domingo, junho 21, 2020

Aquilo que me nutre - LEANDRO KARNAL

ESTADÃO - 21/06

Se fosse possível oferecer um menu a Dolly, ela latiria feliz com os xaropes para tosse


Dona Yeda chegara aos 83 anos viúva. A situação financeira era confortável. O marido a deixara bem. Os filhos a visitavam regularmente e, apesar da empregada durante o dia, ela insistia em morar sozinha. “Já cuidei de muita gente, agora eu quero paz”, repetia a senhora diante da insistência familiar por uma acompanhante noturna. Sua companheira de velhice era uma cadelinha maltês que a seguia como uma sombra. Dolly tinha chegado semanas antes do falecimento do dr. Samuel. A empatia entre as duas tinha sido imediata.

Mulher de hábitos pétreos, a senhora acostumara-se a fazer sempre do jeito dela. “Personalidade decidida”, dizia sua simpática funcionária da casa – “Teimosa como uma mula”, garantia o filho do meio. Exemplo? Havia muitos remédios diários para os males da idade. Eram sete pela manhã e quatro antes de dormir. Ela colocara todos em uma caixa de papelão na cozinha e, duas vezes ao dia, ficava retirando cada medicamento da sua embalagem para tomar. A primogênita comprou um separador. Dona Yeda elogiou como era prática a invenção: bastava abrir a tampinha e colocar todos na mão! Não era necessário pegar os óculos e examinar cada caixa. “Que bom, minha filha”, ela disse beijando a testa de Ana. Sim, era bom e era diferente; e a mudança de rotina era o grão de areia que a ostra de Yeda jamais transformaria em pérola. Quando a jovem virava as costas, ela retomava o hábito de separar uma a uma cada drágea, relendo as receitas de uma imensa junta médica, que ia do cardiologista, passava pelo reumatologista, até chegar ao geriatra. O processo era demorado e demandava uma ordem de memória e organização que já tinham desaparecido sob os belos cabelos brancos daquela senhora.

Remédios e idade são coisas triviais. Havia algo original. Nem sempre firme com as mãos, olhos se adaptando às lentes multifocais que o oftalmologista prescrevera, a matriarca deixava rolar pelo balcão da cozinha algum comprimido, quando não derrubava toda a embalagem ao chão. Mal caía algo colorido ou branco do céu, a cadela, na terra, devorava com rapidez e gula. Sim, aos pés de dona Yeda, Dolly ficava atenta, aguardando. Era o desespero dos filhos e a alegria do animal.

O veterinário tinha profetizado o fim precoce de Dolly ao constatar o fato por exames. Os filhos compravam novos e belíssimos estojos separadores de remédio. Ignorando-os, as duas, Yeda e Dolly, firmes e constantes, locupletavam-se de delícias químicas. Ainda que a veneranda senhora reclamasse da voracidade da pequena fêmea com a farmacopeia, era, reconheça-se, uma espécie de comunhão. Elas dormiam juntas, comiam juntas, assistiam horas intermináveis de TV lado a lado e, claro, tomavam juntas seus remédios. Conheciam-se pelo olhar. Amavam-se. Na saúde e nos remédios, na alegria e no antidepressivo: ambas sabiam que o casamento era pleno. Havia desconfiança de que, no fundo, Dona Yeda fosse como o rei Sardanapalo da lenda pintada por Delacroix: queria partir levando tudo o que amava em vida. Se o mundo prescrevia um amplo leque químico de produtos contra os desgastes do tempo, ambas seriam salvas ou envenenadas lado a lado. “Quanto tempo terei ainda de vida?”, perguntava a senhora para a cadela. O olhar do bichinho parecia dizer: “Pouco... como eu”. A brevidade da existência consolava ambas.

Dolly continuava firme e bem abastecida com aspirina cardíaca e remédio contra o lúpus. O comprimido mais apreciado era a ampla e gelatinosa cápsula de ômega três, a panaceia que garantia vida eterna e com saúde. Ela mastigava o metotrexato da artrite reumatoide da dona com um pouco mais de resignação. Talvez já estivesse desenvolvendo um senso gourmet para os fármacos. Porém, se fosse possível oferecer um menu ao animalzinho sobre suas preferências de mezinhas, ela latiria feliz com os xaropes para tosse. Eram a crème de la crème das beberagens. Bastava a mão trêmula de Yeda pegar da colher e a cadelinha lambia os lábios feliz. Algo pingava sempre e, em mostras da eficácia do remédio contra reumatismo, ela saltava no ar para alcançar a chuva.

Aos 90 anos bem vividos e felizes, Dona Yeda cerrou seus olhos diante da família chorosa. Dolly foi levada ao velório e ficou ao lado do caixão, talvez esperando que, uma última vez, algo caísse para ela poder saciar sua fome interminável de progressos farmacêuticos. Debalde!

Levada para a casa da filha Ana, sem remédios, o animal definhou rapidamente. O veterinário não conseguia identificar o mal. Tristeza? Talvez. Vinte e sete dias após o caixão da dona ter sido baixado ao solo, os filhos da matriarca entregavam o corpo de Dolly ao cemitério de animais. A falta de remédios e a melancolia combinaram-se de forma fatal. A mais velha lembrou de uma frase latina que vira tatuada em uma foto de Angelina Jolie: quod me nutrit, me destruit. Sim: o que me nutre me destrói, o que desejo me desgasta, o que mais quero me mata. Boa semana para todos.

Ativismo legislativo - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 21/06

Com Executivo sem liderança, Congresso fica sensível a interesses particulares


O Senado, na quinta-feira (18), aprovou o projeto de lei 1.328, que posterga o pagamento das parcelas do crédito consignado por 120 dias.

Segundo o texto, "ficam excepcionalmente suspensos, durante 120 dias, inclusive nos contratos firmados na vigência do estado de calamidade pública, os pagamentos das obrigações de operações de créditos consignados em benefícios previdenciários, bem como para servidores e empregados públicos e do setor privado, ativos e inativos".

