terça-feira, abril 09, 2013

Enxugando gelo - ANCELMO GOIS

O GLOBO - 09/04

Dentre as 1.661 pessoas encontradas morando nas ruas, entre janeiro e fevereiro deste ano, pela prefeitura do Rio, há um menor de idade, abordado, acredite, 44 vezes desde 2011.
Entrou e saiu de abrigos sucessivamente.

Papa sobre rodas

Um avião cargueiro trará no início de julho dois carros tipo "papamóvel", um principal e outro reserva.
Com um deles, Papa Francisco vai percorrer a Praia de Copacabana durante a Jornada Mundial da Juventude. Blindado, o carro anda a 20km/h e permite que as pessoas fiquem cerca de um metro do sumo pontífice durante o cortejo.

Assessoria de imprensa

Nizan Guanaes, que vendeu 20% do Grupo ABC para um fundo do Itaú, está de olho no mercado.
Planeja comprar uma empresa da área de assessoria de imprensa.

Tenda dos VIPs

A francesa GL Eventos, concessionária do Riocentro, venceu ontem a licitação organizada pelo secretário Regis Fichtner para a montagem dos "overlays".
São aquelas estruturas temporárias para abrigar imprensa e VIPs no entorno do Maracanã, na Copa das Confederações.
O valor inicial do pregão era de R$ 49,6 milhões. O valor do lance vencedor foi de R$ 33,6 milhões.

Quem dá mais?

No leilão da Babel Livros, que começa amanhã, há exemplares com dedicatórias para Antônio Torres, Nelson Rodrigues, Nestor Jost e Antônio Olinto.
Um expert que examinou o catálogo identificou ali partes substantivas das bibliotecas de Nestor Jost e Marcos Santarrita.

Que haja luz!

A três semanas da reabertura, o estádio do Maracanã teve, ontem, o primeiro teste dos refletores que vão iluminar o palco da bola. A Secretaria estadual de Obras também começou a instalar as balizas do estádio. Além disso, foi concluída a instalação das lonas da cobertura e de 55 mil assentos

Dama polêmica

Ontem, no clássico entre Manchester City e Manchester United, pelo campeonato inglês, não houve um minuto de silêncio em homenagem a Margaret Thatcher.
Havia o temor de que houvesse manifestações contrárias à polêmica primeira-ministra liberal, que morreu ontem aos 87 anos.

La Violetera

Sarita Montiel, que também morreu ontem, aos 85 anos, fez um tremendo sucesso no cinema nos anos 1950/60.
A atriz espanhola, em sua época, estava para o movimento gay como Gloria Gaynor está para os rapazes alegres dos tempos atuais.
A razão... não sei.

Cérebro do orgasmo

Já se falou muito sobre orgasmo feminino, mas Kayt Sukel, jornalista americana especializada em ciências, inovou.
No livro "Sexo na cabeça", que a editora Zahar lança em julho, ela não só explica como o cérebro influencia a maneira como amamos como se prestou a uma experiência, digamos, excêntrica: seu cérebro foi escaneado durante um orgasmo.

Longe das ruas

Duas travestis que passaram pelas aulas do Projeto Damas, da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual do Rio, estão empregadas.
Uma vai trabalhar na Casa & Vídeo. A outra, no salão de beleza Dudu HDB Spa, em Ipanema.

No topo do preconceito...
O projeto tenta dar alternativa às travestis que não querem se prostituir. As aulas duram 27 semanas. Segundo o estilista Carlos Tufvesson, que dirige a coordenadoria, a turma tem muita dificuldade para conseguir emprego.
- Elas estão no topo da pirâmide do preconceito.

O crime da van

O juiz Guilherme Schilling, da 32ª Vara Criminal do Rio, abriu processo contra os três acusados de estuprar a turista americana em uma van no Rio.
O magistrado vai ouvir hoje, às 13h, o francês namorado dela, que também sofreu nas mãos dos bandidos.

Xô, parafernália!


A Secretaria de Conservação do Rio deu cinco dias para que sejam retirados de trecho da Rua Senador Dantas os cabos elétricos que tomam a calçada, conforme mostrado pela coluna ontem. A Construtora Mauad foi quem alugou esse equipamento para uma obra da Senador Dantas Empreendimentos.
Ao contrário do que saiu aqui, a Dominus Engenharia e o Opportunity não têm relação com o problema.

Diário de Justiça

A 9ª Câmara Cível do Rio negou a indenização pedida por Getúlio Ribeiro da Silva à Rede TV. É que Getúlio trabalhava fantasiado de Papai Noel num shopping do Rio e, abordado por uma equipe da emissora, cobrou... R$ 5 mil para dar entrevista.
Segundo a ação, houve um acordo verbal, ele deu entrevista, mas não recebeu. E não há provas do acordo.

Paloma e seus planos

Paloma Bernardi, a atriz paulista, de 27 anos, posa para a "Contigo" que chega às bancas amanhã. Na entrevista, a bela conta que pensa em ser mãe. "Mas ainda está cedo, tenho de trabalhar muito. Quando era mais jovem, achava que com 25 estaria casada e já seria mãe", diz ela, que namora o ator Thiago Martins, de 24 anos. Sortudo

Festival de verdade

Eduardo Coutinho, o mestre do documentário, (à esq.), cumprimenta Amir Labaki, o criador do É Tudo Verdade

Noite de inspiração - SONIA RACY

O ESTADÃO - 09/04

A festa deste ano da amfAR – sexta-feira, na casa de Dinho Diniz – permitiu a arrecadação de US$ 2,3 milhões para financiar pesquisas pela cura da Aids. O evento contou com a participação de Sharon Stone, mestre de cerimônias, e presença de celebridades como Kate Moss – que arrematou foto de Damian Rust por US$ 70 mil.

Já Luiz Pastore comprou garrafa de Moët & Chandon, folheada a ouro, por US$ 50 mil. Mas o maior lance da noite foi pela performance de Fergie, que cantou Big Girls Don’t Cry. Preço? US$ 273 mil.

Para saber mais sobre o evento, a coluna conversou com Kevin Frost, CEO da amfAR.

Entre os países que costumam sediar o evento, por que escolheram o Brasil?

O Brasil tem sido um líder internacional na luta contra o vírus HIV e foi um dos primeiros a oferecer tratamento universal à Aids. Governo e sociedade civil têm trabalhado em conjunto, e nossa instituição vem apoiando programas e organizações no País. Trazer o baile Inspiration Gala para São Paulo parecia ser, apenas, um ajuste natural.

Qual a importância das celebridades no evento?

A amfAR tem tido muita sorte. A presença de celebridades ajuda a levantar nossa voz e deixar nossa mensagem. Nosso trabalho seria muito mais difícil sem elas.

Como andam as pesquisas em prol da cura da Aids?

Estamos vivendo um momento realmente incrível. Recentemente, um cientista financiado pela amfAR relatou o primeiro caso de um filho de pais com Aids que se curou da doença. Estamos confiantes de que vamos achar a cura. Mas sabemos que ainda há muito a ser feito./SOFIA PATSCH

Mudança total
Maria do Rosário fez limpeza geral: a ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência determinou reformulação na equipe que trata de processos de sequestro de crianças e adoção. Objetivo? Dar tratamento mais humanizado às famílias brasileiras que procuram a autoridade.

Para quem não sabe, quando se trata de sequestro internacional, por exemplo, o caso necessariamente tem de passar pela secretaria.

Veredicto
Juca Ferreira recebeu, sexta, a primeira proposta de programação para a Virada Cultural. Agora, o secretário de Haddad se reunirá com a comissão formada por artistas e produtores para definir as atrações do evento deste ano.

Música transforma
Fernando Haddad conversou, domingo, em São Paulo, com José Antonio Abreu.

Fechou acordo de intercâmbio com o consagrado maestro venezuelano para formação de músicos, incluindo os da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo.

Transforma 2
Abreu é fundador do El Sistema, método que já transformou a vida de milhares de jovens. Vencedor do Prêmio TED, fomentou a criação de nada menos que 102 orquestras jovens, 55 de crianças e 270 centros musicais pelo mundo.

Promessa brasileira
Lucas Aragão, estudante da Fordham em NY, foi premiado, sexta, na American Association of Political Consultants. Como melhor roteirista de propaganda política.

David Axelrod e David Plouffe, marqueteiros de Obama, estão no hall da fama da entidade.

Xô, passarinho
Ave que se chocou com avião da Trip em Maceió (no fim do ano passado) acaba de ter seu sequenciamento de DNA concluído – graças a parceria entre Infraero e UnB.

Permitindo identificação do bicho que afetou o voo para evitar novos acidentes.

Jogo jogado
No Planalto, teme-se o “efeito Delcídio Amaral” em reunião hoje, no Senado, para analisar MP de crédito para infraestrutura – considerada urgentíssima.

Presidente da comissão e pré-candidato ao governo do Mato Grosso do Sul, o senador petista está cobrando apoio de Dilma contra o PMDB.

Quem vem
Aterrissa no Brasil, esta semana, Michael Corbat, do Citigroup. Com direito a conversa fechada com Dilma. Na agenda, investimentos em infraestrutura.

No veggie
Sharon Stone, que veio ao Brasil para comandar a festa da amfAR, fez périplo cultural e gastronômico por São Paulo. Visitou a SP-Arte e jantou, anteontem, no Rodeio do Iguatemi. Sim, a moça adora uma carne!

Free acarajé?
Depois de entregar petição online para vender acarajé na Arena Fonte Nova, baianas se reúnem hoje com representante do governo Jaques Wagner. “Querem vender acarajé pronto para esquentar no micro-ondas! Isso contraria uma tradição de 300 anos”, reclama Rita Santos, líder do grupo.

