domingo, dezembro 26, 2010

CAETANO VELOSO

Errática

CAETANO VELOSO
O GLOBO - 26/12/10
O melhor artigo publicado por um colunista de jornal em 2010 no Brasil foi o de Drauzio Varella sobre violência contra homossexuais. Quem não leu procure na internet. É fácil de achar (LEIA ABAIXO). E de entender. O de Demétrio Magnoli (LEIA AQUI) que li esta semana no GLOBO não fica muito atrás, seja pela clareza de enunciação, seja pelo comprometimento exigente com a ideia de sociedade livre. Magnoli será naturalmente apontado pelos esquerdinhas afoitos como um argumentador da direita. Ou por meus outros amigos, apaixonados pelas consequências do surgimento da internet, de retrógrado.

Mas sua análise da declaração de Lula sobre Julian Assange e o WikiLeaks é luminosa — e o levou ao cerne da questão da liberdade de imprensa. Lula diz que liberdade de expressão tem de ser total e apresenta sua solidariedade a Assange como exemplo do reconhecimento dessa verdade. É claro que Magnoli nos relembra que Lula nunca chiou contra a censura à imprensa em Cuba, na China ou no Irã. Mas isso é só a parte superficial de seu texto.

A análise do fenômeno WikiLeaks e a inaceitação prévia de qualquer ato ilegal dos Estados Unidos em relação a Assange vai fundo nas responsabilidades que as sociedades abertas têm de carregar.
Quem não leu (e já jogou o jornal de anteontem fora) deve também procurá-lo na internet.

Quando comentei aqui, en passant, que meu camarada John Perry Barlow, num primeiro momento, oscilou entre apoiar Assange e resguardar-se contra os ataques dos hackers ativistas (hacktivists), as chamadas DDOS (a sigla em inglês para “distribuição de negação de serviço”), houve quem reagisse como se eu fosse um inimigo da vida on-line — e quem, ao contrário, pensasse que me alegro com o aparente antiamericanismo de Assange.

Não. Como a “The Economist” (há quanto tempo não se fala nela aqui: eu não poderia deixar o ano acabar sem voltar a escrever seu nome), acho que, claro, as pessoas têm todo o direito de boicotar Amazon ou MasterCard por estes terem parado de abrigar WikiLeaks. Mas, primeiro: não gosto de protestos anônimos; e, segundo: não me animo muito facilmente com ataques coletivos cheios de destrutividade. WikiLeaks é a notícia mais promissora de desdobramentos imprevisíveis que apareceu em 2010.

Ele próprio notícia maior do que os vasamentos que apresenta. Óbvio que os esquerdinhas acham que os liberais só reclamam do desrespeito aos direitos humanos em países comunistas (ou simplesmente inimigos dos EUA) — e os liberais esquecem o apoio dado pelos EUA a tiranias camaradas (do Chile de Pinochet à
Arábia Saudita). Mas o argumento de Magnoli (que volto a sugerir que se leia direto na fonte: eu não seria capaz de, de memória, tentar reproduzilo aqui) está acima dessas distorções.

• O Tono é uma banda interessantíssima.
Vi alguns shows seus e ouvi seus discos. Rafael cantando e tocando bateria é música em estado elevado. Ana Cláudia é especialmente adorável por ser a única cantora realmente cool (nos dois ou três sentidos) da geração. Há brilho de variada gama por todos os lados, mas o canto liso e econômico de Ana Cláudia está sozinho. E é muito bonito que ela não seja a frontwoman da banda. Sem ser a “cantora” que puxa a turma, mas sem tampouco ser uma backing vocal, ela é parte da instrumentação (e do espírito) desse grupo talentoso e delicado.

• Wagner Moura e o Capitão Nascimento, na arrasadora volta de “Tropa de elite” às telas, são um marco em nossa História. Para sempre.

• A votação que Marina Silva obteve na eleição presidencial é glória do ano de 2010 e continuará repercutindo na política brasileira. Dilma ter ido ao segundo turno mudou
o ânimo dos lulistas para melhor — e nos deu a experiência de sentir duas mulheres representando as forças que afinal se insinuam em nossa História. Dilma pode ser um feito de Lula (Marina fez-se sozinha), mas será presidente daqui a poucos dias — e seu estilo de gerir vai ser conhecido por todos nós.

• “Os famosos e os duendes da morte”, filme e livro, não são coisa para ser esquecida. O filme é que nos leva ao livro, com a força de suas imagens sutis, de sua música original, de seus novos atores espontâneos. Livro e filme se complementam, fazem um todo sugestivo, não se pode desligar um do outro.

• Adoro que Baía (Ana de Hollanda) seja ministra.

• O livro em que se inspira “Tropa de elite 2” chama-se “Elite da tropa 2”. O primeiro filme baseava-se (livremente) no primeiro livro (“Elite da tropa”). O segundo tem uma relação ainda mais livre com o livro em que se apoia. O êxito do primeiro filme aparece no segundo livro com uma graça digna de Cervantes citando
a primeira parte do Quixote na segunda — e com uma visão tocante sobre o personagem que se tornou o Capitão Nascimento nas telas.

É um livro que ninguém que se interesse pela questão da segurança pública no Rio pode deixar de ler.
• Não gosto de árvore de Natal nem de Papai Noel. Gostava dos presépios de Santo Amaro, da areia da praia no chão das casas e da marchinha de Assis Valente. João Gilberto cantando “Boas festas” é a coisa mais bonita deste mundo. Amo essa música desde a infância. João deu uma entrevista a Sílvio Lamenha em que louvava a musicalidade extraordinária de Assis nessa composição. É maravilhoso ouvi-lo demonstrar o que estava dizendo.

• Isto não é uma lista de melhores do ano. Prometo reler toda a errática fieira de artigos que publiquei aqui até agora e fazer uma crítica da coluna para fechar 2010.


DRAUZIO VARELLA 
Folha de São Paulo – Publicado em 04/12/2010
Negar direitos a casais do mesmo sexo é imposição que vai contra princípios elementares de justiça
A HOMOSSEXUALIDADE é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.
Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência a mulheres e a homens homossexuais. Apesar de tal constatação, esse comportamento ainda é chamado de antinatural.
Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (leia-se Deus) criou os órgãos sexuais para a procriação; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).
Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?
Se a homossexualidade fosse apenas uma perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.
Em alguma fase da vida de virtualmente todas as espécies de pássaros, ocorrem interações homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.
Comportamento homossexual foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.
A homossexualidade entre primatas não humanos está fartamente documentada na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no "Journal of Animal Behaviour" um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre os machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.
Masturbação mútua e penetração anal estão no repertório sexual de todos os primatas já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.
Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas.
Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por mero capricho. Quer dizer, num belo dia, pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas, como sou sem-vergonha, prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.
Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.
A sexualidade não admite opções, simplesmente se impõe. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.
Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países o fazem com o racismo.
Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais que procurem no âmago das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal aceitam a alheia com respeito e naturalidade.
Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.
Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser nazistas a ponto de pretender impor sua vontade aos mais esclarecidos.
Afinal, caro leitor, a menos que suas noites sejam atormentadas por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu por 30 anos?

CINCO

BARBARA GANCIA

Lula, o instituto

BARBARA GANCIA
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/12/10

Bairro nobre de São Paulo. Em meio a um parque com árvores que um dia foram catalogadas por Burle Marx, repousa fulgurante o edifício-escultura mais comentado dos últimos tempos.