O que chama a atenção é a elegibilidade da suspensão a trabalhadores ativos e pensionistas que não tiveram nenhuma perda de renda em razão do estado de calamidade pública.

A justificação da emenda que estabeleceu o texto acima assevera que os pensionistas e os trabalhadores ativos "se transformaram na única fonte de renda e esteio de um número considerável de famílias, sendo os responsáveis por dar apoio financeiro e sustento aos filhos, netos e familiares que tiveram sua renda reduzida ou vieram a perder seus postos de trabalho em razão da crise instalada e do momento caótico vivenciado no país".

Entende-se a preocupação social dos senadores, mas me parece que houve aqui ativismo legislativo. Não houve perda de renda diretamente para o pensionista ou para o trabalhador.

Há a possibilidade de que pessoas próximas a ele tenham perdido renda. Mas há também a possibilidade de que essas pessoas tenham alguma compensação, afinal o governo tem gasto muitos recursos em programas de sustentação de renda das pessoas mais desfavorecidas.

Há inúmeros trabalhos acadêmicos que mostram que a criação do crédito em consignação reduziu muito o risco para a instituição financeira e, consequentemente, reduziu muito a taxa de juros cobrada do tomador de empréstimo.

A decisão do Senado reduz a qualidade da renda do salário como colateral para o empréstimo. Com o tempo, se medidas como essa se tornarem corriqueiras, o custo para o tomador se elevará.

Uma das dificuldades que temos tido no enfrentamento da epidemia e no desenho das políticas públicas é a falta de liderança da Presidência da República.

Ao não exercer essa liderança, o Executivo deixa muita responsabilidade ao Congresso Nacional, que, de forma descentralizada, vai tomando decisões sem olhar as políticas públicas de enfrentamento do estado de calamidade social de forma integrada. Há duplicação de esforços, e o custo para a sociedade do enfrentamento da epidemia pode ser maior.

Os dados indicam que o custo para o Tesouro Nacional com a epidemia tem sido maior do que o gasto de nossos pares latino-americanos. Já éramos o país com a maior dívida pública. A discussão do Orçamento de 2021 não será fácil.

O presidencialismo brasileiro requer que o presidente lidere. Não é do perfil de Bolsonaro exercer essa liderança. Nossa experiência é que, nesses momentos, o Congresso fica muito sensível às pautas que atendem aos interesses de grupos da sociedade, os interesses particulares.

Por exemplo, é de suma importância que o novo marco regulatório do saneamento básico seja aprovado e que haja espaço para a maior participação do setor privado no setor. A pressão dos sindicatos do funcionários das empresas estatais dificulta que essa pauta ande.

Ocorreu assim na Assembleia Constituinte de 1988. Um presidente que era mais fraco do que os governadores –que haviam sido eleitos– acabou por gerar um Constituição Federal fortemente influenciada pelos interesses particulares e corporativistas.

Por caminhos diferentes estamos cometendo o mesmo erro.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Crítica descabida - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 21/06

Banalizando a banalidade do mal


Em 1999, o prefeito de Nova York tentou impedir o Museu do Brooklyn de realizar exposição com obras polêmicas, incluindo uma que ofendia a sensibilidade religiosa de cristãos.

O museu não cedeu, e o prefeito cortou as verbas concedidas pelo município. Floyd Abrams liderou a defesa do museu perante a corte federal. O resultado foi uma vitória acachapante.

O governo não tem o direito de censurar trabalhos que considere moralmente impróprios ou que agridam à religiosidade. Nenhuma autoridade pode determinar o que seria aceitável em temas de opinião. As verbas para o museu deveriam ser integralmente preservadas.

Tão importante quanto a defesa feita por Abrams foi o que ele se recusou a fazer. Antes do julgamento, ele tomou conhecimento de um trecho do diário de Goebbels, que assumira a gestão da cultura em razão de uma exposição que desagradara a Hitler:

"Caso os vienenses contestem, todos os subsídios do Reich serão cortados. Isso, claro, significa a morte da vida cultural de Viena".

Abrams pensou mencioná-lo como exemplo de censura exercida pelo autoritário de plantão. Concluiu, porém, que a analogia com o prefeito seria obviamente falsa em razão das circunstâncias e prejudicaria a defesa do museu.

Na última semana, Mansueto Almeida anunciou sua saída da Secretaria do Tesouro. Alguns aproveitaram para criticá-lo por ter aceitado trabalhar neste governo e resgataram uma expressão de Hannah Arendt: a banalidade do mal.

Arendt, porém, utilizou-a ao escrever sobre o julgamento de Eichmann, o burocrata anódino que organizara o transporte de judeus para campos de concentração.

Podemos repudiar as manifestações do presidente, mas não a democracia que o elegeu. Muitos de nós jamais cogitariam trabalhar neste governo. Outros agem de forma diferente para cuidar da coisa pública. Tema de opinião, não de legalidade.

Mansueto é um servidor público cioso do seu ofício e aberto ao contraditório. Sua serenidade e meticulosidade têm sido essenciais para o debate sobre os dilemas da economia.

Impecavelmente, ele consegue relevar as críticas virulentas e sempre convida ao diálogo, explicando com cuidado os dados e as opções de política pública, mesmo que na contramão do discurso oficial.

O Tesouro Nacional tem alertado sobre problemas que outros prefeririam ignorar. Não há notícia de artifícios contábeis que escondam da sociedade a gravidade das contas públicas, ao contrário do que ocorreu em gestão passada. A cada um o seu quinhão pelos atos que pratica.

A liberdade de expressão deve proteger até mesmo a crítica descabida. O único risco é tornar seus porta-vozes comparáveis ao governo que desprezam.

Quando a plateia atua - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 21/06


"Amor, ganhamos convite para a estreia da peça do...". "Não vou." "Posso terminar de falar? É de um ator amigo nosso."

"Agora é que não vou mesmo." "Mas..." "Se você fizer muita questão, iremos outro dia, comprando nós mesmos nossos ingressos, sem que ele saiba que estamos na plateia. Se a gente não gostar da peça, sai de fininho."