Na frente
A Dolce & Gabbana abre loja hoje – com presença dos sócios-fundadores, Domenico Dolce e Stefano Gabbana. Os moços foram multados pelo fisco italiano, semana passada, em 343 milhões de euros. No JK Iguatemi.

Fernanda Ralston Semler comemora: seu Botanique Hotel & Spa recebeu prêmio de melhor novo hotel do Brasil, outorgado pela Condé Nast UK.

São Paulo ganha hoje sua primeira butique Omega. No Shopping Cidade Jardim.

Sergio Degese arma almoço para Jean-Marc Lacave, presidente da Veuve Clicquot. Hoje, no restaurante Kinoshita.

Ao ver Sharon Stone com seu namorado, conhecido empresário não aguentou: “O papa é argentino, o melhor jogador do mundo é argentino e agora… o namorado da Sharon?”

SALTO ALTO - MÔNICA BERGAMO


FOLHA DE SP - 09/04

A geração de empregos nas micro e pequenas empresas cresceu 85% de janeiro para fevereiro, segundo estudo mensal que o Sebrae elabora com base nos dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). Foram 74 mil postos de trabalho criados no segundo mês do ano. Os pequenos empreendedores têm garantido o emprego no país -as vagas criadas representam 60% do total de 123 mil que foram abertas pelo setor produtivo.

SALTO 2
São Paulo foi o Estado com o maior número de vagas abertas em micro e pequenas empresas no período analisado (30 mil), seguido por Paraná (9.500) e Minas Gerais (6.000). Para o presidente do Sebrae, Luiz Barretto, os números confirmam tendência de crescimento da economia neste ano.

MICROFONE
José Dirceu está gravando longos depoimentos para o jornalista Breno Altman, que é seu amigo.

O material coletado pode virar um livro.

RÉDEA CURTA
A presidente Dilma Rousseff inovou ao entrevistar candidatos ao STF (Supremo Tribunal Federal). Lula delegava a tarefa a auxiliares como Márcio Thomaz Bastos, que comandava o Ministério da Justiça. Joaquim Barbosa, por exemplo, já contou que viu o então presidente pela primeira vez no dia de sua posse. Não falou com ele nem mesmo por telefone antes de ser anunciado. Já Dilma não confia -quer ela mesma sabatinar o futuro ministro.

FOI VOCÊ?
A presidente não apenas centraliza a escolha como fica furiosa quando as conversas são descobertas pela imprensa. Na semana passada, telefonou para ministros e auxiliares para tentar descobrir como sua conversa com o tributarista Heleno Torres, que disputava a vaga, foi parar nos jornais.

NA FORMA DA LEI
O diretório estadual do PSDB de São Paulo foi condenado a indenizar em R$ 30 mil a jornalista Mara Conti. Ela entrou com ação trabalhista afirmando que prestou serviços à legenda, sem registro, entre 2009 e 2011.

A Justiça reconheceu o vínculo empregatício e determinou o pagamento de rescisão e de horas extras, aviso prévio e férias vencidas. O partido diz que vai recorrer.

PARA A CRIANÇADA
A dupla Palavra Cantada, formada por Paulo Tatit e Sandra Peres, está gravando seu novo DVD. O trabalho contará com participações especiais. As cantoras Maria Rita, Zélia Duncan, Maria Gadú e Ana Cañas emprestarão suas vozes às personagens da canção infantil "Rato", dos anos 90.

DO BAÚ
Silvio Santos gosta de ver documentários do diretor americano Michael Moore e o define como "um louco engraçado". Lê livros como a biografia de Hitler, dorme cedo e pratica atividades físicas todos os dias da semana, por duas horas. As revelações sobre o apresentador de 82 anos estão na revista "Poder", nas bancas hoje.

LÁ VÊM OS NOIVOS
Otavio Marques de Azevedo, presidente do grupo Andrade Gutierrez, e sua mulher, Adriana, casaram o filho Otavio Vasconcelos Azevedo com Samantha Kechichian, na igreja Nossa Senhora do Brasil, no sábado. A empresária Rachel Pena e Sandro Barros, que assinou o vestido da noiva, estiveram na cerimônia.

A VENEZUELA É AQUI
O maestro venezuelano Gustavo Dudamel regeu a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar no primeiro concerto do ano da Cultura Artística. O casal Pedro Jens e Malu Montoro e a atriz Beatriz Segall foram à Sala São Paulo.

ZÉ DO RISO
Os atores José de Abreu, Tadeu Mello e Iara Jamra estrearam a peça "Bonifácio Bilhões" na sexta. Camila Mosquella, mulher de Abreu, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, com seus filhos, Frederico e Ana Carolina, e com sua mulher, Ana Estela, assistiram ao espetáculo no Teatro Gazeta.

CURTO-CIRCUITO
Walter Casagrande autografa hoje o livro "Casagrande e seus Demônios", às 19h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional.

Carlos Jereissati Filho recebe convidados para degustação de vinhos da marca italiana d'Amico, às 19h, no JK Iguatemi.

Os canalhas da Humanidade - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 09/04

Só canalhas amam a Humanidade. E só grandes homens são capazes de exercer a sua humanidade


QUE SORTE, Brasil: nas livrarias há uma nova edição das "Reflexões sobre a Revolução na França" (Top Books), o clássico de Edmund Burke que praticamente inaugurou o conservadorismo moderno. Digo "nova edição" porque existia uma antiga, da Universidade de Brasília, que li e não gostei.

Essa nova, pelo contrário, tem tradução competente de Eduardo Francisco Alves e permite revisitar os argumentos centrais de Burke, não apenas contra a Revolução Francesa mas contra o pensamento utópico e suas consequências potencialmente destrutivas.

Deixarei esses argumentos para um próximo artigo. Hoje, fico com Jean-Jacques Rousseau. Nas "Reflexões", Rousseau é tratado com uma dureza exemplar: o "filósofo da vaidade", dirá Burke. Alguém que era capaz de proclamar em público o seu amor pela humanidade -mas, em privado, não hesitara em abandonar os filhos na roda dos enjeitados.

Durante décadas, acadêmicos sofisticados nunca perdoaram essa crítica pouco sofisticada de Burke. Conheço alguns. A filosofia de Rousseau é uma coisa, dizem eles; sua relação com os filhos, outra. Nenhum intelectual deve ser julgado à luz da sua conduta privada.

Concordo. Até certo ponto. Anos atrás, ao ler a autobiografia que o grande cronista inglês Auberon Waugh escreveu ("Will This Do?", Carroll & Graf, 288 págs.), encontrei um retrato demolidor sobre o pai, o inultrapassável Evelyn Waugh.

Uma passagem do livro ficou célebre: acontece quando, depois da Segunda Guerra Mundial e com a Inglaterra a viver os horrores do racionamento de comida, o pai Evelyn come na frente dos filhos esfaimados todas as bananas disponíveis na mesa de jantar.

Era a primeira vez em anos que as crianças viam bananas. E foi a última vez que Auberon levou a sério o moralismo do pai.

Entendo a desilusão do filho. Mas eu não sou filho de Evelyn Waugh. Sou leitor. E, como leitor, não existe qualquer abismo entre a crueldade privada e a sua colérica persona pública.

Nos diários de Evelyn Waugh, os filhos só existem como objeto de desprezo ou coisa pior. E, sobre os romances, o óbvio: Evelyn Waugh nunca enganou. O seu desprezo sarcástico pela Humanidade (com maiúscula) é a medida de toda a obra.

Minha náusea é só com os que enganam: intelectuais que gostam de dar sermões humanistas ao público lacrimejante (como nas peças de Arthur Miller) e depois esquecem os seus filhos com síndrome de Down em instituições psiquiátricas, rasurando o fato das suas respectivas memórias (idem Arthur Miller).

Essa hipocrisia repugnava igualmente Burke. Não apenas por motivos éticos. Também por motivos políticos: o problema com os "filósofos da vaidade" não está simplesmente na dissonância entre o que dizem e o que fazem.

O problema está na forma como, recusando pensar politicamente a partir do seu "pequeno pelotão" (uma ideia que Burke recolheu em Adam Smith), eles fogem para grandes categorias abstratas (a humanidade, a igualdade, a raça, o proletariado etc.) e infligem transformações radicais e violentas sobre a exata realidade da qual fugiram.

Em rigor, Burke não estava preocupado com os pobres filhos de Rousseau. O que ele não podia tolerar era que a atividade política pudesse ser dirigida por alguém que, em nome da sua própria vaidade, trocara as circunstâncias reais por puras fantasias dogmáticas.

Só canalhas amam a Humanidade (com maiúscula). E só grandes homens são capazes de exercer a sua humanidade (com minúscula). Homens como o anônimo Manuel Condez, 60, um ex-bancário que ajudou o filho com paralisia cerebral a terminar o curso universitário.

Conta o jornalista Jairo Marques, em excelente matéria para esta Folha no último domingo: "O pai assistiu a todas as aulas, anotou as lições dadas pelos professores, auxiliou o filho na feitura das provas escrevendo no papel aquilo que ele lhe soprava".

E quando homenagearam o pai no dia em que o filho Marco, 26, recebeu o diploma, o pai respondeu: "Não fiz nada demais".

Não fez nada demais: entregava mais depressa os destinos de um governo a esse homem do que a grande parte dos meus colegas literatos.