Levou tempo para sair do papel, quase dois mandatos presidenciais (em medida usada no Distrito Federal), e muita água rolou pelo buraco do Ademar para chegarmos ao dia de hoje.

Comenta-se que Frank Gehry e Santiago Calatrava teriam batido boca durante a concorrência para decidir pelo arquiteto que realizaria a obra. Mas, no fim das contas, a disputa acabou ficando mesmo entre Ruy Ohtake e Oscar Niemeyer, que, embora não sejam os únicos dois arquitetos tapuias, acabam assinando 100% das obras arquitetônicas de alguma importância que são licitadas no país.

Bem, mas, finalmente, cá estamos reunidos na inauguração do Instituto Luiz Inácio Lula da Silva, uma justa homenagem ao melhor e mais sexy presidente de todos os tempos -Bill Clinton, Silvio Berlusconi e FHC que me perdoem, mas não tem para mais ninguém.

A presidente Dilma, recém-reeleita para seu segundo mandato, a despeito de acusações de ter triplicado cargos públicos federais, acaba de fazer um discurso agradecendo a Lula por ter nascido e implorando que ele volte ao Planalto.

Consigo atravessar a multidão e a passarela sobre o espelho d'água da entrada principal. Quando me dou conta, estou adentrando a primeira sala da fundação dedicada ao nosso imaculado presidente.

Nunca na história deste país viu-se uma construção tão linda e tamanho primor organizacional. Ao meu redor estão reunidas, em ordem alfabética e divididas por Estado da União, todas as camisas de futebol, as bolas, os troféus, as flâmulas e as faixas de times que Lula ganhou de presente em seus dois primeiros mandatos.

Assim que me recupero do êxtase e da variedade futebolísticos, tomo a direção da estátua de Lula talhada no mais transparente mármore de carrara, que ocupa o vão central do edifício. Não posso deixar de admirar a harmonia das proporções. Surpreendo-me apreciando uma parte em especial da anatomia presidencial: que orelhinhas mais bonitinhas! Não é que a Luiza Brunet está coberta de razão? Além de superar em sabedoria o rei Salomão, de ter mais fibra do que Lord Nelson, de ter acabado com a pobreza e a violência em nosso país e de ter encontrado a cura do câncer, Lula também vem a ser uma espécie de George Clooney hirsuto. Só não vê quem santa Luzia desdenhou.

Pelo que me informa o guia impresso que eu trouxe de casa, a próxima sala a ser visitada deveria ser a biblioteca, mas não consigo localizá-la. Será esta portinha minúscula que eu vejo aqui? Ah, então não vale a pena, melhor seguir direto para a sala dos clipes e dos "post-its". Em vez de livros, o maior brasileiro de todos os tempos coleciona clipes e "post-its", sabia não?

A sala seguinte é minimalista ao máximo, toda em branco, enxuta e muda da cabeça aos pés, sem qualquer objeto ou demarcação. Não vejo nenhuma placa, mas algo me diz que deve ser o espaço dedicado à primeira-dama Marisa Letícia.

Passo pela grandiosa galeria de fotos presidenciais em que Lula está perfilado a ditadores africanos, déspotas do Oriente Médio, populistas latino-americanos e terroristas italianos e vou ter finalmente na sala principal do instituto.

É lá que eu vivo a mais indescritível experiência sensorial da vida, uma coisa assim "son et lumiére", patrocinada pelos bancos Itaú, Santander, Bradesco e HSBC, além, é claro, de Petrobras e Caixa Econômica, e dirigida pela Tizuka Yamazaki. Chama-se "Lula, a Intuição" e diz que, no ano que vem, o show viaja para Las Vegas e se apresenta no Cirque du Soleil. Bom começar a se sacudir desde já, não é mesmo, Les Invalides e Biblioteca Kennedy?

RENATA LO PRETE - PAINEL DA FOLHA

Suprema vacância 
RENATA LO PRETE

FOLHA DE SÃO PAULO - 26/12/10

No dia em que Dilma Rousseff receber a faixa presidencial, o STF atingirá o recorde de 154 dias sem a formação completa. A demora na indicação do substituto de Eros Grau, aposentado em agosto, em muito supera o hiato de 57 dias entre a saída de Nelson Jobim e a entrada de Cármen Lúcia, em 2006.
Em seus dois mandatos, Lula escolheu oito ministros. Em quatro anos, Dilma deverá nomear, além do sucessor de Eros, os de Cezar Peluso e Ayres Britto, que se aposentam em 2012. Isso se não for aprovada a "PEC da Bengala", que eleva de 70 para 75 anos o limite de idade para os membros da Corte.

Imponderável 1 Dilma terá a chance de indicar outros ministros ao Supremo em caso de aposentadorias voluntárias, como se especula que possa acontecer com Celso de Mello, decano da Corte, e Ellen Gracie.

Imponderável 2 Há ainda as fortes dores nas costas de Joaquim Barbosa, que ameaçam tornar inviável a permanência do relator da ação penal do mensalão. O ministro nega essa hipótese.

Em série No período de um mandato no Planalto, Dilma deverá conviver com quatro presidentes do Supremo: Peluso fica até abril de 2012; Britto o sucede e comanda a Corte até se aposentar, em novembro do mesmo ano; Joaquim assume e transmite a presidência a Ricardo Lewandowski em novembro de 2014.

Quem avisa... Em recente conversa com Dilma, um veterano do Senado comentou a provável reeleição de José Sarney (PMDB-AP) à presidência da Casa: "Você vai trazer um problema velho para um governo novo". Ela nada respondeu.

Saúde! Ao ouvir a despedida de Mão Santa (PSC-PI), que prolonga as sessões do Senado com pronunciamentos intermináveis, um funcionário comentou: "Vou abrir uma champanhe!".

Mantra Diante do descontentamento explicitado por Paulo Renato Souza (Educação) e Mauro Ricardo Costa (Fazenda) pela maneira como foram informados de que seriam substituídos, o governador eleito Geraldo Alckmin (PSDB) repete aos assessores mais próximos: "Em governo novo, a mudança é o caminho natural, e a manutenção, exceção".

Onde pega O que tem constrangido os atuais secretários é saber da dispensa apenas depois de o nome do substituto vir a público.

Eu não Lila Covas nega ter intercedido em favor da escolha do neto Bruno, deputado estadual, para a Secretaria do Meio Ambiente do futuro governo Alckmin.

Aquecimento Ao ouvirem o ralho público dado por Lula no prefeito Gilberto Kassab (DEM), que teria descumprido compromisso de firmar convênio com catadores de papel, deputados do PT comentaram: "2012 é logo ali".

No forno Protógenes Queiroz promete para 2011 um livro sobre os bastidores da Operação Satiagraha. Segundo o delegado e deputado federal, editoras europeias estariam interessadas. O lançamento seria em 20 de maio, seu aniversário, ou 7 de setembro, data de sua filiação ao PC do B.

Obra incompleta Magistrados que leram o livro do jornalista Raimundo Pereira sobre Daniel Dantas estranharam a revelação de que Protógenes ignorou documentos apreendidos sugerindo que fundos de pensão de estatais usaram advogados para comprar juízes.
com LETÍCIA SANDER e FABIO ZAMBELI

tiroteio

"O compromisso do novo governo com o ajuste fiscal é um discurso sem correspondência com a prática."
DO ECONOMISTA MANSUETO DE ALMEIDA, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), sobre o Orçamento da União para 2011, aprovado pelo Congresso na noite de quarta-feira passada.

contraponto

Culpa do sistema

Na noite em que foi votado o aumento de 62% para os deputados, Abelardo Camarinha (PSB-SP) procurou se justificar com Chico Alencar (PSOL-RJ):
-Só vocês que têm voto de opinião podem ser contra, Chico. A maioria, como eu, precisa demais desse reajuste. Nossa base exige que banquemos festinha de aniversário, casamento, batizado, enterro...
-E o povo tem de pagar?- provocou Alencar.
-Mas é o povo que pede tudo isso, e que nos elege para que possamos pagar. A demanda não tem fim!