Fui testemunha desse diálogo meses atrás, quando éramos felizes e não sabíamos: os teatros estavam abertos e pulsantes. Agora, impedidos de frequentá-los, restam apenas as histórias de coxia.

Vai-se ao camarim, depois de um espetáculo, para confraternizar, mas, dependendo da apresentação, pode acabar em saia-justa. Se você detestou a peça, o que vai dizer quando for cumprimentar o elenco? Inversão de papéis: a plateia é que precisa atuar quando as cortinas se fecham e encerram um vexame cênico.

Um conhecido meu, ator carioca, recebe convite para a estreia de todos os espetáculos em cartaz. Não vai de jeito nenhum. É um crítico feroz de quase tudo o que assiste e não tem jogo de cintura para rapapés. Sabe que seria falta de educação receber um convite de cortesia e emudecer sobre o que viu, desaparecer sem dar nenhum feedback, então ele prefere comprar o próprio ingresso e ir na segunda ou terceira semana da temporada, quando ninguém percebe que ele está no escurinho do teatro. Se gostar da peça, aí sim, vira um lorde, não economiza nos elogios.

Eu vou bastante ao teatro e quase sempre gosto muito do que vejo, mas já aconteceu de eu ter que fazer um "teatrinho" na saída, dizendo que adorei o que não adorei tanto assim. Por isso, prefiro ir ao camarim desejar "merda" aos amigos antes da função começar. Não é o ideal, por diversas razões. O elenco está se vestindo. Se maquiando. Se concentrando. Você pode flagrar alguém pelado. Mas ao menos o entusiasmo é genuíno, você não precisa interpretar um personagem canastrão. Jamais esqueci a vez em que vi um sujeito invadir um camarim distribuindo comentários magníficos, quando todos o haviam flagrado roncando durante dois terços da peça.

Por ora, este problema está contornado. Vem aí o projeto Teatro Já. Espetáculos online transmitidos ao vivo. Peças de talentos como Ana Beatriz Nogueira, Paulo Betti, Emilio Orciollo e Marcelo Serrado, com ingressos a apenas R$ 10 (informe-se no site teatropetragold.com.br). Você assiste em casa, tomando um vinho, sem que ninguém repare caso você durma no meio da sessão. Melhor que isso, só quando voltarmos ao prazer supremo de assistir, frente a frente, grandes atores em cima de um palco - com direito a uma passadinha no camarim depois, para cumprimentá-los com toda sinceridade.


Investir com os recursos das reservas? - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 21/06

Suponhamos que fosse possível contornar a regra do teto de gastos e usar um valor em torno de 5% do PIB das reservas internacionais para financiar investimentos em infraestrutura. Defensores da ideia diriam que estaríamos apenas trocando um ativo com um baixo retorno social, as reservas, por outro ativo com um elevado retorno social, uma melhor infraestrutura.


Como as reservas seriam “excessivas”, pois devido à recessão estamos caminhando para um superávit nas contas correntes, não teríamos de nos preocupar em reduzi-las. Nunca, em toda a minha carreira de economista, com mais de 45 anos como professor, vi tantos erros em um único argumento.

Erro #1: Do ponto de vista contábil, o déficit nas contas correntes é o excesso das importações de bens e serviços (mercadorias, fretes, seguros, viagens internacionais) sobre as exportações, mas, do ponto de vista econômico, ela é o excesso da absorção doméstica (consumo das famílias, mais investimentos em capital fixo, mais o consumo do governo) sobre o PIB. Se destinarmos 5% do PIB para os investimentos em capital fixo (é isto que são os investimentos em infraestrutura), elevaremos a absorção em 5 pontos de porcentagem do PIB, o que significa que, se as contas correntes estivessem em equilíbrio, chegaríamos a um déficit de 5% do PIB.

Como nesta recessão caminhamos para um pequeno superávit nas contas correntes, com esta medida chegaríamos a um déficit um pouco menor do que 5% do PIB.

Erro #2: O que interessa não é apenas o saldo em contas correntes, e sim o do balanço de pagamentos como um todo, que inclui a conta financeira e de capitais. Toda a acumulação de reservas realizada pelo Brasil foi exclusivamente devida aos superávits nas contas financeira e de capitais, com contribuições importantes dos investimentos estrangeiros diretos e dos investimentos em carteira. O maior supridor de investimentos estrangeiros diretos no Brasil é a Europa Ocidental, cuja recessão é mais profunda e será mais longa do que a dos EUA, limitando o apetite (e a capacidade) de suas empresas investirem nas subsidiárias brasileiras.

Estas, por seu turno, diante da recessão, veem seus lucros no Brasil desabarem, o que as impede de contribuir através do reinvestimento de lucros e dividendos no País, que historicamente respondem por 20% dos investimentos diretos. Para dar uma ideia de qual pode ser a queda total basta comparar a média dos últimos cinco anos, de US$ 60 bilhões por ano, com o ingresso de apenas US$ 25 bilhões durante a crise menos profunda de 2008/09.

Erro #3: O argumento ignora os investimentos em carteira, que contribuem com mais de um terço dos ingressos na conta financeira e de capitais. Contrariamente aos investimentos diretos, estes são voláteis e sensíveis à percepção de risco por parte de investidores não residentes. Sempre tivemos ingressos líquidos, que em alguns anos atingiram US$ 60 bilhões e em outros perto de US$ 80 bilhões, mas a partir da perda do grau de investimento passamos a enfrentar saídas, que nos últimos 12 meses chegaram a US$ 60 bilhões, com grande aceleração após o início da pandemia e a piora da situação fiscal. A soma de investimentos diretos e em carteira já tornou a conta financeira e de capitais deficitária, e esse déficit deve aumentar.

