiências recentes de outros países. Mas já estava claro que, no Brasil, o uso político-eleitoral que os governos do PT deram a esses instrumentos desvirtuou sua finalidade e contribuiu para gerar o desastre fiscal em que o País está mergulhado e que, se não enfrentado a tempo, ameaça paralisar o setor público e transformar o atual quadro de estagnação econômica em depressão.

Estudo do governo confirma os efeitos danosos das políticas de incentivos que vigoraram de 2003 a 2015 e traz números que não deixam dúvidas quanto ao peso que os benefícios tributários têm nos gastos públicos – e, portanto, na geração do déficit fiscal. O trabalho – publicado na edição de junho do Boletim Mensal sobre os Subsídios da União da Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap) do Ministério da Economia – mostra também a ineficácia desses benefícios para o estímulo à produção e, consequentemente, para a receita.

Em recente seminário virtual promovido em Brasília pelo Banco Mundial, técnicos do Brasil e de outros cinco países – Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Holanda e México – compararam seus respectivos planos de subsídios tributários e avaliaram o impacto que eles tiveram sobre a atividade econômica e sobre a arrecadação tributária. Quando os governos implementam políticas desse natureza, argumentam que seu objetivo é o estímulo da atividade econômica, decorrente da redução de custos tributários, e, no futuro próximo, a recuperação das receitas em razão do aumento da produção e do consumo.

Em quatro dos países que participaram do seminário (a Holanda foi excluída das comparações), houve algum paralelismo na evolução da receita e dos gastos tributários (incentivos) ao longo do tempo. No caso da Austrália, esse paralelismo é nítido, o que significa que os incentivos fiscais propiciaram, como se esperava, o aumento da arrecadação. As renúncias tributárias aumentaram entre 2011 e 2019, passando de 8% para 10% do PIB. Nesse período, a arrecadação passou de 32% para 36% do PIB. No Canadá, os incentivos evoluíram de 6% para 7% do PIB e a receita, de 38% para 40%. O caso da Coreia do Sul é um tanto diferente, pois os incentivos pouco variaram como proporção do PIB entre 2001 e 2017 (entre 2% e 2,5%), mas a arrecadação aumentou fortemente.

No Brasil, porém, enquanto os incentivos subiram constantemente entre 2003 e 2017 (passaram de cerca de 2% para 4,5% do PIB), a receita da União no fim do período era praticamente igual à do início como porcentagem do PIB. “Diferentemente dos outros países analisados, encontramos fortes indícios de que a política de renúncia tributária feita pelo governo federal entre 2003 e 2015 comprometeu a arrecadação de tributos federias, ou seja, foi uma política que, além de não contribuir para o fomento da atividade econômica, foi decisiva para deteriorar as contas públicas”, avalia o secretário da Secap, Alexandre Manoel Angelo da Silva.

Essa avaliação mostra o efeito fiscal pernicioso das políticas de incentivo da era lulopetista. Este é, de fato, um dos piores defeitos dessas políticas, mas não o único. Houve outros, como o conluio político-financeiro entre empresas beneficiadas e políticos, funcionários públicos e partidos políticos que apoiavam o governo. Além de não terem estimulado a produção, benefícios fiscais generosos concedidos nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff asseguraram para empresas escolhidas pelo Palácio do Planalto lucratividade suficiente para dispensá-las de se preocupar com questões relevantes para a eficiência do setor produtivo, como busca de competitividade, produtividade e novos mercados. O País paga o preço desse atraso.

Ações confusas minam a confiança do Congresso no governo Bolsonaro - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 09/06

Episódio da volta do Coaf para o Ministério da Economia é mais um caso de descoordenação política

Os primeiros cinco meses demonstraram que as principais dificuldades do presidente Jair Bolsonaro derivam da sua complicada relação com o Legislativo. O desgaste precoce é evidente, consequência de uma inédita situação de declínio da confiança do Congresso num governo que tem apenas 21 semanas.

É notável que esse processo de corrosão de credibilidade tenha raízes na tumultuada base governamental. Curiosamente, até agora não se viu no Congresso um único episódio relevante de embaraço ao governo provocado pela oposição.

Caso exemplar ocorreu na noite da última quarta-feira, quando foram apreciadas duas dezenas de vetos presidenciais, metade do governo Michel Temer. Líderes de Bolsonaro realizaram uma negociação sobre a qual, no final, nem mesmo eles se entenderam. Aceitaram a derrubada de alguns vetos presidenciais sem se ater ao potencial aumento do déficit público, com renúncia de receita, anistias — inclusive a partidos — e concessões de incentivos regionais e setoriais.

A confusão entre os líderes governistas teve como pano de fundo a disputa no partido do presidente, o PSL, pela candidatura à prefeitura de São Paulo na eleição de 2020.

O resultado levou um aliado, o Partido Novo, a cobrar coerência do governo “em reduzir o déficit fiscal e reconduzir o país ao caminho da responsabilidade e do crescimento econômico”. A sessão do Congresso acabou em bate-boca entre os líderes governistas, diante de uma oposição manietada pela perplexidade.

A descoordenação política tem sido regra com reflexos diretos no painel de votações da Câmara e do Senado, como se pode ver no episódio da transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para o da Justiça. Nunca um governo amargou tantos obstáculos legislativos para estabelecer sua estrutura administrativa. E, ressalte-se, o Coaf era um detalhe no arcabouço burocrático da nova administração.

Durante semanas, o ministro Sergio Moro conversou com deputados e senadores para convencê-los a manter o órgão na Justiça. Na votação na Câmara, o governo orientou os aliados a retirar o Coaf de Moro, mantendo-o na Economia. Em seguida, no Senado, a liderança governista pediu votos em sentido contrário. Os senadores reagiram, exigindo documento assinado pelo presidente e ministros descrevendo o que o governo realmente queria. As cartas que receberam atestam a desorganização na ação política e o declínio da confiança no Legislativo.