DANUZA LEÃO


"Guarda meu lugar, tá?"
Danuza Leão
FOLHA DE S. PAULO

Apesar de sua lealdade ao presidente, esperamos que Dilma comece a governar com a sua cabeça, e rápido


Temos uma nova presidente que conhecemos pouco, mas que dizem ser mandona -e tem cara; ótimo. Tomara que não só mande, como seja bem durona e não passe a mão na cabeça de nenhum de seus auxiliares que faça algo de errado. E que também apareça às vezes no Congresso, de surpresa, para que os deputados saibam que tem alguém atento aos absurdos que fazem. Tiririca, inclusive.

Dilma não parece ser nem vaidosa nem exibida. É sóbria, e duvido que vá fazer a simpática e dizer gracinhas sem graça alguma, para que os bajuladores riam, como sempre fazem, quando os poderosos abrem a boca. Tem a seu favor: trabalha -arrisco dizer- com gosto, como aliás é a obrigação de todos os presidentes, mas que nem todos fazem.

No dia da diplomação seu discurso foi curto, falou sem gesticular nem apontar ameaçadoramente o dedo, seu vestido não era nem vermelho nem verde e amarelo, estava emocionada, mas contida. Enquanto o ministro Ricardo Lewandowsky falava, ela ouvia, mas seus olhos estavam longe, bem longe; parecia estar repassando sua vida inteira, como se estivesse vendo um filme -e que filme.

Apesar de sua confessada lealdade ao presidente, esperamos que comece a governar com a sua cabeça, e rapidinho; afinal, as pessoas podem ser leais e pensar de maneira diferente.

Uma boa notícia é que Lula vai descansar (e nós dele) durante um tempo, e espero que 2011 nos traga a felicidade de abrir os jornais de manhã e encontrar menos denúncias de corrupção nas áreas do governo. Seria ingenuidade querer não encontrar nenhuma.

Não votei em Dilma, mas faço votos para que ela faça um bom governo, e que seja implacável com tudo de errado que encontrar no país. Sua escola foi o PDT, do saudoso Brizola, mas ela sabe como o PT chegou ao poder, alardeando ser "o partido que não rouba e não deixa ninguém roubar"; é isso que queríamos. Que ela se mostre firme como dizem que é, e chegue logo o dia de dizer seu primeiro NÃO aos pedidos dos Sarneys da vida, dos partidos em geral, inclusive o PT, e também aos de Lula -e que a herança lhe seja leve. Dá para entender que nesse primeiro momento não deu, mas essa hora vai ter que chegar, e quando isso acontecer -se acontecer- vou começar a acreditar em todas as qualidades que dizem que ela tem. Dilma vai ficar de olho no Brasil, mas o Brasil já está de olho em Dilma.

Presidente nova, vida nova, vamos ser otimistas, vai dar tudo certo. Está fazendo muito calor para ouvir Lula continuar falando da crise do Oriente Médio, que o Brasil deve ter assento no Conselho de Segurança da ONU, indo à UNE, ao sambódromo, ao Morro do Alemão, abraçar Zeca Pagodinho e ameaçar com 2014 -e ainda vai ter mais. Mas, como disse Chico Buarque, vai passar; aliás, já está quase. Quanto ao ministério, a cada nomeação, mais igual fica, e se tudo se passar como espera Lula, a ministra da Cultura do próximo governo poderá ser escolhida entre Ivete Sangalo e Alcione - indicação de Sarney.

Quem vai dar o tom no Alvorada é a mãe da presidente. Segundo ela, a verdadeira Dilma é ela; a filha é Dilminha. Dilma (mãe) está inteiraça, e parece ser alegre, falante e vaidosa.

Melhor, impossível.


Felicidades, Dilminha; desculpe a intimidade, mas é só hoje.

FERREIRA GULLAR

E continua chovendo...

FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/12/10


Foi numa visita de Vinicius que lhe mostrei o retrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente


EM 1975, em Buenos Aires, dei a Vinicius de Moraes um quadro pintado por mim. Mas foi o de menos, tantas outras coisas que aconteceram naquela época. Embora já conhecesse Vinicius de antes, em Buenos Aires, quase dez anos depois, é que nos tornamos amigos.
E a amizade se consolidou mesmo depois da manjada leitura do "Poema Sujo", que fiz, a pedido dele, na casa de Augusto Boal. Como se sabe, me fez gravar o poema numa fita e o trouxe para o Brasil.
Naquela ocasião, Vinícius começava a namorar uma argentina, bem mais jovem que ele e, por causa disso, mudou-se provisoriamente para Buenos Aires, instalando-se num apart-hotel, no centro da cidade. Desse modo, mantinha-se a salvo de qualquer reação da outra namorada, uma bela mulata baiana, com quem vivia em Salvador.
Essa permanência do poetinha na Argentina tornou frequentes nossos encontros e, mais ainda, porque recebeu a encomenda de uma editora francesa para fazer o texto de um álbum fotográfico do Rio de Janeiro. Sabendo de minha situação financeira periclitante, convidou-me para escrever o livro com ele.
Foi então que os militares derrubaram o governo de Isabelita Perón e instauraram mais uma ditadura na América Latina.
Dias depois, Tenório Júnior, o pianista do show que Vinicius apresentava ali, desapareceu.
Embora casado, Tenório Júnior viera com uma namoradinha, que conheci no apart-hotel de Vinicius, naquele dia em que me falou do sumiço do pianista. Pedira a ajuda do ex-genro, alto funcionário da embaixada brasileira, que nada conseguira. É que a ditadura militar recém instaurada prendera e executara muita gente e mantinha esses fatos em sigilo.
Diante disso, ofereci a ajuda que estava a meu alcance: consultar uma vidente que havia localizado um filho meu, desaparecido, um ano atrás. Como o telefone da vidente não estava comigo, teria que ir a meu apartamento e, de lá, ligar para ela. Assim, acompanhado de Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, que naquela época trabalhava na Argentina, e da namoradinha de Tenório Júnior, segui para lá e liguei para dona Haydé, a vidente.
Após dizer-lhe o nome completo do desaparecido, ela me informou que o pianista deveria estar inconsciente ou morto, uma vez que não conseguia contatá-lo .(É que esse tipo de comunicação se faz de mente a mente). Em seguida, para meu espanto, advertiu: "Diga a essa mocinha, namorada dele, que está aí com o senhor, que trate de ir embora para o Brasil, enquanto é tempo".
Como ela podia saber da moça? Mistério que a razão não explica. No dia seguinte, me deu a notícia final: Tenório Júnior tinha sido espancado até a morte por policiais, numa boca de fumo, onde fora comprar cocaína. Disse isso a Vinicius, que chorou.
Enquanto isso, sua namorada baiana recorria às entidades do candomblé para ver se o separava da rival argentina. Como os pais de santo não conseguiram resolver o problema, viajou para o Rio, entrou no apartamento do poeta e, lá, sobre a cama de casal, fez rezas e depositou fetiches, que também de nada adiantaram.
Vinícius trouxe a argentina para o Rio e com ela viveu um intenso, ainda que efêmero, romance.
Mas foi numa visita que me fez, ainda em Buenos Aires, que lhe mostrei o autorretrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente. Nunca mais vi o quadro, que ele trouxe para o Brasil. Se o deu alguém, não sei.
A verdade é que, recentemente, minha amiga Guguta Brandão me informou que o cineasta Ruy Solberg era o atual proprietário do quadro e decidira dá-lo a mim de presente. E o fez num almoço com muitos amigos, na casa de Vera e Zelito Viana, há umas três semanas.
Quase uma solenidade, que me comoveu. Foi como se uma estrela, que se extraviara, voltasse do fundo da vida e me pousasse nas mãos. "Ao ouvir você na Flip, pensei: tenho que devolver o quadro ao Gullar, que é seu legítimo dono", disse-me ele. Gente fina, esse Ruy Solberg. E Zelito, de gozação: "Se fosse eu, não devolvia".
Outro dia foi a revista de Artaud, que voltou a minhas mãos, agora o autorretrato. Continua a chover na minha horta...