Erro #4: O argumento ignora o efeito combinado nas contas correntes e de capitais. Com o retorno do déficit nas contas correntes e com o aumento da percepção do risco fiscal que eleva as saídas dos investimentos em carteira, há um aumento do déficit na balança de pagamentos que acentua a queda de reservas e deprecia o real. Em vez de limitar os gastos de reservas a 5% do PIB – o plano original de investimentos –, teremos uma perda adicional de reservas vinda do aumento do déficit no balanço de pagamentos.

Erro #5: Superávits no balanço de pagamentos levam à valorização cambial, enquanto déficits levam à depreciação. Ou seja, quanto mais ambicioso for o “programa de investimentos baseado em reservas”, maior será o déficit no balanço de pagamentos e mais intensa a depreciação cambial. Para estancar este movimento, o Banco Central seria condenado a elevar a taxa de juros em meio a uma recessão profunda.

Erro #6: Vender reservas para gastar em infraestrutura é igual a emitir moeda para o mesmo propósito, o que somente não seria um erro para os adeptos da MMT.

Em conclusão, é melhor abandonar essa ideia estapafúrdia, que não faz o menor sentido.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Aposta do fracasso - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 21/06

“Houve uma mudança de contexto, ao qual Bolsonaro não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade”


O governo Jair Bolsonaro pode ter chegado a um ponto de inflexão, em razão da estratégia adotada pelo presidente para impor suas vontades aos demais Poderes e entes federados. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), os desentendimentos com o Congresso e as frequentes retaliações a governadores e prefeitos, a partir de uma concepção de poder centralizado e vertical, incompatível com a Constituição de 1988, são fatores de instabilidade político-institucional. Ainda mais num ambiente dramático, de crise sanitária e econômica, agravado pelo negacionismo da política de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus e pelo colapso do projeto de reformas ultraliberais, diante da recessão econômica.

Houve uma grande mudança de contexto político, econômico e social, ao qual o presidente da República não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade brasileira e nossas relações com o mundo. Esse projeto sempre foi minoritário na sociedade, mas parecia se impor pela audácia e virulência com que Bolsonaro mobilizou seus apoiadores mais radicais e militarizou seu governo. Tornara-se uma ameaça ao Estado de direito democrático e à coesão nacional, além de um fator de isolamento e desmoralização do Brasil perante as demais nações, sobretudo do Ocidente.

A aposta num governo de viés bonapartista, vanguardeado por setores de extrema direita, como forma de intimidar e se impor aos demais Poderes e entes federados, aproveitando-se da desmobilização da sociedade em razão da pandemia, parece que bateu no teto. As afrontas aos fundamentos do Estado de direito democrático, ao atribuir ao Executivo um predomínio exorbitante em relação aos demais Poderes e personificá-lo na figura do presidente República, acabaram provocando ampla e forte reação da sociedade, que transcende em muito os partidos de oposição. Como num passe de mágica, a sociedade civil passou a defender o Congresso e o Supremo, dos quais havia se distanciado. Deu-se conta dos verdadeiros riscos da situação.

À margem do grupo de generais que formam o Estado-Maior de Bolsonaro — Luiz Eduardo Ramos, na Secretaria de Governo; Braga Neto, na Casa Civil; Fernando Azevedo, na Defesa; e Augusto Heleno, no Gabinete Segurança Institucional (GSI) —, havia um “subgoverno”, que opera contra as instituições democráticas e aposta na ruptura institucional, com métodos de atuação incompatíveis com a ordem democrática. Esse “subgoverno”, comandado pelos filhos do presidente Jair Bolsonaro, está sendo desnudado pelas investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes, com endosso de todo o Supremo Tribunal Federal (STF), sobre as chamadas fake news e as ameaças às autoridades do Legislativo e do próprio Judiciário.

O escândalo
Entretanto, nada é mais comprometedor do que o envolvimento de Bolsonaro e seus filhos com o amigo e “faz tudo” da família, o policial militar reformado Fabrício Queiroz, preso na quinta-feira em Atibaia (SP), por determinação da Justiça fluminense, no inquérito das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Por mais que o presidente da República tente se desvincular do caso e seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, diretamente envolvido no escândalo, jure inocência, o fato abalou o esquema de poder de Bolsonaro, porque exuma velhas e perigosas relações com milicianos do Rio.

O potencial catalisador do caso Queiroz alterou a correlação de forças políticas não só fora como dentro do governo. Os militares que ocupam o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, em número muito maior do que os de qualquer governo do regime militar, não têm como endossar as desculpas do presidente da República sem arrastar as Forças Armadas para o pântano político. Os sinais de que isso estava começando a acontecer foram dados pelas negociações com o chamado Centrão, que reúne os partidos mais fisiológicos do Congresso, uma estratégia de sobrevivência e blindagem política de Bolsonaro que envolve o loteamento de cargos na Esplanada e a distribuição de verbas públicas.

Ao longo da história, até 1985, os militares sempre ocuparam o centro das crises políticas, condicionando seus desfechos. Submeteram-se administrativamente aos governos, como instrumento do Estado, mas, em termos políticos, ocorria exatamente o contrário: os políticos é que dependiam deles para se manterem. Foram um fator de preservação da integridade territorial e da construção do Estado nacional, mas plasmaram um modo de pensar a nação, a sociedade, a política e gestão que não é apenas um repertório de glórias e vitórias. Coleciona, também, muitas escolhas equivocadas e ações condenáveis. Historicamente, eis o drama do “partido fardado”, formado pelos militares com gosto pela política: sempre fracassa, por se colocar acima da sociedade e das instituições, inclusive as suas, que se baseiam na lei e na ordem, na hierarquia e na disciplina.

Batalha do novo auxílio emergencial - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 21/06

Programa afeta 40% dos adultos e equivale a um quarto dos salários mensais


A prorrogação do auxílio emergencial chama menos a atenção do que as imundícies do caso Queiroz-Bolsonaro, pelo menos entre os remediados na vida. Deve ser o grande conflito das próximas semanas, com efeitos sociais e econômicos importantes, qualquer que seja o desfecho do confronto, que de resto pode ser decisivo para a popularidade de Jair Bolsonaro.