Os sapatos de meu tio - ARNALDO JABOR

O Estado de S.Paulo - 09/04

O telefone não dava linha. Era sempre assim: as linhas para o centro da cidade nunca completavam a chamada. Depois de meia hora conseguiu falar com a secretária do seu chefe no Banco do Brasil que lhe disse de uma reunião de urgência, o que lhe deu um pavor especial, como se fosse para um tribunal. Os 'lotações' passavam lotados, zuniam sem parar até que um deles fez meia trava e falou: "Só agachadinho". No terno marrom da Ducal ele foi sentado no chão e se consolou pensando nos jogadores que posavam nessa postura, Ademir agachado, Danilo agachado, ele no micro-ônibus com as pernas de uma senhora de meias ortopédicas junto a seu rosto. Recebeu o troco do ramalhete de notas que o motorista tinha entre os dedos e desceu na Avenida Rio Branco, em 1951, quando tudo era precário, com ônibus amontoados no trânsito sem rumo, milhares de transeuntes em sua pressa pobre, o que lhe aumentava o medo e a solidão porque (pensava sempre) dali a 50 anos todos estariam mortos.

E seu peito esfriou mais ainda quando atravessou a repartição, entre as máquinas de escrever batucando, como se o acusassem de fracassado, ele que marcava passo enquanto incompetentes subiam na vida.

Por que por que a ponta de sarcasmo no tom do contínuo que o chamou de 'meu chapa'? Por que a ironia (ele achou) no sorriso gélido da secretária?

O novo chefe à sua frente exibia uma desdenhosa superioridade, de modo a camuflar o fato de ser um indicado político boçal. Ele falava lentamente, como cabe a um diretor dirigir-se a um subordinado em cadeira mais baixa e seus olhos luziam cruéis quando lhe comunicou que seu relatório estava muito fraco, entregando-lhe o maço de papéis com desprezo. Trêmulo, ele perguntou por que o relatório era ruim e o chefe respondeu com um sorriso de expert para ocultar sua ignorância: "Descobre você mesmo" e indicou-lhe a porta.

Seu amigo mais próximo era o porteiro que o 'gozou' quando ele saiu do prédio: "Seu Flamengo, hein? Vender o Zizinho pro Bangu?" Dos bondes pendiam cachos de passageiros nos estribos como trens da Índia. Agarrou-se em um deles, grudado entre um negão fuzileiro naval de paletó vermelho, irritado com o recém-chegado e o condutor que se pendurava no cacho humano para pegar as notinhas de cruzeiro e ele, protegendo o maço do relatório que o vento ameaçava desfolhar, se perguntava com amargor por que o relatório era ruim, mas falou está falado, o chefe manda, e pensava também no catupiry que esquecera de comprar, já imaginando a cara de sua mulher dando um muxoxo que significava sua desvalia.

Não que fossem infelizes no casamento longo; sem ódio ou desamor, havia entre eles uma estranheza, um temor quando se amavam raramente no escuro da cama, quase um incesto entre dois irmãos íntimos, o que lhes esfriava o corpo, pois não sabiam como transformar o tédio incestuoso num delicioso pecado, numa perversão excitante.

Não que estivessem velhos e feios; eles eram exatamente o que a vida lhes previa havia anos - ela, com sua gostosura suburbana, perdera a bela maciez juvenil que clamava por fecundações que nunca vieram, sem falar no aborto espontâneo que lhe extinguiu o desejo maternal. O que antes era vigor do fundo de suas glândulas virara um peso de órgãos infelizes, ovários inchados, flores brancas, escassez de menstruo, varizes que lhe azulavam as pernas muito brancas e indesejados pelinhos negros que se espalhavam pelas coxas como uma hera, o que o abatia quando despia o terno da Ducal e se deitava sobre seu corpo. Ambos eram fiéis e quase não brigavam em silenciosa paciência, numa familiaridade insossa e, de noite, nas salas e quartos, pareciam personagens de uma casa que era na realidade habitada pelos móveis. Entre poltronas de veludo, quadros de pretos velhos e pombas, entre cortinas e abajures eles viviam combinando seus gestos com a mudez desbotada dos ambientes.

E o que mais lhe doía ali no estribo do bonde era saber que não seria despedido jamais, apenas eternamente humilhado, pois tinha estabilidade no emprego público; se bem que, no fundo do seu corpo havia o desejo de sê-lo - por quê? Sentia vontade de ser expulso não só do banco, mas de tudo, ejetado, projetado como uma bala para bem longe, para um remoto lugar onde não houvesse nada a não ser uma imensa planície verde como um infinito campo de golfe - por quê?

Pulou do bonde andando e chegou em casa. No elevador, já sentia a habitual mão dura e fria no peito. Quando entrou no apartamento evitou passar em frente do espelho, com um vago receio de não ser refletido. A casa estava vazia - somente ele e os móveis: o sofá de folhagens estampadas, a poltrona de veludo que parecia se mover em sua direção, a jarra de flores de plástico prestes a cair da cristaleira e o rádio tocando baixinho um bolero. Desligou tudo e ouviu o silencio com um agudo ruído ao fundo, como uma nota de violino sem fim.

A mão fria apertava mais seu peito e empurrou-o até a cozinha. A empregada pretinha chamava-se Hermínia (por que o nome grego?)

Mandou-a comprar bananas. Ela saiu. Ele bebeu um copo d'água com goles sôfregos. Em seguida foi até a área de serviço, tirou os sapatos, arrumou-os juntinhos com o pé direito um pouco à frente, como sempre fazia para dar sorte. Em seguida, jogou-se da janela como um banhista que mergulhasse de um trampolim.

As estatísticas registram o hábito estranho de que quase todos os suicidas tiram os sapatos antes de pular. Por quê? Talvez uma esperança de leveza, uma hipótese de voo, o quê? Um desejo de elegância para evitar sapatos desconjuntados?

Em três segundos, enquanto caía, muitas emoções viveu na velocidade da luz: um alívio pela coragem, um pavor arrependido, a ressurreição (sim, muitos se matam para renascer), a esperança de que o chão não chegue nunca, a curiosidade de conhecer a morte no instante do impacto e a pergunta 'por quê?' Caído na calçada, pode ter visto um campo verde.

Quando a empregada chegou com as bananas só viu a cozinha vazia e os sapatos pretos de amarrar, arrumadinhos no canto da área. Pegou os sapatos para levar ao quarto quando começou a gritaria dos condôminos lá embaixo.

O trilema de Münchhausen - ROBERTO LUIS TROSTER

Valor Econômico - 09/04

O trilema de Münchhausen é o termo usado em teoria do conhecimento para relatar a impossibilidade de provar verdades com certeza absoluta até no campo da lógica. É uma referência irônica ao ilustre Barão, conhecido pelos relatos fantasiosos de suas proezas, especificamente a de que conseguiu sair de um atoleiro puxando seu próprio cabelo montado num cavalo.

Um trilema é sempre uma escolha difícil entre três opções. Pode ser resolvido com a seleção de uma e o descarte das outras, ou deixar uma das três fora ou ainda, não ter solução. Alguns são famosos em economia, nas ciências sociais e jurídicas e existem alguns chistosos, como o do restaurante: bom, barato e vazio na hora de pico.

O mais famoso em economia foi elaborado pelo prêmio Nobel Robert Mundell em conjunto com Marcus Fleming; é conhecido como a "trindade impossível": câmbio fixo, mobilidade de capitais e política monetária independente. Mostraram que os condutores da política econômica só podem perseguir dois desses objetivos, devendo descartar o remanescente.

No Brasil, vive-se o trilema das três taxas: de juros, cambiais e fiscais, em que o governo não está encontrando uma solução. A cada dia que passa, o a situação se agrava e fica mais difícil a cura. Se subirem os juros para trazer a inflação à meta, a economia para; se desvalorizarem para dar competitividade, a inflação aumenta e os juros têm que subir; se desonerarem demais, a dinâmica fiscal piora ainda mais e os preços disparam; e se deixarem como está, a deterioração dos indicadores continua.

No biênio 2011-2012 foram dois Pibinhos, e, para este ano e os próximos, as projeções são de Pibecos. Para 2013, espera-se um crescimento de 3%, em parte, com o empurrão do setor agropecuário que vai crescer mais de 4%. No horizonte, as estimativas são de um padrão parecido, o que indica que os analistas não acreditam que o governo resolva o trilema.

O sonho de juros baixos, crescimento alto e câmbio competitivo está virando o pesadelo de atividade fraca e inflação forte. Há quem atribua as causas a um choque de oferta e à crise na Europa. É fato, mas esses dois fatores apenas aceleraram um processo que ocorreria de qualquer maneira e a solução exige mais do que calibrar os juros, câmbio e alíquotas. É necessário mudar o receituário reacionário que está emperrando a economia, é inflacionário e coloca o governo numa sinuca.

Uma imagem símbolo da política econômica é o congestionamento de caminhões no porto de Santos. Mostra que há setores empresariais dinâmicos, que se modernizaram, produzem e querem exportar. Mas a inadequação do lado de fora do portão da fábrica e da porteira da fazenda impede que esse potencial produtivo vire realidade. Além da infraestrutura falha, a burocracia, as restrições operacionais, as contingências legais e o manicômio tributário asfixiam o país.

Outro exemplo emblemático é o tratamento dado ao câmbio. O custo fiscal para manter reservas internacionais, em números redondos, equivale a 1% do Produto Interno Bruto (PIB) - mais do que o Brasil cresceu em 2012!. Mesmo assim, a taxa é volátil e não é competitiva. A indústria brasileira vem perdendo mercados por conta da valorização do Real. Agravando o quadro, a política cambial é apontada com ufanismo pelo governo.

O potencial do Brasil é grande, vizinhos com menos estão conseguindo mais, bem mais. Aqui estão se afogando num copo d"água. É gritante a necessidade de alterações, em vez de remendos, na política econômica. A prescrição é clara: adaptar a gestão do país à nova realidade. Duas mudanças são necessárias, a primeira e a mais fundamental é o governo ser convencido da necessidade de um novo paradigma, de abandonar a política reacionária. A segunda é mudar. Como? Adequando-se à realidade.