GOSTOSA

JOÃO BOSCO RABELLO

Um alerta de candidato
JOÃO BOSCO RABELLO 

O Estado de S.Paulo - 26/12/10


Ao eleger Aécio Neves o candidato de oposição em 2014, o presidente Lula mandou um recado à base aliada pela unidade em torno da presidente eleita Dilma Rousseff, cuja capacidade de administrar os interesses da mega aliança que a sustenta está sendo testada ao limite antes mesmo de sua posse.


A convicção geral de que o ministério anunciado até aqui segue o modelo de convocação da seleção brasileira de futebol - provisório até a véspera da copa - dá bem a medida das dificuldades em conciliar a escalação ideal com o apetite por cargos. Dilma começa o jogo com uma base confiável de ministros chamados da Casa, com a memória da gestão que acaba.


Mas é só. De interlocutores próximos, o presidente não esconde a preocupação com o cenário mais adverso que sua sucessora encontrará para o chamado governo de continuidade, que recomenda ministros muito acima do padrão obtido nas negociações com a base.


A economia não será mais tão favorável, com ajustes internos incontornáveis, que o esforço de Lula em desmentir contrasta com a realidade orçamentária. E que expõe as dificuldades para os investimentos indispensáveis ao país.


Uma base insatisfeita forma a pior das oposições e abre espaço para o crescimento de uma liderança como a de Aécio Neves, com poder de sedução entre governistas. Capaz de se fortalecer na mesma proporção do desgaste do governo e ser alternativa a Lula em 2014.


Nova rodada


De olho nos cargos da Mesa Diretora e nas principais comissões, a bancada do PMDB no Senado se reúne em Brasília nesta terça-feira. Os planos de poder dos peemedebistas preveem José Sarney na presidência por mais dois anos e a recondução de Renan Calheiros (AL) à liderança da bancada. O senador eleito pelo Ceará Eunício Guimarães, da Executiva do partido, que andou alimentando o sonho de presidir o Senado, deve acabar indicado para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Casa. Não é pouco, ouviu no Planalto.


Segunda divisão


Sem mandatos, Ciro Gomes (PSB) e Geddel Vieira Lima (PMDB) estão entre os primeiros da fila para uma vaga no segundo escalão do governo. Ciro quer a presidência do Banco do Nordeste, e Geddel, a presidência da Companhia Hidrelétrica do São Francisco. Mas pode ficar com a Embratur. Ambos estarão, mesmo no segundo escalão, à frente de orçamentos ricos, dos que no jargão político se diz que "corta e sai sangue".


Chance perdida


Com sua autonomia frequentemente posta em dúvida na formação do ministério, a presidente eleita Dilma Rousseff , na avaliação de aliados isentos, perdeu uma ótima oportunidade de se afirmar ao manter o deputado Pedro Novais no Ministério do Turismo. Embora longe de ser o único exemplo de mau uso do dinheiro público, é o mais emblemático na avaliação geral. Novais virou piada nacional ao pedir à Câmara ressarcimento de despesas num motel e perder a autoridade sobre o cargo, antes mesmo de exercê-lo.


"Lençóis Maranhenses"


De um conhecido juiz de tribunal superior, ironizando o episódio: "O ministro começou a trabalhar antes da posse, conhecendo os "Lençóis Maranhenses", disse, numa alusão ao mais belo cartão postal do Maranhão e um dos mais bonitos do País

SUELY CALDAS


Os caminhos de Dilma 
Suely Caldas
 ESTADO DE S. PAULO

Até as eleições de 2012 a presidente Dilma Rousseff terá um ano e meio para aproveitar a força política das urnas e fazer o Congresso aprovar uma agenda que Lula desistiu de tocar, mas é fundamental para a economia prosperar, para tornar mais limpa a prática política, para a dívida social recuar e para acabar com a miséria. Se conseguir, seu governo será bem avaliado e dará a ela cacife para ser reeleita em 2014, desta vez sem apadrinhamento algum. Será um período difícil, concentrado no prazo exíguo e, ao mesmo tempo, ampliado em múltiplos segmentos em que a ação do governo é fundamental e determinante para fazer o País avançar.

Dessa agenda tudo é prioritário, mas a reforma política se sobrepõe, porque ela abre caminho para facilitar, acelerar e viabilizar todo o resto. É uma espécie de mãe de todas as reformas. Na visão limitada dos políticos, a reforma política é simplesmente prover dinheiro público para financiar campanhas eleitorais e ponto. Ela é muito mais. É a espinha dorsal do fortalecimento das instituições e da democracia, o anteparo ao fisiologismo e à corrupção, desencoraja o desvio do dinheiro público e força presidente, governadores e prefeitos a governarem melhor, com mais eficiência. O interesse público estará preservado e a população ficará agradecida se suas regras atenderem a esses objetivos. Importante também é não ceder a pressões para amansar a Lei de Responsabilidade Fiscal e não permitir que governantes gastem mais do que podem. Sancionada no governo FHC, essa lei é parte integrante da reforma política, embora a vinculação não tenha sido explicitada na época da sua aprovação.

Para aprovar as reformas e outros projetos do Executivo no Congresso é fundamental que a nova presidente resista à prática do toma lá dá cá, ao jogo de chantagem dos parlamentares. Se ceder na primeira vez, a chantagem se espalha e Dilma pode virar refém de uma prática que Lula e o mensalão fartamente provaram ser desastrosa para o País e para quem o governa. Não só porque avança sobre o dinheiro do contribuinte. Também porque vender dificuldades para obter facilidades leva tempo, deforma o conteúdo das matérias, atrasa sua tramitação e o Executivo acaba desistindo de projetos essenciais para o País. Foi o que aconteceu com Lula, que desistiu das reformas tributária, trabalhista, sindical e previdenciária, causando um lamentável atraso de oito anos.

Dilma acaba de escolher seu ministério, contemplando os dez partidos políticos da aliança que a elegeu. Em regimes democráticos, de representação partidária, essa prática é legítima, desde que os escolhidos tenham o passado limpo e agreguem competência e preparo técnico ao cargo. Em relação à maioria dos ministros escolhidos, tais critérios não foram, nem minimamente, observados. Mas está feito, vá lá. Agora ela vai enfrentar uma segunda etapa de pressões para nomear políticos em diretorias de estatais, agências reguladoras, órgãos públicos em Brasília e nos Estados e cargos no segundo, terceiro e quarto escalões.