Antes de mais nada, diga-se que 63,5 milhões de pessoas foram autorizadas a receber o benefício, cerca de 40% da população maior de 18 anos. O gasto estimado até agora é de R$ 154 bilhões. Na média, daria pouco mais de R$ 51 bilhões por mês, o que equivale a um quarto de todos os rendimentos mensais do trabalho do país, segundo o registro do IBGE (Pnad).

A última das três parcelas do auxílio será paga neste junho, diz a lei, embora fiquem restos atrasados a pagar. O governo não queria prorrogação, mas agora aceita até mais duas prestações de R$ 300. Os deputados pensam em até mais duas de R$ 600.
O movimento Renda Básica que Queremos! (RBQQ) quer mais seis parcelas de R$ 600, até o fim do ano.

O RBQQ é uma coalizão de 163 movimentos sociais que fez pressão para o Congresso aprovar mais do que o auxílio de R$ 200 proposto por Paulo Guedes, em março. Grosso modo, é gente de esquerda independente.

Três meses de auxílio emergencial equivalem a uns 2,2% do PIB. Cinco meses, como parece querer o comando da Câmara, a 3,7% do PIB. O plano do RBQQ, a 6,6%. Seriam R$ 463 bilhões, 50% a mais do que o gasto de um ano com o pagamento dos servidores federais. Ou a um terço de TODA a receita líquida do governo federal em 2019.

Dar cabo do auxílio abriria um buraco imenso no consumo, pois na mais otimista das hipóteses os cortes de emprego e salário apenas vão deixar de piorar. A propósito, mais de 10 milhões de trabalhadores com carteira assinada tiveram de aceitar reduções de salário ou suspensão de contratos. É quase um terço dos 32 milhões de celetistas.

O choque social seria óbvio. O político também: com o auxílio, Bolsonaro ganhou algum prestígio entre os mais pobres. O Bolsa Família pagava em média R$ 191 mensais por família, antes do vírus. O auxílio elevou o benefício a R$ 600 por mês ou a R$ 1.200, para mulheres que cuidam sozinhas dos filhos.

O déficit do governo federal será de uns 10,5% do PIB neste ano. Dito de outro modo, o governo vai gastar 67% a mais do que sua receita, isso sem considerar a conta de juros. Se a Câmara aprovar a extensão do auxílio a seu modo, o déficit vai a quase 13% do PIB. Caso passasse o projeto do Renda Básica que Queremos!, a 15% do PIB.

Não é possível agora dar um talho no auxílio, que nem mesmo é emergencial, pois a miséria extra já era grande antes do vírus. A metade mais pobre do país perde renda desde a recessão. Mas aumento de dívida pública não sai de graça, seja lá como se lide com o problema.

Como se lida? Com uma combinação de: 1) mais imposto ou corte de gasto; 2) crescimento econômico acelerado (que reduz o peso relativo da dívida); 3) repressão das taxas de juros da dívida; 4) inflação (a pior).

Afora complicações econômicas, todas as soluções implicam conflito social e político forte, exceto no caso do crescimento acelerado, saída que não é trivial, parece óbvio faz 40 anos.

Apelar a apenas uma dessas soluções tende a dar em besteira social, econômica e política, crise, revolta ou repressão. A gente vai ter de inventar um jeito novo de fazer a coisa.

E agora, Paulo? - VERA MAGALHÂES

ESTADÃO - 21/06

Saída de Mansueto abre debate sobre legitimar governo Bolsonaro


E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?


Numa semana pródiga em escândalos até para os aberrantes padrões bolsonaristas, peço licença para não falar de Sara Giromini, Fabrício Queiroz ou Abraham Weintraub, que já foi tarde.

Figura bem menos exótica, o ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, economista e pesquisador do Ipea, virou pivô de um debate sobre em que medida, diante dos arreganhos autoritários do presidente e de suas investidas diárias contra a democracia, aqueles que permanecem em cargos de confiança em sua gestão são cúmplices de seus atos.

A discussão sobre Mansueto foi enviesada e serviu de pretexto para fazerem aflorar velhas antipatias contra o economista, um dos idealizadores do teto de gastos. Mas se um assessor do segundo escalão – que, afinal, pediu demissão – gerou tamanha celeuma, isso é sinal de que existe, sim, uma discussão importante a ser feita sobre quem fica neste governo apesar de tudo.

O título desta coluna procura direcionar a discussão a quem de direito. No caso, ao ex-chefe de Mansueto, o ministro da Economia, Paulo Guedes.

O decano dos liberais em atividade no Brasil, filho da escola de Chicago e até 2018 um outsider no debate de política econômica no Brasil, foi o Cavalo de Troia que Bolsonaro – um corporativista praticante de rachadinha e filhotismo político sem a menor noção de quem tenha sido Adam Smith – usou para se apresentar como liberal.

Era um dos disfarces que lhe faltava. Já tinha a fantasia do combatente da corrupção, que também nunca foi, e do renovador das práticas políticas, que Queiroz et caterva mostram que era mais um delírio coletivo.

No primeiro ano de mandato, Guedes viveu a ilusão de que ser liberal bastaria, tomando emprestado, depois dos versões de Drummond, a reflexão de Gil. A aprovação da reforma da Previdência ajudou a embalar este sonho.

Mas veio a pandemia e, tal qual o José do poema, Paulo “está sem discurso, está sem carinho”, porque “a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou”.

A utopia do Bolsonaro liberal ruiu na reunião ministerial, à qual Guedes não só assistiu calado como para qual contribuiu com alguns maus momentos.

O mofo que cobre tudo é o do golpismo barato e da nostalgia da ditadura, reforçado todos os dias pelo clamor dos aliados ao uso indevido das Forças Armadas para se contrapor ao Judiciário e ao fechamento das instituições.

A permanência de Guedes ajuda a legitimar um governo que desmorona sem ministro da Saúde na pandemia, sem titular da Educação quando alunos estão perdidos em casa, povoado de indicados do Centrão para evitar o impeachment e frequentando cada vez mais as páginas policiais – não por uma “rachadinha inocente”, como dizem os passadores de pano compulsivos, mas por um engenhoso esquema de lavagem de dinheiro público de gabinetes legislativos e ligação comercial e financeira com a milícia do Rio.