Um exemplo é a política monetária. É óbvio que a inflação não está convergindo e não vai convergir para a meta. Deixar como está, ou aplicar doses homeopáticas de juros, só aumenta a força da inércia inflacionária.

Só há duas soluções: um aumento descomunal da Selic, ou, o que é mais razoável, colocar uma meta de inflação crível para 2013 (6%?), e valores declinantes para os próximos anos e executar uma política de juros consistente com a meta, não com a banda. Isso dará credibilidade à condução da moeda e eliminará incertezas sobre a evolução do custo do dinheiro no futuro.

Na política cambial é fazer os ajustes consistentes com a nova realidade. Completar a abertura, acabando com as travas no mercado à vista, permitindo a livre conversibilidade, com contas em divisas e a descriminalização de posse de moeda estrangeira. Com isso seriam corrigidas distorções na formação da taxa de câmbio, que atualmente é dada pela dinâmica dos mercados futuros. Haveria uma redução de riscos e custos para exportadores, uma maior estabilidade de taxas e um ganho fiscal considerável.

O quadro tributário brasileiro é um manicômio, com milhares de alíquotas e de normas, que sustenta dezenas de milhares de famílias de contadores, despachantes, fiscais e advogados, mas custa centenas de milhares de empregos que são transferidos ao exterior por falta de competitividade local. Levantamentos internacionais apontam que é o sistema de arrecadação mais oneroso do mundo. Mas quase nada é feito para reduzir seu custo.

O debate central da política econômica brasileira é o dilema entre inflação baixa e crescimento alto. Está mal formulado, as estatísticas mostram que o Brasil está crescendo menos que o resto do mundo e que tem uma inflação maior que a média das outras economias; provando que é possível ter as duas alternativas fazendo ajustes adequados. O Barão de Münchhausen usou a imaginação para relatar como saiu do pântano. Aqui a questão é usá-la para não afogar-se num copo d"água.

Domésticas - o que faltou dizer - JOSÉ PASTORE

O ESTADÃO - 09/04

Se a sua empregada doméstica precisar fazer uma hora extra, lembre-se de que ela terá de descansar 15 minutos antes de começar. Se você precisa de muitas horas extras, atente que ela não pode exceder dez horas por semana. Se dorme ou não no emprego, ela terá de ficar 11 horas sem trabalhar depois de encerrada uma jornada. Atenção: ela não pode comer em menos de uma hora em cada refeição. Se ela demorar mais de dez minutos para entrar no serviço, trocar de roupa ou tomar banho na hora da saída, esse tempo será contado como hora extra. Se ela dorme no quarto com uma criança ou um doente, terá de ser remunerada com adicional noturno e eventualmente hora extra por estar à disposição daquela pessoa. Se você tiver de compensar em outro dia as horas a mais que ela trabalhou no dia anterior (banco de horas), lembre-se de que isso tem de ser previamente negociado com o sindicato das domésticas. Se você concede à sua empregada um plano de saúde e ela se acidentar e for aposentada por invalidez, o plano terá de ser mantido pelo resto da vida. Se, para melhor controle do seu desempenho, você estabelecer metas e tarefas diárias que sua empregada considere exageradas, ela pode processá-lo por danos morais. E se você não pagar a indenização que o juiz determinar, ele penhorará (online) o saldo da sua conta bancária - sem prévio aviso.

Tudo isso está na lei e na jurisprudência. E há muito mais. Para ser franco, o espaço todo deste jornal não seria suficiente para explicar as complicações decorrentes dos 922 artigos da CLT e dos milhares de normas administrativas e orientações dos tribunais. Por isso vou parar por aqui, mesmo porque não quero ser considerado catastrofista. Nem por isso, porém, posso concordar com a opinião da nobre desembargadora Ivani Bramante, publicada neste caderno (2/4), segundo a qual os patrões estão com paranoia (sic) em relação à nova lei das domésticas.

O fato é que, no País inteiro, não se fala noutra coisa. A apreensão é geral. Os políticos já perceberam o desconforto e a irritação causados pelo impensado ato. Muitos já reformulam o seu cálculo eleitoral: se ganharam a simpatia das empregadas, perderam o apoio dos milhões de eleitores que não podem prescindir dos serviços de uma babá ou de um cuidador de idoso. A esse grupo se juntarão as empregadas que serão dispensadas.

Convenhamos, a execução do atual cipoal trabalhista já é difícil nas empresas. O que dizer das famílias, que não dispõem de contador, departamento de pessoal e assessoria jurídica? A nova lei, além de encarecer os serviços (que já estão caros), vai mudar o relacionamento entre empregada e empregador, que, de confiável e amistoso, passará a burocrático e conflituoso.

Os políticos buscam agora colocar uma tranca na porta que acabaram de arrombar. Mas as emendas poderão sair pior do que os sonetos. E podem ser inúteis, pois, a esta altura, as famílias que podem já se puseram a desenhar a sua vida sem a ajuda das empregadas domésticas.

A questão do encarecimento também é séria. O meu amigo Osmani Teixeira de Abreu, conhecedor profundo das relações do trabalho no Brasil, acredita que, em médio prazo, vai sobrar empregada doméstica, porque muitos empregadores não terão condições de cumprir a nova lei. Ele argumenta que na empresa, quando há um aumento de custo, o empresário o repassa ao preço ou o retira do lucro. O empregador doméstico não tem como fazer isso, porque geralmente é empregado e vive de salário, que não é elástico.

Ou seja, na pretensão de melhorar a vida das empregadas domésticas, nossos legisladores deixaram de lado o que é mais prioritário no momento presente, que é a formalização dos 5 milhões de brasileiras que não contam sequer com as proteções atuais. Será que aumentando os direitos e criando tanta insegurança elas vão ser protegidas? Penso que não. Muitas serão forçadas a trabalhar como diaristas, sem registro em carteira.

O mito e o espectro de Hugo Chávez - DANIEL AARÃO REIS

O GLOBO - 09/04

Não é provável que o equilibrista vá cair tão cedo. E, enquanto ele não cair, o mito e o espectro de Chávez permanecerão assombrando inimigos e encorajando amigos


Naquela multidão, longa de quilômetros, manchada de vermelho, não havia espaço entre os corpos comprimidos. Os rostos, expressão de dor, perplexidade e reverência chegaram a esperar vinte horas para, em última homenagem, observar com olhos tristes o defunto. A morte prevista de Hugo Chávez, temida e recusada por uns, desejada e festejada por outros, acontecera, afinal, em 5 de março passado. Deixando o mundo dos vivos, o destino do líder já estava traçado na doença que o corroera: um mito encorajador para os amigos, um espectro amaldiçoado pelos inimigos.

No contexto da polarização radical que marcou sua trajetória, tornou-se difícil formular uma análise objetiva. Para os adversários, um chefe carismático e histriônico, mais um, na tradição populista desta infeliz América Latina carente de sólidas instituições democráticas, um demagogo boquirroto com aspirações ditatoriais. Para os admiradores, uma autêntica liderança popular, responsável maior por um processo reformista revolucionário que, resgatando o que de melhor existe na tradição nacional-estatista de Nuestra América, abriu perspectivas para o “socialismo do século XXI”.

As eleições presidenciais em curso, marcadas para o próximo 14 de abril, só têm acentuado e radicalizado as divisões. Para Nicolás Maduro, candidato do Partido Socialista Unificado da Venezuela/PSUV, designado pelo próprio Chávez, que o visita em sonhos, como sucessor, trata-se de executar o testamento do chefe desaparecido, manter a revolução, garantir as conquistas sociais realizadas, aprofundar a democracia e derrotar o golpismo das direitas empedernidas, racistas, elitistas e subservientes aos Estados Unidos. Para Henrique Capriles, candidato da larga coligação oposicionista, a Mesa da Unidade Democrática/MUD, em que se incluem forças e personalidades de direita e de esquerda, alguns ex-chavistas, trata-se de quebrar a marcha batida para a ditadura em que o pais se encontra e, preservando as chamadas “conquistas sociais”, combater os problemas que ele denuncia como persistentes: inflação, corrupção, criminalidade.

As gentes que mancharam de vermelho as ruas de Caracas, descontada a tradição necrófila latino-americana, têm razões para lamentar a morte de Chávez. Políticas cobrindo áreas diversas — educação, saúde, elevação de salários, distribuição de alimentos a baixos preços, as chamadasmisiones sociales — fizeram desabar os índices de pobreza, de 50 para 30%, e de miséria, de 20,3% para 8,5%. Caiu verticalmente a mortalidade infantil. As desigualdades sociais, ainda elevadas, reduziram-se e a Unesco declarou o pais “livre do analfabetismo”. Obras de infraestrutura e programas habitacionais permitiram que muitos ingressassem no mercado de trabalho formal.

Além disso, o país assumiu um inédito papel nas relações internacionais, elevando a autoestima dos venezuelanos. Beneficiado por uma conjunção de circunstâncias favoráveis — crescimento notável dos preços do petróleo (o país possui uma das maiores reservas mundiais, atrás apenas da Arábia Saudita), nova onda nacional-estatista nas Américas ao sul do Rio Grande, enfraquecimento relativo da capacidade de intervenção dos EUA — Chávez multiplicou iniciativas: a Aliança Bolivariana/Alba; a Comunidade de Estados Latino-Americanos e caribenhos/Celac; a União das Nações Sul-Americanas/Unasul, o ingresso no Mercosul. Em todas as articulações, um objetivo estratégico: constituir espaços latino-americanos livres da presença — e da influência — dos EUA. Um velho sonho de Bolívar e de outros pensadores latino-americanos, como Antonio José de Sucre, José Martí, José Carlos Mariátegui e Carlos Marighella.