Aí já é diferente. Mais uma vez, Dilma precisa resistir com força, mostrar-se irredutível. Para administrar com eficiência o bem público, o governante não pode entregar cargos técnicos, que executam decisões e projetos de governo, a políticos fisiológicos, cujo interesse é unicamente extrair do cargo vantagens para seu partido. Como julga que nunca erra, Lula recusou-se a aprender com erros. Mas Dilma deve ter na memória os últimos oito anos de enorme desgaste político com os eleitores e fracasso de gestão em estatais e órgãos públicos por Lula ter nomeado políticos oportunistas para cargos técnicos.

Esse é o arcabouço político e humano com que Dilma vai trabalhar nos próximos quatro anos. É imperfeito, sujeito a pressões políticas, lobbies e chantagens. Portanto, ela deve ficar permanentemente atenta para três objetivos: esgotar o calor das urnas para aprovar matérias difíceis - e de interesse do País - nos primeiros 18 meses de mandato; não nomear políticos incompetentes para funções técnicas; e adotar, desde já, por princípio não ceder a chantagens de parlamentares.

A agenda. Na campanha Dilma evitou falar das reformas (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária). É um tema politicamente complicado para ser defendido em momentos de caça aos votos. Mas Dilma sabe que elas são tão essenciais quanto difíceis de passar no Congresso. Daí o esforço para tentar aprová-las nos primeiros 18 meses de governo. Além delas, fazem parte da agenda de curto prazo as microrreformas - dirigidas a apoiar o crescimento de longo prazo, criar ambientes propícios a novos negócios e a aumentar a eficiência do mercado. Eliminar papelada, encurtar prazos, facilitar, enfim, a burocracia para a abertura de empresas são providências bem-vindas para estimular novos investimentos, gerar emprego e renda. Correndo por fora desta agenda, a nova presidente vai enfrentar o complicado e minucioso trabalho de administrar o cotidiano da economia.

Dilma assume num momento em que a economia está mais aquecida do que deveria, pressionando a alta da inflação - o Banco Central (BC) elevou sua projeção para 2011 de 4,6% para 5% - e gerando expectativa de o BC voltar a elevar a taxa Selic na próxima reunião do Copom. Se quiser evitar isso, ela terá de endurecer no desempenho fiscal, cortar despesas, suspender contratações, frear a ambição do PT por cargos, recusar pressões e lobbies por gastos de toda ordem e, se necessário, cortar investimentos do PAC. Desequilibrado em razão do desajuste cambial e da crise nos países ricos, o déficit externo está em plena ascensão, devendo fechar 2010 em US$ 49 bilhões e, segundo o BC, em US$ 64 bilhões em 2011 - 31% maior do que este ano. Esse é um problema delicado que requer atenção e ação para não se agravar.

A boa notícia é que a maioria das empresas tem planos de investir em 2011, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Mais investimento, mais emprego, mais dinheiro circulando, mais receita tributária. E é com esse aumento de receita que Dilma deveria organizar um programa de pagamento gradual da dívida e de redução a zero do déficit público nominal.

No mais, boa sorte ao Brasil e à gestão da nova presidente. E um feliz ano-novo aos queridos leitores.

Jornalista, é professora de comunicação da PUC-RIO

CELSO MING

Desindustrialização
Celso Ming 

O Estado de S.Paulo -26/12/10


Quem ouve os pronunciamentos dos líderes da indústria às vezes tem a sensação de que está quase tudo errado na política econômica, que o País está em franca desindustrialização e que o empresário brasileiro vai morrendo um pouco por dia, como os assassinados com arsênico.


Eles olham para a participação da indústria no PIB, que era de 38,7% em 1990 e agora é de 25,4%, e para a participação de produtos industrializados no total exportado, que era de 71,9% em 1990 e hoje não passa de 53,5%, e concluem que a desindustrialização é inexorável como a morte dos zangões depois do enxameamento da colmeia.


Em seguida, acusam o governo pela política econômica contrária aos interesses da indústria e pela falta de combate ao dumping praticado pelos chineses. Culpam a perversidade do Banco Central pelos juros escorchantes e pela excessiva valorização do real. Sobra, também, para os assessores de imprensa, que não estariam conseguindo fazer a cabeça dos formadores de opinião.


O erro desses dirigentes é tanto de diagnóstico quanto de escolha do tratamento. É uma insensatez insistir na tese da desindustrialização quando o consumo interno cresce a mais de 10%; o desemprego ficou reduzido a meros 5,7% (veja o gráfico), menor nível da história; o Investimento Estrangeiro Direto (IED) ultrapassará os US$ 38 bilhões neste ano e os US$ 45 bilhões em 2011; as importações de máquinas e equipamentos crescem a 38% e alcançarão os US$ 4 bilhões; a carteira de empréstimos do BNDES foi de R$ 283 bilhões em 2009 e será de R$ 360 bilhões em 2010; as exportações de produtos manufaturados, os mais sensíveis ao câmbio valorizado, avançam a 19% ao ano; a indústria automobilística tem seu melhor ano da história; e a capacidade ociosa da indústria está reduzida a 15% (veja o "Entenda").


O que dá para dizer é que outros setores da economia estão crescendo mais do que a indústria, especialmente o de serviços e o agronegócio, e esse é o principal fator que explica o mergulho da participação da indústria no PIB.


Não dá para negar a persistência dos demais problemas, alguns deles graves. A concorrência asiática (e não só a chinesa) é enorme; a desvalorização do yuan foi de mais de 50% em quatro anos e não dá para derrubar os custos de produção nessa proporção; a crise está empurrando para cá industrializados produzidos em países que nem de longe enfrentam as limitações do Brasil; os custos da mão de obra estão disparando; a indústria mal e mal consegue melhorar sua competitividade; alguns setores tendem a desmilinguir.


Tudo isso é verdade, mas é preciso combater as causas e não as consequências ou apenas os efeitos colaterais. O verdadeiro inimigo não são os juros escorchantes ou o câmbio fora de lugar. São as excessivas despesas públicas; é a carga tributária elevada demais; é a precariedade da infraestrutura local; são os apagões das reformas: a política, a tributária, a da previdência e a do sistema trabalhista.


A indústria precisa de ajustes para enfrentar novos tempos, especialmente os de uma economia brasileira forte, baseada na produção intensiva de commodities, que vai pedir, também, uma moeda forte e uma indústria ainda mais forte - e não o contrário.


Expansão forte


Quanto mais próximo o Nuci estiver de 100, menos capacidade ociosa tem uma indústria. Esse índice indica, também, necessidades de investimento. Quanto menor a capacidade ociosa de instalações, equipamentos e máquinas de uma indústria, mais o futuro aumento de produção exigirá investimentos.

GOSTOSA

ELIANE CANTANHÊDE


Quem devassa devassado será 
Eliane Catanhêde
FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Sua privacidade é devassada quando você vai ao banco, ao supermercado, ao shopping, ao próprio escritório, ao apartamento de um amigo, ao consultório médico, a uma repartição pública, a uma embaixada, e até quando simplesmente anda pela rua.

As câmeras estão por toda a parte, desde a portaria até corredores e salas dos prédios, e raramente faltam no elevador. Até suas partes íntimas estão à mostra em alguns aeroportos de países que se acham donos do mundo.

Essas câmeras indiscretas têm lá sua serventia. Num exemplo doméstico e recente, foram elas que derrubaram a versão dos vândalos que espancavam jovens na Paulista e reconstituíram a verdade para a polícia, para a Justiça e até para as famílias desorientadas.