O governo Bolsonaro é a negação absoluta da “sociedade aberta” de Karl Popper, o mantra que Guedes segue entoando, alheio ao fato de que sua agenda foi tragada pela pandemia e pelo populismo e que, neste momento, quem faz a cabeça do presidente não é mais o Posto Ipiranga, mas os ideólogos do golpe.

Para ele e os demais ministros “técnicos” ficar é, sim, chancelar. Está claro que não virão “notáveis” para fazer parte dessa gestão que arrasa tudo que toca. O nível daqui para a frente será de Mário Frias para baixo.

“Sozinho no escuro, qual bicho do mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha”, Paulo. Paulo, para onde?

Fim de festa - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 21/06

Militares recuam. Weintraub fugindo e Mário Frias na Cultura completam clima de fim de festa


A fuga do inacreditável Abraham Weintraub para Miami e a chegada do também inacreditável Mário Frias à Secretaria de Cultura trazem ao governo um sensação de fim de festa, ou de fim do mundo, com o presidente Jair Bolsonaro catatônico, os generais aturdidos, o trio jurídico tentando um “respiro” do Supremo e o pau comendo na Justiça e na pandemia. Com um milhão de contaminados e 50 mil mortos, o foco do presidente está em outros números: 01, 02 e 03.

Situação dramática. Os militares finalmente se dão conta, o mundo jurídico age e o político se preserva. Todos conversam com todos procurando uma luz no fim do túnel: ex-presidentes (menos Lula), atuais e ex-ministros do Supremo, da Defesa e da Justiça, políticos de diferentes cores, juristas independentes, militares da ativa e da reserva. Os bolsonaristas veem “abuso” e “perseguição” contra Bolsonaro, o STF e os demais lembram que os ataques e ameaças partiram dele. Mas há uma saudável operação de guerra para defender o País – apesar do presidente.

Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, pelo menos, têm conversado com o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e Gilmar foi ao comandante do Exército, general Walter Pujol (que tem sido exemplar). Também têm canal com o ministro da Justiça, o secretário-geral da Presidência e o advogado-geral da União, além de influentes generais da reserva. Bolsonaro, que deveria liderar esse processo, está alienado. Na sua dimensão, almoça com gatos pingados do Centrão, faz live patética com Weintraub, defende o preso Fabrício Queiroz e desdenha de um milhão de brasileiros com o vírus (“Quase 90% não sentem quase nada”).

Os militares fecharam os olhos para atos golpistas, uso da marca das FA, obsessão contra o isolamento social e a favor da cloroquina e até para a derrubada de portarias sobre controle de armas. Agora, como Sérgio Moro, chegam ao seu limite. Meia volta, volver. Defender Queiroz, Flávio Bolsonaro, ligações com milícia? Weintraub no Banco Mundial? Aparelhamento das PMs? Manipulação das FA pelo capitão insubordinado? Aliás, Bolsonaro faz questão de um general da ativa à disposição. Será que o secretário de Governo, Luiz Eduardo Ramos, vai mesmo para a reserva?

Certo domingo, Bolsonaro convidou o ministro da Defesa para uma volta inocente de helicóptero. Eis que – na versão do general – ele se viu num ato contra o STF e o Congresso e pela volta dos militares. É mole? E ele já ratificou a nota do general Augusto Heleno ameaçando o STF com “consequências imprevisíveis” e a de Bolsonaro dizendo que as FA não vão cumprir “ordens absurdas” e “julgamentos políticos”. Na primeira, houve recuo. Na outra, explicação de bastidores: Bolsonaro queria os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica na nota. O ministro da Defesa assumiu o ônus.

Na quinta e na sexta, com a prisão de Queiroz, Bolsonaro chamou o general Fernando e o ministros da Justiça, deixando no ar a tentativa de envolvê-los (com a PF junto) num problema que não é de governo, mas dele e dos filhos. E as Forças Armadas com isso? Os comandantes bem fazem continuando mudos, cegos e surdos, enquanto o ministro da Defesa deveria ir tirar fotos nas ações militares na pandemia, bem longe de Brasília.

As FA, porém, não podem se descuidar da população civil armada, do aparelhamento das polícias, das suspeitas de promiscuidade com milícias. Já imaginaram a PM cruzando os braços numa invasão do STF? Típico caso de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com Exército na rua. E aí? Forças Armadas contra polícia? Em nome do que? Dos Bolsonaro? É melhor prevenir esse risco do que remediar depois. O Brasil agradece. 

Guerra fria - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 21/06

Os gestos do presidente Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF) têm pouca chance de reverter o relacionamento institucional entre os dois Poderes por uma razão simples: eles não têm o poder de paralisar as investigações que envolvem Bolsonaro ou seu círculo íntimo, e nem isso pode ser objeto de proposta de negociação. Seria ofensivo.

Espera-se uma reação menos biliosa por parte do presidente caso alguma decisão judicial nos próximos dias, o que não é improvável, mexa com seu humor. O que é classificado de “guerra fria institucional” pelos enviados especiais do Palácio do Planalto a São Paulo para uma conversa apaziguadora com o ministro do STF Alexandre de Moraes é, na verdade, a irresignação do presidente Bolsonaro com as decisões judiciais que lhe são desfavoráveis, o que não tem solução a ser pactuada.

Os enviados foram o ministro Jorge Oliveira, chefe do Gabinete Civil, o ministro da Justiça André Mendonça (ambos candidatos a vagas no Supremo) e José Levi, Advogado-Geral da União. Obviamente, não conversaram sobre investigações ou casos específicos, focando o diálogo na necessidade de acabar essa “guerra fria institucional”.

