FOLHA DE SP - 09/04
Legado perverso do regime militar, a indexação da economia impede que a inflação seja debelada. Mas uma está atrelada à outra
Na década de 1980, a sociedade brasileira se mobilizou para eliminar os resquícios do período autoritário que se abatera 21 anos antes sobre o país.
O processo de remoção do entulho acumulado foi longo e penoso, em especial na seara econômica. Mas produziu resultados importantes, como o fim das reservas de mercado e a privatização de empresas estatais ineficientes, que sugavam recursos públicos hoje mais bem aplicados em programas sociais.
Um legado perverso e insidioso, porém, permaneceu atuante e ainda gera efeitos ameaçadores para a estabilidade dos preços e o desenvolvimento com inclusão social: a indexação da economia.
As origens dessa ferramenta -destinada não a combater, mas a conviver com a inflação- datam de 1964, quando, recém-instalado no poder, o regime de força cria o conceito de ajustes automáticos de aplicações, dívidas e aluguéis por meio da correção monetária.
Acostumada a essa proteção artificial, grande parte dos proprietários de ativos beneficiou-se durante anos do rentismo parasitário, sustentado pela imensa maioria dos assalariados, desprovidos de recursos para aplicar e acossados pela carestia avassaladora.
É certo que a indexação estendeu-se aos salários, mas seus efeitos positivos de manutenção do poder de compra no curto prazo eram imediatamente superados pela realimentação da inflação.
Não foram poucos os planos tentados para conter a inércia inflacionária: Cruzado 1 e 2, Verão, Bresser, Collor 1 e 2. Até que, finalmente, o Plano Real conseguiu colocar ordem na casa. A inflação, porém, continuou latente e ameaça, de quando em quando, escapar dos limites a que foi confinada. As principais vias de fuga continuam representadas, precisamente, pela indexação remanescente.
A situação atual inspira cuidados. Na vertente do mercado financeiro, mais de 25% dos títulos estão diretamente indexados à inflação, percentual que chega a dobrar e atingir a metade dos papéis de forma indireta, pois mesmo os títulos pós-fixados acabam por reagir quando os juros interbancários sobem em resposta aos níveis de preços elevados.
No que se refere às relações de trabalho, o salário mínimo é reajustado por uma regra pouco racional, que combina o crescimento do PIB com o resultado do IPCA no ano anterior. Os demais salários também são indexados, na prática, pela tendência dos reajustes anuais pautados pelo INPC, acrescido de um adicional.
Finalmente, os tributos e os aluguéis permanecem indexados -os primeiros pela taxa Selic e outros índices de correção, os últimos pelo IGP-M. Este indexador é particularmente danoso, porque transfere para todos os contratos de aluguel um elemento completamente alheio a esse mercado, qual seja a variação cambial.
Nessa conjuntura perigosa, a inflação só não explode graças a desonerações pontuais e a malabarismos como o adiamento dos reajustes das passagens de ônibus. Salta aos olhos que algo deve ser feito para que as cláusulas de proteção de valores e reajustes de contratos sejam resultados de negociações, com a prevalência das especificidades e das circunstâncias, não dos índices.
A inflação jamais será debelada enquanto a indexação continuar na cabeça das pessoas.
Como eliminar bruscamente a indexação em tempos de inflação alta não é palatável politicamente, devem-se empregar meios graduais, sem quebra de contratos e sem mudança na legislação. O caminho das pedras, nesse caso, parece ser a redução paulatina das metas inflacionárias até um patamar muito reduzido, no qual a eliminação da indexação não cause grandes perdas.
É também um caminho pedregoso, mas menos acidentado do que intervenções governamentais atabalhoadas, como as que estão sendo feitas nas vizinhas Argentina e Venezuela, sem qualquer resultado de vulto contra a inflação.
Em suma, a inflação só será abatida definitivamente quando a desindexação ocorrer e, para que a desindexação aconteça será necessário primeiro reduzir a inflação. Esse é o eterno dilema.
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