Contra imagens, não há argumentos.

Portanto, segurança é bom e todo mundo gosta. Mas, se bisbilhotam nossas rendas, nossas contas, nossas digitais, nossas companhias, nossas falas, nossos atos e nossos passos, nós também temos o direito de bisbilhotar quem nos bisbilhota.

Governos e organizações invadem nossa privacidade, e nós queremos invadir a privacidade deles. O que eles sabem e o que decidem nos dizem respeito diretamente.

Imagine só o que o cidadão do mundo ficaria sabendo se o WikiLeaks tivesse quebrado o sigilo dos telegramas e das mensagens do Pentágono e do Departamento de Estado dos EUA à época da invasão do Iraque... Muitos abusos e principalmente muitas mortes poderiam ter sido evitados.

Justamente por isso Julian Assange, do WikiLeaks, foi eleito "homem do ano" do "Le Monde" francês e do próprio mundo. Ele humilhou a maior potência, expôs o ridículo da correspondência diplomática e principalmente equilibrou o jogo de esconde-esconde.

Quem devassa devassado será. Isso vale para nós, meros mortais, e passa a valer para eles, que se julgam os deuses do Universo.

JOSÉ SIMÃO


Ueba! Dilma assusta o Ano Novo!
JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/12/10

Eu acho que vou abrir um motel como nome Boas Entradas; imagina: Motel Boas Entradas! Feliz 2011 !



Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O Esculhambador Geral da República!
Agora é partir pro reveillon! Boas Entradas. E MELHORES SAIDAS! Porque o último que me desejou boas entradas, eu entrei pelo cano! Boas Entradas e Melhores Saidas. Eu acho que vou abrir um motel chamado Boas Entradas. Motel Boas Entradas! Feliz 2011.
Ou como dizem em Brasilia; Feliz 2011%! E a posse da Dilma? Já imaginou se o Ano Novo vê a cara da Dilma, se assusta e recusa a entrar?
Primeira manchete de 2011: Dilma assusta o Ano Novo. Dilma toma posse e assusta o Ano Novo!
Alias, porque esse povo toma posse no dia primeiro? Pra estragar o reveillon de jornalista? É vingança, represália!
E São Paulo já está tão vazia que parece que teve uma explosão nuclear, só ficaram as baratas!
E a Grande Virada? Sabe quem devia fazer a contagem da virada? A VANUSA! Aí no meio da contagem ela esquecia e a gente não entrava em 2011! Ficava empacado em 2010!
Adeus Ano Velho! Tô fechando o boteco. Vou passar o reveillon na Bahia. Reveillon na Bahia é bom porque acabou o reveillon já começa o Carnaval. Não tem aquele intervalo insuportável!
E as simpatias de fim de ano? Pular sete ondas. Se eu pular sete ondas, eu morro afogado! Guardar sete grãos de romã na carteira pra ficar rico. Prefiro sete cartões de crédito! E tem aquela: parar de fumar e emagrecer. Pois eu quero voltar a fumar e engordar uns 20 quilos! Quero virar um atleta igual ao Ronaldo!
E um amigo meu tá tão duro que vai passar a virada virando de um lado pra outro na cama, SOZINHO.
E eu tenho uma amiga tão insegura que ela escreveu na calcinha que comprou pro ano novo: "voce me ama mesmo ou quer só me comer?"
Rarara! E 2011 vai ficar famoso como o ano que o Serra voltou pra cripta! Rarara!
E em 2011 eu prometo a todos os meus leitores transformar o Brasil. NUM SACO DE RISADAS. Porque nóis sofre mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colirio alucinogeno!
Feliz Ano Novo!

DANIEL PIZA

Coisas públicas
DANIEL PIZA

O ESTADO DE SÃO PAULO - 26/12/10

Uma das coisas curiosas nesses oito anos de governo Lula foi a ginástica verbal que aqueles que se dizem "de esquerda", que durante duas décadas sonharam com a chegada da classe operária ao Planalto, fazem para justificar os elogios a um tipo de gestão que tanto condenavam. Lula manteve o modelo econômico do antecessor, que antes classificava erroneamente de "neoliberal", em todos os aspectos: meta de inflação, câmbio livre, reservas financeiras, estímulos ao consumo, juros relativos entre os maiores do mundo, busca de graus melhores nas agências de risco; nenhuma privatização cancelada ou sequer investigada, e até alguns bancos estatais vendidos. Estatizações? Poucas. Reforma agrária? Longe disso. Protecionismo maior? Não, mesmo com aumento do déficit externo. Transferência de renda? Os ricos nunca estiveram tão ricos.

Ao contrário: o governo Lula aprimorou esse modelo, levando as reservas ao exagero de US$ 300 bilhões, investindo dinheiro do BNDES em grandes empresas ou setores que geram emprego, saldando dívidas com o FMI, etc. Também aprimorou o aspecto social desse modelo, não só com verbas assistenciais (que representam pouco no orçamento anual, R$ 12 bilhões, e muito no retorno simbólico), mas sobretudo com a ampliação do crédito (a política mais determinante de seus mandatos, mais que o Bolsa Família), sem perder controle da dívida interna. A pergunta que ninguém se faz: será que as alternativas a Lula nas duas eleições, Serra e Alckmin, teriam tido o mesmo sucesso econômico e social? Considerando os bons ventos para o mundo emergente, é possível que sim. Mas não sei se teriam tido a mesma percepção para bolsas e créditos - e tenho certeza de que saberiam bem menos capitalizá-la politicamente.

Outra curiosidade dos anos Lula foi o tipo de crítica pessoal, raivosa e iludida que ele gerou em pessoas que, supostamente, eram favoráveis a essa política econômica, de agradar ao mercado e ampliar a classe média. Se eram favoráveis, por que não souberam reconhecer seu efeito eleitoral? O duplo mandato de Lula, que também era contra a reeleição no século passado, não teve um único traço de socialismo ou estatismo. Não teve nem mesmo de social-democracia, pois esta pressupõe o acesso universal e gratuito a educação e saúde. Suspeito que a gestão tucana de Lula inflou o preconceito dos que antes bajulavam tanto o governo FHC porque, afinal, o "guia" petista os deixou sem nenhuma bandeira própria. E a única saída que viram foi assumir sua retórica "de direita", com laivos religiosos e tudo, que os deixou cegos para a esperteza política de Lula, como a de recusar um terceiro mandato.

Lula não governou nem à esquerda nem à direita, muito pelo contrário... e com isso confundiu tanto seus áulicos quanto seus críticos. O PIB foi o que menos cresceu em média entre os emergentes (4%), mas cresceu mais que no período anterior (2,5%) - por isso ele não parou de comparar o tempo todo - e saiu da crise de 2009 com um índice acima de 7% em 2010. O desemprego medido pelo IBGE, ainda que reste tanta informalidade e a renda tenha apenas recuperado níveis de 15 anos atrás, termina abaixo de 6%, o que é quase pleno emprego. Os numerosos escândalos de corrupção, por mais que ele tenha construído sua carreira com o mesmo discurso udenista ("São 300 picaretas com anel de doutor") que hoje seus defensores acusam na oposição, foram rechaçados maquiavelicamente, pois o povo passou a dizer que, se são mesmo todos iguais, é melhor continuar com um igual que está dando certo.