O interessante é que o processo adquire um caráter social, não se reduzindo, como querem alguns, à figura de Chávez. A rigor, a ascensão do líder foi precedida por movimentos sociais de envergadura, como o Caracazo, insurreição popular ocorrida em fevereiro de 1989. Dirigida contra o então presidente Carlos André Perez, associado a uma política ultraliberal e antipopular, o levante engrenou um movimento que levaria Chávez, dez anos depois, à presidência da república. Esta dinâmica subsiste e tem adquirido vigor com os Conselhos Comunais. Segundo trabalhos feitos por jovens pesquisadores brasileiros, como Mariana Bruce e Felipe Addor, mesmo não ignorando a iniciativa do Estado, e seu papel ainda preponderante, há evidências claras de um movimento desde abajo que exprime protagonismo social e reivindicação de autonomia numa escala inédita na história do país.

A experiência venezuelana ainda é recente e parece, às vezes, um equilibrista em corda bamba. No entanto, e para além das paixões enviesadas, não é provável que o equilibrista vá cair tão cedo. E, enquanto ele não cair, o mito e o espectro de Chávez permanecerão assombrando inimigos e encorajando amigos.

É a liberdade que está em jogo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 09/04
Ainda há um longo mar a atravessar, é verdade, mas eis que demos, na última terça-feira (2 de abril) uma consistente braçada. Numa época em que a democracia representativa vai tão vilipendiada, é da ordem dos melhores ares que o Parlamento, a cumprir sua já quase esquecida função de legislar, compreenda a importância estratégica da peleja por meio da qual se pretende abolir a proibição à publicação de biografias não autorizadas no Brasil - algo típico de ex-democracias, como a da Venezuela, ou de democracias em decomposição, como a da Argentina.

Ao aprovar, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 393/11, do deputado federal Newton Lima (PT/SP), a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara alinha-se àqueles que identificam no artigo 20 do Código Civil, como ora redigido, uma inequívoca chancela à censura prévia.

Não se trata, pois, de questão meramente editorial. A rigor, é a liberdade que está em jogo. Sob o falso manto de se resguardar a imagem de pessoas públicas, é o direito fundamental à liberdade de expressão, mais do que a produção e a circulação de biografias, que se encontra sob tutela hoje.

Vivemos um tempo de retrocesso evidente, em que a falência do debate público não é o menor dos sinais. A cada vez que um editor - ou um escritor - precisa considerar primacialmente elementos que não aqueles inerentes ao seu trabalho, dá-se um passo atrás no terreno da livre circulação de ideias. Falo com base em meu ofício, que tende a se acanhar, já se acanha, achacado por sucessivos processos judiciais, inviabilizado pela indústria das imagens feridas e pelo advento, bem-sucedido, do "advogado de porta de livraria". Não se avalia um original hoje apenas pela força de seu argumento, pela qualidade do texto e pelas possibilidades de mercado. É preciso lê-lo com olhar jurídico. Ou, por que não dizer?, com medo. É necessário antecipar possíveis problemas; discutir com o autor não a fraqueza literária de uma passagem cujo texto pode melhorar, mas a presumida vulnerabilidade de determinada referência, que precisará ser removida de modo a que se evite uma complicação nos tribunais.

Sob o oximoro moral consagrado por "biografia autorizada", o que ora se edita no Brasil, com raras e heroicas - não raro suicidas - exceções, são mais ou menos disfarçadas hagiografias. Até quando?

Não está aqui em questão o fato de que o editor - bem como o autor - precisa ser responsável e ter cuidado com o que publica. Isto é óbvio. Este é um trabalho arriscado mesmo, que pressupõe coragem e apostas - e que pode e deve ser punido, como ocorre frequentemente nos Estados Unidos, quando erra, quando excede. No caso do livro, porém, a punição também tem seu pressuposto - e este não poderia ser mais simples: para ensejar uma reação, ainda que a mais negativa, ainda que a extrema, aquela que afinal o retirará das livrarias, um livro precisa existir; precisa ser editado e publicado; precisa ganhar o mundo, chegar ao mercado, ser lido e criticado; precisa ferir, se ataque houver; precisa denegrir Fulano e Sicrano, se infâmia trouxer. E então, aí sim, vivo, plenamente conhecido, sujeito ao escrutínio público, poderá ser motivo de uma ação judicial e das consequências de eventuais agravos legais.

Antes, não. Antes do jogo jogado, não.

Não queremos uma janela para sair desonrando pessoas públicas. Não é isso. Mas algo grave ocorre quando o editor se aproxima do covarde. Falamos de livro, ora! Da produção e da circulação de livros; de um processo - que chamaria de editorial, não fosse, bem antes, essencialmente humano - que precisa ser cumprido, para o bem de uma República cujas instituições se pretendem maduras. Vejamos o que nos diz o Senado.

O MP e o Código Florestal - ALDO REBELO

O ESTADÃO - 09/04

Na história recente do Congresso Nacional, nenhuma lei foi tão debatida, internamente e em audiências públicas, quanto a do novo Código Florestal. Foram dez anos de discussões e consultas à sociedade. Como todo acordo razoável, o resultado final não agradou inteiramente às partes, grosseira e impropriamente polarizadas em ruralistas e ambientalistas. Mas a lei veio à luz para cumprir o seu papel ambivalente de zelar pela conservação do meio ambiente e tornar viável a atividade agropecuária.

De um cenário de campo conflagrado, as cicatrizes estavam se fechando; a segurança do agricultor, em reconstrução; a pujante agricultura nacional, incentivada a continuar conquistando mercados dominados por países ricos - até que apareceu o Ministério Público (MP) para reabrir o debate ao questionar a constitucionalidade de 23 dispositivos da nova legislação. A Procuradoria-Geral da República encaminhou ao Supremo Tribunal Federal três ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) que estigmatizam reformas feitas pelo Congresso acerca das áreas de preservação permanente (APPs) e de reserva legal e da suposta anistia a produtores rurais punidos por degradação ambiental.

Ao contrário do que argumenta a Procuradoria, contudo, a Lei 12.651, ainda retocada por nove vetos da presidente da República, Dilma Rousseff, não encerra retrocesso nem ofende a Constituição. O mesmo artigo 23 da Carta Magna que atribui competência ao poder público para "proteger o meio ambiente" e "preservar as florestas, a fauna e a flora" também determina que lhe compete "fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar". Ao conciliar as vertentes de preservação e produção, o Congresso aperfeiçoou e manteve a nossa legislação ambiental como a mais rigorosa do mundo.

Difícil é desfazer a lenda maliciosa, urdida no exterior e aqui medrada, de que os brasileiros calcinam o meio ambiente, pois, em verdade, somos o país que mais preservou suas florestas. Enquanto os Estados Unidos e a Europa destruíram as deles e as da Ásia, o Brasil manteve em pé nada menos que 69,4% da vegetação nativa. Não é, portanto, a proteção da natureza que está no centro da questão.

A agressividade ambientalista, recheada de alarmismo, que grassa entre nós como erva daninha, tem como pano de fundo o crescente protagonismo do Brasil no comércio de produtos agrícolas. Incapazes de concorrer com as vantagens comparativas de que dispomos, para produzir alimentos fartos e baratos que lhes tomam divisas, países desenvolvidos desfraldam a bandeira de "florestas lá, agricultura aqui". Quanto maiores forem as salvaguardas ambientais impostas ao concorrente, as mesmas que eles não seguem, menor será o crescimento da agropecuária brasileira. Daí por que, incentivadas por seus governos, e contando com a boa-fé de militantes engajados nesta justa causa da humanidade, organizações não governamentais (ONGs) ambientalistas de origem estrangeira tentam inscrever na lei brasileira a defesa dos interesses estratégicos que representam.

A legislação ambiental do Brasil, preconizada pelo Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, no século 19, é salutar e rigorosa. O primeiro Código Florestal, de 1934, foi radicalmente alterado em 1965, embora conservando os parâmetros que revestiam sua ambivalência. Nas décadas de 1980 e 1990, uma série de mudanças abusivas foi introduzida, algumas delas por medida provisória, como o aumento das áreas de preservação permanente. Um monstrengo jurídico passou incólume pelo escrutínio seletivo dos jurisconsultos de ocasião: a tipificação de crime ambiental com efeito retroativo. O produtor rural dos nossos dias passou a ser responsabilizado por desmatamentos praticados desde o início da exploração da terra, não importa se nos primórdios da colonização do País. Muitíssimos foram multados em valores que excediam o da propriedade. Outros, impedidos de receber financiamento. Todos deveriam arrancar lavouras para replantar mata nativa. A deformidade prejudicou principalmente os pequenos proprietários, que dispõem de pouca terra para semear. Dos 5,1 milhões de imóveis rurais cadastrados no Brasil, 4,3 milhões (84,4%) classificam-se como de agricultura familiar, com área média de 18 hectares. Os grandes proprietários (acima de mil hectares) controlam 46 mil estabelecimentos.

O Congresso Nacional agiu para simultaneamente preservar a natureza e tirar o agricultor da ilegalidade. As multas absurdas podem ser convertidas em serviços de preservação, melhoria e qualidade do meio ambiente. A isso se chamou indevidamente de anistia, cabendo citar aqui, mais uma vez, a definição do Barão de Itararé (o humorista político Apparício Torelly, 1895-1971): "Anistia é o ato pelo qual o governo perdoa generosamente crimes que ele próprio cometeu". Outro avanço da reforma foi respeitar a atividade agrícola nas várzeas - prática mundial tão antiga quanto a agricultura, mas que o Código Florestal criminalizava. A exigência de replantio de mata nas áreas cultivadas às margens dos cursos d'água passou a ser proporcional ao tamanho do imóvel. Tais avanços são tachados de inconstitucionais.