Ficou combinado que cada um exercerá suas funções sem agressões institucionais, mas o apaziguamento depende mais do presidente, que considera toda ação que atinja seus filhos ou seguidores parte de uma conspiração contra ele. Foi essa, aliás, a intenção de outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, ao conversar com o Comandante do Exército Edson Pujol. Mostrar que o STF apenas cumpre seu papel de guardião da Constituição

Os três emissários do Planalto fazem parte do grupo considerado dos que prezam a institucionalidade, e com a saída do ministro da Educação ,Abraham Weintraub, parecem prestigiados. Mas, com Bolsonaro, nunca se sabe. A expressão dele ao lado de Weintraub, que tomou a iniciativa de anunciar a própria saída, mostrava um homem claramente constrangido, e as possíveis razões disso são ruins para ele.

Se for devido à prisão, naquele mesmo dia, do Queiroz, têm-se a dimensão do estrago feito. Mas há outras especulações. Podia estar incomodado por ter que demitir Weintraub, ou insatisfeito por ter que dar, pela pressão das redes sociais, uma saída honrosa a ele, ou o prestígio virtual de Weintraub já o contraria.

Como Weintraub pretende assumir papel relevante nas redes sociais, ao lado do ideólogo de Virginia agora que estão juntos nos Estados Unidos, pode ser que o eventual atrito aumente. Mas esses problemas tornaram-se pequenos diante do que tem pela frente na Justiça.

O futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, nega que tenha sido procurado por interlocutores do governo para uma tentativa de aproximação, que de resto acha desnecessária, pois considera a relação institucional entre os Poderes natural.

Mas os que conhecem o ministro Fux consideram difícil que ele recebesse o presidente e sua comitiva na visita extemporânea ao Supremo, como Bolsonaro fez com um grupo de empresários sem ter marcado previamente com o presidente Dias Toffoli. São espíritos distintos.

Toffoli mais propenso a tentar um pacto de governabilidade entre os três Poderes que foi implodido pelo estilo totalitário de Bolsonaro. Até mesmo pela experiência anterior, o futuro presidente Fux não repetiria o gesto, mesmo porque o presidente Bolsonaro entendeu o pacto como sinal de que o Judiciário e o Congresso não o incomodariam, o que se mostrou um ledo engano de sua parte.

Além de tudo, há um componente nessa equação de paz que não está sob controle: as milícias digitais, que o governo diz não controlar. Como as investigações estão caminhando na direção de exibir os coordenadores e os financiadores desses grupos, e o próprio presidente estimula as manifestações com motes antidemocráticos de fechamento do Congresso e do STF, ficará muito difícil desvincular o presidente e seu círculo íntimo dos agressores.

O recado que o presidente tem recebido dos contatos com ministros do Supremo pode ser resumido à resposta do ministro Luis Roberto Barroso a um interlocutor que o procurou para saber se o presidente tinha o que temer em relação ao inquérito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que preside. Disse Barroso: “Só se tiver feito alguma coisa errada”.

A blindagem tabajara de Queiroz - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 21/06

Fabrício Queiroz estava guardado no sítio de Atibaia do doutor Frederick Wassef, o “Anjo”, da família Bolsonaro


A blindagem que protegia Fabrício Queiroz foi coordenada por Asmodeu. Em 2019, quando um passarinho da Polícia Federal fez chegar aos Bolsonaro a informação de que havia gente de olho no chevalier servant do capitão, ele foi protegido pelos sete lados. De saída, Queiroz e sua filha foram demitidos dos gabinetes da família em que estavam lotados. Em seguida, tratou-se da sua defesa. O primeiro nome que entrou na roda foi o do advogado Antônio Pitombo. Não era conveniente, porque ele defendia Jair Bolsonaro. Numa segunda hipótese o caso iria para Christiano Fragoso. Profissional renomado, estaria acima das posses de Queiroz. Tratava-se de arrumar um advogado que não desse na vista. Nessa altura, Queiroz sumiu das vistas do público, e Jair Bolsonaro paralisou toda operação, chamando-a a si.

Na quinta-feira, o vexame: Fabrício Queiroz estava guardado no sítio de Atibaia do doutor Frederick Wassef, o “Anjo”, da família Bolsonaro.

Wassef gosta de holofotes, fez fama e tornou-se figurinha carimbada em Brasília e vistosa presença em eventos oficiais. O que foi uma operação para afastar Queiroz da família, virou uma pajelança tabajara que resultou no oposto. Pior, só se ele estivesse no Alvorada.

Queiroz estava sem advogado desde dezembro do ano passado. Seu novo defensor é Paulo Emílio Catta Preta. Até fevereiro ele cuidava dos interesses do miliciano Adriano da Nóbrega, que estava foragido e foi morto pela polícia no interior da Bahia, num sítio do vereador Gilsinho da Dedé, eleito pelo PSL, partido a que pertenceu Jair Bolsonaro. A mãe e a mulher de Adriano estiveram lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, sob o patrocínio de Fabrício Queiroz.

Preso, Queiroz vê a realização de suas premonições. Em 2018 ele perguntou a um advogado quantos anos ia pegar. Meses depois, assustado, dizia que “o Ministério Público está com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente e não vem ninguém agindo.”

Pelo visto, o “Anjo” Wassef agia. Passaram-se dois anos do aviso dado pelo passarinho da Polícia Federal, a questão, piorada, voltou ao ponto de partida: o Ministério Público não tem pressa, só tem perguntas.

Tormentas à vista

A família Bolsonaro tem quatro tormentas pela frente:

A Câmara do Tribunal de Justiça do Rio onde cairá um pedido de revogação da prisão preventiva de Fabrício Queiroz é severa.

O senador Flávio Bolsonaro não tem foro privilegiado no caso das “rachadinhas”, pois a trama ocorreu quando ele era deputado estadual.

O Ministério Público do Rio está com a faca nos dentes.

Qualquer recurso que vá ao Superior Tribunal de Justiça cairá na relatoria do ministro Felix Fischer, que come abelha.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, come alho cru com cloroquina e acha que se instalou um clima de histeria diante de uma gripezinha

Com governadores e prefeitos aliviando o isolamento, um milhão de casos de Covid e mais de 40 mil mortos, ele acredita que os doutores interpretaram mal uma conversa que teve com um amigo.