E ainda querem entender o porquê dos 83% de popularidade? Não vejo fenômeno mais fácil de interpretar. O despreparo e a demagogia de Lula, que em alguns momentos ultrapassaram o vergonhoso, não impediram que a sensação de bem-estar aumentasse como aumentou. O que sempre disseram de um eventual governo Lula? Que reverteria todos os avanços, que faria do Brasil uma Venezuela, que expulsaria empresários e causaria guerra civil... Como nada disso aconteceu, tudo que houve de positivo reverteu para ele; o que houve de negativo foi parar na conta de todos ("O país tem a classe política que merece"). Por mais que as eleições em todos os níveis tenham mostrado que a popularidade do presidente não significa uma aceitação de tudo que fez, é preciso ser muito ingênuo ou orgulhoso para achar que o povo ia dissociar a melhora de sua vida e a responsabilidade do presidente nela.

Isso tudo, no entanto, não significa que seu governo tenha sido tão bom quanto as pesquisas dizem. Sempre estive entre os 15% e 30% que o consideraram "regular", nota 6, ao longo dos oito anos. Por quê? Eis o ponto: se Lula fez bem em dar continuidade a muitas conquistas do governo anterior (que sofreu para obtê-las por causa de uma oposição que o sucessor jamais experimentou), também cometeu muitos erros semelhantes, em especial o velho vício nacional de achar que centro é comodismo, que conciliação é conchavo, que exigente é chato. Nenhuma reforma importante foi feita, nenhuma transformação séria. O mecanismo pelo qual o poder é exercido segue sendo o mesmo arranjo de oligarquias, que concede um lento avanço do perfil social em troca do uso desregrado do dinheiro público. A carga tributária continuou subindo no mesmo ritmo, em direção aos padrões escandinavos, sem a respectiva devolução de benefícios coletivos. Metade da população não tem acesso a esgoto!

Analise friamente, aliás, cada um dos ministérios, ou melhor, os mais relevantes (já que Dilma Rousseff teve de lotear nada menos que 37 ministros pela Esplanada). Na educação, houve aumento quase inercial da abrangência; no caso das universidades, o ProUni ajudou, embora nada mais seja que dar dinheiro do contribuinte para um grupo crescente de empresas particulares; mas a qualidade não deu nem parte do salto que deveria e poderia dar, como fizeram os sul-coreanos. Na saúde, a situação da rede pública é vexaminosa, seguida de perto nas mesmas pesquisas pela questão da segurança. A Justiça continua a ser lenta e antidemocrática; quem tem pistolão e dá carteirada sempre se safa, nem que seja com prisão domiciliar. Mesmo na economia, os impostos e as importações asfixiam a produção nacional; e, ainda que o consumo esteja tão aquecido, o custo das mercadorias - do livro ao iPad, do feijão ao carro - é dos mais altos do mundo. Há pouca inovação, enquanto os chineses arrebatam todos os prêmios, da matemática à música, e fazem vales do silício.

O governo Lula foi pródigo em bravatas de cunho populista, em bazófias da ignorância, em tentativas de intervencionismo estatal e afrontas à liberdade de expressão, em casos de corrupção que em países desenvolvidos jamais seriam tolerados (imagine o de Erenice Guerra na Inglaterra ou no Japão), em momentos tristemente folclóricos (de "Dá dois paus pra eu" a "Sai daí, Zé", das violações de sigilo de caseiro e colega aos abraços em ditadores no Irã e em Cuba), em péssimo gerenciamento de sistemas como o aeroviário e o portuário. Também foi esperto ao embarcar com vigor na onda dos emergentes, vendendo commodities e atraindo investimentos, e a induzir o mercado interno, ainda que apenas pela via do consumo e dos gastos, e conseguiu resultados de que até Lula duvidava, provando que o capitalismo é o sistema que melhor combate a pobreza. Dizer que o saldo é bom é supor que uma coisa não poderia vir sem a outra. Espero que o governo Dilma ao menos respeite mais a coisa pública.

Por que não me ufano. Tenho muitas dúvidas sobre o caso WikiLeaks, o site que vazou milhares de textos confidenciais da diplomacia americana, menos a de que a liberdade de expressão deva ser coibida. A prisão do criador do site, Julian Assange, acusado de crimes sexuais, aconteceu num momento que sugere intimidação, como disse a ONU; empresas e governos o declararam "persona non grata". Sim, é verdade que a maioria dos despachos não passa de mais uma demonstração da futilidade e leviandade da rotina diplomática, e que em alguns casos faltou a responsabilidade do bom jornalismo de checar fontes e contrapor versões, além da revelação de alguns dados que poderiam ser estratégicos. Sim, é assustador ver como a internet é insegura, que não há privacidade que resista. Mas os documentos são reais, as informações podem ser pertinentes e o caso poderia abrir caminho para mais transparência dos poderes.

Enquanto isso, no Brasil, o governo diz que a proposta de regulação dos meios de comunicação não tem nada a ver com censura e que ela é comum em outros países. Nananinanão. Nos outros países, há entidades que zelam pelas regras do setor, não órgãos estatais munidos de critérios vagos como "contrapartida social" e "serviço público". A proposta de Franklin Martins, aquele que dizia todas as noites na TV Globo que o mensalão não existiu, tem pontos positivos, como a limitação da propriedade de mídia por políticos, o que o senado do cacique Sarney jamais deixaria passar. Jornal regional, no Brasil, é muitas vezes o panfleto de alguma oligarquia política. Mas a compulsão censora da Justiça, a criação de "conselhos" estaduais para cercear a liberdade de imprensa e a falta de apoio democrático ao projeto deveriam engavetá-lo.

Inté. Pausa para retomar o fôlego: esta coluna volta no dia 23/1. Feliz 2011 para todos.