Como as ONGs não têm legitimidade para propor Adins, um setor do Ministério Público assumiu a tarefa de desqualificar o Congresso em seu papel soberano e discricionário de legislar ungido da prerrogativa de poder popular por excelência. Leis são pactos sociais costurados com a linha da democracia pelos representantes do povo. Tal poder é exclusivo do Parlamento. Vem a propósito a observação de renomado professor de que "o MP é o braço institucional das ONGs", na medida em que essas entidades tentam extorquir "dos Poderes constituídos o que estes, e só estes, podem fazer - em especial o que depende de se legislar ou de ou de se fazer cumprir a lei".


O eterno dilema - ABRAM SZAJMAN

FOLHA DE SP - 09/04

Legado perverso do regime militar, a indexação da economia impede que a inflação seja debelada. Mas uma está atrelada à outra


Na década de 1980, a sociedade brasileira se mobilizou para eliminar os resquícios do período autoritário que se abatera 21 anos antes sobre o país.

O processo de remoção do entulho acumulado foi longo e penoso, em especial na seara econômica. Mas produziu resultados importantes, como o fim das reservas de mercado e a privatização de empresas estatais ineficientes, que sugavam recursos públicos hoje mais bem aplicados em programas sociais.

Um legado perverso e insidioso, porém, permaneceu atuante e ainda gera efeitos ameaçadores para a estabilidade dos preços e o desenvolvimento com inclusão social: a indexação da economia.

As origens dessa ferramenta -destinada não a combater, mas a conviver com a inflação- datam de 1964, quando, recém-instalado no poder, o regime de força cria o conceito de ajustes automáticos de aplicações, dívidas e aluguéis por meio da correção monetária.

Acostumada a essa proteção artificial, grande parte dos proprietários de ativos beneficiou-se durante anos do rentismo parasitário, sustentado pela imensa maioria dos assalariados, desprovidos de recursos para aplicar e acossados pela carestia avassaladora.

É certo que a indexação estendeu-se aos salários, mas seus efeitos positivos de manutenção do poder de compra no curto prazo eram imediatamente superados pela realimentação da inflação.

Não foram poucos os planos tentados para conter a inércia inflacionária: Cruzado 1 e 2, Verão, Bresser, Collor 1 e 2. Até que, finalmente, o Plano Real conseguiu colocar ordem na casa. A inflação, porém, continuou latente e ameaça, de quando em quando, escapar dos limites a que foi confinada. As principais vias de fuga continuam representadas, precisamente, pela indexação remanescente.

A situação atual inspira cuidados. Na vertente do mercado financeiro, mais de 25% dos títulos estão diretamente indexados à inflação, percentual que chega a dobrar e atingir a metade dos papéis de forma indireta, pois mesmo os títulos pós-fixados acabam por reagir quando os juros interbancários sobem em resposta aos níveis de preços elevados.

No que se refere às relações de trabalho, o salário mínimo é reajustado por uma regra pouco racional, que combina o crescimento do PIB com o resultado do IPCA no ano anterior. Os demais salários também são indexados, na prática, pela tendência dos reajustes anuais pautados pelo INPC, acrescido de um adicional.

Finalmente, os tributos e os aluguéis permanecem indexados -os primeiros pela taxa Selic e outros índices de correção, os últimos pelo IGP-M. Este indexador é particularmente danoso, porque transfere para todos os contratos de aluguel um elemento completamente alheio a esse mercado, qual seja a variação cambial.

Nessa conjuntura perigosa, a inflação só não explode graças a desonerações pontuais e a malabarismos como o adiamento dos reajustes das passagens de ônibus. Salta aos olhos que algo deve ser feito para que as cláusulas de proteção de valores e reajustes de contratos sejam resultados de negociações, com a prevalência das especificidades e das circunstâncias, não dos índices.

A inflação jamais será debelada enquanto a indexação continuar na cabeça das pessoas.

Como eliminar bruscamente a indexação em tempos de inflação alta não é palatável politicamente, devem-se empregar meios graduais, sem quebra de contratos e sem mudança na legislação. O caminho das pedras, nesse caso, parece ser a redução paulatina das metas inflacionárias até um patamar muito reduzido, no qual a eliminação da indexação não cause grandes perdas.

É também um caminho pedregoso, mas menos acidentado do que intervenções governamentais atabalhoadas, como as que estão sendo feitas nas vizinhas Argentina e Venezuela, sem qualquer resultado de vulto contra a inflação.

Em suma, a inflação só será abatida definitivamente quando a desindexação ocorrer e, para que a desindexação aconteça será necessário primeiro reduzir a inflação. Esse é o eterno dilema.

Quem manda matar - LUIZ GARCIA

O GLOBO - 09/04
Existe justiça pela metade? Obviamente, não deveria existir. Melhor dizendo, cinquenta por cento de justiça é algo muito próximo de justiça nenhuma. Principalmente quando um tribunal condena quem comete o crime e ignora o papel de quem o encomendou. A razão é óbvia: a absolvição do mandante quase inevitavelmente dá-lhe a certeza, ou quase isso, de que não há grande risco, ou risco algum, em novas encomendas de homicídios.

Pois foi o que acaba de acontecer em Marabá, no Pará. Há dois anos, foi assassinado lá um casal de ambientalistas - essas pessoas incômodas e desagradáveis que se dedicam a defender a natureza contra aqueles que enriquecem, e são, por isso mesmo, poderosos, enquanto agridem o meio ambiente. Ou seja, enquanto agridem o futuro.

Não levaram isso em conta os jurados que absolveram o rico fazendeiro José Rodrigues Moreira, acusado, com fartura de provas, de ser o mandante do assassinato de um casal de defensores do meio ambiente. Guardemos os seus nomes: José Cláudio e Maria do Espírito Santo. Não lutavam pela posse de terras e sim pela preservação da natureza. Tinham como inimigos os grandes fazendeiros da região.

José Cláudio e Maria eram dedicados defensores do meio ambiente. Foram executados por dois assassinos de aluguel, Lindonjonson (triste desperdício de um nome que faz parte da história americana) Silva Rocha e Alberto Lopes. A dupla foi condenada a mais de 40 anos de prisão cada um - porque as provas do duplo homicídio eram irrefutáveis.

Assim entendeu, corretamente, o Tribunal do Júri. Foi tão incompreensível como lamentável que os jurados tenham ignorado as razões do duplo crime. Ou tenham sido levados a ignorá-las. O casal foi assassinado quando combatia a ocupação irregular de uma área recentemente comprada pelo fazendeiro Moreira. Era absolutamente inegável a relação entre a campanha dos ambientalistas e os interesses do latifundiário.

Pode-se ter a esperança que outros defensores do meio ambiente empunhem a bandeira do casal assassinado. Pelo menos, a condenação dos assassinos deve elevar o preço dos assassinatos por encomenda - se é que isso serve como algum consolo. Mas é otimismo ingênuo acreditar em redução da violência: latifundiários (não todos, é claro; talvez apenas alguns deles, se é razoável alimentar esse otimismo) pelo visto têm muito a ganhar com a exploração das riquezas naturais deste país imenso. E, como parece, com pouco risco.

É preciso insistir neste ponto: o mandante dos assassinatos no Pará não é um criminoso solitário. A sua absolvição tende a produzir mais violência na região. O fato de que os assassinos foram condenados a penas pesadas talvez sirva apenas para elevar o preço de outras mortes. E a escandalosa absolvição do mandante dos assassinatos em Marabá é óbvio estímulo a novos crimes. Até que os tribunais comecem a condenar quem encomenda assassinatos com a mesma severidade com que tratam quem aperta o gatilho.

Ou melhor ainda, com maior rigor.

Hoje na pauta - TEREZA CRUVINEL

CORREIO BRAZILIENSE - 09/04
Apesar do compreensível ceticismo sobre a real disposição do Congresso para, finalmente, reformar o sistema político-eleitoral, estarão hoje na pauta de votações da Câmara dois pontos relevantes da proposta apresentada pelo relator, Henrique Fontana. O que ela tem de promissor é o fato de refletir não as preferências do relator, mas a média das inclinações do conjunto partidário, como reconhece o presidente do PSDB, Sérgio Guerra. "Ele trabalhou de fato como relator, e isso é um bom começo."

O que entra em pauta hoje são dois projetos de lei, que podem ser aprovados por maioria simples, ficando para um segundo momento as duas emendas constitucionais integrantes da proposta, que exigirão maioria qualificada de 3/5 dos votos. O projeto que entra primeiro em discussão é o que introduz o financiamento público exclusivo de campanhas. O outro altera ligeiramente o sistema eleitoral, agregando ao voto proporcional uninominal (no candidato a deputado federal, estadual e vereador) a possibilidade do voto na lista partidária, à escolha do eleitor.