O cidadão contou ao cretino que tinha um raro distúrbio urinário. Às 10h de Greenwich, estivesse onde estivesse, urinava-se. Foi a cinco médicos, inclusive três urologistas, e nada.

Eremildo aconselhou-o:

— Acho que você deve procurar um psicanalista.

Passaram-se algumas semanas e o cretino encontrou o amigo.

— E aí? Como vai aquele seu problema?


— Resolvido. Fui ao psicanalista, são 10h15m, estou todo molhado, mas estou feliz.

Autocombustão

O doutor André Mendonça fez boa fama como advogado-geral da União. Foi empossado no Ministério da Justiça numa cena de programa de auditório, durante a qual a deputada Carla Zambelli aplaudia-o assobiando e ele, num lance esquisito, deu continência ao capitão Bolsonaro duas vezes, chamando-o de “profeta”.

Passaram-se poucos meses e ele pediu que investigasse o chargista Aroeira por ter associado Bolsonaro a uma cruz gamada do nazismo e o repórter Ricardo Noblat, por tê-la veiculado.

Quem se mete com chargista, de duas uma, ou não tem o que fazer ou faz o que lhe mandam. Dezenas de profissionais replicaram o trabalho de Aroeira. E agora?

Indo-se para o campo jurídico, a revista americana “Hustler” publicou uma paródia de um anúncio do rum Bacardi, no qual brincava-se com a “primeira vez” de personagens famosos e a vítima foi o pastor Jerry Falwell. Sua “primeira vez” teria sido incestuosa.

Falwell processou a revista, pedindo US$ 45 milhões de indenização. Perdeu por 8x0 na Corte Suprema. Como diria o capitão Bolsonaro, o Judiciário toma decisões abusivas.

Sendo advogado, Mendonça poderia dar uma lida na decisão da Corte, redigida pelo seu presidente William Rehnquist. Acompanhando-o, estava Antonin Scalia. Ambos ajudaram a ressuscitar o conservadorismo americano servindo ao Direito.

Fábrica de crise

De quem já viu de tudo no Palácio do Planalto:

Houve presidentes em cujos mandatos a crise entrava no palácio e saia menor: Michel Temer, Lula e Fernando Henrique. Com a Dilma ela entrava pequena e saia maior.

Com o Bolsonaro ela não precisa nem entrar. Ele vai para o cercadinho do Alvorada e fabrica a encrenca.

Virou bagunça

O general Eduardo Pazuello povoou o Ministério da Saúde com militares. Direito dele. A repórter Camila Mattoso revelou que ele está inovando os métodos de gestão pública. O empresário Airton Soligo, ex-deputado federal por Roraima, conhecido como “Cascavel”, intitulou-se “parceiro de missão” do general, assumiu poderes de facilitador no ministério. Reuniu-se com governadores e tratou de assuntos oficiais com secretários de Saúde.

“Cascavel” não é médico, nem servidor público.

Para quem acha que militares levam critérios de racionalidade e disciplina para a administração civil, a memória ensina que jamais na História das Forças Armadas um paisano meteu-se na administração de um quartel. Na burocracia civil, quando um transeunte se mete na administração, isso é sinal de que algo de ruim pode acontecer.

Onde fica a saída?

As Forças Armadas levaram 25 anos para se afastar da administração civil. De uma hora para outra, o capitão e alguns generais as levaram de novo para o meio de redemoinho.

Começou-se a pensar como sair dessa.

Vera Lynn

Militares da ativa ou da reserva podem ter uns momentos de alegria nostálgica ouvindo a voz de Vera Lynn, a favorita dos combatentes ingleses durante a Segunda Guerra. Ela morreu, aos 103 anos.

No ano do seu centenário saiu um álbum das melhores canções, com nova orquestração.

Filha de um operário com uma costureira, sua voz deu às tropas um estímulo só comparável à do primeiro-ministro Winston Churchill, até porque o rei George VI era gago.

Weintraub entrou nos EUA como um contrabando -JOSIAS DE SOUZA

UOL - 21/06

Os detalhes do envio de Abraham Weintraub para um refúgio dourado no exterior provocam no brasileiro que é obrigado a permanecer no país uma sensação insuportável de exílio, uma nostalgia colossal do Brasil. É como se o capitão e seus sequazes arcaicos quisessem impor aos brasileiros um país do qual nem os cegos conseguem se orgulhar.

Weintraub não viajou para os Estados Unidos. Ele foi contrabandeado. Três dias depois do anúncio de sua demissão, apresentou-se aos agentes alfandegários americanos como ministro da Educação do Brasil. Com isso, livrou-se da quarentena que a administração amiga de Donald Trump impõe aos brasileiros por causa da pandemia.

Só depois da consumação do logro Bolsonaro mandou publicar a demissão de Weintraub numa edição extraordinária do Diário Oficial. Se o viajante fosse uma mercadoria, estaria transitando por Miami como muamba. Tratando-se de uma pessoa, percorre a cidade americana na forma de uma caricatura.

O grotesco foi promovido de um contracheque de ministro (R$ 30,9 mil mensais) para um holerite de diretor do Banco Mundial (R$ 115 mil). Extinguiu o direito do brasileiro ao riso. Poucas vezes o sórdido teve uma aparência tão marcadamente sórdida.

Weintraub voou de sua Pasárgada para o estrangeiro com a pressa de um fugitivo. Ele responde a dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal. Num, é processado por ofender os ministros do Supremo: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF.”

Noutro, é investigado pelo crime de racismo. Publicou numa rede social mensagem ironizando o modo como os chineses falam português, trocando a letra R pelo L.

Para virar diretor do Banco Mundial, o vexame brasileiro precisa ser referendado por outros oito países. Um abaixo-assinado subscrito por 15 organizações da sociedade e 250 pessoas, entre economistas, ex-ministros, escritores e artistas, pede que a muamba seja devolvida ao Brasil.