O VAGABUNDO

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Viver corretamente
JOÃO UBALDO RIBEIRO 
O Estado de S.Paulo
Não sei bem a que se pode atribuir a crescente moda de intervir na vida pessoal do cidadão brasileiro. Inclino-me a acreditar que isso se deve à falta do que fazer de um número cada vez maior de burocratas e tecnocratas. Todos eles detêm certezas sobre tudo o que julgam ser de sua alçada. Em matérias "técnicas", não há espaço para posições divergentes. Afinal, a técnica provém da ciência e a ciência fornece certezas. E essas certezas são tão poderosas que devem sobrepor-se até mesmo aos valores de indivíduos ou coletividades. O conceito de normalidade, tão enganoso não só científica como filosoficamente, parece para elas assente e inequívoco.
Claro que tais certezas, que amiúde se expressam em arrogância, autoritarismo e condescendência enfarada, não são certezas de coisa nenhuma, são apenas ignorância e estreiteza de horizontes em ação. O resultado é que nos vemos ameaçados a todo instante de sermos obrigados a nos comportar "normalmente" ou, pior ainda, corretamente. Volta e meia, alguma autoridade baixa regras sobre como devemos fazer compras em farmácia, que tipo de tomada nos convém usar ou que equipamento passou a ser compulsório nos automóveis. Com o nosso tradicional temperamento de rebanho ovino e de "tudo bem, contanto que não me incomode diretamente", vamos deixando que esse negócio se espalhe e tome conta de nossa vida.
Além do combate ao uso do tabaco e do álcool, creio que devemos esperar, a julgar por sinais aqui e ali, que nos ditem o que podemos comer. Em cantinas escolares, isso já é feito. Mas creio que os nossos mentores, protetores e tutores não considerarão seu trabalho concluído enquanto o pai que dê uma gulodice açucarada a seu filho não puder ser denunciado e enquadrado e perder o pátrio poder, se persistir em seu comportamento reprovável. Aliás, imagino que, com a vigência da lei da palmada, cedo chegará o dia em que pais e mães denunciados por palmadas desobedecerão a ordens judiciais e instruções de psiquiatras para serem corretos e normais e, portanto, o Estado os meterá na cadeia e lhes tomará os filhos, que terão seu futuro garantido, sob a guarda eficiente, carinhosa e científica de instituições modeladas na Funabem.
Assim como os fumantes oneram a saúde pública com as doenças causadas por seu feio vício, também o fazem os obesos, com seus problemas cardíacos, sua diabete, sua hipertensão. E não se pode esquecer que, caso essas pessoas de conduta e aparência condenáveis tenham filhos, estarão delinquindo ainda mais, pelo mau exemplo. Espero que em breve um dos mil braços do governo estabeleça padrões alimentares a que as famílias terão que obedecer, pelo bem de sua saúde e sob pena de suas compras de alimentos só poderem ser feitas sob a orientação de um técnico credenciado. Claro, ovo já foi um horror e hoje é permitido e até encorajado. Margarina já foi aclamada como o substituto sadio da manteiga e hoje é execrada. São as verdades científicas.
Ao contrário do que chegou a divulgar-se, os defensores da censura a Monteiro Lobato não foram derrotados nem alteraram suas posições. O livro pode ser lido, mas sob a supervisão de um professor com qualificações específicas. Ou seja, em última análise, um técnico em leitura literária, um guia. Diretamente, sem intermediários, o livro não pode ser lido. Acredita-se que existe a maneira certa de ler, entender e apreciar um determinado livro. As maneiras que não se encaixem no padrão correto são, por consequência, errôneas e inadmissíveis. Daí se passará, imagino eu, à exigência de que os livros, não somente na escolas, mas entre o público em geral, só possam circular depois de lidos pelos técnicos, que escreveriam uma espécie de bula ou modo de usar, para que os leitores apreendessem corretamente a leitura. Claro, não é censura, é apenas a aplicação da verdade científica ou objetiva.
Aliás, falando em livros há outras novidades, ainda no terreno da cultura. O plano é mudar a lei dos direitos autorais. Os proponentes das mudanças dizem que não estão de fato querendo mudar nada, porque todas as suas ideias estariam contidas em dispositivos legais já vigentes. Pergunta-se, nesse caso, por que é preciso fazer uma nova lei. Não sei bem, mas sei, pelo que já me foi contado, que a produção de cópias de livros ou textos sem pagar direitos autorais será permitida, contanto que para fins educativos. Ou seja, qualquer coisa, ainda mais no mangue educacional que é o Brasil. O sujeito escreve um livro que é adotado em classe e esse livro pode ter praticamente uma edição à parte, pois há máquinas que possibilitam isso, copiando um livro inteiro e cuspindo do outro lado volumes já encadernados, com capa e tudo. O autor não vê um centavo, embora os produtores da edição pirata se remunerem pelo seu trabalho de "difusão" e, principalmente, os fabricantes das máquinas ganhem.
Interessante isso. Acredita-se que um estudioso dedique anos de pesquisa e trabalho duro a produzir algo pelo qual não será pago, a não ser pela distinção de ser adotado nas escolas. Por que os funcionários do governo que lidam com cultura não abdicam de seus salários, já que a verdadeira cultura não pode ter preocupações materiais e o artista pode viver de brisa? Trabalhar para a cultura é isso, é ser filósofo e poeta aos olhos do grande público. Morrendo bêbado, tuberculoso e na sarjeta é ainda melhor, compõe o quadro romântico.
A interferência do Estado na elaboração, venda e circulação de livros e, acima de tudo, a tutela de seu uso, sua interpretação e sua avaliação não é mais nem autoritarismo, é totalitarismo fascistoide mesmo, é controle do pensamento. Mas moda é moda e, como ninguém reage, vão nos empurrando essas e outras goela abaixo, até o dia ideal em que não pensaremos mais, porque os pensadores certos já terão pensado tudo por nós. 

VERISSIMO

Crer
VERISSIMO 
O Estado de S.Paulo - 26/12/10
O garoto me pediu um cavalo. Eu perguntei: "Um cavalinho de brinquedo?" Ele disse: "Não, um cavalo de verdade." Eu disse que ia ver, mas que seria difícil carregar um cavalo de verdade no meu saco.
Ele ficou me olhando. Depois disse:
- Você não é o Papai Noel de verdade, é?
- Claro que sou. Por que você pergunta?
- Porque no outro xópi tem um Papai Noel igual a você.
- E você pediu um cavalo pra ele?
- Pedi. E ele disse que ia me dar.
- Bom, talvez o saco dele seja maior do que o meu.
- Mas o Papai Noel de verdade é ele ou é você?
***
O que dizer para o garoto? É que nós temos o poder da ubiquidade, entende? Ubiquidade. A capacidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Onipresença. Pergunte a sua mãe. Só existe um Papai Noel, mas ele está por toda parte. Está em todos os shoppings do mundo. Cada Papai Noel é a manifestação de uma mesma e única entidade superior. Só muda o nome e o tamanho do saco. Eu sei, é um conceito difícil de entender. Ainda mais na sua idade. Há anos, séculos, discute-se a natureza desta entidade multipartida. Existiu um Papai Noel histórico, que viveu e morreu, mas seu espírito perdurou, e perdura até hoje, porque a sua essência transcendia a sua materialidade. Sua sobre-existência supratemporal e a-histórica, como a definiria Kierkegaard, depende de uma predisposição da humanidade para ver na sua figura a idealização de um paradigma infantil de bom provedor, e a eternização da infância num "pai" amável que nunca morre, e volta, ciclicamente, todos os anos, ano após ano, na mesma data. No resto do ano ele reassume a sua imaterialidade mas mantém-se introjetado nos que acreditam nele, controlando suas ações e pensamentos, que serão premiados ou punidos quando da sua rematerialização anual, numa espécie Juízo Final parcelado. Eu, o Papai Noel do outro shopping e todos os milhares, milhões de papais noéis que surgem nesta época do ano somos apenas caras diferentes do mesmo ente reincidente que traz presente ou castigo, representando uma cosmogonia moral que rege o comportamento humano. Há quem diga que esta entidade que recompensa e pune não passa de um mito infantilizante que aprisiona a razão numa superstição obscurantista. Que Papai Noel não existe. Que eu sou uma fraude. Que o Papai Noel do outro shopping é uma fraude. Que todos os outros papais noéis do mundo são impostores, que por trás das suas barbas falsas há apenas pobres coitados tentando faturar alguns trocados sazonais com a crença alheia, e enganando criancinhas. Não é verdade. Pode puxar a minha barba. Eu existo, eu...
***
Nisso o garoto fez xixi no meu colo. Foi levado pela mãe, com pedidos de desculpa. Melhor assim, pensei. Minha explicação só iria assustá-lo. E eu só estaria tentando convencer a mim mesmo. Sou gordo, tenho uma barba naturalmente branca, sou quase um predestinado para ser Papai Noel de shopping. Mas todos os anos preciso combater minhas dúvidas. Como em qualquer caso envolvendo crença e fé, o pior são as dúvidas. Com o xixi eu nem me importo.
***
Mas veja como crer é importante. Em seguida sentou no meu colo um homem dos seus 40 anos. Não queria me pedir nada, só queria colo. Tinha estourado o limite do seu cartão de crédito nas compras de Natal e precisava que alguém o consolasse.