O financiamento privado das campanhas no Brasil está na origem de todos ou quase todos os escândalos de corrupção. Foram as sobras da campanha de Collor que o levaram ao impeachment, com todos os riscos que implicava para a democracia naquele momento inaugural. Fernando Henrique enfrentou denúncias de compra de votos para aprovar a emenda da reeleição e de recursos eleitorais não declarados na segunda campanha. A condescendência geral evitou maiores turbulências. Foram as dívidas de campanha não cobertas pelas doações privadas que levaram o PT a tomar empréstimos, em seu nome e, depois, em nome de Valério, que esperava honrá-los, depois, com doações privadas. Afora os pagamentos a Duda Mendonça, todas as transferências do valerioduto destinavam-se ao pagamento de dívidas de campanhas de petistas e aliados. Os que entraram para a base em 2003, como PTB e PP, negociaram ajudas para o pleito municipal de 2004. Se o Congresso aprovar pelo menos este ponto, estará fortalecendo a democracia brasileira por mais de uma razão. Suprimindo o financiamento privado, o gene principal da corrupção estará isolado, embora existam outros. A qualidade das bancadas deve melhorar. Como diz Fontana, hoje, quem não tem um financiador não disputa eleições. "O financiamento público dará oportunidade a novos nomes, favorecendo a qualificação da política." E pode favorecer ainda, acrescento, a eleição de mulheres, índios, negros e pessoas com deficiências, setores absolutamente minoritários num parlamento que ainda não tem a cara do Brasil.

O custo, certamente, será menor que o atual, em que os empresários doadores embutem as doações nos custos de seus produtos ou serviços. Especialmente, quando contratadas pelo Estado, pois este é o objetivo: recuperar multiplicados os recursos doados. O projeto de Fontana, diferentemente de outros já discutidos e não votados, não fixa um valor por voto. Deixa ao TSE a tarefa de propor a verba específica no ano anterior ao do pleito, podendo o Congresso ajustá-la ao aprovar o Orçamento.

Dificilmente o outro projeto será discutido ou aprovado hoje, mas traz outra inovação importante. O sistema belga em que se inspira permitirá que o eleitor vote no sujeito de sua preferencia ou na lista do partido preferido. O brasileiro parece preferir votar no candidato, mas a tradição da lista começará a ser criada, com vistas ao futuro. O Congresso tem à sua frente uma boa chance de dizer à sociedade que tem compromisso com a mudança e com o aprimoramento da democracia. Esta é uma tarefa exclusiva dele. Os partidos, fora o PT, parecem divididos, mas há sinais de que, em cada um, a maioria prefere a mudança ao descrédito que ameaça o sistema.

Thatcher, glória e crime
É feio, é desrespeitoso à vida celebrar a morte de qualquer pessoa, notável ou obscura, como fizeram ontem alguns ingleses e escoceses em relação à ex-primeira ministra, Margareth Thatcher. Como fizeram grupos de americanos quando mataram Bin Laden. Não há dúvida de que Thatcher abriu caminho para a chegada das mulheres ao poder e de que mudou a face do Reino Unido. Suas privatizações foram mantidas pelos governos trabalhistas posteriores.

Os argentinos teriam motivos, mas não saíram às ruas com cartazes. Um ato de Thatcher ainda sangra como ferida na história argentina, o afundamento do navio General Beltrano, no qual morreram 323 militares, de um total de 649 que perderam a vida na Guerra das Malvinas. O navio estava fora da zona do conflito e, por isso, os argentinos sustentam que seu afundamento foi um crime de guerra. Quem viu o filme em que ela foi representada (magistralmente) por Meryl Streep lembra-se da cena. Num momento em que sua popularidade caía nas pesquisas, ao saber que o navio se deslocava, Thatcher determinou ao ministro da Defesa: "Afunde-o". Por isso, Mario Volpe, diretor do Centro de Ex-Combatentes nas Ilhas Malvinas (Cecim) declarou ontem aos jornais argentinos: "Morreu impune, sem ser julgada, sem ter aportado nenhuma contribuição à paz".

Verdade sobre Neruda
Estamos começando agora, mas nossos vizinhos, que também enfrentaram ditaduras, continuam empenhados na busca da verdade. O poeta Pablo Neruda morreu 123 dias depois do golpe de Pinochet. Ontem, seu corpo foi exumado para esclarecer suspeitas de que tenha sido envenenado para não se tornar um ícone da oposição. Para os chilenos, algo doloroso, porém necessário.

Nome aos bois - KATIA ABREU

O GLOBO - 09/04
Toda generalização é insensata, injusta e beneficia sempre o infrator, que nela se oculta.

Se alguém diz, por exemplo, que todos os profissionais de uma determinada categoria são desonestos, sem dar nome aos bois e sem comprová-lo, comete não apenas grave injustiça contra toda a categoria, mas, sobretudo, favorece a eventual minoria infratora, que permanece anônima e impune. Tanto faz se o acusador afirma que "todos" ou somente "alguns" delinquem. A imprecisão põe todos sob suspeita. E não há quem celebre mais esse tipo de conduta do que quem a provoca. Até o denunciante, ainda que munido da mais sincera indignação, acaba se tornando, mesmo sem o desejar, cúmplice dos que acusa.

É o que ocorre com os que fazem da acusação sistemática aos pecuaristas um padrão de conduta. Há algum tempo, um procurador da República envolveu sua instituição no patrocínio indevido, com dinheiro público, de um vídeo que incitava o público a não consumir carne, pois provinha de fazendas que, segundo ele, desrespeitavam a lei e praticavam trabalho escravo.

Desnecessário dizer que não citava nenhuma fazenda em particular, deixando todas sob suspeita.

Procuradoria Geral da República não é - nem pode ser - uma ONG e os procuradores não podem confundir sua tribuna com um palanque. Assim estariam incorrendo em desvio de função - e de uma função essencial à democracia.

Idem os jornalistas. Abraçar causa justa - no caso, a segurança alimentar - não dá licença para acusações generalizadas, que comprometem todo um setor produtivo.

Não questiono, como defensora intransigente da liberdade de imprensa, opinião, seja de quem for. O que estranho - e por isso registro - é a precária fundamentação que a reveste quando alguns tratam do setor rural. No caso da pecuária, há reincidentes.

Li recentemente, neste jornal, a afirmação: "Alguns dos maiores frigoríficos brasileiros já foram flagrados comercializando carne de boi criado em fazendas instaladas em unidades de conservação ou terra indígena e até, em alguns casos, onde houve trabalho escravo."

Que frigoríficos, que casos? Dito assim, o pronome indefinido "alguns" acusa a todos. Sem dar nome aos bois, compromete-se todo o setor que fez do Brasil o segundo maior produtor mundial de carne bovina e o primeiro em exportação. Concorrentes da União Europeia e de outros mercados devem ter celebrado a frase.

Jamais defendemos trabalho escravo, grilagem ou desmatamento irresponsável. Os que aí delinquem devem ser punidos pela Justiça. Mas tão grave quanto os delitos é atribuí-los genericamente a todo um setor, sobretudo diante dos interesses econômicos internos e externos envolvidos e dos danos sociais que provoca.

A liberdade de expressão, assim como a coisa julgada, são os principais pilares que sustentam a democracia.

Canonizando Margaret - VLADIMIR SAFATLE

FOLHA DE SP - 09/04

"Não existe esse negócio de sociedade. Existem apenas homens e mulheres individuais, e há famílias." Foi com essa filosofia bizarra que Margaret Thatcher conseguiu transformar o Reino Unido em um dos mais brutais laboratórios do neoliberalismo.

Com uma visão que transformara em inimigo toda instituição de luta por direitos sociais globais, como sindicatos, Thatcher impôs a seu país uma política de desregulamentação do mercado de trabalho, de privatização e de sucateamento de serviços públicos, que seus seguidores ainda sonham em aplicar ao resto do mundo.

De nada adianta lembrar que o Reino Unido é, atualmente, um país com economia menor do que a da França e foi, durante um tempo, detentor de um PIB menor que o brasileiro. Muito menos lembrar que os pilares de sua política nunca foram questionados por seus sucessores, produzindo, ao final, um país sacudido por motins populares, parceiro dos piores delírios belicistas norte-americanos, com economia completamente financeirizada, trens privatizados que descarrilam e universidades com preços proibitivos.

Os defensores de Thatcher dirão que foi uma mulher "corajosa" e, como afirmou David Cameron, teria salvo o Reino Unido (Deus sabe exatamente do quê). É sempre bom lembrar, no entanto, que não é exatamente difícil mostrar coragem quando se escolhe como inimigo os setores mais vulneráveis da sociedade e quando "salvar" um país equivale, entre outras coisas, a fechar 165 minas.

Contudo, em um mundo que gostava de se ver como "pós-ideológico", Thatcher tinha, ao menos, o mérito de não esconder como sua ideologia moldava suas ações.

A mesma mulher que chamou Nelson Mandela de " terrorista" visitou Augusto Pinochet quando ele estava preso na Inglaterra, por ver no ditador chileno um "amigo" que estivera ao seu lado na Guerra das Malvinas e um defensor do "livre-mercado".

Depois do colapso do neoliberalismo em 2008, ninguém nunca ouviu uma simples autocrítica sua a respeito da crise que destroçou a economia de seu país, toda ela inspirada em ideias que ela colocou em circulação. O que não é estranho para alguém que, cinco anos depois de assumir o governo do Reino Unido, produziu o declínio da produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra (11,9%, em abril de 1984). Nesse caso, também sem a mínima autocrítica.

Thatcher gostava de dizer que governar um país era como aplicar as regras do bom governo de sua "home". Bem, se alguém governasse minha casa dessa forma, não duraria muito.

Cabral: não aos dois palanques - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 09/04

O governador Sérgio Cabral (PMDB) já avisou à presidente Dilma (PT) e ao ex-presidente Lula que não aceita a existência de dois palanques no Rio. "Não imagino a presidente no palanque do Pezão e de outro candidato ao governo. Eu não me imagino apoiando dois candidatos a presidente. Num dia recebo Dilma, e no seguinte outro candidato", afirma Cabral.

PMDB cobra reciprocidade do PT
O desejo do PT de ter um candidato e a disposição do senador Lindbergh Farias são naturais, segundo Sérgio Cabral, mas não nas atuais circunstâncias. "Aliança pressupõe reciprocidade. O Lula teve nosso apoio para lançar sua sucessora (Dilma). Será que eu não tenho legitimidade para lançar meu (o vice Luiz Fernando Pezão) sucessor?", pergunta o governador. Na sua avaliação, o estado tem uma agenda de eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) e investimentos pela frente e, por isso, não passa pela sua cabeça a cisão entre aliados. "Não vejo como pensar em dois palanques numa situação dessas", arremata.

Lupi dá um bolo
Não foi à toa que o presidente do PDT, Carlos Lupi, emplacou Manoel Dias (Trabalho). Ele era esperado ontem em jantar com Eduardo Campos, em Porto Alegre, mas, em cima da hora e sem nenhuma explicação, suspendeu a viagem.

O que a Bahia tem?
O secretário de Estado americano, John Kerry, vem ao Brasil e escolheu Salvador para se reunir com o ministro Antonio Patriota (Relações Exteriores). Estão na agenda, investimentos conjuntos em energia, o fim do visto para turistas brasileiros em visita aos Estados Unidos e relações políticas nos organismos internacionais.

Fora dos planos
A saída do empresário Joesley Batista (dono da Friboi) do PSB quebra uma perna da eventual candidatura ao Planalto de Eduardo Campos (PSB) no Centro-Oeste. Os socialistas contavam como certa sua candidatura ao governo de Goiás.

O fim dos palanques regionais
Os petistas, sobretudo os do Rio, estão defendendo, internamente, uma nova tese para justificar o lançamento de candidatos do PT nos estados em oposição aos governos dos aliados. Eles sustentam: "Os palanques acabaram. A população escolhe o candidato a presidente sem intermediários, a campanha é pela TV".

Fórum da polêmica
Para se contrapor ao Fórum da Liberdade, que teve como estrela o governador Eduardo Campos (PSB), o PT gaúcho promoveu ontem, no mesmo horário, o Fórum da Igualdade, que teve como protagonista o governador Tarso Genro (PT).

PSB x PT em Brasília
O PSB não pretende disputar com o PT só a Presidência. O partido contratou pesquisa do Instituto O&P, em Brasília, e o senador Rodrigo Rollemberg (PSB) tem 27,1% e o governador Agnelo Queiroz (PT), 14,5%.

O PT, o PMDB e o PSDB tentam aprovar hoje a PEC do fim das coligações proporcionais. Eles têm 280 votos e precisam de 308.

Braços cruzados - VERA MAGALHÃES - PAINEL

FOLHA DE SP - 09/04

Sindicatos da construção pesada discutem hoje em São Paulo proposta de greve em grandes obras em andamento, como as do PAC e de estádios da Copa. A maioria das entidades é ligada à Força Sindical, que tem 170 mil trabalhadores do setor em 15 Estados. Em atrito com o Planalto, a central estimula paralisações nos canteiros alegando descumprimento de pontos do acordo selado com o governo em 2011 após conflitos entre operários de Jirau, Santo Antônio e Suape.

Onde pega Entre as queixas dos sindicalistas estão a não adoção de protocolos de segurança de trabalhadores e os acordos salariais em risco na reta final de construção.

Infiltrado Paulinho da Força instalou um sindicalista vestido de "Agente 86" para interromper as falas de Eduardo Campos ontem em São Paulo. Era um protesto ao suposto monitoramento do sindicato de Suape pela Abin, negado pelo governo.

Anos rebeldes Em fase de reaproximação com sindicatos e movimentos sociais, Dilma Rousseff confirmou presença no congresso da UNE, que acontece em Goiânia de 29 de maio a 2 de junho.

Jekyll... O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, se reuniu ontem com a presidente para discutir as duas peças que encaminhou ao STF sobre a divisão dos royalties. Na manifestação da presidente, foi feita uma defesa enfática do veto à redistribuição dos recursos.

... e Hyde Já no texto assinado pelo próprio Adams, a AGU defende a decisão do Congresso, pela derrubada do veto. A peça em nome da presidente foi redigida pelo vice-AGU, Fernando Faria.

Conflito Membros do governo disseram a ministros do Supremo Tribunal Federal que a AGU pode questionar a constitucionalidade da criação de quatro tribunais regionais federais, aprovada pela Câmara na semana passada.

Passa... A ministra Rosa Weber mandou redistribuir para o próprio Joaquim Barbosa reclamação de Márcio Thomaz Bastos contra o presidente do STF. O advogado questiona decisão de Barbosa de negar aos réus do mensalão acesso prévio aos votos.

... anel Barbosa, por sua vez, ao receber o pedido quis entregá-lo ao vice-presidente, Ricardo Lewandowski, mas não o localizou. O presidente, então, encaminhou a reclamação de Thomaz Bastos ao decano Celso de Mello.

Ferida O vereador Ricardo Young (PPS) vai requerer hoje à Comissão da Verdade paulistana depoimentos de Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, e José Maria Marin, presidente da CBF, acusado de colaborar com a prisão do jornalista durante a ditadura.

Chapéu Temendo perda acentuada de receita, Jaques Wagner pediu ontem a deputados e senadores da Bahia mobilização pelo substitutivo de distribuição do FPE. As transferências caíram 3% em março em relação a 2012.

Ba-Vi Pré-candidata ao governo, Lídice da Mata (PSB) aproveitou a inauguração da Fonte Nova para pedir a saída do presidente do Bahia, Marcelo Guimarães Filho, deputado federal pelo PMDB.

Guris Os governos federal e do Rio Grande do Sul vão ampliar a parceria no Brasil Sem Miséria para que famílias com crianças até seis anos recebam no mínimo R$ 100 mensais. O novo valor será anunciado sexta-feira por Dilma em Porto Alegre.

Disputa O deputado Vanderlei Macris colhe assinaturas na bancada para lançar o colega Duarte Nogueira ao comando do PSDB-SP. O atual presidente, Pedro Tobias, postula novo mandato.

com FÁBIO ZAMBELI e ANDRÉIA SADI

tiroteio
"É compreensível que o PT não queira fazer balanço do mandato do prefeito. Afinal, foram cem dias sem Haddad."
DO VEREADOR ANDREA MATARAZZO (PSDB), criticando o que chama de "ausência de medidas novas" no início da gestão do petista em São Paulo.

contraponto


Boletim da madrugada


Em 2002, o então secretário-geral da Presidência Arthur Virgílio foi a Caracas para entregar carta de Fernando Henrique Cardoso em apoio a Hugo Chávez, alvo de protestos que levariam à sua deposição temporária. À noite, no hotel, viu Chávez demitir a cúpula da PDVSA pela TV. Ligou para Brasília e mandou acordar FHC.

-Presidente, o Chávez está com um apito, na TV, demitindo os dirigentes da PDVSA ao vivo, aos berros!

-E você me ligou a essa hora por quê? Agora você vai dormir, e quem perde o sono sou eu! -respondeu o ex-presidente, avesso a turbulências, um tanto contrariado.

A OMC na encruzilhada - RUBENS BARBOSA

O ESTADÃO - 09/04

Para discutir o funcionamento do sistema multilateral de comércio, o International Center for Trade and Sustainable Development e o World Trade Institute, de Genebra, resolveram criar um grupo de peritos.

Participei em Genebra de revisões da situação atual da Organização Mundial de Comércio (OMC) à luz do fracasso da Rodada de Doha e da proliferação dos mega-acordos de comércio.

A função negociadora da OMC, um dos pilares da organização, e a participação e maior engajamento do setor privado nos entendimentos multilaterais foram dois dos principais temas tratados pelo grupo de peritos.

O grande número de países membros tornou difícil o processo decisório baseado no consenso e deixou a negociação necessariamente mais arrastada e demorada, chegando muitas vezes a paralisá-la. Estão sendo cogitados ajustes na regra do consenso, para evitar que os entendimentos sejam bloqueados por um número reduzido de países.

O impacto das decisões da OMC sobre as operações comerciais também ocupou boa parte das discussões do grupo. Há um sentimento geral de que o empresariado não está informado sobre as negociações multilaterais que ocorrem em Genebra e nem está preparado para acompanhá-las pela sua complexidade. A OMC é uma organização intergovernamental, não estando prevista a participação de empresas, associações ou federações nas delegações dos países membros, nem a presença delas nas reuniões fechadas. Foram aventadas diversas possibilidades, como a criação de um Conselho Consultivo do setor privado ou de um Conselho Empresarial da OMC para fazer recomendações aos governos sobre os temas em discussão.

A negociação multilateral está entrando em nova fase. Os acordos dos EUA com a Ásia e com a União Europeia vão criar uma dinâmica distinta no comércio internacional, baseada na integração das cadeias produtivas globais. A tendência atual nas negociações plurilaterais para promover a liberalização dos mercados é a redução das restrições existentes dentro do território dos países que participam desses entendimentos. Além da redução das tarifas e das barreiras não tarifárias, o que está sendo discutido nos mega-acordos são regras que vão além daquelas existentes na OMC, como investimento, serviços, compras governamentais, propriedade intelectual, ou mesmo que nem estão reguladas pela organização, como controle de capital. Os países que não estão participando dessas meganegociações — inclusive os emergentes, entre os quais se inclui o Brasil — relutam em encarar negociações sobre essas regras. Outros, como a China, estão sendo deliberadamente excluídos por questões geopolíticas. Essa matéria é um problema de substância das negociações e não pode ser ignorada.

As discussões no âmbito do grupo de peritos, depois de novo encontro em junho, serão resumidas em um documento com propostas concretas a serem encaminhadas à reunião ministerial da OMC que ocorrerá em Bali, na Indonésia, em dezembro.